A FIGURA SOCIAL FEMININA COMO PERSONAGEM MELODRAMÁTICO
Aureliano Lopes da Silva Junior - Pesquisador do GETEB/UFSJ
Orientadora: Profa. Dra. Claudia M. Braga - Coordenadora do GETEB/UFSJ
Resumo: Parte do projeto de pesquisa Do Melodrama a Telenovela: dramaturgia popular
no Brasil, atualmente desenvolvido no GETEB - Grupo de Estudos e Pesquisa em Teatro Brasileiro,
este estudo objetiva contrapor a figura social feminina da França do século XIX com a
representação desta mulher no melodrama. Como exemplo deste gênero e época, analisou-se a
peça O Trapeiro de Paris (1847), de Félix Pyat.
Palavras-chave: Melodrama, Revolução Francesa, Feminino.
O
melodrama surgiu na França em fins do século XVIII, logo após a Revolução
Francesa, se estendendo e alcançando enorme popularidade durante todo o
século XIX. A peça Coelina ou l'Enfant du mystère escrita por Guilbert de
Pixerécourt em 1800 é considerada o primeiro melodrama. Os pressupostos organizados e
criados por ele estruturaram o novo gênero, que surgia apresentando uma mise en scène
movimentada e com regras bem estabelecidas, onde a interpretação através da mímica
era posta em relevo, o uso da temática obsessional da perseguição e do reconhecimento
(THOMASSEAU, 2004, p.20).
Desde seu surgimento, esta forma dramática preocupou-se em manter uma proximidade
com o público, oferecendo-lhe um espetáculo que ocupava os sentidos e era repleto de
superlativos. Os cenários eram grandiosos. As falas constituiam-se carregadas de grande
carga emocional, que era intensificada pela utilização de trilha sonora. A ação mudava de
direção a todo instante, fazendo uso dos conceitos aristotélicos de peripécia (mudança nos
rumos dos acontecimentos) e reconhecimento (passar à verdade algo antes ignorado). Em
meio a este turbilhão gerado pelo melodrama, a platéia alternava momentos de riso com
outros de grande efusão de lágrimas.
Arnold Hauser define o gênero como extremamente simples, o que talvez explique seu
sucesso junto a um público heterogêneo e fragilizado pelos recentes acontecimentos da
Revolução:
No plano puramente formal, o melodrama é o gênero mais convencional,
esquemático e artificial que se pode imaginar – [...]. Tem uma estrutura
estritamente tríplice, um antagonismo forte como situação inicial, uma colisão
violenta, e um desenlace em que a virtude triunfa e é punido o vício; numa
palavra, um enredo que facilmente se compreende e é economicamente
desenvolvido, com a prioridade do enredo sobre os personagens bem definidos: o
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Aureliano Lopes da Silva Júnior
-2herói, a inocência perseguida, o vilão e o cômico; com a cega e cruel fatalidade
dos acontecimentos; [...]. (HAUSER, 1982, p. 855-886)
O melodrama dominou os teatros dos bulevares franceses, reproduzindo no palco o ideal
de família burguesa, defendendo a honra e a virtude e punindo os vícios. Em um momento
histórico no qual as escolas, as igrejas e outras instituições foram destruídas, o teatro era
tido como o único meio que oferecia ao povo regras morais e de conduta.
Revolução Francesa e Mulher
O cenário sob o qual o melodrama pisou nos palcos populares foi o possibilitado pelas
transformações advindas da Revolução Francesa, o que justifica uma breve exposição
deste contexto para melhor entendermos a relação entre teatro e sociedade, enfatizando a
posição da mulher neste último âmbito.
A mulher européia oitocentista era completamente pautada na figura masculina. Ela
necessitava de um homem para assim poder ser mulher, o que significa que ela não era
considerada um sexo único, mas complemento e subordinada ao masculino. Esta situação
não era diferente em épocas anteriores. Peter Burke tenta nos mostrar como era a
condição da mulher na Idade Moderna, período de 1500 a 1800, porém revela tal
impossibilidade, já que ela não tinha voz, era algo à margem, que sempre esbarrava em
algo que lhe era superior e lhe inferiorizava, no caso, o homem:
Há muito pouco a se dizer sobre as mulheres, por falta de provas. Tanto para os
antropólogos sociais como para os historiadores da cultura popular, existe o
“problema das mulheres”. A dificuldade de reconstruir e interpretar a cultura dos
assim chamados inarticulados é aqui ainda mais agudo; a cultura das mulheres
está para a cultura popular assim como a cultura popular está para o conjunto da
cultura, de modo que é mais fácil dizer o que ela não é do que o que ela é. A
cultura das mulheres não era a mesma que a dos seus maridos, pais, filhos ou
irmãos, pois ainda que muitas coisas fossem partilhadas, também existiam muitas
das quais as mulheres eram excluídas. (BURKE, 1995, p. 76)
A Revolução Francesa aproximou os gêneros masculino e feminino pois foi um levante
popular de massa. Homens e mulheres lutaram juntos pelos seus direitos, porém, mesmo
nesta aproximação, não se perdeu a noção de que o homem era superior à mulher, o que
nos parece algo tido como uma lei universal que sempre pairava, mesmo que
indiretamente, sobre todos.
