Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Palavra e imagem, no 44, p. 13-20, 2012
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Entrevista com Lucia Teixeira
Por Silvia Maria de Souza
1. Na área de Letras vê-se, tanto no campo da linguística, quanto no
campo da literatura, um interesse crescente em pesquisas sobre a
relação entre linguagens. Muitos livros, teses e artigos se propõem
analisar, por exemplo, as relações entre foto jornalística e reportagem, cinema e literatura, adaptação de obras literárias, sites da internet. Como a senhora avalia esse interesse?
O interesse pelas relações entre linguagens é antigo. Horácio, em sua Arte
poética, escrita por volta dos anos 20 a.C., já falava que a pintura era como
a poesia – Ut pictura poesis, expressão que permanece, na história das artes,
como fonte de inspiração ou de desacordo para os que se dedicam aos estudos sobre as relações de similaridade entre poesia e pintura. Claro que
no mundo contemporâneo, em que não só surgem novas linguagens, mas
também novas formas de relações entre linguagens, a questão ganha novo
interesse e oferece grandes desafios aos pesquisadores. Eu diria que temos
dois polos de interesse, em torno dos quais há variações e possibilidades
complexas de exploração. De um lado, estão os estudos comparativos, que
tanto podem dedicar-se às traduções intersemióticas, aquelas que tomam
um texto produzido numa linguagem e o transpõem para outras linguagens, quanto podem estabelecer conexões de similaridade, homologia ou
contraste e diferença entre textos quaisquer. No primeiro caso, estão, por
exemplo, estudos sobre as chamadas adaptações literárias, em que um romance é transposto para a tela do cinema ou para um seriado de televisão,
sendo mais bem-sucedida, quase sempre, a adaptação que toma o fio da
história como pretexto narrativo para uma realização autônoma, em que se
explorem os recursos da linguagem segunda em toda a sua potencialidade.
Exemplo clássico é a adaptação do romance de Graciliano Ramos, Vidas
secas, feita por Nelson Pereira dos Santos. No segundo caso – mas também
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podendo servir ao primeiro –, estão os estudos comparativos que buscam
traços, procedimentos, temáticas ou recursos de expressão similares ou contrastivos entre obras produzidas em linguagens diferentes. Não se trata de
verificar que referências a poesia faz à pintura ou em que grau a pintura
contém elementos poéticos, mas de mostrar, por exemplo, que a espacialidade, conceito associado às chamadas artes do espaço, pode ser elemento
estruturador de um romance, da mesma forma que ressonâncias e silêncios,
procedimentos próprios da poesia, podem criar noções de profundidade ou
de vazio numa pintura. No outro polo de interesse dos estudos das relações
entre linguagens, estão os textos sincréticos, aqueles que põem em relação diferentes linguagens numa mesma unidade textual, como a ópera, o
cinema ou as histórias em quadrinhos. Nesse caso, será preciso examinar a
estratégia enunciativa que cria uma unidade de sentido e abandonar a ideia
de uma soma de linguagens. Algumas teorias, como a semiótica social, têm
chamado esses textos de multimodais, mas eu prefiro a nomenclatura da
semiótica discursiva com que trabalho, porque me parece que, na própria
nomenclatura escolhida, há uma diferença de concepção desses textos: enquanto o prefixo sin- traz ideia de unidade e integração, multi- opera com
as noções de quantidade e dispersão. Na concepção da semiótica social, a
análise busca os sentidos particulares das diferentes linguagens, para depois integrá-los em estruturas narrativas e simbólicas. Já para a semiótica
discursiva, um objeto sincrético é aquele que, acionando várias linguagens
de manifestação, está submetido, como texto, a uma enunciação única
que confere unidade à variação. Nesse caso, são estudados procedimentos
como andamento, tonicidade, ritmo e profundidade, que acionam as diferentes linguagens e instituem um plano de expressão novo. Na linguagem
cinematográfica, por exemplo, não se fala em efeitos de sentido da linguagem verbal, da música, da linguagem visual isoladamente, ou como partes
de um todo, mas considera-se uma globalidade, que é o filme veiculado num
plano de expressão constituído de elementos de diferentes ordens sígnicas.
2. A senhora apresenta, em vários trabalhos, uma preocupação com o
desenvolvimento de metodologias de análise de textos. Quais seriam
os caminhos teóricos para enfrentar os desafios apresentados por textos que se manifestam por meio de múltiplas linguagens?
