verve
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Revista Semestral do Nu-Sol — Núcleo de Sociabilidade Libertária
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP
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2004
VERVE: Revista Semestral do NU-SOL - Núcleo de Sociabilidade Libertária/
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP.
Nº6 (outubro 2004 - ). - São Paulo: o Programa, 2004Semestral
1. Ciências Humanas - Periódicos. 2. Anarquismo. 3. Abolicionismo Penal.
I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos
Pós-Graduados em Ciências Sociais.
ISSN 1676-9090
VERVE é uma publicação do Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária do
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Coordenadoras: Teresinha Bernardo e Silvana Tótora.
Editoria
Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária.
Nu-Sol
Acácio Augusto S. Jr., Andre R. Degenszajn, Edson Lopes Jr., Edson Passetti
(coordenador), Eliane Knorr de Carvalho, Francisco E. de Freitas, Guilherme C. Corrêa, Heleusa F. Câmara, José Eduardo Azevedo, Lúcia Soares da
Silva, Martha C. Lossurdo, Natalia M. Montebello, Rogério H. Z. Nascimento, Salete Oliveira, Thiago M. S. Rodrigues, Thiago Souza Santos.
Conselho Editorial
Adelaide Gonçalves (UFC), Christina Lopreato (UFU), Clovis N. Kassick
(UFSC), Guilherme C. Corrêa (UFSM), Guilherme Castelo Branco (UFRJ),
Margareth Rago (Unicamp), Rogério H. Z. Nascimento (UFPB), Silvana Tótora
(PUC-SP).
Conselho Consultivo
Alexandre Samis (Centro de Estudos Libertários Ideal Peres – CELIP/RJ),
Christian Ferrer (Universidade de Buenos Aires), Dorothea V. Passetti
(PUC-SP), Francisco Estigarribia de Freitas (UFSM), Heleusa F. Câmara
(UESB), José Carlos Morel (Centro de Cultura Social – CSS/SP), José Maria
Carvalho Ferreira (Universidade Técnica de Lisboa), Maria Lúcia Karam,
Paulo-Edgard de Almeida Resende (PUC-SP), Plínio A. Coelho (Editora Imaginário), Silvio Gallo (Unicamp, Unimep), Vera Malaguti Batista (Instituto
Carioca de Criminologia).
ISSN 1676-9090
verve
revista de atitudes. transita por limiares e instantes arruinadores de hierarquias. nela, não
há dono, chefe, senhor, contador ou programador. verve é parte de uma associação livre
formada por pessoas diferentes na igualdade.
amigos. vive por si, para uns. instala-se numa
universidade que alimenta o fogo da liberdade. verve é uma labareda que lambe corpos,
gestos, movimentos e fluxos, como ardentia.
ela agita liberações. atiça-me!
verve é uma revista semestral do nu-sol que
estuda, pesquisa, publica, edita, grava e faz
anarquias e abolicionismo penal.
Desenhos e colagens de Lia Chaia.
Intervenção gráfica de Arnaldo Antunes “Página do Oráculo”, p. 169.
SU M Á R I O
O incômodo
Oswaldo Giacoia Junior
11
História anômala e políticas de subjetivação
Alexandre de Oliveira Henz
25
Do incômodo das imagens à
inquietação do pensamento
Márcio Alves da Fonseca
47
Intensidades abolicionistas e
a cruel exposição da peste
Salete Oliveira
61
A beleza terrível
Contador Borges
81
Canibal
Dorothea Voegeli Passetti
103
Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis
Thiago Rodrigues
129
Incomodando
Silvio Ferraz
159
Revolta, ética e subjetividade anarquista
Nildo Avelino
171
O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade
Paula Sibilia
199
Devires minoritários: um incômodo
Silvana Tótora
229
Um incômodo: a acomodação
Guilherme Castelo Branco
249
O inumano
Manuel da Costa Pinto
261
A “mulher cordial”: feminismo e subjetividade
Margareth Rago
279
Uniformidades e anarquia
Edson Passetti
299
Tecnologias de si
Michel Foucault
321
o nu-sol apareceu no interior do programa de estudos pós-graduados em ciências sociais da puc-sp, que
em 2003 completou 30 anos. para saudar as pessoas que
habitam este lugar de inovações, generosidades e debates propusemos o colóquio um incômodo.
durante aqueles dois dias, em abril, as conversações
e experimentações artísticas que lá ocorreram foram
transpostas para um cd-rom, e cada freqüentador foi presenteado com uma cópia.
no início deste ano, relembramos que desde o primeiro número de verve temos em mente produzir edições especiais. a ocasião apareceu e fizemos do sexto
número esta versão do colóquio.
convidamos lia chaia para desdobrar sua original intervenção imagética e sonora em instantes que marcassem a passagem de incômodos. embaralhamos as
imagens e as distribuímos pela revista de maneira que
elas possam também ser redimensionadas, lidas a parte ou agrupadas por cada leitor.
arnaldo antunes redimensionou sua presença para
uma peça única.
e trouxemos um michel foucault, inédito em português, com tecnologias de si.
um incômodo foi um jeito que o nu-sol encontrou para
se abalar. gostamos. em abril de 2004, fizemos kafkafoucault, sem medos, publicado pela ateliê editorial de
são paulo. para o próximo ano pretendemos realizar mais
um colóquio. isso tem nos trazido saúde. é apenas um
jeito, não é um programa, um plano e muito menos um
projeto.
“aquilo que vem ao mundo para nada perturbar não
merece respeito nem paciência” (rené char, “fúria e
mistérios”).
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um incômodo
queríamos encontrar uma situação que rangesse. propusemos situações com artistas, filósofos, ensaístas e
pesquisadores sobre o que não cessa, transtorna, perturba existências e provoca abalos, desestabilidades,
contestações e afirmações; o que incomoda por não caber num conceito e por provocar o riso.
outras subjetividades, reviravolta nas imagens, a
peste e o abolicionismo penal; a beleza terrível, canibal,
as drogas e as liberações e as inquietações; o corpo hoje,
a importância de permanecer menor, as rebeldias anarquistas; o acomodado, o inumano, a mulher cordial e as
uniformidades. estas foram as respostas que recebemos.
outras tantas, lidas e formuladas pelo ato de abalar estabilidades, poderão advir das práticas de cada um para
fora destas páginas. em cima da hora, tecnologias de si.
interessa-nos somente inventar espaços para
heterotopias, lugares que dispensam o consolo no futuro.
para não dizer que se falou pouco de kafka, diante do
gato, um rato.
pequena fábula, traduzida por modesto carone, para
o volume “narrativas do espólio”:
“’ah’, disse o rato, ‘ o mundo torna-se a cada dia mais
estreito. a princípio era tão vasto que me dava medo, eu
continuava correndo e me sentia feliz com o fato de que
finalmente via à distância, à direita e à esquerda, as
paredes, mas essas longas paredes convergem tão depressa uma para a outra, que já estou no último quarto
e lá no canto fica a ratoeira para qual eu corro’ — ‘você
só precisa mudar de direção’, disse o gato e devorou-o”.
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O incômodo
o incômodo
oswaldo giacoia junior*
Imaginemos uma nova visita de Zaratustra ao país da
formação, ou melhor, da semi-formação. Como por ocasião de suas anteriores aventuras, certamente o filósofo
teria mergulhado em profunda meditação, de que sua probidade intelectual teria emergido com a seguinte apóstrofe dirigida a seus insólitos habitantes: “Eles têm algo de
que estão orgulhosos. Como chamam isso que os infla de
orgulho? Chamam-no formação (Bildung), é isso que os
distingue dos pastores de cabra. Por isso, desagrada-lhes
ouvir, referida a eles, a palavra ‘desprezo’. Vou falar, pois,
ao orgulho deles. Vou falar-lhes do mais desprezível: o último homem1”.
A figura do último homem é a caricatura satírica do
orgulhoso ideal que animava a crença da moderna
Aufklärung; ora, é esse ideal que, na pós-modernidade
da terra da semi formação, tornou-se figura do mundo.
Há alguns poucos séculos, a consciência filosófica era
animada pela convicção de que, nas vicissitudes da história, era preciso reconhecer a laboriosa e heróica peregrinação do gênero humano, na curva de um progres-
* Professor no Depto. de Filosofia do IFCH/Unicamp.
verve, 6: 11-22, 2004
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so infinito, em busca do fim último de sua existência: a
conquista da felicidade e da bem aventurança sobre a
terra, o advento glorioso do primado universal da razão
e da justiça.
Aquilo que, na fase áurea do Esclarecimento ainda
podia aparecer como representação ideal de um
escatológico final dos tempos, como a realização da essência verdadeira da humanidade, transformou-se em
nossos dias no insípido e prosaico fim das ideologias, na
débacle das grandes narrativas. E, no entanto, visto na
perspectiva de Zaratustra, esse acabamento significa
justamente o movimento, o vir-a-ser histórico em que
a verdade daquele ideal se realiza de modo pleno, sem
deixar para trás nenhum resíduo, ou virtualidade: o último homem é a efetividade sinistra do projeto politico
da modernidade, isto é, a tirânica realização da
hegemonia dos anões uniformes.
