“Mas que diabo há de tão complicado
na lei de Gauss?!”1
Uma alegoria
Consideremos um rio (o rio Tejo, por exemplo) no seu lento fluir para o
oceano, e suponhamos que a água que nele corre é um fluido incompressı́vel, ou
seja, que volumes iguais do fluido contêm quantidades (massas) iguais de água.
Imaginemos uma porção de volume deste rio, imóvel relativamente à margem, com a forma de um cubo com um metro de aresta2 . A região de espaço
que estamos a considerar não tem qualquer materialidade, mas podemos pensar
que se trata de um cubo feito com rede de capoeira, preso ao fundo do rio por
forma a permanecer totalmente submerso e imóvel relativamente às margens.
Uma vez que os fluidos não são detidos por fronteiras imaginárias (ou feitas
com rede de capoeira), as paredes da região que estamos a considerar são permanentemente atravessadas por água. Mas não deve haver dúvidas de que, estando
a região totalmente submersa, o seu conteúdo permanece constantemente igual
a 1 m3 (1000 l) de água. Sendo assim, temos que concluir que a quantidade de
água que entra, em qualquer intervalo de tempo, no nosso cubo, é exactamente
igual à quantidade que dele sai, no mesmo intervalo de tempo.
Vamos agora interromper por instantes esta discussão para introduzir algumas definições muito simples que simplificarão a linguagem.
Para os presentes efeitos, chama-se fluxo de água 3 através de uma
superfı́cie à quantidade de água que atravessa essa superfı́cie por
unidade de tempo, num dado sentido.
A expressão “num dado sentido” significa que se devem contar com sinais diferentes as contribuições para o fluxo provenientes de correntes que atravessem a
superfı́cie em sentidos diferentes.
Para os presentes efeitos, chama-se superfı́cie fechada aquela que
divide o mundo em duas partes: a parte por ela encerrada, por um
lado, e o espaço exterior, por outro.
Por exemplo, uma bola de sabão é limitada por uma superfı́cie fechada; uma
garrafa fechada, uma bola de rugby, ou a superfı́cie do cubo que temos estado
a considerar, são também exemplos de superfı́cies fechadas.
1 Desespero
de um docente de Electromagnetismo na altura da correcção dos exames.
forma da região considerada é, como se verá, completamente arbitrária, sendo sugerida
esta apenas para facilitar a visualização.
3 Um nome mais apropriado seria fluxo da densidade de corrente.
2A
1
Quando se calcula o fluxo de água através de uma superfı́cie arbitrária, é
necessário em geral escolher um sentido, que determina o sinal do resultado;
mas, nos casos em que a superfı́cie em questão é uma superfı́cie fechada, deve-se
sempre, por convenção, fazer o cálculo do fluxo que sai do volume interior à
superfı́cie. Claro que, com a definição apresentada, o fluxo que entra é igual,
mas de sinal contrário.
Retomemos a discussão há pouco interrompida. Acabávamos de afirmar que
a quantidade de água que entra, num certo intervalo de tempo, no nosso cubo, é
exactamente igual à que dele sai no mesmo intervalo de tempo. Podemos agora
reafirmar esta preposição na forma
O fluxo total de água através das paredes do cubo é nulo.
As duas afirmações são perfeitamente equivalentes porque, de acordo com a
nossa definição de fluxo, a água que entra no cubo por unidade de tempo é
contada com sinal negativo, ao contrário da que sai. Quando somadas, anulamse uma à outra, resultando o fluxo total igual a zero.
Até aqui é tudo muito simples e trivial.
Vamos agora complicar um pouco as coisas. No estudo da termodinâmica,
introduzem-se por vezes animais exóticos, chamados demónios (exemplo: o
demónio de Maxwell), normalmente microscópicos, que são conhecidos por realizarem proezas de todo impossı́veis face às leis da natureza. Ora, como é sabido,
nada nas águas do Tejo uma numerosa população de seres com caracterı́sticas
semelhantes, que pertencem à espécie demonicus aquænsis4 , minúsculos invertebrados com um comportamento assaz interessante para a presente discussão.
Com efeito, os aquarelos-macho alimentam-se da água onde nadam, fazendo
assim desaparecer quantidades relativamente importantes deste fluido. Inversamente, os aquarelos do sexo feminino, transformam em água o seu alimento (que,
diga-se de passagem, não se sabe ainda o que seja). Desta forma, a presença
de aquarelos-fêmea num frasco pode ser identificada através de um aumento da
quantidade de água no recipiente5 , e a de aquarelos-macho por uma diminuição
dessa quantidade.
Quando se considera a presença de aquarelos na água, torna-se necessário
modificar a lei simples que há pouco enunciámos. Com efeito, consideremos
agora que, dentro do nosso cubo, nadam alguns aquarelos-fêmea. Estes produzem, em cada intervalo de tempo, uma certa quantidade de água. Ora, como
considerámos a água um fluido incompressı́vel, esta quantidade produzida pelos
aquarelos não se pode acumular dentro do cubo, escoando-se portanto através
das paredes do mesmo. Mas então a quantidade de água que entra por unidade
de tempo no cubo já não pode ser igual à que dele sai, no mesmo intervalo de
4 Conhecidos popularmente por aquarelos. É também frequente a designação demónio de
Oliveira.
5 É interessante notar que alguns estudantes apresentam caracterı́sticas semelhantes, evidenciadas pela grande quantidade de água que metem nos exames. Foi mesmo aventada a
hipótese de que na base deste comportamento estaria uma infecção de aquarelos, resultado da
ingestão de águas não convenientemente desinfectadas...
