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O ASILO D. PEDRO V DO BARREIRO1
Maria Manuela P. Figueiredo Rodrigues2
FCSH – UNL
RESUMO
O objectivo deste trabalho não é identificar a natureza e o propósito dos asilos infantis, pois tal tarefa
exigiria, a princípio, uma análise dos diversos tipos de asilos criados para atender a infância
portuguesa, mas sim analisar um exemplar desses estabelecimentos, de forma a perceber a
importância que era atribuída à educação dos menores mais desfavorecidos de uma determinada
localidade, num recorte temporal balizado pela sua fundação, em 1855, até ao final da 1.ª República
em 1926; em especial, pretendo verificar se havia uniformização, tanto no traje como no espírito e no
comportamento dos asilados, como decorrência da opressão e marginalização dessas crianças. O
despertar do filantropismo em que a criança é tida como objecto de caridade e não como sujeito de
direitos, em particular no que se refere ao problema da infância sem religião, a composição da família
que não aceita frutos de uniões ilegítimas, ocasionando o desamparo dessas crianças, e a urbanização
decorrente da conversão de uma terra pequena num importante centro industrial procurado por
migrantes e por populações rurais, são algumas das variáveis que podem ajudar a compreender o
aparecimento e a manutenção da instituição. Certamente que isto tudo se poderia resumir a um fim
mais prático, mas nada correcto politicamente de ser assumido, que consistia na “limpeza” das ruas e
na manutenção da ordem pública. Ao nome de Asilo D. Pedro V acrescentava-se o nome da terra onde
se encontrava do Barreiro, dado que foram criados outros estabelecimentos do género, na mesma
altura e com o mesmo nome de D. Pedro V, em homenagem ao rei. Esta instituição assistencial da
infância desvalida, que vivia às custas da contribuição dos sócios, de doações e de algumas
subvenções do Estado e da Municipalidade, não servia apenas para amparar os órfãos, mas, também,
a partir de determinada data, mediante o pagamento de uma verba, foi aberta aos filhos de associados
e a outras crianças em geral. Desta forma, o atendimento inicial que deveria estar voltado para as
crianças abandonadas, paulatinamente vai estendendo-se aos “pobres” em geral, graças, em grande
medida, às exigências dos responsáveis directivos do asilo para fazer face a períodos de crise
financeira. Como característica distintiva dos outros estabelecimentos com a designação de asilo, este,
do Barreiro, nunca funcionou como internato, o que fez com que a instituição não tenha tido o
exclusivo da influência sobre os asilados. Apesar disso, não haveria grandes diferenças quanto ao que,
normalmente, se passaria num qualquer asilo infantil em que imperava o rigor no cumprimento de
horários, para que as actividades decorressem conforme um plano racional que atendesse aos
objectivos oficiais da instituição. Estamos em crer que a tentativa de estabelecer uma política de
educação moral e religiosa, aliada à instrução elementar e ao ensino em volta do trabalho manual
feminino de costura, com o intuito de preparar, essencialmente as raparigas, para uma vida de
subserviência futura, consistiu nos fundamentos e objectivos principais deste estabelecimento. Assim,
no seio do processo educativo do Asilo procurou-se fazer de todo o tempo e espaço, de todos os
gestos e práticas, momentos de formação na perspectiva da própria instituição. O trabalho que nos
propomos apresentar é o resultado da pesquisa realizada tendo como fontes manuscritas os livros de
registo, que conseguiram sobreviver no tempo, em especial livros de actas e de receitas/despesas. A
partir de informações colhidas neste exame, o corpus documental foi expandido para publicações da
imprensa local da época, que ampliavam e esclareciam as informações veiculadas nos referidos livros.
1
Ao nome de Asilo D. Pedro V acrescentava-se o nome da terra onde se encontrava, do Barreiro, dado que
foram criados outros estabelecimentos do género, na mesma altura e com o mesmo nome de D. Pedro V, em
homenagem ao rei. Esta instituição, que perduraria até aos dias de hoje, apesar de, actualmente, ter uma
designação que em nada faz lembrar o seu início, completou 150 anos de existência no dia 15 de Setembro de
2005, foi actualizando a sua designação, ao longo de tão provecta existência, passando de Asilo da Infância
Desvalida D. Pedro V para Patronato D. Pedro V e, finalmente, para Jardim de Infância D. Pedro V (fazendo
parte das IPSS - Instituições Particulares de Solidariedade Social - desde a criação destas).
2
Professora do Ensino Básico e Doutoranda em Ciências da Educação na FCSH – UNL
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A documentação é complementada com bibliografia que aborda questões que se levantaram durante o
trabalho. Com esta montagem narrativa, em que os documentos examinados são postos em situação
de confronto, pretende-se reconstruir um pouco da história dos primeiros 75 anos do Asilo D. Pedro
V do Barreiro.
TRABALHO COMPLETO
O Barreiro é uma localidade da margem sul do Tejo em frente da cidade de Lisboa. A
instalação do caminho-de-ferro na segunda metade do século XIX e o complexo industrial da C.U.F.
a partir de 1907 viriam a fazer a mutação de uma pacata terra piscatória e agrícola (com algumas
quintas pertencentes a casas nobres), num importante pólo industrial (com uma população,
predominantemente operária, oriunda de outras partes do país, especialmente do Alentejo), rompendo,
assim, com a estrutura social, económica e urbanística do velho Barreiro.
É nesta localidade que, por obra da iniciativa particular, se viria a fundar um asilo em 1855,
destinado a crianças órfãs e desamparadas de ambos os sexos. Este asilo é o nosso alvo de estudo,
num arco temporal abrangendo os primeiros 75 anos da sua existência, no qual conseguimos
identificar três fases distintas: a primeira, que se prolonga por um período de 27 anos, em que a
fundadora assumiu o papel de directora, caracteriza-se pela consolidação da instituição, graças aos
esforços por ela desenvolvidos; a segunda fase tem início pouco tempo após a sua morte, em 1882, e
prolongar-se-á até 1915, em que a instabilidade económica é uma constante quotidiana, e há um
declínio acentuado do número de sócios, ao ponto da instituição correr o risco de fechar; e a terceira
fase, a partir de 1915, quando há um ressurgir da instituição, graças a direcções activas que
conseguem promover o ingresso de novos sócios. Abordaremos também de forma sucinta as questões
do espaço escolar, da origem social dos alunos e dos seus destinos após a saída do Asilo, do vestuário
dos asilados, e dos conteúdos programáticos ministrados nas aulas.
