Análise Psicológica (1995), 1-2 (XIII): 23-31 O Feminino e o Masculino: Ensaio Sobre a Violência e a Ordem Social ISABEL PEREIRA LEAL (*) i. INTRODUÇÃO Falamos de violência diariamente referindo-nos às mais diversas coisas: ao filme de guerra que passou na televisão, à notícia do jornal sobre mais uma cena de facada ou um assalto a um banco, ao desvio de um avião no outro lado do mundo. Normalmente tomamos como violência acções ou comportamentos que são manifestamente ilegais ou que nós consideramos como ilegítimos. Mas para lá dessa dimensão de senso comum, todos sabemos que existem vários níveis de violência que muito mais subtis não são noticiados, nem merecem nenhuma ribalta especialmente luminosa. Não que sejam menos importantes. Habitualmente são até de extrema importância. Só que de tão enrodilhados no nosso quotidiano abordá-los seria pôr em causa toda a nossa forma de estar na vida, começar de novo, perder a cómoda e lânguida certeza de que tudo está nos seus devidos sítios. Sim porque convenhamos, em relação ao filme de guerra, é só a fingir, e sobre assaltos, facadas ou desvios de aviões nada se pode fazer. Ultrapassa a competência de qualquer um. Até já aconteceu, ou diz respeito a um governo ou a um grupo qualquer que nada tem a ver comigo (afinal quem anda às facadas são os ciganos ou os cabo-verdianos). A violência não são só os crimes, a margina- (*) Professora Auxiliar, ISPA. lidade, a desviância ou a guerra, são também e sobretudo as pequenas ofensas, as imperceptíveis humilhações, a observância escrupulosa e metódica das normas estabelecidas, a minúcia e assepsia das instituições de paz. A violência sobre as mulheres não são só as violações e os assaltos, são também e sobretudo as permanentes desqualificações em termos de capacidade decisória ou de comando (a qualquer nível: social, profissional, familiar, afectivo), as ínvias afirmações de igualdade (igual a quem?), as tortuosas emancipações que duplicam o trabalho e enchem o corpo de hormónios, as rebuscadas justificações daquilo que são as suas necessidades e o seu papel social. A questão de quem exerce a violência sobre as mulheres não é também uma questão fácil e óbvia. Seria fácil dizer os homens e com isso engendrar o bode-expiatório que tudo explica e tudo resolve. Saber quem é o inimigo proporciona sempre alguma vantagem. Mas os homens, tal como as mulheres, são também eles tecidos no mesmo manto transgeracional e ubíquo chamado Ordem Social. Podem esforçadamente lavar a loiça, mudar as fraldas e limpar o pó. Podem em desespero de apaziguamento fazer croché no autocarro ou não dizerem piropos na rua, nem se meterem com as secretárias. Podem inclusive deixar de cantar a beleza da musa inspiradora, a doçura do fazer amor ao pôr-do-sol, o charme da vizinha do lado, ou os seios opulentos da Vitória Principal. Podem fazer tudo isso ou não fazer, sem 23 que no entanto algo mude radicalmente no que concerne A violência sobre as mulheres. É que a ordem social traça e molda os homens e as mulheres antes destes serem homens e mulheres. Impregna-se nos discursos legitimizantes, nas teorias científicas, nas práticas religiosas, nas concepções filosóficas e, a partir daí debita um discurso de permanente categorização e alteridade. Quando se nasce é-se desde logo colocado numa ordem. Tão simbólica e tão aleatória como qualquer ordem humana. É a partir desse lugar, desde logo ocupado e denominado, que se vai proceder a socialização, quer dizer que se vai ser gostado ou desgostado, educado ou ensinado, inserido num projecto ou afastado dele. É de qualquer modo a partir desse lugar que se vai crescer e ser... mulher. 2. DA FORÇA E DO MEDO A violência começou a ser estudada num contexto que Thinés chama de ((violência directa)) quer dizer no comportamento relativo ao «atentado A integridade física de outrem». Nüncii no entanto em nenhum dicionário foi directamente relacionada ou classificada como morte ou assassínio. Este conceito inicial, de certo modo restrito, foi sofrendo sucessivos alargamentos, acabando por ser em muitos casos mero sinónimo de força ou coacção. Se existe uma íntima relação entre estes três conceitos não há no entanto sinonímia. Força 15 um termo importado (nas ciências humanas) dia Física onde designava originalmente qualquer acção capaz de alterar o estado de