Após a Revolução, a exacerbação dos gêneros foi brutal, como nos é apontado por Lynn
Hunt:
[...] a Revolução deu um grande impulso a essa evolução decisiva das relações
entre os sexos e da concepção da família. As mulheres estavam associadas a seu
"interior", ao espaço privado, não só porque a industrialização permitia que as
mulheres da burguesia se definissem exclusivamente por ele, mas também porque
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A figura social feminina como personagem melodramático
-3a Revolução tinha demonstrado os resultados possíveis (e o perigo para os
homens) de uma inversão da ordem natural. (HUNT, 1991, p.50-51)
Ora, se a Revolução causou um caos devido a uma inversão da ordem "natural" (ibid.),
seja ela qual for, e referir-se a essa inversão na relação entre os gêneros, mostra-nos
como o mundo era pensado pela ótica masculina; a mulher apenas vivia nele, ele era
primordialmente propriedade dos homens.
Os poderes do homem do século XIX era legitimado pelo modelo patriarcal de organização
da sociedade. A mulher era inserida neste modelo como o exemplar de domesticidade,
como aquela responsável por cuidar e organizar o espaço doméstico.
O homem era senhor do espaço público, porém, como este espaço e seu gênero eram
considerados como superiores, o âmbito doméstico acabava também subordinado a ele, o
que dava uma falsa autonomia às mulheres. Uma liberdade doméstica só existia
efetivamente quando coincidia com os interesses do pai ou marido.
Segundo Lynn Hunt:
Os revolucionários limitaram o papel das mulheres ao de mãe e irmã dependendo, para suas identidades, dos maridos e dos irmãos; Sade as converteu
em prostitutas profissionais ou em mulheres cujo papel principal é sua disposição
em se deixarem acorrentar pelos homens, tendo como única identidade a de
objetos sexuais. Nessas duas representações do privado, as mulheres não
possuem qualquer identidade própria - pelo menos é o que desejam os
personagens masculinos, pois, na verdade, elas são apresentadas como
destruidoras em potencial, como se fosse mais do que evidente que jamais
aceitariam voluntariamente os papéis que lhes são designados. (HUNT, 1991,
p.49)
Devemos considerar que a literatura produzida por Sade era de um alto teor sexual e
povoada por todos os tipos de praticantes e práticas sexuais possíveis. Porém, mesmo
que seu retrato da mulher tenha sido enviesado por este caráter de sua obra, Lynn Hunt
deixa bem claro que o importante, nos escritos de Sade, é a posição de submissão da
mulher frente ao homem. Este posicionamento, e não o seu retrato, que deve ser
ressaltado.
A definição e conseqüente identificação das mulheres era feita pelos homens, já que o
mundo era regido por leis masculinas, esta era sua ordem natural. As mulheres não tinham
voz, viviam aprisionadas em uma falsa autonomia doméstica, transitando como podiam por
este ambiente, próximo ao de uma prisão:
A concepção da mulher, talhada especialmente para o privado (e incapaz para o
público), é a mesma em quase todos os círculos intelectuais do final do século
XVIII. [...] Esta é representada como o inverso do homem. É identificada por sua
sexualidade e seu corpo, enquanto o homem é identificado por seu físico e
energia. O útero define a mulher e determina seu comportamento emocional e
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-4moral. Na época, pensava-se que o sistema reprodutor feminino era
particularmente sensível, e que essa sensibilidade era ainda maior devido à
debilidade intelectual. As mulheres tinham músculos menos desenvolvidos e eram
sedentárias por opção. A combinação de fraqueza muscular e intelectual e
sensibilidade emocional fazia delas os seres mais aptos para criar os filhos. Desse
modo, o útero definia o lugar das mulheres na sociedade como mães. O discurso
dos médicos se unia ao discurso dos políticos. (HUNT, 1991, p. 50)
A mulher, então, era marginalizada, tratada como inferior em qualquer ambiente social,
seja ele a nobreza, burguesia ou entre as classes populares. Esta sociedade patriarcal e
este retrato de mulher, bem como a divisão entre público e privado, estiveram no centro da
cena em todo o período de sucesso do melodrama.