O período aúreo
(1855-1882)
A fundadora do Asilo D. Pedro V do Barreiro foi uma senhora viúva, D. Henriqueta Leonor
Mourão Gomes de Araújo, que, antes de se dedicar às crianças desprotegidas do Barreiro, já havia
sido convidada para se ocupar em benefício da Sociedade das Casas de Asilo da Infância Desvalida
de Lisboa3. Apesar dos recursos pecuniários de que dispunha serem bastante limitados, e contando,
apenas, com algumas subscrições e donativos, conseguiu que o Asilo fosse inaugurado no dia 15 de
Setembro de 1855, com sete crianças. A inauguração deveria acontecer no dia 16, como era
desiderato da fundadora que “muito estimaria que a abertura do Azylo se podesse realisar no dia da
Aclamação do Snr. Dom Pedro Quinto, para d’ahi provir o titulo ao estabelecimento” (Actas da
Commissão, Livro 1, 1855, p. 2), mas acabou sendo antecipada, porque as autoridades e muitas das
pessoas do Barreiro deslocar-se-iam nesse dia à capital, a fim de tomarem parte nos festejos.
O Asilo era uma instituição de caridade, de cariz marcadamente cristão, obedecendo, nessa
conformidade, aos padrões tradicionais da assistência em Portugal, que tinham sido importados de
outras partes da Europa, particularmente de França. Tratava-se de uma instituição privada de
assistência à infância desvalida, nascida da mera iniciativa particular que a sustentaria durante muitos
anos. Este estabelecimento sobreviveria graças às subscrições e aos donativos voluntários dos seus
associados.
À data da sua fundação não havia um regulamento, pois só passados uns meses é que a
comissão administrativa “julga de muita vantagem, e mesmo indispensavel, confecionar-se um
regulamento para o Asylo, a fim de melhor se dirigir a sua geral administração” (Actas da Comissão
Administrativa 1855-1893, 15 de Janeiro de 1856), pelo que se regeria pelo regulamento geral dos
estabelecimentos de beneficência. No que concerne aos Estatutos havia todo o interesse e
3
Rogério Fernandes tem um artigo sobre as «Casas de Asilo da Infância Desvalida» onde traça a história desta
sociedade entre 1834 e 1840, publicado numa colectânea de textos seus organizada por Margarida Felgueiras e
Cristina Menezes (2004, pp. 453-475).
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obrigatoriedade em seguir o padrão dos existentes nas Casas de Asilo de Lisboa4, pois este Asilo do
Barreiro pertencia a essa Sociedade, como podemos constatar numa passagem do livro de D. António
da Costa (1884), quando cita a notícia de jornal: “As casas de asylo da infância desvalida vão ter na
próxima acclamação de el-rei D. Pedro V mais um estabelecimento, no Barreiro” (p. 213). Esses
Estatutos da Sociedade das Casas de Asilo da Infância Desvalida de Lisboa, aprovados pelo
Ministério do Reino em 10 de Novembro de 1852, compreendiam disposições e regras, num total de
quarenta artigos, distribuídos por sete capítulos. Aquela instituição tinha por finalidade dar protecção,
educação e instrução às crianças pobres de ambos os sexos, desde que tivessem acabado “a creação de
leite” até à idade de sete anos no caso dos meninos, e até aos nove anos no caso das meninas (embora,
sob determinadas circunstâncias, pudessem permanecer até aos doze anos); desta forma, pretendia-se
que os pais dessas crianças pudessem ir trabalhar sem terem de deixar os filhos abandonados. Não
podiam ser admitidos meninos com mais de quatro anos de idade, e meninas com mais de seis anos.
A protecção dada às crianças traduzia-se no sustento, agasalho e asseio enquanto estivessem nas
Casas de Asilo, bem como na promoção do desenvolvimento das suas faculdades, desviando-as dos
perigos por meio de contínua vigilância. A educação, item a que se referia o artigo 3.º, consistia na
promoção do desenvolvimento das faculdades físicas e morais das crianças, na implementação de
hábitos de asseio, ordem, obediência e respeito, e na valorização dos sentimentos cristãos do amor a
Deus e ao próximo. O artigo 4.º, por sua vez, determinava que a instrução “comprehende os
elementos da doutrina christã, ler, escrever, contar, e todas as mais noções geraes ao alcance da
primeira infancia”; acrescentava, ainda, que, às meninas, tinham também de ser ensinados “os
trabalhos proprios do seu sexo e da sua idade”. Os primeiros estatutos privativos do Asilo5,
apresentados no Governo Civil de Lisboa para aprovação oficial que viria a concretizar-se por alvará
de 24 de Novembro de 1876, seriam idênticos aos Estatutos atrás mencionados, nomeadamente no
que se referia à protecção, educação e instrução das crianças.
Com base nos dados disponíveis nos Estatutos da Sociedade das Casas de Asilo da Infância
Desvalida de Lisboa (1852) e nos Relatório e Contas do Asylo de D. Pedro V no Barreiro de 1878,
1881 e 1882, inferimos que a administração do Asilo coube, desde os primeiros tempos, a uma
comissão directiva, cujos elementos eram eleitos de entre os associados. Estes compunham a
Assembleia-Geral (que reuniria uma vez por ano) de onde sairiam, então eleitos, a Mesa da
Assembleia-Geral, a Direcção e a Comissão de Exame de Contas. A Assembleia-Geral seria
constituída pelos subscritores que contribuíssem com uma prestação anual superior a 1$200 réis, e
pelos sócios permanentes, ou seja, os benfeitores que contribuíssem de uma só vez com uma quantia
superior a 48$000 réis (havia, ainda, os sócios correspondentes, que eram as pessoas residentes fora
de Portugal, que se encarregassem de promover donativos e esmolas para os asilados, mas que não
pertenciam, naturalmente, à Assembleia). A Mesa da Assembleia-Geral era constituída por um
presidente, um vice-presidente e dois secretários. A Direcção era composta pelo presidente (cargo
vitalício ocupado pela fundadora e directora), um vice-presidente, um tesoureiro, dois secretários e
dois vogais. A Comissão do Exame de Contas (com três elementos) depois de examinar os
documentos que lhe competia, tinha de os submeter à aprovação da Assembleia-Geral, para depois
serem publicados pela imprensa (embora só tenhamos encontrado publicados os resultados nos anos
de 1878, 1881, 1882, e, posteriormente, em 1885).