Essa bizarra atrofia que a figura do último homem
protagoniza, é a incômoda paródia do enredo escrito pela
Ilustração, pois que ela é o resultado de um movimento
subterrâneo, que acompanha em surdina a litania do
fim da história, bem como a eufórica marcha triunfal
da ideologia do progresso: o auto-rebaixamento do homem. De maneira análoga à Dialética do Esclarecimento
em que Adorno e Horkeimer desvendavam a imbricação
entre mito e a racionalidade, ou melhor a conversão do
esclarecimento em mito, Nietzsche denuncia o profundo enraizamento da cientificidade moderna — que se
colocava como o princípio programático da consciência
esclarecida — ao mesmo ideal ascético, que ela pretendera destronar, revelando, com isso, sua esotérica cumplicidade na tarefa de aviltamento do homem e da terra.
“Pensa-se, de fato, que porventura a derrubada da astrologia teológica signifique uma derrubada daquele ideal
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O incômodo
[ascético OGJ.]?.. Quem sabe o homem ficou menos necessitado de uma solução no além para seu enigma da
existência porque essa existência aparece desde então
ainda mais arbitrária, mais confinada, mais dispensável na ordem visível das coisas? Não está precisamente
o auto-apequenamento do homem, sua vontade de autoapequenamento, desde Copérnico, em um incessante
progresso? Ai, a crença em sua dignidade, unicidade,
insubstitutibilidade na hierarquia dos seres se foi —
ele se tornou animal, animal sem alegoria, restrição e
reserva, ele que em sua crença anterior era quase Deus
(‘filho de Deus’, ‘homem-Deus’) ... Desde Copérnico o homem parece ter caído em um plano inclinado, — agora
rola cada vez mais depressa, afastando-se do centro —
para onde? Para o nada? Para o ‘perfurante sentimento
de seu nada’?...”2
É esse inarticulado sentimento de inferioridade que
a figura do último homem dramatiza. Para trazê-lo à
consciência de si, Zaratustra vai falar do que mais prezam os homens modernos, sua cultura (Bildung), porque
à contra-corrente dela que vem à luz seu auto-desprezo,
sua vontade de auto-rebaixamento: “Toda ciência (e de
modo nenhum somente a astronomia, sobre cujo humilhante e rebaixador efeito Kant fez uma confissão digna
da nota, ‘ela anula minha importância’...), toda ciência,
tanto a natural quanto a desnaturada — chamo assim a
autocrítica do conhecimento —, tende hoje a dissuadir
o homem do apreço que teve até agora por si, como se
este nada mais tivesse sido do que uma bizarra vaidade: poder-se-ia até mesmo dizer que ele tem seu próprio
orgulho, sua própria forma acre de ataraxia estóica, esse
laboriosamente conquistado autodesprezo do homem,
como sua última, mais séria pretensão de manter em
pé o apreço por si mesmo (com razão, de fato: pois aque-
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le que despreza é sempre alguém que ‘não desaprendeu
a prezar’...)”3.
Zaratustra invoca, pois, o mais entranhado e paradoxal do homem moderno, seu laboriosamente conquistado autodesprezo. É para fazê-lo que apela ao que pode
haver de mais desprezível, ao último homem. “Ai, chega o
tempo do homem mais desprezível, o incapaz de se desprezar a si mesmo. Olhai: mostro-vos o último homem”4.
O último homem é último não somente porque se autocompreende como fim em si — e não mais como travessia
para a outra margem, como corda estendida entre o animal e o Além-do-Homem, como caminho de auto-superação. Ele é último porque inverteu a relação entre apreço e
depreciação, na medida em que desaprendeu o grande desprezo, ou auto-desprezo. Mesmo outrora, sob o signo e a
inspiração de Deus, quando a alma olhava depreciativamente para o corpo — então considerado elemento indigno e impuro — desse desprezo brotava, antiteticamente,
da aspiração e anseio pelo sublime, por uma figura ‘mais
elevada’ — in hoc signo vinces.
O último homem, todavia, representa a plenitude da
auto-satisfação, incapaz de se desprezar a si mesmo, portanto, impotente para toda auto-superação. O último homem alegoriza o auto-comprazimento na mediocridade,
esta é a forma acabada do amesquinhamento geral do tipohomem, a encarnada impotência para lançar a flecha de
sua nostalgia na direção de um mais elevado anseio, o
abastardamento do ideal de felicidade e bem-aventurança:
“Que é amor? Que é criação? Que é nostalgia? Que é
estrela? — Assim pergunta o último homem, e pisca os
olhos. A terra se tornou pequena então, e sobre ela saltita
o último homem, que torna tudo pequeno. Sua estirpe é
indestrutível, como a pulga; o último homem é o que mais
tempo vive. ‘Nós inventamos a felicidade’ — dizem os últi-
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O incômodo
mos homens, e piscam os olhos. Abandonaram as regiões
onde é duro viver, pois a gente precisa de calor. A gente,
inclusive, ama o vizinho e se esfrega nele, pois a gente
precisa de calor. Adoecer e desconfiar, consideram-no perigoso: a gente caminha com cuidado. Louco é quem continua tropeçando com pedras e com homens! Um pouco de
veneno, de vez em quando, produz sonhos agradáveis. E
muito veneno, por fim, para ter uma morte agradável. A
gente continua trabalhando, pois o trabalho é um entretenimento. Evitamos, porém, que o entretenimento canse.
Já não nos tornamos nem pobres, nem ricos: as duas coisas são demasiado molestas. Quem ainda quer governar?
Quem ainda quer obedecer? Ambas as coisas são demasiado molestas (...). Nenhum pastor e um só rebanho! Todos
querem o mesmo, todos são iguais: quem sente de outra
maneira, segue voluntariamente para o hospício (...). A
gente ainda discute, mas logo se reconcilia, senão se estropia o estômago. Temos nosso prazerzinho para o dia e
nosso prazerzinho para a noite, mas prezamos a saúde.
‘Nós inventamos a felicidade’, dizem os últimos homens e
piscam o olho”5.
A felicidade, tal como a desejam os últimos homens
a saber, bem estar, conforto assegurado, tranqüilidade
e tédio com boa consciência — simboliza a ascendência de um tipo de homem, uma figura histórica do humano que pretende se fazer passar pelo homem. Nietzsche
revela tal estratégia em ação no caso exemplar das diversas variantes do utilitarismo inglês — um caso de
ideologia pseudo-científica, dominante no século XIX
(apenas então?): “Em última instância, todos eles querem que se dê razão à moralidade inglesa: na medida
em que é justamente desse modo que melhor se serve
a humanidade, ou ao ‘proveito geral’, ou à ‘felicidade da
mairoria’, não!, à felicidade da Inglaterra; eles gostariam de demonstrar para si mesmos, com todas as suas
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forças, que o aspirar à felicidade inglesa, quero dizer ao
comfort e fashion (e, em última instância, a um posto
no Parlamento) é também, a uma só vez, o justo caminho da virtude, mais ainda, que toda virtude que até
agora existiu no mundo consistiu justamente nessa
aspiração”6. Talvez a realidade que tenhamos conquistado hoje seja apenas uma universalização desse ideal
de bem aventurança, a saber: a efetiva planetarização
do shopping center 24 horas, pela Internet.
Com efeito, essa miopia que afetava os utilitaristas
ingleses constiui, em verdade, o Zeitgeist da modernidade,
cuja existência se prolonga em nosso mundo pós moderno. Ainda hoje vige a unanimidade em que comungam os
assim chamados livre-pensadores de todos os tempos:
“Aquilo a que gostariam de aspirar com todas as suas forças é à universal e verdejante felicidade do rebanho em
verdes pastagens, plena de segurança, livre de perigo, repleta de bem estar e de felicidade na vida para todo o mundo: suas duas canções e doutrinas mais repetidamente
entoadas se chamam: ‘igualdade de direitos’ e ‘compaixão
com tudo aquilo que sofre’- e o próprio sofrimento é considerado por eles como algo que tem de ser eliminado”7. Ou
seja, a segurança, o conforto, o plácido bem estar, a ausência de atrito constituem o objeto do desejo — uma aspiração universal que denuncia a completa impotência
para o sofrimento.
E, com isso, a felicidade — a finalidade última de todas
as ações morais —, acaba rebaixada , enfim, à condição de
adiposo e tranqüilo contentamento de merceeiros: a consciência moderna e pós-moderna aliam-se, desse modo,
na pacíficadora boa consciência, que se deleita na plácida
calmaria dos verdes prados.
Esse tipo de ‘virtude’ não pode ser considerada como
um dado da natureza. Ela é um produto da história, efeito
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O incômodo
de uma longa disciplina, que investe os corpos, de um
penoso aprendizado — mais ainda, de uma pedagogia política do moderno ethos; esta, por sua vez, é forte o suficiente para alinhar a filosofia prática de Kant aos valorosos
representantes das ‘idéias modernas’, pois esse ideal narcótico de felicidade tem como sua condição uma transfiguração filosófica do tédio.