Representação da Mulher no Melodrama
A mulher figurava no melodrama de forma fiel ao encontrado na sociedade. Era um
exemplo de passividade, principalmente no papel da heroína, e mesmo quando fugia um
pouco disto, continuava sempre à sombra da figura masculina. Segundo Thomasseau:
No melodrama clássico, a mulher é a encarnação das virtudes domésticas. [...]
desenha-se, ao longo do século dezenove, um retrato da mulher exemplar
suportando, com toda a coragem, ultrajes e afrontas. A heroína do melodrama é a
esposa, mas é sobretudo a mãe que algo ou alguém separa de seus filhos. Belas,
bondosas, sensíveis, com uma inesgotável aptidão para sofrer e para chorar, elas
sofrem uma dupla submissão, filial e conjugal, e as conseqüências de atos
irreparáveis: maldições paternas, violações, casamentos secretos... Em geral elas
superam os homens em devotamento e generosidade [...]. (THOMASSEU, 2005,
p.43)
O melodrama O Trapeiro de Paris, de Félix Pyat, conta a história de João, um trapeiro que
percorre as ruas de Paris fazendo do lixo desta o seu sustento. É pai adotivo de Maria,
uma costureira virtuosa que desperta a paixão de Henrique, um moço também honrado.
Maria, certa noite, encontra na porta de sua casa um bebê e o acolhe. Porém, esta criança
é o neto do vilão, o Barão Hofman, que mandou matá-la para assim esconder a desonra
de sua filha Clara. Toda a ação da peça gira em torno desta perseguição do vilão a Maria
e, consequentemente, a João. No final do melodrama, descobre-se que o Barão, no
passado, matou o pai de Maria, como também é o responsável pela efetiva morte do filho
de Clara, sendo então punido por seus crimes. Maria tem sua honra restaurada e pode
finalmente se casar com Henrique.
Em uma análise desta peça, verificamos a presença de três mulheres que nos dão uma
clara idéia da mulher européia oitocentista, já que a representação melodramática levou
aos palcos um quadro fiel do que poderia ser encontrado na sociedade da mesma época.
Maria Didier, Me. Potard e Clara Hofman são três figuras distintas da sociedade francesa
do século XIX, as duas primeiras representantes de uma classe miserável e a última uma
aristocrata.
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Maria é uma jovem trabalhadora, uma costureira que necessita deste trabalho como
auxílio para sua sobrevivência juntamente com seu pai, o trapeiro João. Justamente por
trabalhar e ser mulher, ela era discriminada, não vista por bons olhos pelo código social da
época, que delegava às mulheres um papel de total domesticidade, regulado pela figura
masculina. É extremamente honrada, a ponto de querer matar-se para defender sua
virtude. No primeiro ato da peça, Maria usa o vestido que estava costurando para Clara
Hofman em um baile de carnaval, o qual acaba rasgando-se. Nesta festa, o pai do filho de
Clara tenta abusar de Maria, que é defendida por Henrique que mata o agressor. Depois
de tal episódio, nada resta a ela senão a morte, pois assim pode preservar seu nome de
infâmias:
MARIA (só fora de si cabelos em desalinho, o vestido rasgado) – Meu Deus!
Estou perdida! Perdida sem remédio! Louca! Mil vezes louca! [...] Ah! Ainda não
estou em mim! Como em tão poucos instantes eu fui tão castigada da minha
leviandade! Onde me conduziu este fatal vestido?... Agora está perdido... e como
hei de pagá-lo? Onde irei buscar o dinheiro? (despe o vestido que é o mesmo que
estava acabando de fazer, e que o tem vestido e saído com ele) Tudo quanto
possuo não basta!... meu Deus! É um abuso de confiança! quase um roubo! É a
prisão talvez! Que vergonha! Nunca! Nunca! Antes morrer! E de que me serve a
vida... para sofrer como agora?! Não. Prefiro a morte... Ao menos posso morrer
honrada e sem mancha... digna de levar a minha mãe o anel que ela me legou...
para ir encontrá-la lá em cima!... [...] Deixo esta vida de miséria porque não quero
sofrer a infâmia. Não quero mais viver... [...]. (Ato I, Quadro 2º, Cena 4ª, p. 07)
Esta cena nos dá a dimensão da fixidez do papel da mulher nesta sociedade. Uma mulher
verdadeiramente pura não podia permitir-se ser levada pelo desejo, no caso, o de divertirse em uma festa de carnaval. Conservar sua honra era objetivo vital e a morte era melhor
do que ser uma mulher que caiu em desgraça, acusada e marginalizada por toda
sociedade.