Da lista das pessoas que contribuíram para a fundação do Asilo D. Pedro V do Barreiro, num
total de dezoito nomes, consta em primeiro lugar, destacado dos restantes, o nome da Duquesa de
Bragança, não pelo valor do donativo, que foi de 20$000 réis (montante da sua subscrição anual que
manteria durante vários anos), mas pela importância social, de “Sua Magestade Imperial”, e porque
havia sido a primeira pessoa a quem a D. Henriqueta tinha exposto o seu projecto e de quem tinha
4
“Foi resolvido que o mesmo Secretario officiasse ao Ilmo. Administrador, assegurando-lhe que os Estatutos
que regem este Estabelecimento são os mesmos que o Governo se dignou approvar para as Cazas d’Azylo de
Lisbôa” (Actas da Comissão Administrativa 1855-1893, 24 de Março de 1859).
5
Nos documentos consultados encontrámos, apenas, a referência à data da sua aprovação aquando da
substituição pelos Estatutos de 1916. Todavia, no livro de Armando da Silva Pais (1966, pp. 166-167) eles
aparecem descritos em parte.
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obtido protecção6. Este facto constituía um factor de atracção de novos sócios já que pertencer a uma
associação ou promover uma causa a que estava ligada a família real era, por si só, factor de grande
importância, mesmo que o pretexto cristão da caridade estivesse ausente do pensamento dos sócios;
por outro lado, também era um espaço de afirmação social.
D. Henriqueta Gomes de Araújo dirigiu os destinos da instituição por um período de vinte e
sete anos. Faleceu no dia 23 de Abril de 1882, vítima de febre tifóide, deixando “uma prospera
instituição que fornece instrucção e alimento a mais de quarenta creanças, e que estará garantida no
seu futuro pela existencia de um solido capital de réis 20:000$000 de inscripções, e de um rendimento
proprio excedente á importancia de 714$800 réis” (Relatório e Contas, 1882, p. 3). Com a sua morte,
o Asilo começa a entrar em decadência.
A decadência
(1882 – 1915)
O cargo de presidente da Direcção era ocupado pelas sucessivas directoras que passavam pela
instituição. Como vice-presidente esteve, durante alguns anos, o reverendo da freguesia, a exemplo do
que também acontecera no período anterior (pelo menos, desde 1876). De entre os subscritores do
Asilo no ano de 1883, e a título de exemplo, existem, ainda, alguns membros da nobreza (alguns com
ligações de parentesco à fundadora): a Condessa de Tomar, a Viscondessa e o Visconde de Bucelas, a
Viscondessa e o Visconde dos Olivais e a Viscondessa do Paço do Lumiar; a Duquesa de Palmela
constava da pequena lista de sócios permanentes, devido ao avultado dos seus donativos. Mas, com a
morte de D. Henriqueta de Araújo, o Asilo começa lentamente a entrar em período de agonia, devido,
essencialmente, a direcções menos motivadas.
A 10 de Janeiro de 1885, a viscondessa de Bucelas, directora do Asilo, através de carta,
justificava a sua ausência à reunião da Assembleia-Geral, por motivos de saúde. Igualmente, pelo
mesmo motivo, pelo mesmo meio e com a mesma data, se justificava o secretário pela não
comparência no dia seguinte à distribuição dos prémios, e lembrava, ainda, a conveniência de ser
eleito outro secretário, em virtude de não estar a residir no Barreiro. Além destes, também o visconde
de Bucelas se esquivava de participar na dita reunião. Pouco tempo depois, o tesoureiro pedia a
“escuza do cargo (. . .) allegando a sua falta de saude e portanto o encommodo que lhe causava vir a
Barreiro frequentes vezes” (Actas da Comissão Administrativa 1855-1893, 25 de Março de 1885).
Mais um indicador do período de instabilidade em que vivia a instituição é-nos dado pela
carta de uma outra directora, dirigida ao Presidente da Assembleia, em 6 de Julho de 1892, pedindo a
sua demissão do cargo, por motivo de mudança de domicílio da vila do Barreiro para Lisboa. No ano
seguinte, quem exercia o cargo de directora expressava as suas angústias, deixando transparecer o
estado lastimável em que aquele estabelecimento se encontrava, não deixando, no entanto, de se
reconhecer culpada pelo desleixo da professora:
“…por reconhecer o muito mal que poderei cumprir os deveres que me impõe o cargo de
Directora, por passar quase todo o anno ausente do Barreiro, e pela minha pouca saude,
encontrando além d’isso esta casa no pior estado possivel, devido a incuria da Professora
(. . .) tratei de adquirir nova Professora, que me parece cheia da melhor vontade, o que me
anima a esperar que o Asylo possa voltar a antiga forma, o que muito me satisfará”.
Registo das Senhoras Directoras e Inspectoras, 15 de Julho de 1893)
Não existem dados relativos aos anos seguintes, pelo que nos restringimos aos já
apresentados para ilustrar o grau de relativo abandono a que foi votada, lentamente, a instituição,
apesar de haver quem entenda (Pais, 1966, p. 169) que o Asilo se manteve, sensivelmente, até perto
de 1900, no mesmo nível de actividade do período da fundadora (mesmo reconhecendo que a
permanência das directoras passou a ser sempre de relativa curta duração e menor a assiduidade), e
que só a partir dessa data começaria o declínio. É natural que, à medida que se aproximava o fim da
monarquia, os indivíduos da nobreza deixassem de poder, ou de querer, estar ligados a esta
instituição, sendo esse um dos possíveis factores do declínio mais acentuado no início do século XX.
6
D. António da Costa (1884), no seu livro Auroras da Instrucção pela Iniciativa Particular, dedica um dos
capítulos à história do nascimento deste Asilo.
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Contudo, cremos que mais ninguém se dedicou com tanta abnegação e sacrifício como D. Henriqueta
de Araújo, pelo que a desmotivação foi ganhando terreno entre os que se ocuparam, posteriormente,
da sua obra.