repouso ou movimento de um corpo. Analogicamente, no homem força deveria designar qualquer estímulo capaz de suscitar resposta. Nesse sentido deveria conservar Umii certa assépcia valorativa já que á semelhança do que se passa na física não existe propriamente uma relação de poder, mas apenas e tão só ümii relação de força inerente a especificidade dos corpos em presença. Como se sabe não foi só isso que aconteceu e o conceito de força passou a designar a posse o11 o controlo de um capital específico. Pensamos no entanto que esta designação não 24 cumpre nem o espírito da designação inaugural, nem tão pouco a especificidade das relações humanas. Não basta que alguém (indivíduo ou grupo) tenha força abstractamente. É necessário também que isso implique uma resposta da parte do receptor da acção. ‘A resposta A força é, no nosso ponto de vista, sempre, o medo. Porquê o medo? Em primeiro lugar porque todos nós humanos temos um passado genético evolutivamente carregado. Quer dizer que para além daquilo que o material genético da espécie nos dá a possibilidade de adquirir: cultura (somos seres biologicamente programados para adquirir cultura) existe depois, a forma como essa cultura é adquirida. Ora numa primeira fase da vida, a neotenia humana parece determinar o estabelecimento de uma relação do tipo domínio-submissão. Domínio total por parte do adulto, submissão total por parte da criança. Mais do que isso esta relação é tipicamente uma relação de força tal como a física concebe este conceito. Tudo o que a criança pode fazer é responder vagamente a estímulos, alguns agradáveis, outros desagradáveis, mesmo que não tenha ainda consciência que dá uma resposta e que os estímulos são exteriores a si própria. Como Wallon bem mostrou, uma das emoções precocemente diferenciadas é o medo (ainda que comece por ter um carácter essencialmente orgânico existe reciprocidade de acção imediata entre as modificações do tónus e das atitudes e as modificações da sensibilidade afectiva) (Wallon, 1954). E como o paradigma psicanalítico refere expressamente a vida fantasmática da criança é repleta. Melanie Klein, particularmente ao investigar os estádios mais precoces do desenvolvimento humano, conclui pela existência de angústias de vários tipos na criança. São elas que vão de certa forma protagonizar a passagem da auto referenciação da criança em si própria para a efectiva relação desta, primeiro com a figura parenta1 depois com o meio. Quer isto dizer que enquanto no mundo físico a força exercida por um corpo sobre outro provoca apenas deslocação, no mundo humano estabelece-se uma relação biunívoca entre, não só os dois seres concretos da acção mas também entre os afectos que experimentam. Dessa forma pode dizer-se que em termos genético-evolutivos a força provoca o medo. 3. DAS INTERDIÇÕES INTERIORIZADAS A socialização, entretanto, se começa aqui, não acaba aqui. Quer isto dizer que, se a dimensão biológica do homem é irrefutável, inicial e primária em relação a todas as outras, em si própria não define a humanidade. Bem pelo contrário. Na medida em que o social corresponde a um afastamento máximo em relação aos mecanismos de regulação biológica, a especificidade humana começa com a aquisição da cultura. E a aquisição da cultura começa a fazer-se em termos individuais sobre dois planos: um cognitivo que diz respeito A aquisição da linguagem e das normas de funcionamento social e outro afectivo que concerne especificamente A interiorização de interdições. Este aspecto particular da interiorização de interdições é fundamental para o tema que nos interessa. Por um lado porque, aquilo que parece ser o ((Aparelho Psíquico)) (Freud) é constituído basicamente por três instâncias, comuns a todos os seres humanos, diferenciadas entre si, mas tendo como base única o material alojado no Id. Esta noção de Id designa o pólo pulsional da personalidade, quer isto dizer que os seus conteúdos são as expressões psíquicas das pulsões, sempre inconscientes e formadas, quer por material hereditário e inato, quer por materiais adquiridos e recalcados (Laplanche & Pontalis). A partir do Id desenvolve-se o Ego que corresponde, de certo modo, a parte adaptativa do Id, conseguida por um lado no contacto com a realidade e por outro com a possibilidade de identificações que levam h formação, no