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Como disse anteriormente, no estudo dos textos sincréticos, o desafio é
descrever a estratégia enunciativa que confere à diversidade de linguagens
em jogo, num único texto, o efeito de unidade. Não se pode, por exemplo,
analisar as falas dos personagens de uma HQ sem considerar o desenho
a que se associam. Nessa unidade de desenho e fala, existem movimentos, limites, cortes, sobreposições etc. Não é fácil examinar esse tipo de
texto e daí vem meu interesse pela metodologia, que nasce do meu gosto
pela teoria. Quem trabalha com teorias do texto e do discurso precisa ter
esse cuidado de orientar suas análises por uma opção teórica. Interpretar textos, eu sempre digo, não é privilégio de nenhum pesquisador preparado. Qualquer leitor sensível e experiente saberá falar sobre um texto
e responderá bem à questão: o que esse texto quer dizer? Para o analista,
entretanto, não se trata de responder a essa questão, mas de compreender
os mecanismos de produção de sentido que fazem com que um texto diga
o que diz. Por que uma cena representada numa pintura inspira a ideia
de tranquilidade? Certamente porque terá arranjos harmônicos de cor e
formas, porque haverá uma continuidade entre fundo e figura, ou entre
planos, porque as formas estarão submetidas a um mesmo tipo de traço
ou movimento. Uma paisagem de Baptista da Costa, pintor acadêmico
brasileiro, tem essas qualidades de quietude e ordem. Já as paisagens de
Turner, em que o cromatismo e a forma se submetem à gestualidade das
pinceladas, são mais inquietantes e comoventes. Nos textos sincréticos,
a metodologia deve contemplar uma concepção teórica que considere a
noção de unidade textual, sem que isso signifique, evidentemente, que
um texto se esgota nele mesmo, mas querendo isso dizer que estamos
diante de uma manifestação singular, autônoma em sua organização estrutural e plena de sentidos que a inscrevem em um dado momento sóciohistórico. A análise de qualquer texto tem sempre dois movimentos: um
de desconstrução, outro de reconstrução. Separar, fragmentar, classificar
são procedimentos de desconstrução; reunir, sistematizar, agrupar são
formas de reconstituir o texto, para enfim interpretá-lo. A metodologia de
análise não cabe aqui detalhar, mas todos nós que trabalhamos com textos sincréticos, em cada análise, avançamos na construção de um aparato
metodológico. No SEDI, o grupo de pesquisa em Semiótica e Discurso
que coordeno aqui na UFF, desenvolvemos trabalhos em torno desse
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tema. Nosso projeto atualmente em curso, Linguagens na Cibercultura,
tem reunido análises de diferentes sites da internet ou de procedimentos
próprios da cibercultura. Muitos de nossos pesquisadores analisam textos sincrético como o jornal (Regina Souza Gomes), a televisão (Silvia
Maria de Sousa), as HQs (Renata Mancini), a publicidade (Guilherme
Nery e Sandro Torres), os panfletos políticos (Oriana Fulaneti), em seus
projetos individuais. Juntamos assim interesses comuns e particulares na
discussão de caminhos teóricos. A teoria semiótica nos dá a direção do
olhar, ensina a entrar no texto, a definir percursos, a observar determinados aspectos. Mas sendo cada texto novo um desafio, o analista precisa dobrar seu conhecimento teórico aos apelos do texto e fazer de cada
análise não um exercício ou uma aplicação mas a busca de novos desenvolvimentos teórico-metodológicos. Em linhas gerais, eu diria que
a metodologia semiótica de análise de textos sincréticos considera uma
organização sêmio-narrativa de base, concretizada discursivamente nas
projeções de tempo, espaço e pessoa e nas escolhas temáticas e figurativas. Esses elementos do plano do conteúdo se manifestam num plano de
expressão regido por um ritmo e um movimento que regulam a oscilação
entre o novo e o surpreendente numa escala que se submete, menos ou
mais, às coerções do gênero, do tipo de texto e dos apelos afetivos e sensoriais que o texto pode ou pretende desencadear. O analista deverá identificar esses elementos e descrever a estratégia enunciativa de comunicação
sincrética que os organiza na unidade de sentido que é o texto.
3. Em alguns de seus trabalhos recentes, a senhora investiga o “ritmo dos
textos” e, para isso, analisa poemas concretos. Qual é a sua opinião
sobre a relação entre linguagem verbal e visualidade na poesia?