A convalescença
(1915 - 1926)
Dado o estado lamentável a que o Asilo havia chegado, foi necessária a intervenção do
Governador Civil, a fim de instaurar uma comissão provisória (27 de Abril de 1915) para o
administrar interinamente e proceder à eleição dos respectivos corpos gerentes:
“tendo receita tão diminuta que é por assim dizer toda absorvida pela despesa e
reconhecendo-se a urgente necessidade de melhorar o estado do Asilo não só na parte
instrutiva como também no que diz respeito á alimentação e ainda à aquisição de
utensílios necessários para os serviços escolares e dos da refeição, e sendo a missão desta
Comissão administrar interinamente este Asilo até à sua reorganisação, isto é, até se
reunir uma assembleia geral, para eleger os corpos gerentes, o que só pode ter logar por
meio d’uma reunião de subscritores ou sócios, que actualmente não existem” (Livro de
Actas da Comissão Administrativa, 1915-1921, 25 de Maio de 1915),
O presidente da comissão administrativa propôs que se enviassem circulares aos proprietários,
industriais, comerciantes e a mais pessoas com poder económico, convidando-as a inscreverem-se
como subscritores com qualquer quantia anual, que poderiam pagar em prestações semestrais, para se
poder fazer face não só à despesa ordinária, mas para introduzir os melhoramentos necessários. Tal
proposta foi aceite, realizada e deu os seus frutos.
Com a entrada em vigor dos novos Estatutos do Asilo de D. Pedro V da Vila do Barreiro
estabelecidos em 10 de Novembro de 1916 (que vêm substituir os de 1876), o Asilo passa a ser uma
instituição laica e nessa conformidade deveria ser exercido o ensino (artigo 4.º); no entanto, o artigo
5.º esclarece que o cumprimento da disposição anterior não impede que o Asilo aceite legados pios ou
donativos, desde que a imposição de se fazer representar em actos religiosos não obrigue ao
reconhecimento de qualquer culto.
A instituição continua a ser destinada à infância desvalida provendo a subsistência e o ensino
de crianças pobres de ambos os sexos (desde a idade de cinco até aos onze anos para os rapazes e dos
cinco até aos treze anos para as meninas), e quando houver recursos prover-se-iam também vestuário
e agasalho. Os limites mínimos e máximos de idade para admissão das crianças são de cinco e oito
anos completos para o sexo masculino, e de cinco e dez anos para o sexo feminino. O ingresso das
crianças devia ser solicitado por escrito pelo parente mais próximo ou pela pessoa que a amparasse,
precisando para o efeito dos seguintes documentos: certidão de idade, certidão de óbito do(s)
progenitor(es), atestado ou certidão de vacinação e de como não padecia de doença contagiosa, e
atestado de pobreza passado pela Junta de Paróquia ou pelo Regedor. Era fixado um determinado
número para admissão de crianças; esta era regulada por ordens de preferência (em cada classe de
preferência, a admissão seria feita por ordem de antiguidade da inscrição tendo em vista a idade da
criança): 1.º - órfãos de pai e mãe, 2.º - órfãos de mãe estando o pai impossibilitado de prover a sua
subsistência e educação, 3.º - órfão de pai e sendo a mãe pobre, 4.º - os desamparados ou
abandonados. A Direcção podia também admitir crianças pensionistas7, desde que não houvesse
prejuízo do número anteriormente fixado. Podia ser permitida a permanência no Asilo, para
7
Uma das formas de subsidiar a existência do Asilo era, também, a abertura do mesmo a outras crianças (que se
designavam de pensionistas), mediante o pagamento de uma mensalidade, de acordo com a classe de ensino que
frequentavam, recebendo as professoras uma percentagem na sua cobrança. Essa modalidade teve início pouco
tempo após a fundação do Asilo, no ano de 1856, quando D. Henriqueta de Araújo, “de acordo com a
Commissão, e a pedido de alguns subscriptores desta villa, resolverão admittir ás lições do Azylo, algumas
creanças externas pela módica quantia de 240 réis por mês” (Actas da Comissão Administrativa 1855-1893, p. 8
verso). O anúncio da abertura da matrícula para admissão de crianças asiladas e pensionistas fazia-se através de
editais.
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“completar a sua educação”, às crianças que pelo seu comportamento e comprovado aproveitamento
se tornassem dignas de tal concessão, não podendo, contudo, a idade delas ir além dos 12 anos no
caso dos rapazes e dos 14 anos nas raparigas.
A instrução, que compreende “instrucção litteraria habilitando as creanças para os exames
elementares e de instrucção primária”, “trabalhos manuais e prendas proprias para as educandas”, e
“outros quaesquer trabalhos theóricos e práticos que as habilitem para auferir honestamente os meios
de subsistência”, passa a ser ministrada por uma professora diplomada com o curso de uma das
Escolas Normais (artigo 6.º). É de salientar, ainda, que nos preenchimentos que se dessem de vagas
do pessoal docente, teriam preferência as educandas ou ex-educandas quando satisfizessem todos os
requisitos exigidos (artigo 40.º).
Os corpos gerentes mantêm-se, mudando, apenas, a Comissão de Exame de Contas que passa
a designar-se Conselho Fiscal (já não há qualquer referência à necessidade de publicar o relatório de
contas, que passa a ser enviado à autoridade competente) e deixa de haver a figura da «directora». No
que a sócios diz respeito, os novos estatutos reconhecem duas categorias: os sócios ordinários e os
sócios beneméritos. Os sócios ordinários seriam aqueles que contribuíssem com uma quota anual não
inferior a 50 centavos, e os sócios beneméritos os que fizessem um donativo não inferior a 10$00, que
promovessem subscrição ou benefício a favor do asilo não inferior a 20$00, que tivessem feito
donativos cuja soma fosse superior a 20$00, ou que fossem considerados como tal pela Assembleia
Geral de Sócios. Podiam ser sócios, todos os indivíduos de ambos os sexos, de maior idade ou
emancipados, as mulheres casadas desde que tivessem uma autorização por escrito do marido, e os
menores com autorização dos pais ou dos tutores (artigo 10.º); contudo, apenas os sócios de maior
idade ou emancipados do sexo masculino, tinham direito a votar e a ser votados para os cargos da
associação (artigo 10.º, § 1.º). Entre os anos 1915 e 1918 a maior parte dos subscritores estava ligada
aos Caminhos de Ferro, e, nas duzentas e vinte e oito inscrições existentes, pudemos encontrar três
farmacêuticos, dois administradores do concelho, dois professores de ensino primário, um médico e
uma doméstica (única mulher).