“Aqui está a primeira pedra de tropeço, o tédio, a uniformidade, que traz consigo toda atividade maquinal. Aprender a suportar isso [uniformidade e tédio, OGJ.] e não somente suportar, mas aprender a ver o tédio envolto por um
estímulo superior: essa foi até agora a tarefa de todo sistema de ensino mais elevado. Aprender algo que não nos interessa; reconhecer justamente aí seu “dever”, nessa atividade “objetiva”; aprender a avaliar separados um do outro
o prazer e o dever — essa é a inapreciável tarefa e realização do sistema de ensino mais elevado. Por causa disso, o
filólogo foi até agora o educador em si: porque sua atividade
fornece o modelo de uma monotonia da atividade que atinge o grandioso: sob sua bandeira o discípulo apreende a “trabalhar como um boi”: primeira pré-condição para uma aptidão inicial para o maquinal cumprimento do dever (como
funcionário do estado, cônjuge, aprendiz de burocrata, leitor de jornais e soldado). Ainda mais que qualquer outra, tal
existência necessita, talvez, de uma justificação filosófica
e uma transfiguração: por parte de alguma infalível instância, os sentimentos agradáveis têm de ser, em geral, desvalorizados como sendo de nível inferior; o “dever em si”, talvez até o pathos da reverência em face a tudo o que é desagradável — e essa exigência falando imperativamente,
como além de toda utilidade, divertimento, finalidade ... A
forma de existência maquinal como a suprema, a mais digna
de honra, idolatrando a si mesma. ( —Tipo: Kant como fanático do conceito formal ‘tu deves’)”8.
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Percebe-se pois, que esse movimento atinge tamanha
profundidade, ameaçando tornar-se irreversível, justamente porque se fundamenta na formidável potência da unanimidade moral, do politicamente correto: a dominação
mais efetiva, mais medular, mais capital e capilar não é a
que se faz com violência e ruído, mas a que se insinua no
plano tácito e diáfano das estimativas de valor, portanto,
no campo das interpretações: “Descobrimos que a Europa
tornou-se unânime em todos os juízos capitais, inclusive
naqueles países onde domina a influência da Europa: sabemos aquilo que Sócrates pensava não saber, e que a
velha e célebre serpente prometeu um dia ensinar – ‘sabemos’ hoje o que é o bem e o mal’”9.
Porque estão pacificados nesse ideal, os últimos homens tornaram-se incapazes de distanciar-se de sua própria acomodação. Niguém mais se admira, ninguém mais
se surpreende com nada, desapareceu a capacidade do
espanto, de tal modo que não se pode mais ter consciência
da própria degradação. É por causa disso que, para
Nietzsche, um único aceno de esperança ainda pode ser
vislumbrado naqueles que são de outra crença. Nos
antípodas dos niveladores, daqueles que pregam e realizam o rebaixamento de valor do homem, de sua mediocrização, descortina-se um remoto horozonte para uma
outra forma de comunidade, para um ‘nós, com nossas
esperanças’:
“Para novos filósofos, não resta outra escolha; para espíritos suficientemente fortes e originários como que para
impelir em direção a valorações opostas e transvalorar,
para inverter ‘valores eternos’; para precursores, para homens do futuro, que atem no presente a coação e o nó, que
constranjam a vontade de milênios a percorrer novos caminhos” 10.
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verve
O incômodo
Cultivar esses novos filósofos — eis uma tarefa que
exige uma pedagogia política antagônica àquela dos
niveladores de todas as confissões. Aqueles que são de uma
crença inversa, que “abrimos nossos olhos e nossa consciência para o problema de saber em que lugar e de que
modo a planta ‘homem’ veio até hoje crescendo em altura
da maneira mais vigorosa, opinamos que isso sempre ocorreu em situações opostas, opinamos que, para que isso se
realizasse, a periculosidade de sua situação teve antes
que aumentar de maneira gigantesca, que sua energia
de invenção e simulação (‘seu espírito’—) teve que se desenvolver sob uma pressão e uma coerção prolongadas,
até converter-se em algo sutil e temerário, que sua vontade de vida teve que intensificar-se, até chegar à vontade incondicional de poder”11.
Essa pedagogia política, que prepara para uma inversão da crença dominante, tem como condição aquele gesto simbólico de ‘abrir um olho e uma consciência’, ou seja,
de despertar para uma nova sensibilidade em relação ao
sofrimento: “A disciplina do sofrimento, do grande sofrimento —não sabeis que somente essa disciplina criou
até agora todas a elevações do tipo homem?”12 É isso que
surpreende, que choca nossa pacificada autocompascência, que incomoda, que escandaliza nossa má
consciência filistéia.
Pensar essa figura dos antípodas da unanimidade no
politicamente correto — aqueles novos filósofos de que
fala Nietzsche — na chave interpretativa de uma
idealização reacionária e anacrônica, do saudosismo aristocrático, significa perder de vista aquilo que ela essencialmente sugere: a saber, que a consciência filosófica é
coetânea do espanto, que ela nasce e se nutre da admiração. Que o filósofo é justamente aquele que se situa em
conflito com sua sociedade e com o seu tempo — que o
espanto e o incômodo são os gestos filosóficos originários:
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pensemos no conflito entre Heráclito e a Éfeso de seu
tempo, sem nos esquecermos que, para Nietzsche,
Heráclito de Éfeso constitui talvez a realização suprema
da filosofia.
Para o cultivo dessa sensibilidade renovada, seria necessário recuperar dois tipos de sentimento a que o homem moderno já não tem mais acesso: em primeiro lugar
o asco pela banalização do humano, por sua transformação em engrenagem impessoal e descartável, a ser
consumida e indefinidamente reposta na maquinaria global dos interesses e rendimentos em que se transformou
a terra.
Em segundo lugar, a compaixão pelo que ainda resta de
trágico e de belo na epopéia humana, de fermento de autosuperação. “E Zaratustra falou assim ao povo: É tempo que
o homem fixe sua própria meta. É tempo que o homem
plante a semente de sua mais elevada esperança. Seu
terreno é ainda bastante fértil para isso. Mas algum dia
esse terreno será pobre e manso, e dele não poderá brotar
já nenhuma árvore elevada. Ai, chega o tempo em que o
homem deixará de lançar a flecha de sua nostalgia mais
além do homem, e no qual a corda de seu arco já não saberá vibrar! Digo-vos: é preciso ter ainda um caos dentro de
si para poder dar à luz uma estrela dançarina. Digo-vos:
vós tendes ainda caos dentro de vós. Ai, chega o tempo em
que o homem já não dará à luz nenhuma estrela”13.
Para tanto, é necessário dirigir as esperanças para
aquele tipo antagônico desse tempo que não mais se espanta, que não mais incomoda, que não mais suporta ser
incomodado. Por isso, Nietzsche recorre àquele cujo ofício
é o incômodo: “A mim quer me parecer sempre mais que
o filósofo, como um necessário homem do amanhã e depois
de amanhã, sempre se encontrou e teve de se encontrar
em contradição com seu hoje: seu inimigo foi, a cada vez,
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O incômodo
o ideal de hoje. Até agora, todos esses extraordinários promotores do homem — que são denominados filósofos e
que raramente sentem a si mesmos como amigos da verdade, porém antes como desagradáveis loucos e perigosos
pontos de interrogação —, encontraram sua tarefa, sua
dura, involuntária, incontornável tarefa, e, afinal, a grandeza de sua tarefa, em ser a má consciência de seu tempo. Ao colocar justamente no busto da virtude do tempo o
bisturi da vivissecação, eles delataram qual era o seu segredo; saber de uma nova grandeza do homem, um novo,
não percorrido caminho para seu engrandecimento. Eles
desvelaram, a cada vez, quanta hipocrisia, quanta comodidade, quanto de se deixar levar e deixar-se cair, quanta
mentira se esconde sob o mais venerado tipo de sua
moralidade contemporânea, quanta virtude estaria sobrevivida, a toda vez, disseram eles: ‘temos que ir para lá,
para adiante, onde o seu vós hoje menos vos sentis em
casa”14.
Tomando de empréstimo um conceito de Heidegger, que
implica num acurado diagnóstico de nosso tempo, podemos dizer que, em nossos dias, o antigo maravilhamento,
o espanto diante do real, de que sempre se originou o autêntico gesto filosófico, assumiu a forma do sentimento de
horror. Talvez aquela nova sensibilidade, de que tratou
Nietzsche, se expresse hoje justamente no fato de ser aterrorizador que ninguém mais se espante — de que nos deixemos penetrar pelo conformismo e pela adaptação, a ponto de permanecer ofuscada toda e qualquer possibilidade
que não a eterna repetição do mesmo. É horrível que justamente isso não nos incomode mais.
Notas
F. Nietzsche. Also Sprach Zarathustra. in Ed. G. Colli e M. Montinari Sämtliche
Werke. Kritische Studienausgabe (doravante KSA), vol. 4. Berlin, New York,
München, de Gruyter, DTV. 1980, p. 18. Não havendo indicação em contrário,
1
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todas as citações de obras de Nietzsche se referem a essa obra, e as traduções são de
minha autoria.
F. Nietzsche. Para a Genealogia da Moral, III, 25. Trad. Rubens Rodrigues Torres
Filho. in F. Nietzsche: Obra Incompleta, Coleção Os Pensadores, 1ª ed., São Paulo:
Abril Cultural, 1974, pp. 328s.
2
3
Idem.
4
F. Nietzsche. Also Sprach Zarathustra, op. cit., p. 18.
5
Idem, pp. 19s.