Outro ponto imutável era a condição social, que não permitia o trânsito dos indivíduos por
entre as diferentes classes. Estes aspectos eram tão arraigados que o próprio João, de
início, impede Maria de encontrar-se com Henrique, primeiro por ela ser mulher e ele
aparentemente querer apenas se divertir com ela, e segundo por ele ser rico e ela pobre. A
virgindade era o princípio que qualificava uma mulher solteira, mas a condição social
também definia os papéis sociais.
Na visão de João, perfeitamente condizente com o que a sociedade real pensava, um
homem rico interessar-se por uma jovem pobre denotava apenas que ele queria
aproveitar-se dela. Muitas vezes esta era a verdadeira intenção da parte masculina, mas
no caso retratado em O Trapeiro de Paris, Henrique não deseja apenas seduzir Maria,
mas realmente gosta dela:
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-6JOÃO – [...] Sr. escute. É por isso que eu tomo a liberdade de... Uma vez que o
Sr. aqui está... de perguntar-lhe! O que lhe quer?
HENRIQUE – Em atenção ao nome que ela lhe dá, Sr. João, vou-lhe dizer: - Vi
Maria num baile, e amei-a! Por causa dela tive um duelo, e matei o homem que a
insultara. Não posso viver sem ela, e vou desmanchar o meu casamento.
JOÃO – Para casar com ela?
HENRIQUE – Isto não. Amo-a. Estou pronto a fazer todos os sacrifícios. ... Quero
assegurar-lhe um futuro, quero que ela seja feliz.
[...]
JOÃO – Está enganado, senhor! Ainda bem que o confessa. Não a quer para
mulher, quer que seja sua amante!... Sim. Quer arrancá-la deste pobre albergue,
onde ela vive feliz e honesta, para arrojá-la ao lodaçal do vicio, perdida e
desonrada, como outras muitas. Vamos senhor!... Um pouco mais de probidade. O
senhor é jovem ainda; abandone a estrada da devassidão, e seja homem de bem.
O senhor possui carruagens e nós não temos sapatos... O senhor mora em bons
palácios, e nós neste mísero pardieiro: - pode sustentar dez mulheres, e nós não
temos pão para todos os dias!... Possui tudo enfim, e nós nada temos!... E ainda
quer tirar-nos aquilo que nos pertence, o nosso único bem: - a honra!... Se Maria
não pode ser sua mulher, também não será sua amante!... Digo-lhe que o não
consinto eu e que o não quer ela! (Ato II, Quadro 4º, Cena 4ª, p. 17)
A segunda mulher a figurar nesta peça é a parteira Me. Potard. Mulher pobre e
extremamente ambiciosa é comparsa do vilão em seus crimes, sendo ela quem mata o
filho de Clara, depois de ter recebido uma considerável quantia em dinheiro do Barão
Hofman. Porém seus diálogos denotam que seu único objetivo é melhorar sua condição de
vida, o que a leva a querer sempre mais dinheiro e a fazer o que for necessário para tal:
POTARD – Expliquemo-nos. Devo dizer-lhe que 8 mil francos não bastam para
pagar um segredo que vale um tesouro, uma fortuna. Dê-me os oito mil francos, e
depois repartirá comigo os lucros que puder ganhar.
[...]
JOÃO – [...] Aqui tem as suas notas. Conte-as. (guardando a carta)
POTARD – (conta) Oito -. Mas esta carta vale mil vezes mais... e por oito mil
francos é de graça!
JOÃO (sai D. A.) – Deixe-a em meu poder, que com isso há de lucrar!
POTARD – Estamos tratados, não? Metade... metade para mim?
JOÃO – Está dito. Fique descansada. Há de ter o seu quinhão.
POTARD – Então até logo.
JOÃO – Até logo, Senhora Potard. – Até logo. (sai D. A.)