seio da pessoa, de um objecto de amor investido pelo Id. Da dinâmica deste Ego adaptativo e deste Id pulsional surge uma terceira instância, habitualmente designada por Super-Ego. Estas duas primeiras instâncias orientam-se quase exclusivamente por aquilo que pode ser comum a outras espécies superiores e são por isso de base eminentemente biológica na relação com a realidade exterior circundante. Entretanto este Super-Ego, que pode ser defi- nido como a entidade censória do Ego, estabelece-se por interiorização das exigências e interdições parentais. Quer isto dizer que, a base constitutiva do aparelho psíquico e portanto da personalidade é obtida assimilando e fazendo seu interdições que, na medida em que são primariamente parentais, são secundariamente sociais. Deste modo, ser social é antes de mais interiorizar regras e interditos. Esta questão fundamental é habitualmente levianamente considerada. Brinca-se um pouco com a formulação Freudiana (e Lacaniana) do complexo de Édipo como se se tratasse de um mito rocambulesco ou de uma história obscena em que todos querem ir para a cama com todos. Não se trata evidentemente de nada disso. Aquilo que se designa por complexo de Édipo é uma dimensão fundamental e estruturante, não só dos indivíduos, como das próprias sociedades. O complexo de Édipo não é, como os redutores da psicanálise argumentam, o desejo sexual incestuoso dos filhos pelos pais de sexo oposto. Só caricaturalmente é que se fala do matar da mãe para ir para a cama com o pai e só nessa medida isso tem algum sentido. A questão em causa é em primeiro lugar o estabelecimento efectivo de uma relação triangular que desfocalize todos os investimentos afectivos de uma única pessoa. Compreende-se porquê. As relações duais fogem A dimensão do controle social. O par amoroso (quer dizer, afectiva e reciprocamente investido) cria um espaço de comunicação e fruição desajustado em relação aquilo que são os interesses de uma comunidade. Socializar é por isso triangular, quer dizer edipianizar. Mesmo que esse investimento num terceiro não corresponda a um desejo básico de ninguém, mas apenas e tão só uma dupla operação que consista primeiro em estruturar um desejo, e depois, interditá-lo (Deleuze & Guatari). E, assim, entrar na cultura é adoptar como seu e como bom, que aquilo que são as coacções sociais têm de ser e só podem ser assim. 4. DA COACÇÃO Mas, quando uma coacção social é egossintónica acabamos inevitavelmente por não a sentir. Nem como coacção, muito menos como violência. 25 Explicando melhor. Dizíamos atrás que o primeiro tipo de relação se estabelece sobre um eixo de polaridade força-medo. E, que, tanto quanto é possível humanamente imaginar não se vislumbra nenhuma alternativa possível a esta relação biologicamente determinada. O princípio activo da força é a coacção, o forçar a ..., o obrigar a... Assim, desde que nos lembramos, todos nós sofremos, muitas grandes e pequenas coacções. Ter uma postura erecta, falar determinada língua, estudar, trabalhar, ter filhos ou casar são coacções de diferentes níveis, cujas alternativas seriam igualmente coercivas mas sempre de acordo com aquilo que são as possibilidades humanas de resposta numa certa ordem social. E aqui não há muito por onde escolher, ou se é humano, ou se não é. Mas se a coacção é um princípio de força eminentemente social, isso quer dizer que, por uni lado é sempre anterior ao indivíduo. Nessa medida, não só funciona porque é força, mas também, porque atravessou toda a teia de construções simbólicas humanas e é por isso também autoritária e legítima. E assim, não só atravessamos todos juntos um mar de coacções, como nos formamos como pessoas nelas, acabando por não as sentir como tal e tomando-as como mero,s princípios da realidade. 