6
F. Nietzsche. Para Além de Bem e Mal, 228 in KSA, op. cit., pp. 163s.
7
Idem 44, op. cit., pp. 60s.
F. Nietzsche. Nachgelassene Fragmente. Fragmento no. 10 [11], vol.12, in KSA, op.
cit., outono de 1887, p. 459.
8
9
F. Nietzsche. Para Além de Bem e Mal, 202 in KSA. vol. 5, p. 124.
10
Idem, 203, op. cit., pp. 126s.
11
Idem, 44, op. cit., pp. 60s.
12
Idem, 225, op. cit., pp. 160s.
13
Idem.
14
Idem, 212, pp. 145s.
RESUMO
Noção de último homem em Nietzsche e o desafio à ruptura com a
tradição filosófica que acomoda o tédio na boa consciência.
Palavras-chave: Filosofia, incômodo, Nietzsche.
ABSTRACT
Nietzsche’s notion of the last man and the challenge to the severance
of philosophical tradition that places tedium in good consciousness.
Keywords: Philosophy, annoyance, Nietzsche.
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verve
História anômala e políticas de subjetivação
história anômala e
políticas de subjetivação
alexandre de oliveira henz*
História criação sem criador. História de rebanho.
História bovina. História ruminação. História com tempo e a tempo. História de passeios e peles de cobras deixadas pra trás. História perdulária. História de dores,
sofrimento, lamúria. História de não caber. História portátil. História de contar e contadores. História pequeníssima, fragmento e quase frase. História, sem fim,
infinitazinha. História pipocando, cutucando. História
de não dormir, insônia madrugada adentro. História de
se perder, sem caráter e moral da história. História sem
contra. História sem coração. História de crueldade, alegria. História do falso e da ilusão. História do enfraquecimento. História sem esperança e saudade. História
em cena sem vida real ou fingimento. História sem vergonha, escancarada, enfiada. História sem verdade. História máscara superficial, sem atrás. História do esquecimento, de estômago frágil, de vomitar. História sem
sexo moderno com nem duas caixinhas nem três. His* Psicólogo e filósofo, professor no Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria/RS. Doutorando no Programa de Estudos PósGraduados em Psicologia Clínica da PUC/SP.
verve, 6: 25-44, 2004
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tória nem Eu nem Nós. História sem prescrição e proscrição. História sem tampão portátil. História sem romantismo de festim e arma só para polir. História todo
mundo, ninguém. História fendida. História ferida sem
cura. História sábia clandestina. História de paradeiro.
História sem jardim do sossego. História sem futuro nem
segunda sessão. História de morte, guerra, sem paz eterna. História de tamponamento, vazamento, transbordamento sem hidráulica nem encanador. História nunca
mais.
História recolhida pelo helenista Marcel Detienne em
que apresenta a Ilha das mulheres: “Posidônio afirma que
há no Oceano uma pequena ilha, por ele situada na
embocadura do Loire, e não de todo em alto mar; que
essa ilha é habitada pelas mulheres dos ‘namnetas’,
mulheres possuídas por Dioniso e dedicadas a apaziguar
esse deus por meio de ritos e toda sorte de cerimônias
sagradas. Nenhum macho pode pôr o pé na ilha. Em
contrapartida, as próprias mulheres, que são todas esposas, atravessam as águas para se unirem aos maridos, e regressam em seguida. Manda o costume que uma
vez por ano elas retirem o telhado do santuário e coloquem um outro no mesmo dia, antes do pôr-do-sol, cada
uma trazendo sua carga de material. Aquela cujo fardo
cai no chão é estraçalhada pelas outras que passeiam
seus membros em volta do santuário, gritando o evoé.
Não cessam enquanto seu delírio (lúttê) não termina. E
sempre acontece que uma ou outra caia e tenha de sofrer igual destino”1.
As imagens desta versão insular de Dioniso2 nos remetem a uma polissêmica, cuja força irrompe de súbito
permanecendo incompreensível, alheia a qualquer classificação. Assim, que provocações nos propõe esta história? Que questões, o Dioniso que chamou a atenção
do filósofo Posidônio de Apanéia pode trazer a uma abor-
26
verve
História anômala e políticas de subjetivação
dagem das políticas de subjetivação na contemporaneidade?
Um primeiro aspecto significativo na Ilha das mulheres possuídas por Dioniso que se apresenta como uma
figura curiosa sobre os efeitos momentâneos de estabilidade, refere-se ao fato de serem mulheres casadas que
cumprem regularmente seus deveres conjugais nos limites do domicílio, do continente. Existe ao mesmo tempo, por parte delas, ritos e cerimônias e, poderíamos dizer, estratégias e políticas que buscam apaziguar o caos
Dionisíaco desfavorecendo a evocação de outras intensidades, o arrombamento do mesmo, da forma que é também um dos motes dos versos de Willian Blake quando
indica: “a forma humana, uma forja de fogo, a figura
humana uma fornalha lacrada, o coração humano, sua
garganta faminta”3.
Mas mantendo a fornalha lacrada nessa estranha
versão de Dioniso, o deus entre suas mulheres insiste
nas formas, proteções, telhados que devem ser feitos e
desfeitos no espaço de um dia, um trabalho sob a luz do
sol4. Na troca da cobertura do santuário, um acidente,
um acaso que produz5, faz estourar um corpo, deformação de uma forma, fornalha aberta por um Dioniso dos
esgaçamentos, das dilacerações que carrega a outros
lugares, deus que faz os fiéis tropeçarem. Mesmo permanecendo todo um ano em aparente apaziguamento,
lembra em um só dia, aos esquecidos, que ele é o estrangeiro no interior, o disruptivo que nos habita e que
continua implacável.
A mulher fulminada por Dioniso deixa cair seu fardo
(se pensarmos no século XIX, a forma-homem que pesa
sobre o homem) e na dilaceração de seus membros jorra no tempo fora dos eixos, tempo de transmutação.
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Lançando setas na direção dos telhados6 da formahomem e das promessas de segurança, nos fala
Nietzsche, num de seu textos mais insolentes: “a visão
do homem agora cansa”7. Nós sofremos do homem. O
que é que ele está querendo dizer? O que nos cansa e o
que nos faz sofrer é o fato de que o homem se tornou
este verme manso, incuravelmente medíocre e insosso. É o diagnóstico de Nietzsche da cultura ocidental. O
pior é que essa mesmice, este apequenamento do homem, este apaziguamento de Dioniso, este nivelamento
do homem, tornou-se a meta da nossa civilização e não
um acidente de percurso.
Assim, Nietzsche conclui que o homem está doente.
Mas no que consiste a doença do homem? A doença do
homem consiste precisamente nesta forma medíocre
que ele assumiu, nesta forma que é expressão de uma
negação da vida. Em suma, a doença do homem chamase homem. Essa forma impotente que na Ilha das mulheres não é mantida, porque ali um acidente, um acaso, produz rupturas, isto é, movimentos de já ser ‘outro’
no jogo constante do mesmo e do outro. “Ao acaso
irresistível de um fragmento de céu aberto em um telhado”8 temos a fratura do tempo domesticado, a irrupção
da multiplicidade dionisíaca da vida, o desencadeamento
de novas formas do viver.
O que Nietzsche insiste é que este homem manso,
morno, monótono, que faz questão da sua mesmice, esse
homem igual a si mesmo, idêntico a si e que quer se
perseverar como tal é um produto da história9. Esse homem não é natural, foi criado, produzido ao longo dos
séculos, ele foi domesticado desta maneira, existindo
interessantes descrições sobre a violência que foi necessária para domesticá-lo e dar-lhe essa forma mansa, medíocre, insossa, essa forma que o homem tem
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verve
História anômala e políticas de subjetivação
hoje10 e que é reafirmada através de estratégias e políticas de manutenção dos telhados.
Evidentemente outras questões poderiam ser libadas
pela sabedoria trágica narrada por Detienne. A própria
vizinhança entre saúde e loucura na agonística de forças impalpáveis, mas intensamente ativas e interativas
que nos falam e levam tanto à rasteira do deus que faz
saltar como potência de vida — o grande livramento de
Nietzsche —, quanto ao destroçamento de si —
nomadismo incondicional na embriaguez fatal de Dioniso
—, que conduz à loucura11. Pois, o que seria, na noite,
um deus sem telhado, um Dioniso a céu aberto? Saber
trágico que flagra o capitalismo contemporâneo alimentando a sua própria utopia: a utopia de uma vida que
escapa a essa “miséria”, o ideal de uma vida consumidora sem dor, inteiramente passada na tranqüilidade e
na proteção uterina dos telhados. O grande sonho de
proteção ininterrupta sincrônica com a promessa de
segurança em que os países pobres e ricos resumem
hoje toda a sua política12.