POTARD (só) – Quando mesmo ele me enganasse, 8 e 10 fazem 18 mil francos!
A 5 por cento são 900 libras de renda. Com isto já se pode viver. (Ato III, Quadro
5º, Cena 2ª, pp. 21-22)
É interessante observar que a representação da vilania feminina é feita como a de uma
mulher que não possui família nem filhos e sua casa, que deveria ser o reduto do feminino,
lhe serve como local de trabalho, já que uma placa na porta indica que ali há uma parteira.
Este último fato aproxima o imóvel de um local não tão privado, o que tira-lhe a aura de
ambiente familiar, doméstico, digno.
O personagem de Me. Potard é intencionalmente desenhado como de um vilão, pois foge
completamente do ideal feminino burguês, o que o coloca em uma posição marginal e,
desta forma, justifica os crimes cometidos pela parteira.
A última mulher representada em O Trapeiro de Paris é Clara Hofman, uma nobre filha do
vilão Barão Hofman. Clara é um personagem marcado por ter se entregado ao homem que
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amava e ter tido um filho antes de se casar. Ser uma mãe solteira era um crime tão grave,
que seu pai manda matar a criança e força-a a se casar com outro homem a fim de
encobrir seu mal passo:
BARÃO – Seu filho já não existe!
CLARA – Ah!
[...]
BARÃO – Eu a salvarei. Eu a salvarei! Tranqüiliza-te! Não podemos parar senão
quando tivermos tocado o termo, bem o sabes. Quando estiveres casada...
CLARA – Oh! E posso eu fazê-lo?... Quase que perco a razão!... Sinto que vou
sucumbir. Já não tenho forças para lutar. Oh! Se meu pai oculta os nossos crimes
ao mundo, eu não posso ocultá-los a mim mesma... Eu, meu Deus, que sucumbo,
não ao temor; mas ao remorso.
BARÃO – Tranqüiliza-te, já te disse. Era o único meio [...] porque disto depende a
nossa fortuna, a nossa vida, a nossa honra. Mais tarde a salvaremos, se for
possível! (Ato III, Quadro 6º, Cena 1ª, pp.22-23)
Clara se encontra em uma posição de total passividade, pois sabe que se tudo viesse à
tona seria discriminada por todos e, além disso, aceita os mandos de seu pai tornando-se
cúmplice de sues atos, pois é uma mulher lutando contra um homem, ou seja, não possui
forças para isso. Além disso, não é assim que a sociedade se move: o homem é o senhor
total da mulher, seja ela sua esposa ou filha, e não o inverso.
Conclusão
Podemos afirmar que tanto na sociedade européia do século XIX como no gênero
melodramático, a mulher guarda a semelhança da tipificação. Considerando-se que em
seu cotidiano ela é oprimida pela figura masculina tendo seu espaço reduzido, no palco,
seu personagem é construído como um tipo, o da inocente perseguida. Este tipo encontrase à mercê de personagens masculinos: a perseguição pelo vilão e a defesa do herói,
sendo reservado a ela apenas um papel de passividade. A mocinha não age, alguém age
por ela.
O personagem feminino desenhado em papéis secundários mostra-se ainda mais
tipificado. Ele é reduzido tanto por sua condição de mulher como pelo seu lugar na
estrutura da peça, o de apenas complemento e amparo às ações dos protagonistas. A
representação da mulher, seja qual for o lugar que ela ocupa no drama, será sempre
pautada em um personagem masculino, delegando-a um segundo plano de ação.
A figura da mulher é de grande importância nestes dois âmbitos, sociedade e teatro,
porém verificamos que em ambos a figura do homem ainda é sua referência. Na
sociedade o seu espaço primordial é o ambiente doméstico, o lar, o qual será transposto e
ocupado por ela no palco. Assim sendo um dos personagens protagonistas do melodrama,
a mulher encontra-se ali em uma posição secundária no que se refere à ação motora dos
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acontecimentos encenados, o que denota extrema coerência desta representação de seu
papel social.
Referências Bibliográficas
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Letras, 1995.
HAUSER, Arnold. História social da literatura e da arte. Vol. II. São Paulo: Mestre Jou, 1982.
HOBSBAWN, Eric. A Era das Revoluções: Europa 1789-1848. Tradução. Maria Tereza Lopes e
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Revolução Francesa à Primeira Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
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THOMASSEAU, Jean-Marie. O Melodrama. Trad. Claudia Braga e Jacqueline Penjon. São Paulo:
Perspectiva, 2005.
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