Assim, o emergir deste novo despertar dá à instituição renovadas forças, apesar de nunca
chegar a atingir o desiderato de assumir em pleno as funções que estão inerentes ao termo «asilo». O
aumento das receitas provinha de donativos das autoridades administrativas e de alguns particulares,
de receitas promovidas por grupos de amigos da instituição ou pela própria direcção, do aumento do
número de alunos pensionistas e, também, do aumento do número de protectores, apesar das quotas
que muitos deles pagavam serem incipientes. Os donativos das autoridades administrativas locais
provinham, muitas vezes, de dinheiro apreendido ao jogo ou da concessão do mesmo a diversas
pessoas (mas, logo no começo do ano de 1920, a Administração do Concelho deixa de poder
contribuir com donativos provenientes das licenças para jogos, porque essas casas foram mandadas
encerrar), e também podiam ser provenientes de artigos ilegais apreendidos. Havia, ainda, um
subsídio anual dado pela Câmara, que sofria também os revezes da crise financeira geral do país.
Outras verbas provinham de donativos de entidades estatais. As festas e espectáculos realizados no
concelho constituíam uma outra fonte de receita, mas as festas que mais verbas revertiam a favor do
Asilo eram as realizadas pela Liga de Instrução e Recreio C.U.F.
Se fizermos uma retrospectiva verificamos que as grandes receitas provinham dos actos de
beneficência, porém, estes não se esgotavam na oferta de verbas monetárias à instituição. A oferta de
jantares aos asilados era, também, uma das formas de mostrar nobres sentimentos caritativos para
com os mais desfavorecidos.
Apesar disso, a falta de verbas rondava o Asilo. Os períodos de crise atravessados pela
instituição deviam-se a circunstâncias várias, como “débitos aos fornecedores” e “falta de
actualização das contas da gerência transacta” (Livro de Actas da Direcção II, 1921-1926, 29 de
Outubro de 1925). Como forma de colmatar essas dificuldades, foi decidido em reunião da direcção
de 9 de Julho de 1925 levar a efeito diversos benefícios tendentes a fazer face à grande falta de
recursos, tais como: montagem na vila da Moita (por ocasião das festas nesta localidade) de uma
tômbola e cervejaria com uma grande esplanada; realização de diversas festas na cerca do Asilo, por
ocasião do aniversário da instituição no mês de Setembro; endereçar convites a diversas entidades de
destaque no meio local, e que não fossem sócios do Asilo, a fazerem a sua inscrição; e promover a
realização de um grande desafio de futebol, pelo que estavam já em negociações com um dos mais
importantes clubes de Lisboa (mas não sabemos qual). O certo é que as dificuldades conseguem
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contornar-se e, logo na sessão de 16 de Julho, são aprovados 24 novos sócios. Também para
comemorar o 70.º aniversário da sua fundação realizam-se festejos nos dias 15, 16 e 17 de Novembro,
cujo produto reverte a favor dos cofres do Asilo.
A mentalidade que esteve na base da criação deste espaço institucional sofreu adaptações aos
tempos que corriam: nos Estatutos de Novembro de 1916 é declarado que “esta associação é
completamente estranha a assumptos politicos e religiosos” (artigo 42.º); iremos encontrar, também, o
mesmo princípio, num ofício dirigido ao Administrador do Concelho em 31 de Julho de 1927, com o
qual ilustramos os moldes com que a direcção do Asilo recebeu a nova situação política nacional,
nascida de um golpe militar em 28 de Maio de 1926:
“Informo V. Ex.ª de que esta instituição pela letra dos seus estatutos é alheia a toda a
materia politica e religiosa, no entanto esta direcção declara que acata todas as leis e
hordens emanadas do poder central dentro do regímen vigente e dá todo o seu apoio as
auctoridades administrativas que façam uma administração unesta e proveitosa para o
Paiz”. (Copiador 1922 a 1929)
Este aparente distanciamento entre poderes político, religioso e institucional servia para continuar a
justificar a estratificação social e a caridade que, afinal, eram produtos dos próprios poderes.
O espaço escolar
Uma grande parte da vida dos asilados e pensionistas era passado num espaço institucional
marcado pela exiguidade e precariedade de condições físicas. No entanto, este espaço demarca-se do
exterior, pois é um espaço separado definido por uma divisão fundamental entre o fora e o dentro:
fora estão os perigos da rua e dentro estão os meios de salvação. Apresentando-se como um espaço
fechado é, contudo, dotado de portas em certos locais que permitem o contacto com o exterior,
nomeadamente pelo controlo das idas e das vindas, através de rituais de disciplina. Neste espaço
institucional, à semelhança de tantos outros, organizam-se interacções complexas de acordo com os
ocupantes, a área disponível, as actividades que nele se desenvolvem e o poder da autoridade que o
dirige.
Ao longo dos tempos, a maior aspiração dos dirigentes do Asilo e de muitas das pessoas da
edilidade era ter um internato, para assim fazer justiça ao nome de «asilo», mas a insuficiência de
verbas nunca o permitiu. O Asilo esteve a funcionar, desde a sua fundação em 1855 até Junho de
1857, numa casa cedida gratuitamente e subministrada pela Irmandade de Nossa Senhora do Rosário
do Barreiro, mas, porque não tinha as condições indispensáveis, foi arrendada uma outra onde
permaneceria até 1878. Depois de vinte e três anos de existência, o Asilo continuava a funcionar na
antiga casa arrendada, com uma população de asilados que se mantinha em número de quarenta,
porque o espaço não permitia que se atendesse aos constantes pedidos de mais admissões, houve
necessidade de mudar de casa. Acabou por ser alugado o prédio de um sócio: agora, “as creanças já
têem casa com ar respirável, um quintal para desenvolverem os músculos nas horas de recreio, e a
mestra, ajudante e creada podem residir no asylo como convem” (Relatório e Contas, 1881, pp. 3 e
4). E ali permaneceriam por longuíssimos anos, embora as condições nem sempre foram as melhores:
“Só quem – como nós – ali fôr e certificar-se do seu movimento, da sua historia, poderá
calcular o que é esse pardieiro sito na Rua de S. Francisco desta vila, o que ali dentro, dia
a dia, hora a hora, se passa.
Pardieiro na aparencia, lá dentro é uma casa de instrucção, é uma escola de
aperfeiçoamento, que além de ministrar o pão de espirito a certo numero de creanças,
oferece-lhe o alimento (. . .).” (Acção, 20 de Dezembro de 1922)
Durante o ano de 1917 tentou-se melhorar o espaço escolar através da abertura de uma janela
virada para o quintal, na sala de aulas da 1.ª e 2.ª classes, porque esta não tinha luz suficiente. Já no
final de 1919 foram feitas obras de adaptação de dois quartos do Asilo a sala de aula, e adaptou-se
uma divisão a sanitários, mas em 1924 voltou a haver necessidade de melhorar as condições da zona
do edifício destinada aos dejectos das crianças.