Diagnosticando esses perigos Nietzsche lembra: “a
fôrma aprisionou a vida”. A forma-homem aprisionou a
vida. Neste caso seria preciso livrar-se do homem para
liberar a vida. Isso não quer dizer literalmente matar
pessoas, destroçá-las e correr com os seus pedaços em
volta de um santuário, como na alegoria indicada na
história, mas sim se desfazer da forma-homem que pesa
sobre os homens. Mas como liberar essas forças aprisionadas sob a carcaça da ‘forma aprisionadora’ na Ilha
das mulheres? Talvez seja preciso dizer que aí, também,
se requer muita violência. Como imaginar que se possa desfazer da forma-homem e das políticas de
subjetivação que aí ressoam com menos violência do
que foi preciso para estabelecer a forma-homem? Tal-
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vez alguns indícios nos possam ser dados pelo escritor
judeu-polonês Bruno Schulz quando refere:
“Nenhum mal existe em reduzir a vida a formas novas. O assassinato não é um pecado. Muitas vezes não
passa de violência necessária perante entorpecidas e
refratárias formas que deixaram de ser interessantes.
Pode até ser um mérito quando cometido em benefício
de uma experiência interessante e vital. E este é o ponto de partida para uma nova apologia do sadismo. O meu
pai não cansava de glorificar este elemento extraordinário. Não há matéria morta — ensinava ele. A morte
não passa de aparência onde se ocultam desconhecidas
formas de vida”13.
Assim, haveria por um lado uma forma-homem que
a nossa modernidade cristalizou e, por outro, haveria
as múltiplas forças que essa forma-homem moldou, aprisionou. Essas forças, essas afecções Dionisíacas da Ilha
das mulheres separadas de tudo o que é humano demasiado humano, poderiam ser chamadas de forças
inumanas.
De um lado, temos esse formato, mantido por este
estranho Dioniso, no qual nós nos reconhecemos como
humanos, pelo menos por um certo tempo (período de
um ano na história em questão). De outro lado, temos
essas forças que nos atravessam, colocando em xeque
constantemente essa forma humana a qual nós nos aferramos cada vez mais14. Quanto mais as forças colocam
em xeque essa forma, mais nós fazemos questão dessa
forma para nos proteger dessas forças; quanto mais nós
sentimos essas forças ameaçando desmanchar essa forma, mais nós nos agarramos a essa forma e cristalizamos coisas. Perigo de uma dilaceração, estouro de um
corpo na Ilha das mulheres, deformação da forma-homem.
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verve
História anômala e políticas de subjetivação
Apresentarei a seguir, algumas questões entre as
configurações trágicas da Ilha das mulheres e uma política de subjetivação na perspectiva do indivíduo. A noção de indivíduo pressupõe o mínimo de interioridade,
contorno, autocentramento. Seria possível afirmar que
essa noção pressupõe uma identidade, uma identidade
consigo, mas com uma reapropriação daquilo que difere
de si mesmo. O indivíduo reapropria-se do que é diferente dele nessa estrutura autocentrada de contorno
delimitado e uma idéia de identidade referencia isso
tudo. Na Ilha das mulheres temos algo mais complexo e
que está menos referido à identidade própria do que a
uma certa relação com a exterioridade. Este si na história em questão está mais relacionado com a exterioridade, com as forças presentes nessa exterioridade. É
algo menos individual, menos privado 15 e menos
reapropriador, como uma das Duas noites nesse fragmento de Maurice Blanchot:
“A primeira noite é acolhedora. Novalis endereça-lhe
seus hinos. Pode-se dizer dela: na noite, como se ela
tivesse uma intimidade. Entra-se na noite e nela se
repousa pelo sono e pela morte. Mas a outra noite não
acolhe, não se abre. Nela, está-se sempre do lado de fora.
Tampouco se fecha, não é o grande castelo, próximo mas
inaproximável, onde não se pode penetrar porque a saída estaria guardada. A noite é inacessível, porque ter
acesso a ela é ter acesso ao exterior, é ficar fora dela e
perder para sempre a possibilidade de sair dela. Essa
noite nunca é a noite pura. É essencialmente impura.
Não é esse belo diamante do vazio que Mallarmé contempla, para além do céu poético. Mas é a verdadeira
noite, é noite sem verdade, a qual, entretanto, não mente, não é falsa não é a confusão onde o sentido se desorienta, que não engana mas da qual não se pode corrigir os enganos. Na noite encontra-se a morte, atinge-se
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o esquecimento. Mas essa outra noite é a morte que
não se encontra, é o esquecimento que se esquece, que
é, no seio do esquecimento, a lembrança sem repouso”16.
Para nos avizinhar da outra noite anunciada por
Blanchot (nela, está-se sempre de fora) é interessante
pensarmos em uma representação gráfica, o desenho
de uma dobra, feita por G. Deleuze em seu livro Foucault17
que refere o modo como ele leu a questão da subjetividade. O desenho nos fala também da linha do fora. O
que existe no fora? O fora possui forças, singularidades,
velocidade selvagem. Deleuze apresenta-nos, entre outras questões, os planos do saber, do poder e, como último ponto do seu gráfico, da subjetividade. A subjetividade é uma inflexão da linha do fora, é uma desaceleração
do fora. A subjetividade é o fora recurvado, encurvado,
infletido. A subjetividade possui uma relação estreitíssima com a outra noite, mas, ao mesmo tempo, no desenho de Deleuze, é apresentado um gargalo, um telhado
do santuário da Ilha das mulheres, mais ou menos
obstruído porque precisamos de uma pequena obstrução em relação a ele, senão seria uma permeabilidade
absoluta à noite que nos tornaria inviáveis como seres
operativos.
A outra noite, o fora, o céu aberto de Dioniso durante a
noite, o que são? Não são articulações, são as diferenças. São as diferenças ou as singularidades na sua velocidade selvagem. Então, a noite me habita ou me atravessa, eu sou apenas uma inflexão dela. Nesse sentido,
a noite não está necessariamente exterior.
Para Deleuze, a subjetividade é uma dobra do fora. O
que é o fora? Um campo pré-pessoal, inumano (talvez de
um outro modo ainda povoado pelos deuses intra-mundanos da tragédia grega)18. É uma multiplicidade de for-
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verve
História anômala e políticas de subjetivação
ças, sua velocidade infinita, sua invisibilidade. É esse
campo de potências é a verdadeira noite, é noite sem verdade, a qual, entretanto, não mente. E a dobra que referi
inicialmente, que é? A dobra é como uma dobra de tecido. Uma prega de tecido. A dobra não é diferente do tecido, ela acontece no tecido. Não tem, de um lado, a dobra,
de outro lado, o tecido. Ela dobra do tecido, é uma curvatura, é uma certa curvatura do fora, é uma certa inflexão
do fora, é uma maneira, por exemplo, de ver que essa
velocidade das forças talvez se tornem um pouco mais
lentas. Essas partículas se desaceleram da sua velocidade infinita quando sofrem essa inflexão subjetiva.
Essa inflexão do fora, essa desaceleração, cria uma
certa interioridade, um certo campo interno de ressonância. Mas isso aí não é uma interioridade fechada
em si, mesmo porque é justamente uma dobra do fora. É
uma espécie de envergamento do fora. Claro, tem aí um
‘certo’ si, mas esse si não tem nada a ver com aquele
que é totalmente individuado, centrado em si mesmo,
contraposto ao mundo e idêntico a si mesmo.
O que aproxima a outra noite, o fora, o céu aberto da
Ilha das mulheres, do universo dos gregos anteriores a
Sócrates valorizado por Nietzsche, é esse mundo povoado por deuses intra-mundanos em que há a ordem humana e a ordem religiosa, dos deuses, embora já em
algum nível discriminadas mas, indissoluvelmente,
imbricadas uma na outra. Um mundo ainda repleto de
mistérios e um mundo ao qual o homem não controla,
um mundo cujo sentido lhe escapa por todos os lados. O
trágico de Nietzsche aproxima-se da Segunda noite de
Blanchot porque se faz na ambivalência onde o sentido
está sempre flutuando de um lugar para outro. Haverá
sempre a ordem humana e a religiosa (com seus deuses de múltiplos matizes), uma certa configuração do
dentro e do fora se confrontando como porta-vozes de
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dois discursos diferentes que produzirão flutuações de
sentido de um lado para o outro.
Os trabalhos de helenistas como Pierre Vidal Naquet
e Jean Pierre Vernant, entre outros, indicam sobre a
noção de “eu” individuado, que ele está sempre em
individuação, tal e qual o frágil santuário aparentemente
estável de Dioniso:“O eu não é nem delimitado nem
unificado: é um campo aberto de forças múltiplas, diz H.
Frankl. Sobretudo, essa experiência é orientada para o
exterior, não para o interior. (...) O sujeito não constitui
um mundo interior fechado, no qual deve penetrar para
se encontrar, ou antes para se descobrir. (...) A sua consciência de si não é refletida, dobrada sobre si, encerramento interior(...)”19.
Contemporaneamente, Deleuze acompanhou o trabalho de Foucault na descrição o mundo grego. Foucault
mostra como os gregos desdobravam sua força em todos
os seus hábitos, na cidade, na alimentação, na sexualidade, eles dobravam as forças de tal modo que criava-se
um si, mas esse si não era uma redoma contraposta.
Era uma certa maneira de fazer ressoar alguma coisa
numa espécie de auto-afetação. Esse si é uma maneira
de afetar-se. Isso se relaciona com toda a temática do
Foucault20 que impregna os últimos livros voltados à
questão das práticas de si. Os gregos preocupavam-se
com um certo cuidado de si, na existência, nas práticas
em relação à alimentação, à sexualidade ou à conduta
na cidade. Era uma espécie de existência estética, como
fazer de si mesmo uma obra, o que é tema constante
nos trabalhos de Foucault.