5. DA PERCEPÇÃO (ONDE SANCHO VÊ MOINHOS, D. QUIXOTE VÊ GIGANTES) Existe no entanto um momento, diferente de indivíduo para indivíduo, em que alguma ou algumas coacções passam a ser sentidas como intoleráveis. Aí deixam de ser meros princípios da realidade para passarem a ser considerada:; como violências. Yves Michaud diz que «h;í violência quando, numa situação de interacção, um ou vários actores agem de maneira directa 011 indirecta, concentrada ou dispersa, prejudicando um ou vários outros, em graus variáveis, quer na sua integridade física, quer na sua integridade moral, quer nos seus bens, quer nas suas participações simbólicas e culturais)). Esta definição de que ressalta sobretudo ~i dimensão da violência enquanto acção de prejuízo se, não cobre a totalidade de fenómeno:; eventualmente descritíveis como violentos, cor.responde entretanto, do nosso ponto de vista, 26 àquilo que o senso-comum entende por violência. Há no entanto nesta definição, como praticamente em todas as que versam sobre fenómenos sociais, uma (enorme) margem de imprecisão que é exactamente a que corresponde ao facto de nem toda a gente considerar como violentas as mesmas coisas. Este facto de que o próprio Michaud dá conta de imediato, tem sido exaustivamente trabalhado por um conjunto de psicólogos sociais (Moscovici, 1961; Berkowitz, 1969; Da Glória & De Ridder, 1977, 1979; Leyens, 1979; Digiacomo, 1981; Vala, 1981). Todos concluem que, inevitavelmente, a definição de violência envolve uma atribuição e que, nessa medida, é sempre dependente do sistema de normas culturais em que o indivíduo está implicado. É assim que, por exemplo, muitos dos relatórios produzidos por diferentes organismos, assimilam a violência ao terrorismo, a criminalidade ou a desviância. Entretanto Bordieu e Passeron denunciam a violência pedagógica, Basaglia e os anti-psiquiatras a violência das Instituições asilares, Ivan Illich a violência da medicalização, Jaques Attali a violência na música. E nós, aqui estamos a falar de violência sobre as mulheres como, provavelmente noutros espaços e noutros lugares alguém falará ou denunciará a violência sobre as crianças ou sobre o meio ambiente, a violência na televisão ou na rádio, a violência do Gulag ou a violência Estrutural, a violência do Estado ou da Revolução. Parece pois claro, que quando estamos a falar de violência não estamos todos a falar da mesma violência. Antes, pensamo-la de acordo com o nosso grupo de pertença e as suas mudanças temporais. Existem, portanto, violências diferentes. Nem melhores nem piores. Apenas diferentes (onde Sancho vê moinhos, D. Quixote vê gigantes). 6. DO SEXO DA ORDEM SOCIAL Das diferentes violências exercidas sobre as mulheres a primeira, a maior e a mais profunda inicia-se com a própria ordem social (e este é um ponto de vista que não esperamos que toda a gente compartilhe). O nascimento da cultura faz-se no momento em que aparece uma lei, simultaneamente inscrita na ontogene e na filogene. Essa lei que na vertente intra-psíquica e o Édipo e na vertente inter-pessoal é o incesto, ao mesmo tempo que rege interdições específicas, alimenta permissões maiores. Quer dizer, ao mesmo tempo que filia um indivíduo numa ordem ou num grupo, obriga-o a sair dele para construir a sua própria família. A moeda de troca de todas essas transacções e alargamentos sociais sempre foram, desde tempos imemoriais, as mulheres. É Levi-Strauss quem diz: ((L‘autorité politique, ou simplement sociale, appartient toujours aux hommes et cette priorité masculine présente un caracter constant, qu’elle s’acommode d’un mode de filiation matrilinéaire ou patrilinéaire, dans le majorité des societés les plus primitives, ou qu’elle impose son modèle A tous les aspects de la vie sociale comme c’est le cas dans les groupes dévelopées. C’est un fait universal que le lien de réciprocité qui fonde le mariage n’est pas établi entre des hommes au moyen des femmes a qui en sort la principale occasion.)) O «Locus» social é pois, e desde sempre, território masculino. Nele, as alianças e as trocas iniciam-se com mulheres. Espantosamente elas que estão off-side em relação a qualquer capacidade decisória acabam a ser, tradicionalmente, como hoje, o elemento de ligação entre vários grupos. ((L’échange des femmes a pour effect une plus-value: le lieu social» (Moscovici) Tenhamos presente que a ordem social não é, a conjuntura particular vivida num país ou num região numa determinada época. Não é muito menos uma qualquer legitimidade que atribui as mulheres o direito de serem consideradas seres humanos. Nem é tão pouco,‘uma qualquer medida legislativa que lhes assegura o direito de voto, de divórcio, de contracepção ou de emprego. A ordem social inscreve-se num memorial colectivo transgeracional e transhistórico que inscreve o imaginário do grupo humano numa ordem simbólica, polvilhada aqui