Pelo que pudemos percepcionar, as crianças encontravam-se muitas vezes em situações de
«amontoamento», ou seja, encontravam-se em espaços de aula com um número elevado de indivíduos
5813
em relação ao que seria satisfatório e aceitável em termos pedagógicos. Esta situação deveria ser
penosa quer para as crianças quer para os docentes, pois criava uma dependência em relação às
características físicas e sociais do espaço envolvente. Mas o espaço de aulas organizava-se segundo
um esquema panóptico (Foucault, 2000, p. 170) que permitia que uma mesma tarefa ou um dado
comportamento se impusessem a uma multiplicidade de indivíduos. Se pensarmos que o espaço opera
uma espécie de identificação dos grupos humanos com um território, chegando ao ponto de criar uma
certa estigmatização para o grupo e indivíduos a quem ele diz respeito, constatamos que o edifício do
Asilo sempre esteve de acordo com a população que servia: categorias sociais desfavorecidas
confinam-se e controlam-se em espaços de categoria também inferior.
Origem social dos alunos versus destino sócio-profissional
Para melhor compreendermos a origem social dos alunos do Asilo, dispomos de dados que
abrangem, apenas, o período compreendido entre 1855 e 1891. Sete dos asilados eram órfãos de pai e
mãe, quarenta e quatro eram órfãos de pai, e duas crianças são descritas como “exposta da Santa Casa
da Misericordia de Lisboa”, pelo que não estão registadas as profissões que tinham os pais. Há
referências à profissão de “doméstica”, apenas no caso de viúvas, ou de mães cujos filhos são de pai
incógnito. As profissões que aparecem mais vezes citadas expressam-se de uma forma muito vaga
com os termos “marítimo” e “trabalhador”; o outro grupo profissional que aparece bastantes vezes é o
dos pescadores. Também há um número significativo de “moleiros”, “carregadores” e dos que “vivem
do seu trabalho”. Das restantes profissões mencionadas, várias estão relacionadas com os Caminhosde-Ferro (capataz, empregado, servente, carregador, guarda), algumas com a actividade fluvial
(marinheiro do barco de vapor, calafate, barqueiro, piloto da barra), entre outras de menor
importância social, como são as de sapateiro, ferreiro, almocreve, pedreiro, carpinteiro, canoeiro,
“fazendeiro”. Encontrámos referências a um que “foi carregador e hoje está quaze sempre no
Hospital”, outro que “foi trabalhador e hoje pede esmola”, e a três “cegos”. De salientar ainda, que
muitos dos alunos não têm qualquer registo acerca da profissão dos seus progenitores.
Quanto ao destino escolar e profissional das crianças que passaram pela instituição, o Livro
de Matriculas 1855-1955, dá algumas informações, para os anos entre 1855 e 1891, sendo o mais
frequente “foi servir para Lisboa”, e, como caso isolado, “dá liçoens a algumas creanças”. No entanto,
a maior parte das referências prende-se com o tipo de emprego das pessoas com quem casaram as
raparigas: “cazou com um carregador do Caminho de Ferro”, “cazou com um fazendeiro”, “cazou
com um ferreiro”, “cazou com um empregado do caminho de ferro”, “cazou com um empregado do
caminho de ferro e hoje viuva”, “cazou com um pescador, e já falleceo”.
De realçar, ainda, a importância atribuída à preparação das raparigas como futuras donas de
casa ou mesmo costureiras:
“Verifica-se ainda o facto, de, no Asilo, haver uma aula de lavores que tem por fim
preparar praticamente o futuro das alunas asiladas.
Os trabalhos de lavores confeccionados na referida aula teem sido com bastante agrado
geral, apreciados em exposições que anualmente se efectuam na séde do Asilo”.
(Copiador 1922 a 1929, 27 de Outubro de 1926)
Em face destes dados podemos verificar que não houve qualquer ascensão social pelo
casamento relativamente à classe social de origem. Apesar da escassez de dados de que dispomos,
inferimos que não houve alterações significativas no estrato social e económico de origem dos alunos
que frequentaram o Asilo ao longo dos tempos.
O Vestuário
Um dos grandes problemas com que se deparavam as crianças mais pobres era com o
vestuário, pois as condições económicas eram tão precárias que mal chegavam para adquirir
alimentos para sobreviver, quanto mais para se agasalharem em condições. Daí que os prémios que
eram atribuídos na altura dos exames se resumissem a peças de vestuário. Para minimizar o problema,
e também para distinção das restantes crianças, as asiladas tinham de usar um uniforme fornecido
pela instituição.
5814
O uso do uniforme era obrigatório (também quando iam à missa por alma de algum benfeitor
tinham de o vestir), e quem não cumprisse esse normativo podia estar sujeito a sanções, como o
demonstra claramente o seguinte registo: “deliberou indagar-se sobre boatos que correm sobre a
sahida d’algumas creanças asiladas, do Asilo, sem fatos, para se castigarem os culpados, que houver”
(Livro de Actas da Direcção II – 1921-1926, 3 de Outubro de 1921). Mas, poucos dias depois,
“reconheceu, depois de proceder ás devidas indagações, serem infundados os boatos que corriam
acerca da sahida de algumas creanças do asilo sem fatos, não havendo por tal motivo que imputar
essa responsabilidade ao pessoal do Asilo” (17 de Outubro de 1921).
O uso pela primeira vez de um novo fardamento podia ser aproveitado para assinalar
determinado acontecimento na vida do Asilo, como aconteceu no ano de 1925. Tudo começou com as
festas de Natal de 1924 em que houve “receita apreciavel para o cofre da instituição”, pelo que
“resolveram as referidas direcção e comissão empregal-a na feitura de vestidinhos para os asilados,
visto os que então existiam estarem já incapazes de servir”; como aquela verba não era suficiente, o
presidente da instituição “abonava o dinheiro preciso” e foi feita, também, “uma rifa de valiosos
objectos oferecidos a este estabelecimento” (Éco do Barreiro, 1 de Maio de 1925). A estreia da nova
indumentária deu-se por ocasião da passagem do quadragésimo terceiro aniversário do falecimento da
fundadora do Asilo, ou seja, no dia 23 de Abril de 1925. Este acontecimento foi noticiado pela
imprensa local.
“Sabem? – as creancinhas do Asilo D. Pedro V desta vila estrearam ha dias os seus
fatinhos novos…
Pois não as viram? Iam tão lindas…Fatinhos azues, meias pretas, sapatinhos pretos; elas
com um panamá bonito, eles com um interessante bonet com o nome do Asilo a doirado.