De qualquer maneira, esse cuidado de si que os gregos exercitaram muito, não tem nada a ver com a idéia
que geralmente nós temos do si psicologizado, porque o
que concebemos como o exercício do si, a introspecção,
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História anômala e políticas de subjetivação
é a promessa de nossa apelação conosco mesmo. Descobrir o que nos aliena de nós mesmos, a nossa maneira de nos relacionarmos (a nós mesmos) separados de
nós mesmos, ou seja, nós tentamos na perspectiva do
indivíduo descobrir nossa ‘verdade interna’. Contemporaneamente são comuns verbalizações como: “eu preciso
encontrar o que eu tenho mais lá dentro no fundo que é
eu mesmo, minha identidade que está recoberta por um
monte de coisas, assim da minha história familiar e
muitas outras então eu preciso de algum jeito remover
e encontrar de novo o meu si verdadeiro”21.
A experimentação dos gregos era totalmente diferente. Não se tratava de reencontrar o si verdadeiro, mas
produzir uma forma de existência com essas forças do
si, que fosse uma bela obra e uma bela dobra. Como dobrar a vida de um jeito bonito? Dobrá-la como obra de
arte.
Ainda no tensionamento com a referência identitária,
a persistência da subjetividade em sua figura moderna,
a ignorar as forças que a constituem e desestabilizam,
nos indica Novalis em um de seus fragmentos:“o mundo interior é, por assim dizer, mais Meu do que o exterior. Ele é tão íntimo, tão secreto — quereríamos viver
inteiramente nele — ele é tanto uma pátria. É pena
que ele tal como os sonhos, seja tão incerto. Será necessário que precisamente o melhor, o mais verdadeiro, nos pareça tão aparente — e que o aparente nos pareça tão verdadeiro? O que é exterior a mim está precisamente, em mim, é meu — e inversamente”22.
Vivemos ainda a brincadeira de descobrir a nossa
verdade interna mais recôndita, ficando nesse jogo do
mistério velado e desvelado, tentando descobrir, e quanto
menos se descobre, mais interessante fica, e mais há
gozo com esse insondável que é a nossa interioridade
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recôndita. É um jogo com si mesmo, baseado na idéia de
que: a gente vai se reapropriar de si”, mesmo que reconheçamos essa reapropriação como impossível, não
importa, o jogo está montado, é uma espécie de promessa de desalienação. Como estamos desalienados conosco
mesmo, vamos reapropriar, e onde havia inconsciência
haverá consciência, redescoberta de si mesmo. Essa
matriz possui amplas relações com o que Nietzsche
chamou de humano, demasiado humano, com a figura do
indivíduo moderno porém, é absolutamente de um outro registro a outra noite, o fora e o que nos conta a Ilha
das mulheres
Assim retornando a Blanchot, algumas das perguntas trágicas da segunda noite serão: Que outras maneiras há de dobrar e desdobrar as forças, da morte que não
se encontra, o esquecimento que se esquece, que é, no seio
do esquecimento, a lembrança sem repouso de forças que
nos espreitam? Que maneiras presentes e futuras de
desacelerar essas forças que nos circundam e atravessam? Que outras maneiras de abrir-se a elas nos esperam?
No dizer de Nietzsche, uma das mudanças de pergunta (segundo ele é preciso mudar o lugar da questão) da
segunda noite e que problematiza o humano não seria
como reconduzir uma dobra mal feita à dobra bem feita,
como era a velha pergunta moralizadora do projeto moderno. Toda questão é: Que múltiplas maneiras de dobrar estão aí virtualmente presentes? Quais as outras
possibilidades, quantas maneiras de dobrar desconhecidas? Quer dizer, essas inúmeras outras maneiras de
dobrar não são uma questão de verdade, (que para um
pensador trágico como Nietzsche não é uma boa questão). As dobras estão para ser experimentadas ou inventadas. Não é de estranhar que Deleuze tenha chamado os conceitos nietzschianos de categorias do in-
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História anômala e políticas de subjetivação
consciente e o próprio inconsciente de um protocolo de
experimentação das outras tantas dobras por vir. Por
conseguinte, a questão para a perspectiva do indivíduo
não é descobrir a verdadeira dobra. É abrir-se para as
possibilidades, as múltiplas dobras virtualmente presentes.
A Ilha das mulheres e seu universo trágico tem uma
relação íntima com uma exterioridade inumana, com
uma multiplicidade pré-pessoal, com a linha do fora na
relação com as diferenciações. O si não pensado em relação à segurança e a uma identidade que ele tem como
centro, mas à luz das diferenciações, das metamorfoses
multifacéticas que ela vive, com todas as estranhezas
ali embutidas.
Para Nietzsche, assim como na história apresentada por Detienne não existe uma vontade una da qual
nós seríamos cada um expressão individualizada, o que
existe são múltiplas forças em luta. O mundo, o si é uma
pluralidade de forças em luta e essas forças se juntam,
aglomeram-se, criam aglutinações de forças. O mundo,
a Ilha das mulheres é uma pluralidade de forças em combate. E existem, fundamentalmente, dois qualias de força. O primeiro tipo de força apenas preserva o que possui. É um tipo de força conservadora, da qual todos nós
temos traços: conservar o que temos, nossas relações,
nossas lembranças, nossas casas. Porém, há um outro
tipo de força que é totalmente diferente. Não é uma força de conservação. Esse outro tipo de força tem por direção não conservar, mas ir além, superar-se. Esse segundo tipo de força quer ampliar o que tem e não conservar. Ampliar a própria perspectiva, experimentar a
própria potência, desfazer telhados. Experimentar, ir
além daquilo que, atualmente, faz, pensa e pode. É um
tipo de força ativa segundo Nietzsche. Sua característica é arriscar tudo. O fundamental da outra força é con-
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servar tudo, força reativa. Então, essa força que se arrisca, que vai além, não quer submeter-se a nada. É
uma força mais agressiva, mais conquistadora, quer
sempre novas direções. Esta força é uma força não de
conservação, mas de metamorfose. É uma força plástica, mutante, quer a mudança e a transformação. Ela se
apropria de tudo o que pode a sua volta, com esse vetor,
ainda que no mais das vezes, onde e quando não esperamos.
Se a força reativa quer se conservar e manter tudo
como está, a força ativa é uma força criadora, inventa
novas direções, sentidos, conexões de vida, novos valores, percepções, perspectivas de vida, novos sentimentos.
A perspectiva em Nietzsche é a do criador. O artista
diante da sua matéria prima, um pintor, um artista plástico domina sua matéria prima. Mas o sentido de dominar é precisamente o de dar uma nova forma. Dominar
não significa dar ordens, mas construir uma nova forma, uma nova sensibilidade, uma nova perspectiva. Um
artista se apropria da argila e, nesse sentido, ele a
metamorfoseia, ele cria algo inédito. A isso se dá o nome
de vontade de dominação, isto é, a força domina o seu
entorno. Dominação tem esse sentido plástico em que
um artista domina a sua matéria de trabalho. Segundo
Nietzsche, a vida tem essa característica também, de
uma força que se apropria do mundo para inventar novos sentidos, novas perspectivas e novas direções. As
primeiras forças, chamadas forças de conservação, são
muito importantes, se não conservássemos o que temos, seria muito difícil inventar qualquer coisa. Nós
precisamos conservar os traços mnêmicos ligados à
consciência do corpo, pois as forças de conservação são
como patamares de estabilização necessários para a
vida. Porém, isto é apenas sobrevivência porque para
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verve
História anômala e políticas de subjetivação
Nietzsche a vida é também força ativa, inventiva, criadora de novas formas, o que vem a ser propriamente a
potência segundo o autor. Obviamente tudo isso está
distante da dominação como hierarquia, do Estado, pois
potência significa ter a potência de criar, é ter a potência de inventar, apesar da força do rebanho.
Há toda uma valorização desta força criadora e afirmativa, uma força que afirma a multiplicidade. Uma
força que afirma a diferenciação de viver, de pensar, de
sentir, há toda uma valorização em Nietzsche da
afirmatividade não unificadora da vida, como refere em
Além do bem e do mal:
“Há uma ‘moral dos senhores’ e uma ‘moral de escravos’; acrescento de imediato que em todas as culturas superiores e mais misturadas aparecem também
tentativas de mediação entre as duas morais, e, com
ainda maior freqüência, confusão das mesmas e
incompreensão mútua ,por vezes inclusive dura coexistência — até mesmo num homem, no interior de ‘uma’
só alma”23.
Então, para Nietzsche convivem dois modos, até
mesmo no interior de uma mesma pessoa. O modo senhor é o que vai ao limite do que pode e desdobra toda a
sua potência. E o modo escravo de operar é aquele que
está separado da sua força.