Eu não falaria em opinião propriamente, mas em uma posição que venho
defendendo, decorrente de certas escolhas teóricas que faço para a leitura desses poemas. Com base na noção de que o significante verbal se
manifesta visual ou auditivamente, costumo dizer que no poema concreto são exploradas as potencialidades visuais da linguagem verbal. Não
existe uma linguagem visual, como não existe uma linguagem auditiva
nem uma linguagem gustativa. Visão, audição e paladar são sensações,
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não são linguagens. Falar em linguagem visual é usar uma expressão
abrangente, que não tem sentido rigoroso, vinculado a uma definição de
linguagem. Uma linguagem se constitui de um plano de expressão associado a um plano do conteúdo, associação regulada por certas regras,
tanto de correspondências estruturais quanto de ação enunciativa. Um
canal perceptivo é o meio sensorial que permite a relação de um sujeito
com os corpos do universo. Não existe, assim, uma linguagem visual,
mas um canal sensorial predominantemente visual de percepção de objetos, como uma pintura, uma instalação, uma fotografia, um cartaz de
cinema, um filme, uma novela de televisão. E o plano de expressão de
cada uma dessas manifestações, com suas recorrências e articulações com
um plano de conteúdo, é que permite falar de uma linguagem da pintura ou da escultura. No movimento da poesia concreta desenvolvido
no Brasil, defendeu-se a ideia de uma arte da palavra desvinculada do
padrão formal do verso e comprometida com a integração de elementos
sonoros e visuais. É em Joyce que os concretistas de primeira hora, como
Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari, vão encontrar o termo
verbivocovisual por meio do qual afirmam a integração, na poesia, de
som, visualidade e sentido. Trata-se, portanto, de exacerbar as qualidades
da matéria verbal. Ora, se a leitura de um poema com utilização de recursos de ênfase ou de entonação da voz, conferindo musicalidade e emoção
ao que se lê, não põe em dúvida o caráter verbal do poema, por que a
exploração das possibilidades de distribuição da forma do poema, no espaço branco da página, lhe retiraria essa mesma qualidade? Há, no poema
concreto, uma exploração das possibilidades máximas de expressão do
verbal, uma expansão da qualidade matérica da palavra, uma acentuação
de sua qualidade visível, por meio de um ato que recupera, como em toda
poesia, o signo de sua banalização. No poema concreto, a linguagem verbal é torcida, dobrada, submetida à experimentação mais radical e a um
ritmo próprio de desenvolvimento que não é mais linear, porque o poema
se abre no espaço do papel, brinca, tensiona esse espaço em combinações
surpreendentes, ainda que uma força coesiva também atue, mas aqui para
conferir sentido ao jogo de materialidades. Já no poema em versos, há
uma qualidade visual que o distingue de imediato da prosa, mas é no
poema concreto que a qualidade visual da linguagem verbal é elevada a
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seu máximo limite de significação. Pode-se pensar, evidentemente, que no
caso dessa exacerbação das qualidades visuais, um desenho, muitas vezes
reiterativo de uma forma (como no clássico O ovo, de Símias de Rodes,
escrito em 325 a.C., ou no nosso Ovonovelo, de Augusto de Campos),
superpõe-se a um arranjo de palavras. Nos arranjos que organizam os
versos, sobressai uma forma desenhada, mas ainda assim são os elementos
verbais que se prestam a fragmentações e reorganizações que criam uma
ordem visual figurativa, reiterada por um desenho.
4. O filósofo francês Pierre Lévy afirma que vivemos num raro momento, em que está sendo inventado um novo estilo de humanidade.
Para ele, estamos sob uma nova configuração técnica, que modifica
a nossa maneira de representar o mundo, de adquirir conhecimento
e de nos relacionar. A senhora considera que esse novo “estilo de humanidade”, permeado por mídias eletrônicas, transforma a nossa relação com a “palavra”?