Pois não as viram? Iam tão lindas as creancinhas do nosso Asilo, com os seus fatinhos
novos, com as suas almas novas…Eu vi-as, e quedei-me enternecido a olhar essas tres
dezenas de orfãos que uma casa de caridade da minha terra protege, livrando-as das
garras da fome e das trevas da ignorancia…” (Éco do Barreiro, 1 de Maio de 1925).
Mas nem sempre se adquiria vestuário novo, pois, de acordo com o adágio popular «do velho
se faz novo», parece estar o motivo que justifica a despesa de 13$30, em Junho de 1920, “de
transformação de 30 vestidos de riscado das creanças asiladas” (Diário da Receita e Despesa n.º 1, p.
63). Outro excerto vem na sequência daquele provérbio:
“Em virtude da festa que se realisa na Liga de Instrucção e Recreio da Companhia União
Fabril cujo producto líquido reverte em favor deste Asilo na qual foram auctorisados a
tomar parte as crianças asiladas, deliberou mandar fazer as reparações que se tornarem
necessarias no calçado das asiladas.” (Livro de Actas da Direcção II, 1921-1926, 2 de
Setembro de 1921)
Só quando os fardamentos atingiam um grau de desgaste tal que se tornava mesmo imperiosa
a sua substituição, é que se adquiriam novos: “Em virtude de não haver bibes que possam alternar
com os que estão em uso, dada a necessidade das lavagens que têm de sofrer, foi deliberado que se
tratasse da acquisição de novos bibes” (Livro de Actas da Direcção II, 1921-1926, 7 de Março de
1924).
Resumindo, nesta instituição como em tantas outras, não eram permitidos destaques de
individualização nos trajes e no vestir, pois o uniforme irá identificar a instituição. O uniforme
constituía um elemento simbólico, marcando de forma visível e perpetuada a existência e a identidade
do grupo. Assim sendo, uma questão se nos coloca: será que a criança asilada sentia orgulho no uso
do bibe? Somos levados a pensar que a resposta seja negativa, pois quem é que sendo pobre quer ter
algo que o identifique ainda mais visivelmente como tal?
Conteúdos Programáticos
Quando uma directora ou inspectora fazia uma visita ao Asilo devia registar as suas
observações no livro Registo das Senhoras Directoras e Inspectoras, que tem como datas extremas de
registo 7 de Julho de 1873 e 7 de Novembro de 1921, mas, entre 1894 e 1917, raríssimos registos
foram feitos, e depois dessa data foram muito poucos. Também as actividades em que estavam
5815
ocupadas as crianças no momento em que chegava o (a) director (a) ou o (a) inspector (a) eram
anotadas nesse livro8. Mas que actividades eram essas? Pois bem, somente, ler, escrever, contar, rezar
e costurar (esta actividade era só para as raparigas).
Antes da implantação da República, uma parte significativa das actividades dos alunos estava
directamente ligada à religião, dentro da sala de aula e, por vezes, fora dela. As asiladas não se
ficavam pela ida à missa quando morria algum benfeitor, ou era dia de aniversário da morte de algum:
às vezes, era-lhes dada “ordem” para rezarem durante um determinado período de tempo pela alma do
defunto: “deixei determinado que durante um mez rezem as Creanças todos os dias pelo eterno
descanço da Alma do Benfeitor” (Registo das Senhoras Directoras e Inspectoras, 6 de Julho de
1875), pois “é o único testemunho que lhe podem dar do seu reconhecimento” (19 de Agosto de
1873). Mas também lhes era dito para rezarem pelos vivos: numa altura em que a rainha se
encontrava doente, as crianças tinham de rezar diariamente pela sua saúde, “foi ordem que mandei”
(Registo das Senhoras Directoras e Inspectoras, 23 de Abril de 1879), e ouvir missa pelo mesmo
motivo:
“Era um dever de respeito de amor a sua Soberana, e de gratidam a sua Benfeitora. A
estes actos desejo sempre acompanhar as Creanças porque desejando muito que ellas
aproveitem a instrucção que se lhes dá nesta caza; muito mais desejo aproveitem a
educação de amar e respeitarem os seus superiores sem o que a obediencia lhes será
sempre desagradavel e dura; em lugar que se a gratidão os levar lhes será suave e
agradavel”. (23 de Abril de 1879)
De realçar que neste excerto está bem patente a forma utilizada pelas instituições escolares para
alcançar o objectivo de levar os alunos a amarem e respeitarem as leis e o trabalho, começando por
levá-los a amar e a obedecer aos seus mestres.
Durante o século XIX, a importância concedida à religião na formação dos alunos daquele
estabelecimento é visível noutras circunstâncias: como já atrás fizemos referência, às vezes, os priores
da freguesia faziam parte da comissão administrativa, o que explica, em certa medida, a primazia
atribuída às questões religiosas na instrução e educação das crianças. Um testemunho disto mesmo,
encontramos no discurso proferido, depois da atribuição dos prémios aos asilados no ano de 1882,
pelo vice-presidente, o prior da freguesia, Joaquim Ribeiro dos Santos e Cunha, “aconselhando as
creanças ao estudo e á pratica da virtude, demonstrando que a verdadeira instrucção para ser completa
deve ter como pedestal a religião” (Actas da Comissão Administrativa 1855-1893, 29 de Outubro de
1882).
Depois de implantada a República, os dados de que dispomos são os preceituados nos
Estatutos de 1916, de que atrás já fizemos menção: a instrução compreende “instrucção litteraria
habilitando as creanças para os exames elementares e de instrucção primária”, “trabalhos manuais e
prendas proprias para as educandas”, e “outros quaesquer trabalhos theóricos e práticos que as
habilitem para auferir honestamente os meios de subsistência”. As questões religiosas estão postas de
parte, embora nós acreditemos que não seria tão simples assim, banir de um momento para o outro a
religião das escolas.