Assim, a vontade de potência é sempre apresentada
como diferença. Diferença do quê? Diferença de arriscar tudo o que tem, o que se é o que se conquistou, o que
está muito estabilizado. Forças de abandonar esta forma já cristalizada para inventar uma outra forma? Em
outras palavras a vontade para Nietzsche quer potência. Mas, a potência é a potência de criar. A vontade é
totalmente arriscada, aventurosa, atirada, e sobretudo
uma vontade expansiva. É um querer expansivo. É a
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potência de experimentar, experimentar o quê por exemplo? Todos aqueles “deuses trágicos” que me habitam e
que eu nem sei que me habitam, todas as potencialidades que estão presentes na vontade de ultrapassagem, uma potência de experimentação em que eu me
lanço para além desta forma humana.
Ainda nesta perspectiva, Nietzsche vai utilizar o termo Super-Homem que não é a pregação de alguém semelhante ao herói estadunidense, mas uma experimentação criadora o suficiente a ponto de dilacerar esta forma humana, para experimentar uma potência
desconhecida, afirmando a vida.
A vida (compreendia como potência infinita de criação) repugna a perspectiva mesquinha e burguesa vivida, no limite apenas utilitário da adaptação comandada
pela carência, para fins de conservação e reprodução da
espécie. A vida, bem como o conjunto da natureza, não
é o cenário pacífico da acomodação às necessidades. A
vida ao contrário é agon, campo de luta e desiquilíbrio
de forças, a vida não é avara de suas formas, mas
‘gastadeira’, perdulária e expansora. E é neste sentido
que viver não é sobreviver, pois sobreviver é conservarse e viver para Nietzsche, é precisamente ultrapassarse, experimentar outras perspectivas, outras maneiras
de ser, de sentir, de pensar, de se relacionar. A questão
fundamental para Nietzsche é criação de novos valores,
procurando saber se nós estamos querendo e em condições de criar novas direções; se estamos, muitas vezes,
na proximidade da alteridade radical, escolhendo e em
condições de criar, ou de conservar o mesmo.
Como ter olhos para isso? O que está acabado? O que
está nascendo hoje? Nós muitas vezes não temos olhos,
porque está se gestando uma nova maneira de perceber, de sentir, de enxergar.
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verve
História anômala e políticas de subjetivação
É necessário uma nova sensibilidade para enxergar
o que está se desfazendo, o que está se gestando, não só
para as formas acabadas , mas para as forças todas do
campo que vão gestando novas formas. Claro que esse
campo é muito mais invisível, é mais imperceptível. Às
vezes, é mais molecular. É político antes de tudo.
Há múltiplas coisas que nós não vemos, não tocamos. Mas por quê? Será que essas coisas não estavam
ali? Se estavam ali é porque não houve abertura sensitiva, perceptiva? E, evidentemente, não são coisas para
iluminados ou videntes. A pergunta é: como se aproximar do invisível? O invisível não é um segredo que se
oculta por trás, é o que está aí o tempo todo, para o que
nós não temos olhos, porque nós, como alguns personagens de tragédias24 percebemos as formas acabadas,
temos muita dificuldade de perceber todas as fissuras,
os movimentos, os desfazimentos.
“O que muda para os pássaros, a época em que trocam de plumagem, é a adversidade ou a infelicidade, os
tempos difíceis, para nós, seres humanos. Uma pessoa
pode ficar nesse tempo de muda; também pode sair dele
como que renovada”25.
É preponderante uma política de subjetivação que no
tempo de muda, evita sair dele, tentando reduzir tudo a
modorras e mesmices. É importante colocar-se disponível a outras maneiras de operar, para além dos efeitos de ótica das identidades ficcionais, pôr-se, como a
vida, generosamente em debandada, como uma debandada de pássaros.
A versão insular de Dioniso (a Ilha das mulheres), a
outra noite de Blanchot, o fora de Foucault-Deleuze lançam-nos em muitas perspectivas possíveis nos elementos de construção e corrupção, saúde e loucura, vida e
morte, apontando a uma experimentação com histórias
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e fragmentos anômalos como prazer de assumir diferentes formas, prazer de ir se construindo e se destruindo ao longo da vida. Convidando-nos a políticas que se
aventurem por dentro e por fora das necessidades pragmáticas e subjugadas de nossa inteligência e sensibilidade, rompendo com o que está acabado, visualizando o
que vem vindo, desfazendo essa forma e produzindo outras formas, imprevisíveis, indeterminadas.
Notas
1
M. Detienne. Dioniso a céu aberto. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1988, pp.
76 e 77.
É interessante atentar para o fato de que o deus dos santuários e templos é
tipicamente Apolo e que Dioniso “prefere” as florestas e cavernas.
2
3
William Blake apud G. Bataille. A literatura e o mal. Porto Alegre, LP&M,
1989, p.84.
4
O trabalho das mulheres deveria ser realizado antes do pôr do sol e o telhado
refeito antes dos perigos de um santuário exposto ao fora, a uma noite sem telhado.
5
O acaso constitui na perspectiva de Nietzsche o princípio que rege o mundo.
Sobre os telhados e uma política de subjetivação trágica ver: “A princesa, que
morava num palácio com telhado de vidro, estava brincando de jogar pedras no
telhado do vizinho. Fazia isso exatamente porque quem tem telhado de vidro
não joga pedra no do vizinho”. As ressonâncias de Nietzsche na obra de Fernanda
Lopes de Almeida. A princesa dos cabelos azuis e o horroroso homem dos pântanos. São
Paulo, Editora Ática, 1993, p. 16.
6
7
F. Nietzsche. A genealogia da moral. São Paulo, Ed. Moraes, 1991, p. 35.
8
M. Detienne, op. cit., p. 92.
Ver especialmente os trabalhos do historiador judeu-alemão Norbert Elias. O
processo civilizador. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1994, 2 vols.
9
A respeito da ‘forma homem’, não como um dado natural mas sim produzida
a ferro e fogo ao longo dos séculos como moldagem civilizatória, apequenamento,
domesticação e por conseguinte criação da própria noção de ‘interioridade’;
assim como a violência posta no estabelecimento destas formatações ver as
descrições interessantes e terríveis em F. Nietzche, op. cit., especialmente I:41,
II:3, III:14.
10
42
verve
História anômala e políticas de subjetivação
11
Várias e fecundas questões sobre saúde e loucura na articulação com a epopéia e o trágico podem ser inferidas do capitulo III “As bençãos da loucura” in
E. R. Dodds. Os gregos e o irracional. Lisboa, Portugal, Ed. Gradiva, 1988, pp.
75-113.
12
Jacques Rancière. “A máquina e o feto”, Folha de S. Paulo, 26/01/2003.
13
Bruno Schulz. As lojas de canela. Rio de Janeiro, Ed. Imago, 1996, pp. 48 e 49,
e em especial o capítulo “O tratado dos manequins, ou o segundo Gênesis”.
Esses temas são abordados por G. Deleuze. Foucault. São Paulo, Brasiliense,
1986. Bem como por M. Foucault em Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes, 1977.
14
15
Sobre a esfera do privado e a ‘privação’ ver Hannah Arendt. A condição
humana. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1997, assim como, Steven Lukes.
El individualismo. Barcelona, Ed. Península, s/d; que tematizam de diferentes
maneiras, a faceta de privação que tem a palavra ‘privado’ e que significa
literalmente o estado de quem está privado de algo, inclusive da sua potência,
daquilo que ele pode, segundo Nietzsche. Sabendo-se que entre os gregos quem
levava uma vida exclusivamente privada, quem como o escravo não tinha
acesso a esfera pública, ou quem, como o bárbaro, optava por não criar essa
esfera, não era plenamente humano. Contemporaneamente não pensamos no
significado de ‘privação’ quando utilizamos esta palavra, o que se deve em
parte a enorme naturalização e fortalecimento da esfera privada a partir do
final do século XVIII.
16
M. Blanchot. O espaço literário. Rio de Janeiro, Ed. Rocco, 1987, p. 164.
17
“Diagrama de Foucault” in G. Deleuze, op.cit., p. 128.
Sobre esta questão ver “Ártemis ou as fronteiras do outro” in J. P. Vernant. A
morte nos olhos - figuração do outro na Grécia antiga - Ártemis e Gorgó. Rio de Janeiro,
Jorge Zahar Editor, 1991.
18
J. P. Vernant. “O Indivíduo na cidade” in P. Veyne et alli. Indivíduo e poder.
Lisboa, Ediçôes 70, 1988, p. 38.
19
20
Ver especialmente M. Foucault. História da sexualidade: O uso dos prazeres, vol.
II. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1984, e M. Foucault. História da sexualidade
O cuidado de si, vol. III. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1985.
21
Fala ficcional de muitos e de ninguém não há referência a uma pessoa, o autor.
22
Novalis. Fragmentos de Novalis. Lisboa, Assírio e Alvim, 1992, p. 105.
F. W. Nietzsche. Além do bem e do mal: Prelúdio a uma filosofia do futuro. São
Paulo, Companhia das Letras, 1992, p. 172.
23
24
Sobre o trágico, a visão e a cegueira, o visível e o invisível ver Sófocles,
“Édipo Rei” e “Édipo em Colono” in A trilogia Tebana. Rio de Janeiro. Jorge
43
6
2004
Zahar Editor, 1989, e R. M. Rilke “Notas marginales a F. Nietzsche, El
Nacimiento de la Tragédia” in Er, Revista de Filosofia. Sevilha, Ed. Er, Revista de Filosofia, 1995.