e ali de elementos do real, ou, dizendo de outro modo, uma ordem social que surgiu em algum momento da hominização, erigiu-se contratualmente (Rousseau e o contrato social). O mito fundamental do contrato social é o de «par entre parem. Ontem, como hoje, o mito da igualdade tem sempre duas funções paralelas e simultâneas: ao mesmo tempo que liga os iguais e os torna coesos como grupo, aponta os desiguais, os diferentes, classifica-os como tal e a partir daí segrega-os ou estabelece-os como inimigos. É esse o princípio de todas as xenofobias em desuso ou em vigor. E, a primeira grande diferença, óbvia e evidente, inscrita na ordem biológica é sempre sexual. Daí que, a ordem social contratada entre iguais, tenha sido entre iguais do mesmo sexo. Promovida não só entre homens mas contra as mulheres. 7. DA ORDEM MIMÉTICAE DOS BODES-EXPIAT~RIOS René Girard, num conjunto de obras que o tornaram famoso no mundo da antropologia em particular e das ciências humanas em geral, aborda o fenómeno que ele designa por violência fundadora. Girard, um pouco na esteira das formulações de Hobbes ou de Locke, sobre as origens do social, considera que no princípio era a violência. A violência entre todos. De todos contra todos. Atenção. Entre irmãos, homens. Uma violência portanto mimética e máscula de que os mitos Gregos ou o Velho Testamento contam passagens: Caim e Abel, Jacob e Esau, Eteceleo e Polinicío. Em cada uma das histórias um princípio civilizador, em cada um dos irmãos inimigos uma encarnação do Bem e do Mal, do Justo e do Pecador. A saída deste ciclo só é possível, para Girard, pela emergência duma função sacrificial, funcionando como bode expiatório que é como quem diz, de objecto transferencial de catarse. É o próprio Girard que o diz: ala violence qu’ils (les fréres ennemis) paraissent fatalement appelés a exercer l’un contre I’autre ne peut jamais se dissiper que sur des victimes tierces, des victimes sacrificielles)) (Lu violence et le Sucre, 1972) E assim deste ponto de vista, o nascimento da civilização é correlativo A superação da permanente competição entre irmãos pela instituição de uma triangulação. Desta vez com características específicas de expiação. Com uma função determinada de canalizar para si ou em si a 27 agressividade dos irmãos, libertando-os assim di: permanente competição entre eíes. Os muitos exemplos que Girard dá em obras como «La violence et le sacre)) (1972), «Des choses cacheés depuis la fondation du monde)) (1978), «Le Boucemissaire)) (1 980), contemplam sempre, nesta função sacrificial, aqueles qui: por uma razão ou por outra, apresentam sinais de diferença, dentro da comunidade. Mas, como o próprio Girard explica e observa, o bode-expiatório na medida em que é considerado pela comunidade como o responsável, o culpado, fonte e origem de todos os males, sofre um investimento especial. Se, ele provoca ou, de algum modo compreensível ou incompreensível para uma qualquer lógica vigente é responsabilizado por um acontecimento (uma peste, uma cheia, uma morte) de impacto social, logo, ele é detentor de um poder inumano, de uma qualquer magia ou dom que o torna diferente, especial, temido, odiado e por uma dessas razões sacrificado. Na medida em que toca o sagrado sem abandonar a ordem humana é o tal que, como Cristo, Maomé, Buda ou os grandes profetas deve perecer. E, tal como na Bíblia, a sua morte é semprt: redentora e apaziguadora. Não interessa para nada a relação de causa-efeito. Não é porque a vítima tenha, de facto I: em termos de realidade alguma relação directa ou indirecta com o acontecimento, que ela devt: ser punida. A culpa ou inocência não estão eni causa (Girard considera que se escolhem semprt: vítimas inocentes) e, de resto não se trata aqui dt: punição ou de castigo. Trata-se genuinamente de expiação. Mais do que isso, de purificação de toda uma comunidade através de um. Daquele que, pelo toque da diferença é passível de corporizar a violência co.lectiva. O que se mata nele é a violência de cada uni projectada para fora. E... morto o bicho, desaparece a peçonha. Curiosamente como anota Enriquez (1981) o acordo tácito da vítima é muitas vezes exigido e.. . conseguido. É esse o caso de Função sacrificial entre os Aztecas (G. Bataille) ou nos muitos casos mitológicos e Bíblicos. As grandes funções sacrificiais