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tempo! A segunda destas quantidades é maior que a primeira, e a diferença entre elas é evidentemente igual à quantidade produzida nesse intervalo de tempo
pelo grupo de aquarelos-fêmea. De forma inversa, se dentro do nosso cubo houver aquarelos-macho, verifica-se que a quantidade de água que entra no cubo
num certo intervalo de tempo é superior à que sai, sendo a diferença igual à
quantidade destruı́da pelos aquarelo macho.
A presença de demonicum na água altera evidentemente as leis simples da
hidrodinâmica. Para o estudo destas situações foi desenvolvido um novo ramo
da fı́sica, chamado demonohidrodinâmica. O fundador desta disciplina foi o
grande fı́sico e biólogo H. Dois Oliveira (1817-1890). Vamos de seguida descrever
sucintamente o trabalho por ele realizado neste ramo.
O seu estudo começou imediatamente após a descoberta do demonicus aquænsis, em 1840. Importava nessa altura estudar as propriedades desta espécie.
Oliveira propôs-se medir a quantidade de água criada e destruı́da pelos aquarelos, e determinar os factores que fariam variar essa quantidade. O seu trabalho6 ,
ainda hoje um exemplo de rigor experimental, permitiu estabelecer o seguinte
resultado:
A quantidade de água criada (ou aniquilada) por indivı́duo da espécie demonicus aquænsis e por unidade de tempo é constante.
Quer isto dizer que todos os aquarelos criam (se forem fêmeas) ou destroem (se
forem machos) água à mesma taxa temporal, independentemente da idade, do
sexo, do nı́vel de poluição, do estado de espı́rito, ou de quaisquer outras variáveis,
internas ou externas. A esta constante (que é costume representar pelo sı́mbolo
1/0 ) deu-se o nome de taxa fundamental aquarelı́fera, e corresponde, como é
evidente, à quantidade (em unidades de massa) de água produzida (no caso dos
aquarelos-fêmea) ou aniquilada (no caso dos aquarelo-macho), por unidade de
tempo.
Considermos agora que no interior do nosso cubo imaginário nada uma mistura de aquarelos macho e fêmea7 . Se o número de aquarelos-fêmea fôr exactamente igual ao de aquarelos macho, a quantidade de água produzida em cada
intervalo de tempo por aquelas é exactamente igual à aniquilada por estes, de
forma que tudo se passa como se não houvesse aquarelos dentro do cubo. Já
o mesmo não se passa se houver um excesso ou defeito de qualquer dos sexos
dentro do volume limitado pelo cubo. Sejam Nf [V ] e Nm [V ] os números de
aquarelos-fêmea e macho, respectivamente, presentes no volume do cubo. A
quantidade de água produzida por unidade de tempo dentro do cubo é evidentemente proporcional à diferença Q[V ] = Nf [V ] − Nm [V ]. Como a quantidade
de água produzida (ou aniquilada) por cada aquarelo-fêmea (ou macho) por
unidade de tempo é igual a 1/0 , chegamos facilmente à conclusão de que em
cada unidade de tempo aparecem, dentro do cubo, Q[V ]/0 unidades de massa
6 Ver, por exemplo, H. D. Oliveira, J. C. Superstar e A. B. Costa, J. Teol. Sc., F 40, (1841)
1; H. D. Oliveira, A. B. Costa, D. E. Frankenstein e J. C. Superstar Demonohydrodynamics
Today, 190, (1841) 120.
7 Esta é, de resto, a situação mais frequente, dada a natureza promı́scua dos aquarelos...
3
de água. Ora, como se supõe que a água é um fluido incompressı́vel, esta quantidade de água não se pode acumular dentro do cubo, sendo pois forçada a sair.
Sendo assim, chegamos finalmente à famosa Lei de Oliveira:
O fluxo de água através de uma superfı́cie fechada totalmente imersa
num meio aquoso é igual à diferença entre o número de aquarelos
fêmea e macho presentes no volume limitado por essa superfı́cie, a
multiplicar pela taxa fundamental aquarelı́fera.
Voltando ao nosso exemplo do rio Tejo, é importante notar que, apesar de todos
os aquarelos contribuirem para o maior ou menor caudal do rio, apenas aqueles
que estão dentro do cubo afectam o fluxo de água através das suas paredes.
Para aqueles que apreciam o grafismo matemático, é possı́vel reescrever esta
~ a função densidade de corrente
lei numa fórmula simples e sucinta. Seja E
aquosa numa certa região do rio, S uma superfı́cie fechada totalmente imersa
naquela região, V o volume limitado por esta superfı́cie e Q[V ] a diferença entre
o número de aquarelos fêmea e de aquarelos-macho presentes em V . A lei de
Oliveira pode então reescrever-se na forma
Z
~ = Q[V ]
~ · dS
(1)
E
0
S
Conclusão Alguns estudantes, que têm o (péssimo) hábito de empinar8 fórmulas, terão concerteza reconhecido na equação (1) o pouco que sabem da também
famosa Lei de Gauss da Electrostática. É claro que esta semelhança formal é
apenas uma mera coincidência...
Ou não será?...
8 Exercı́cio de Yoga que consiste na memorização do aspecto gráfico de porções de texto,
fórmulas, etc., abstraindo-se o praticante do significado neles contido.
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Mas que diabo há de tão complicado na lei de Gauss?