Esse novo estilo a que se refere Lévy transforma tudo: as relações humanas, o modo de conviver socialmente, a inteligibilidade do mundo, as
linguagens. Como eu disse, estamos tentando, no SEDI, explicar o modo
de funcionamento dessa nova linguagem que cria o mundo por vezes assustador, por vezes maravilhoso da cibercultura. Não é possível simplesmente desejar ou rejeitar, por exemplo, as redes sociais criadas nessa nova
era de comunicação. Também não é possível criticá-las com instrumentos
de reflexão de séculos passados ou com aparatos teóricos destinados à leitura de textos historicamente estabelecidos, como um poema, uma canção ou uma peça de teatro. A ciência avança, e nós todos, pesquisadores
das linguagens, temos de acompanhar esse avanço, ir atrás dos novos objetos. Por exemplo, enquanto escrevo as respostas a essa entrevista, recebo
um aviso que pisca na tela de meu computador, de que chegou em minha
caixa postal um e-mail de uma organização que se movimenta para salvar
os rinocerontes. Uma aluna me chama no facebook para me perguntar
que textos deve ler para a próxima aula. E eu mesma descanso entre uma
resposta e outra jogando uma partida de paciência. Veja que mistura, que
aparente confusão entre vida social, profissional e pessoal, que alternân-
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cia entre o mundo e eu mesma, entre as várias possibilidades que tenho
de interferência no mundo e minha responsabilidade de corresponder à
expectativa dessa entrevista. A aparente dispersão dessas atividades, entretanto, acaba por conferir uma unidade mais íntegra – se posso usar
essa redundância expressiva – a mim mesma. O tempo e o espaço estão
inteiramente reconfigurados na cibercultura, há uma quebra de linearidade e uma sobreposição de planos, uma opção pela simultaneidade e um
gosto pelo excesso que só podem acolher um sujeito fragmentado e disperso que precisamos compreender e incorporar em nossas análises. Essa
nova constituição dos sujeitos, do tempo e do espaço, se materializa numa
linguagem também nova, que não apenas reúne manifestações verbais e
visuais, mas esgarça os limites dos textos e manda para muito longe nossas expectativas de controle do trabalho de investigação e interpretação.
Acostumados com um poema de 12 versos, um livro de 247 páginas, uma
música de 13 minutos ou uma tela de 50x70, de repente estamos diante
de um texto que rola na página, que se conecta a outros, que se altera no
momento mesmo em que o lemos, ou ainda que pode não estar mais lá
(e onde será esse lá?) quando o quisermos reler amanhã. Como lidar com
essa fugacidade e com esse movimento? Tornando fugazes e movimentados os instrumentos de análise, fugazes e movimentados nossos corpos
que operam as máquinas. Fugacidade e movimento significam aqui uma
atitude de disponibilidade e abertura, um espírito de desbravamento e
uma capacidade de metamorfose que não se associam à ligeireza da investigação mas a uma disposição de ânimo de se deixar conduzir um pouco
pelo objeto, experimentá-lo, servir-se dele, adquirir certa intimidade com
sua natureza movediça. Vai longe a linda moça de Almeida Júnior, sentada
em uma varanda, lendo com concentração um livro gentilmente pousado
entre suas mãos delicadas. As moças hoje estudam, namoram, brigam e se
emocionam na mesma tela do computador, em que diferentes abas estão
sempre abertas ao mesmo tempo, à espera de um sinal sonoro ou uma piscada que as transformem em urgência ou em contato. Para o pesquisador
dessa linguagem e desses novos modos de vida os desafios são enormes,
porque se trata de viver e analisar uma nova mediação, um novo mundo e
uma nova linguagem. Como analistas de textos e de discursos, temos de
usar os instrumentos teóricos de que já dispomos, mas redimensioná-los
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em função dos desafios desses novos objetos. Para a semiótica discursiva,
por exemplo, não bastará considerar que lidamos com textos sincréticos,
mas teremos de incorporar conceitos, como ritmo e movimento, corpo
e afeto, nas análises. A disposição afetiva do sujeito, a gestualidade de
seu corpo diante da tela do computador ou do celular, a circulação desse
sujeito no mundo, a relação entre concentração e dispersão, tudo isso terá
de ser considerado e formalizado como conceito operacional das análises.
Eu diria, para concluir, que a questão da cibercultura é fascinante como
objeto de pesquisa justamente porque está em processo, está por fazer,
constituindo-se como problema e desafio. E o que mais pode desejar um
cientista, um estudioso da linguagem, senão ser desafiado pelas linguagens?
Niterói, 29 de março de 2012
Entrevista concedida à Profª Drª Silvia Maria de Sousa.
Recebido em: 18/08/11
Aprovado em: 15/09/11
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