são sempre aquelas que se oferecem de pei-. to aberto aos golpes de espada: Jesus Cristo OLL 28 Joana D’Arc como Gandhi ou o soldado desconhecido. De uma forma mais próxima verifica-se que todos os processos inquisitoriais desenvolvem a figura da confissão. É assim que na inquisição se confessava ser possuído pelo demónio, na Alemanha nazi se confessava ser judeu etc. etc. Consideremos por um momento esta dimensão da vítima sacrificial tocada simultaneamente pela divindade e pela sombra de Hades. Não é preciso sequer arrebiques de imaginação para encontrar no papel social de mulher, desde sempre, esta função mista e intercalar entre o sagrado e o profano. Esta senda de expiação purificante em que se imola o cordeiro e se mata nele o que não se pode matar em nós. Afinal foi a Eva a culpada da dentada na maçã. Por isso foi expulsa do Paraíso e passou a parir com dor. Até hoje. 8. DA RECUSA COMO NASCIMENTO DO SIMB~LICO Mas, porquê uma ordem social masculina? E porquê sobretudo, uma ordem social contra as mulheres? A explicação em termos de uma pré-história denominada pela força física parece irrelevante. As mais interessantes hipóteses concernentes às diferentes fases da hominização, tanto nos Protohominídeos como nos Hominídeos (Tinberg, 73, L. Sojka e B. Vieira, 81) não nos adiantam muito neste aspecto particular. Os machos eram maiores? Bom, mas as fêmeas eram mais ágeis. Os machos eram mais fortes? Mas as fêmeas eram mais resistentes. De resto, a força física como valor único se pode implicar algum privilégio num grupo particular, é duvidoso que alguma vez tenha sido primordial. Mesmo entre primatas as hierarquias assentam noutros valores como sejam a experiência e o conhecimento do território. Em nenhuma cultura humana (primitiva ou não) se pode afirmar que a força humana individual tenha dado ou permitido ocupar o topo de hierarquia do grupo. Se a força não desempenha então um papel especialmente relevante, como é que os homens puderam impor uma ordem social? Unindo-se. Obviamente. Quer dizer que, exteriormente ao restrito grupo familiar, desenvolveram relações da alianças com homens de outras famílias. Mas, porque é que desejaram fazer isso? Quais podem ter sido as motivações básicas? Necessidades alimentares? Defesa de predadores? Segurança? É suposto que quanto menor é o grupo, menores são as necessidades alimentares e que aquilo que se ganha em potência no alargamento do grupo, se perde em mobilidade. O que é que pode ter permitido não só um maior afastamento do grupo familiar como da própria mulher? Porquê a substituição de um vínculo afectivo-sexual por outro apenas afectivo? Provavelmente pelo enfraquecimento desse primeiro vínculo. E em que circunstâncias particulares é que isso aconteceria? Quer nos hominídeos, quer nos homens a especificidade e proximidade da relação mãe-filho é assinalada. Ou seja, estamos a sugerir que o enfraquecimento do vínculo afectivo-sexual deveria, lógica e compreensivelmente, partir da mulher-mãe. E se não é crível que numa pré-história distante se pudesse adivinhar a relação de causa-efeito entre o coito e a maternidade é, perfeitamente crível que a relação mãe-filho e a agressividade da fêmea com crias tivesse desempenhado algum papel na construção de tal ordem social masculina. Afinal porque é que os homens se uniram entre si? Porque é que implementaram uma ordem exterior às mulheres e contra elas? Na nossa hipótese só pode ter sido por terem de algum modo sido compelidos a isso, quer dizer, por terem sido excluídos da relação dual. Por terem sido preteridos em favor das crias. Por terem ficado de fora daquilo que tinha sido uma relação preferencial. Se a violência tem um lado fundador, o amor não pode deixar de os ter também. De resto o que existe na criança não é predominantemente o amor ou o ódio mas a ambivalência de sentimentos. Deste modo aquilo que é a construção do grupo masculino, de procura de outros homens e do alargamento do quadro familiar só parece possível a partir de uma recusa, de uma rejeição dentro do próprio quadro familiar. Uma rejeição (ou o sentimento equivalente) feita pelas mulheres. Dizendo ainda de outra maneira: aquilo que liga o casal (e j á nos hominídeos se julga assinalar a existência de pares estáveis) é um vínculo básico e indiscutivelmente afectivo-sexual. Compreensivelmente. Há