A princípio fomos levados a pensar que, tal como o provérbio chinês, aqui ensinava-se a
«pescar», só que em quantidades tão ínfimas que apenas evitava a mendicidade nas ruas. Porém,
analisando mais calmamente tais propósitos pedagógicos vemos que, afinal, eles foram-se adaptando
às épocas que atravessavam e possibilitavam àquelas crianças, particularmente às do sexo feminino
(pois os rapazes foram sempre em número reduzido), muito mais do que teria a maioria da população
8
A directora ou inspectora podia fazer-se acompanhar por outras pessoas, como por exemplo, em Setembro de
1877, em que algumas senhoras visitaram o asilo, assistiram à aula e parece que ficaram satisfeitas com os
resultados, especialmente “as escriptas, que realmente algumas estavam muito boas; feitas com aceio e cuidado”
(Registo das Senhoras Directoras e Inspectoras, 27 de Setembro de 1877). Também na mesma época, no Asilo
D. Pedro V do Campo Grande, na sala de aula havia um mealheiro destinado a receber as esmolas dos visitantes
(o mesmo acontecia no do Barreiro), pois quem quisesse visitar o asilo poderia fazê-lo, não devendo
interromper as actividades em que as crianças se encontrassem; a mestra apresentar-lhe-ia o livro adequado,
para que ficasse registado o nome do visitante e as observações que entendesse convenientes.
5816
portuguesa, que era pura e simplesmente analfabeta, livrava-as da marginalidade e dava-lhes
possibilidade de se integrarem como cidadãos de pleno direito na sociedade.
Considerações finais
A caridade (palavra de origem latina) significa “amor ao próximo”, mas também significa
benevolência e beneficência. Tratando-se de uma palavra de cariz mais religioso, ela pode ser
entendida como a prática viva do Evangelho. Contudo, tanto a caridade como a filantropia (palavra de
origem grega que significa “amor à humanidade”) destinam as suas obras aos necessitados. Neste
sentido, o Asilo D. Pedro V pode ser visto sobretudo como uma instituição de caridade, sem excluir a
existência de subscritores que manifestassem uma atitude filantrópica, nomeadamente durante a 3.ª
fase da instituição.
O despertar da visão da criança como objecto de caridade e não como sujeito de direitos, em
particular no que se refere ao problema da infância sem religião, a composição da família que não
aceita frutos de uniões ilegítimas, ocasionando o desamparo dessas crianças, e a urbanização
decorrente da conversão de uma terra pequena num importante centro industrial procurado por
migrantes e por populações rurais, são alguns dos factores que podem ajudar a compreender o
aparecimento e a manutenção da instituição. Certamente que isto tudo se poderia resumir a um fim
mais prático, que consistia na “limpeza” das ruas e na manutenção da ordem pública. Claro que a
prevenção do crime, bem como a preocupação com o minimizar de situações atentatórias da moral
vigente, faziam com que o alvo predilecto das atenções recaísse sobre as crianças órfãs ou
abandonadas do sexo feminino.
Como característica distintiva dos outros estabelecimentos com a designação de asilo, este, do
Barreiro, nunca funcionou como internato, o que fez com que a instituição não tenha tido o exclusivo
da influência sobre as crianças. Apesar disso, não haveria grandes diferenças quanto ao que,
normalmente, se passaria num qualquer asilo infantil em que imperava o rigor no cumprimento de
horários, para que as actividades decorressem conforme um plano racional que atendesse aos
objectivos oficiais da instituição. No seio do processo educativo do Asilo procurou-se fazer do tempo
e do espaço, dos gestos e das práticas, momentos de formação na perspectiva da própria instituição.
De facto, como diz Foucault (1997), “todo o sistema de educação é uma maneira política de manter
ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles transportam
consigo” (pp. 33-34). Assim, estamos em crer que nos fundamentos e objectivos principais desta
instituição esteve a tentativa de estabelecer uma política de educação moral e religiosa, aliada à
instrução elementar e ao ensino em volta de actividades manuais femininas de «agulha, pano e linha»,
com o intuito de preparar, essencialmente as raparigas, para uma vida de trabalho e de subserviência.
Referências
Fontes manuscritas da instituição:
Actas da Comissão, Livro 1. (1855).
Actas da Comissão Administrativa 1855-1893.
Copiador 1922 a 1929.
Diário da Receita e Despesa, n.º 1. (1 de Julho de 1915 a 31 de Dezembro de 1922).
Livro das Actas da Assembleia Geral 6 de Novembro de 1916 a 2 de Agosto de 1954.
Livro de Actas da Comissão Administrativa 1915-1921.
Livro de Actas da direcção II, 1921-1926.
Livro de Matrículas 1855-1955.
Livro para a Inscripção dos Subscritores do Asylo D. Pedro V do Barreiro 1915.
Registo das Senhoras Directoras e Inspectoras. (7 de Julho de 1873 a 7 de Novembro de 1921).
Acção. Quinzenário de educação e propaganda dos interesses do Barreiro. Anno III, n.º 40, 20 de
Dezembro de 1922.
António da Costa. Auroras da Instrucção pela Iniciativa Particular. Lisboa: Imprensa Nacional.
1884.
5817
Éco do Barreiro. Quinzenário Independente. Anno III, n.os 36 (1 de Maio de 1925), 44 e 45 (25 de
Agosto de 1925).
Estatutos da Sociedade das Cazas d’Asylo da Infancia Desvalida de Lisboa. Lisboa: Imprensa de
Francisco Xavier de Souza.1852.
Estatutos do Asilo de D. Pedro V da Vila do Barreiro. Lisboa: Casa Progresso. 1917.
Felgueiras, Margarida Louro; Menezes, Maria Cristina. (orgs.) (2004). Rogério Fernandes.
Questionar a Sociedade, interrogar a História, (re)pensar a Educação. Porto: Edições Afrontamento.
Foucault, Michel. A Ordem do Discurso. Lisboa: Relógio d’Água. 1997. (tradução do original francês
de 1971)
Foucault, Michel. Vigiar e Punir. 22.ª edição. Petrópolis: Editora Vozes. 2000. (tradução do original
francês de 1975)
Pais, Armando da Silva. O Barreiro Antigo e Moderno. As outras terras do concelho. Edição da
Câmara Municipal do Barreiro. 1966.
Regulamento Interno para os Alumnos Externos do Asylo D. Pedro V para a Infância Desvalida do
Campo Grande. Lisboa: Imprensa Nacional. 1862.
Relatorio e Contas do Asylo de D. Pedro V no Barreiro. Lisboa: Imprensa Nacional. 1878.
Relatorio e Contas do Asylo de D. Pedro V no Barreiro nos Annos Economicos de 1878-1879 e 18791880. Lisboa: Imprensa Nacional. 1881.
Relatorio e Contas do Asylo de D. Pedro V no Barreiro nos Annos Economicos de 1880-1881 e 18811882. Lisboa: Imprensa Nacional. 1882.
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O ASILO D. PEDRO V DO BARREIRO1 Maria Manuela P