dentro do par uma troca de gratificações directas e, prazer. Real e directo. Por muito diferentes que os primeiros homens e mulheres tenham sido dos actuais não parece imaginável que o tipo de gratificações dos grupos exclusivamente masculinos possa alguma vez ter um impacto maior que as relações heterossexuais de âmbito sexual. Mais do que isso, se a sexualidade assenta num determinismo biológico não se pode imaginar que ela seja secundária a ordem sexual. Em qualquer caso e dêem-se as voltas que se derem deverá ser sempre primária. Portanto a grande questão das teorias que promovem o contrato mantém-se: o que é que, mais forte que a sexualidade, liga os homens entre si? (quem souber que responda!). A tese de que os homens se uniram entre si por contrato, impelidos por um estado de guerra e competição permanente, sem mais nem menos, assumindo de livre vontade limitações, compromissos, normas, regras, símbolos, só pode mesmo ... vir de homens. 9. DA NEGAÇÃO COMO PRINC~PIODE CIVILIZAÇÃO A ordem social é assim um acto de vingança. Contra as mulheres. Assenta, como anota Enriquez, sobre o recalcamento e simbolismo (De L’Horde u L’Etat, 1981). O recalcamento da recusa e o simbolismo do objecto recalcado. Institui-se assim o tabu: o incesto, e o totem: o phalus. Daí, que a comunidade humana mais que masculina seja falocêntrica. Mais do que valorativa dos homens como indivíduos, eleja como sigla que «a união faz a força)). São as instituições criadas pelos homens, e não tanto os próprios indivíduos, que fazem a manutenção (quase por inércia) dessa ordem social. Em primeiro lugar a Família, e nela o nome do Pai (Lacan). Compreende-se, não foi a mu29 lher que criou a instituição familiar. A mulher e os filhos constituem naturalmente um espaço familiar. Quem fica excluído, se não lutar por unn lugar, é o homem. Daí, que a introdução de uma dimensão hierarquizante e institucionalizante desse espaço só possa ser... masculina. O recalcamento da recusa, entretanto, nega a própria recusa. Nesse movimento de negação acaba a negar o próprio desejo. O que aparece portanto é apenas, como em todos os recalcados, a pontinha do iceberg, ou seja, a dimensão contratual do tabu. Paradigmaticamente (e talvez não só) recusar uma relação sexual é desqualificar um homem, é recusar-lhe a confirmação da sua identidade, aro mesmo tempo que se diz que aquilo que ele tern (que ele é) não é bom. Então, se o prazer sexual lhe é recusado, se a confirmação como homem lhe é negada, se D afecto é desviado para as crias, o que é que lhe resta? Anotemos uma questão fundamental: quem confirma a mulher é o filho. Quem confirma D homem é a mulher. Sem confirmação sexual um homem não é identificável. A menos que substitua o real pelo simbólico. Foi assim que os homens instituíram qualquer coisa que não pode ser recusada. Que não pode ser posta em causa, nem ameaçada na sua identidade porque se tece no registo do simbólico: o totem. Esse totem eleito foi, como ainda é o phal110. E a partir daí se criou a ordem social, ou como diz a Bíblia, o verbo. 10. DAS ANEDOTAS BRITÂNICAS Numa ordem social masculina, tudo tem que existir por referência ao universo masculino. Logicamente. Mesmo que isso revista formas absolutamente ridículas e desfasadas de qua1que:r realidade. Tomemos apenas como exemplo a descendência patrilinear. Como é que um homern pode saber que um filho é de facto seu? Não pode. Mas isso não tem importância, porque não é a realidade que domina na ordem social mas o sistema de crenças. Não é necessário palr isso que um homem tenha um filho. Basta-lhe crer que o tem. Tudo o resto funciona do mesmo modo. Daí, a 30 nossa afirmação inicial que toda a ordem social é aleatória. É desta forma como poderia ser de outra qualquer. Mas, dentro dela, as coisas fluem depois com uma certa lógica. Um pouco como nas anedotas Inglesas, em que a partir de uma permissa absurda se desenvolve um raciocínio hiper-lógico. De acordo com a ordem social masculina, as hierarquias estabelecem não só as posições relativas entre homens e mulheres, mas entre estes nas suas diversas raças, grupos etários, sistemas de crenças, grupos de pertença, etc., etc., etc. O que toda a gente sabe. Elegem-se como valores sociais, as características predominantemente masculinas, as profissões e actividades dominadas pelos homens. Elege-se todo o imaginário masculino povoado de phallos imensos, afirmativos, agressivos, de permanentes confirmações das suas identidades, de permanentes afirmações do seu poder, da sua força, da sua coragem, da sua heroicidade. Tentando sempre negar a recusa fundamental e o universo dos afectos, do qual alguma vez foi arredado. É essa a ordem social em que vivemos. Masculina. Profunda e visceralmente masculina. Por isso é tão marcadamente dicotómica: o bom e o mau, o sagrado e o profano, o justo e o injusto, o escravo e o senhor, a mãe e a puta, a aceitação ou a recusa. Por isso existe uma ausência de meio termo, uma enorme dificuldade de conciliação entre princípios contraditórios, uma incapacidade de compreensão das nuances dos entre-meios. Afinal são sempre as mulheres que produzem as sínteses (os filhos) e é nelas que o «insight», a compreensão global e não construída tem uma maior dinâmica (embora isso não seja obviamente um valor social dominante). A ordem social é pois masculina. Mais do que isso contra-feminina (contra e não anti). A partir desse dado básico é redundante falar da violência sobre as mulheres. Não é sobre elas que a violência se exerce é, contra elas. Em termos de fundo, antes de ser na forma. E a segunda é sempre na consequência da primeira. 1 1. E CONCLUINDO Se esta tese fosse uma tese masculina, a con- clusão óbvia seria pela necessidade de uma revolução. Da instauração de uma outra ordem social. Mas não é. Não se pode destruir tudo para construir de novo, em coisas em que a matéria prima são as pessoas. Estas, como nós dissemos inicialmente, construiram-se numa ordem masculina. Daí que paradoxalmente (ou talvez não) sejam algumas mulheres os pilares, guarda-portões, bastonários e generais dessa ordem. Mais do que isso, são a maioria das mulheres as transmissoras e sacerdotisas dessa ordem. Não o são por acaso, nem por masoquismo, são-no porque, como em todas as situações na vida, é possível extrair benefícios secundários quando eles não existem primariamente. E funcionam. Eficazmente. A questão não é portanto, do nosso ponto de vista, de uma luta inter-sexista. A teoria da luta dos contrários é também ela um fruto de uma concepção dualista do mundo que promoveu este tipo de ordem. As mulheres não são os proletários de uma ordem burguesa encabeçada pelos homens. Se quiserem entrar nessa forma simplista e linear de conceber o mundo, concluirão, sem grandes esforços de reflexão, que trocar os aristocratas pelos burgueses, os burgueses pelos proletários, os proletários pelos burocratas, etc., etc ... não promove nenhuma ordem nova, apenas mudanças formais de grupos, classes ou pessoas. E se classes sociais há muitas, sexos só há dois. A questão é pois, do nosso ponto de vista, intra-sexual. Intra-feminino. É preciso que as mulheres nasçam mulheres e continuem mulheres. Sem terem medo de se transformar naquelas de quem Beauvoir falava com ... mágoa? E essa é uma tarefa de mulheres. Enriquez, E. (1983). De I‘Horde h L’Etat - Psychanalyse du lien social. Paris: Gallimard. Freud, S. (1905). Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade. In Obras completas de Sigmund Freud, Ed. Standard. Rio de Janeiro: Imago Editores, 1977. Freud, S. (1912). Totem e Tabú. In Obras Compleías de Sigmund Freud, Ed. Standard. Rio de Janeiro: Imago Editores, 1977. Freud, S. (191 5). Metapsicologia. In Obras Completas de Sigmund Freud, Ed. Standard. Rio de Janeiro: Imago Editores, Girard, R. (1972). Lu violence et le sacré. Paris: Ed. Bernard Grasset. Girard, R. (1982). Le Bouc-Emissaire. Paris: Ed. Grasset et Farçuelle. Laplanche, J. & Pontalis, J.B. (1967). Vocabulário de Psicanálise. Lisboa: Moraes Editores, i 971. Leal, I. (1989). Da Sociologia Freudiana a Intervenção Psicoterapêutica. Análise Psicológica, VII( 1-2-3): 317-323. Leal, I. (1991). Le Pouvoir. 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((Totem and Tabu» the foundation myth is explained here in order to understand an anti-feminin and anti-masculine social order. RESUMO O grande tema que é o da violência sobre as mulheres é aqui abordado como subjacente a uma Ordem Social falocêntrica. Retomando «Totem e Tabú», reformula-se o mito fundador de forma a tornar compreensível uma Ordem Social que sendo anti-feminina é também anti-mascul ina. 31