25
V. van Gogh. Cartas a Théo - Antologia. Porto Alegre, L P&M, 1997, p. 21.
RESUMO
A partir de uma perspectiva deleuziana, analisar algumas políticas de subjetivação na contemporaneidade.Utilizam-se histórias
anômalas como dispositivos de problematização. A anomalia pemite
evocar um emaranhado de diferenças, ao invés de um fluxo. Permite igualmente um repensar radical da história do mundo e da história da subjetiviade.
Palavras-chave: diferença, políticas de subjetivação, histórias anômalas
ABSTRACT
From a Deleuzian perspective, analyze some politics of
subjectivization in the present. Anomalous histories are argued as
devices of problematization. Anomaly allows to evoke a tangle of
differences, in permanent transformation instead of a flux. It also
allows a radical rethinking of the world´s history as well the
history of subjectivity.
Keywords: difference, politics of subjectivization, anomalous
histories.
44
verve
Do incômodo das imagens à inquietação do pensamento
do incômodo das imagens
à inquietação do pensamento
márcio alves da fonseca*
Em que medida o pensamento, para inquietar-se,
precisa ser incomodado? Em relação a inúmeras filosofias talvez fosse possível afirmar, sem muito equívoco,
que o pensamento, para inquietar-se, quase sempre
precisa ser incomodado, ou ainda, que quanto mais o
pensamento for incomodado, tanto mais poderá vir a
inquietar-se. Neste sentido, uma interrogação acerca
da relação entre a inquietação do pensamento e alguma forma de incômodo que estaria em sua causa ou
origem pode ser interessante.
Por uma razão bastante precisa, certamente pode-se
referir à filosofia de Michel Foucault a fim de se explorar um pouco esta idéia. A razão não é outra senão o
fato desta filosofia constituir-se em um esforço contínuo de “problematização”. Com efeito, a relação entre
alguma forma de incômodo e a inquietação do pensa* Professor no Departamento de Filosofia da PUC/SP. Autor de Michel Foucault
e a constituição do sujeito (EDUC, 1995) e Michel Foucault e o Direito (Max Limonad,
2002).
verve, 6: 47-58, 2004
47
6
2004
mento pode ser percebida de modo singular nos trabalhos do filósofo.
Não foram poucas as vezes em que Foucault referiuse a este “modo de ser” de seu pensamento. Em uma
entrevista concedida a François Ewald, em 1984,
publicada em Dits et Écrits com o título “O cuidado da
verdade”1, dirá que a noção que serviu de forma comum
aos estudos que realizou desde a História da loucura havia sido a noção de problematização: “problematização
não quer dizer representação de um objeto preexistente,
nem criação pelo discurso de um objeto que não existe.
[Problematização] é o conjunto das práticas discursivas
ou não-discursivas que faz com que algo entre no jogo
do verdadeiro e do falso, jogo que o constitui [este algo]
como objeto para o pensamento (seja sob a forma da reflexão moral, do conhecimento científico ou da análise
política, etc.)”2.
Neste sentido, problematizar é remeter algo — pensamento ou ato, noção ou situação, quer se refiram aos
domínios da moral, do conhecimento científico ou da
política — para o “jogo do verdadeiro e do falso”, é, portanto, desestabilizar, tirar do repouso, submeter a um
movimento.
Também em 1984, em um debate com Dreyfus e
Rabinow3, Foucault afirma que o trabalho do pensamento seria um trabalho de problematização e de perpétua
reproblematização. E este esforço de reproblematização
partiria do reconhecimento do princípio de que o homem
é um ser pensante, sendo o pensamento não aquilo que
nos faz acreditar no que pensamos ou admitir o que fazemos, e sim o que nos faz problematizar aquilo mesmo
que somos. O trabalho do pensamento não seria denunciar o mal que habitaria secretamente em tudo o que
existe, mas pressentir o perigo que nos ameaça em tudo
48
verve
Do incômodo das imagens à inquietação do pensamento
o que é habitual, [o trabalho do pensamento] é tornar
problemático tudo o que é sólido4.
Assim, recusando as designações que normalmente
lhe eram atribuídas (idealista ou niilista, anti-marxista ou neoconservador), Foucault identifica sua filosofia
a uma certa atitude, “atitude que seria da ordem da
problematização”5, entendida como a elaboração de domínios de fatos, práticas e pensamentos que permitem
colocar problemas, questionar o que somos e pensamos,
o modo como agimos e como nos entendemos, enfim,
tudo aquilo que nos é habitual.
Deste modo, a filosofia como problematização remete incessantemente à inquietação do pensamento. Ela
é da ordem da provisoriedade das conclusões e não da
estabilidade das certezas. Sua índole é arriscar-se, deslocar-se continuamente, tatear e experimentar, não
admitindo descanso, não se ancorando em qualquer “porto-seguro”. É uma filosofia do pensamento inquieto.
E como não tender ao descanso? Como não procurar
repouso em alguma certeza? Como manter o pensamento continuamente inquieto? Ao configurar-se como
problematização, ao pretender construir-se como uma
filosofia do pensamento inquieto, ela deve, de algum
modo, incomodar e deixar-se incomodar. Ela deve saber
incomodar para poder inquietar continuamente o pensamento.
Ora, a leitura atenta dos livros, dos cursos e dos outros escritos de Foucault revela um pensamento que,
em não poucas vezes, incomoda. E o faz duplamente:
incomoda tanto pelo conteúdo daquilo que diz, quanto
pela forma segundo a qual diz o que diz. Talvez fosse até
mais adequado afirmar que a filosofia de Foucault incomoda precisamente porque não comporta uma separa-
49
6
2004
ção rigorosa entre “o que diz” e o “como diz”, em outras
palavras, entre “conteúdo” e “forma”.
Ao referir-se ao “estilo” desta filosofia, Francesco
Paolo Adorno6 faz menção a Paul Valéry, para quem a
filosofia seria tanto um problema de conteúdos e de argumentações lógicas quanto um problema de forma, não
havendo, assim, uma separação rigorosa entre estes dois
aspectos do pensamento7.
Ora, nos diversos escritos de Foucault explicita-se
uma implicação interessante entre forma e conteúdo
do pensamento. Nestes escritos, não se trata de encontrar uma determinada forma que seria tão somente o
“modo de apresentação” de uma idéia ou um conteúdo.
Em Foucault, a forma não deve ser entendida como um
mero modo pelo qual determinado conteúdo é expresso.
Diferente disto, forma e conteúdo determinam-se essencialmente, ou seja, o conteúdo não seria o mesmo
— seria outro — se a forma não fosse a mesma — se
fosse outra — e inversamente.
É neste sentido que Michel de Certeau pode afirmar
em seu texto A Invenção do cotidiano8, que um dos fundamentos da reflexão de Foucault está na forma tomada
por seu pensamento, está na organização lingüística das
imagens que o compõem. Certeau entende estar em jogo
nos escritos de Foucault uma manipulação da linguagem que tem a tarefa estratégica de desestabilizar a
posição lingüística do destinatário, seduzi-lo, fasciná-lo
(...)9. Talvez fosse possível acrescentarmos, incomodálo.
Considerando esta espécie de coincidência entre forma e conteúdo em Foucault e considerando a problematização — que supõe a permanente inquietação do
pensamento — como o “modo de ser” de sua filosofia,
pode-se pensar que uma das muitas possibilidades de
50
verve
Do incômodo das imagens à inquietação do pensamento
compreensão de seus escritos seja o estudo das imagens ali presentes e o incômodo que estas imagens pretendem provocar, incômodo que desestabiliza o pensamento, que o retira do repouso, que ameaça tudo que se
lhe apresenta como certo.
Se esta hipótese faz sentido, a compreensão de um
pensamento que pretende realizar um trabalho de constante problematização talvez dependa, em certa medida, da compreensão desta interessante relação entre o
incômodo das imagens que aparecem em seus textos e
a inquietação do pensamento que estas imagens provocam. Portanto, a consideração da série “incômodo das
imagens” — “inquietação do pensamento” — “filosofia
como problematização”, parece ser uma das possibilidades de compreensão do modo peculiar de se implicarem,
no pensamento de Foucault, forma e conteúdo. Se ao
constituir-se como problematização, a filosofia supõe a
inquietação permanente do pensamento e se, em grande medida, o caminho para esta inquietação é a construção de imagens que incomodam, então o esforço em
acompanhar algumas destas imagens, o esforço para
apreender esta “forma” do pensamento de Foucault não
será, na realidade, diferente do esforço para se entender o que este pensamento tem a dizer, ou seja, não
será diferente do esforço para se apreender seu “conteúdo”.
Nesta medida, muitas destas imagens — imagens
que desestabilizam e que provocam um deslocamento
em relação àquilo que é habitual — podem ser lembradas. Retomemos, apenas a título de ilustração, algumas
delas. Logo no início de História da loucura, por exemplo,
Foucault faz a caracterização da Nau dos Loucos10. Reportando-se a composições literárias de naves romanescas e satíricas inspiradas no ciclo dos argonautas,
Foucault descreve estas naus, que teriam conhecido
51
6
2004
uma existência real, como sendo embarcações que
transportavam sua “carga insana” de uma cidade para
outra. Esta figura da nau é explorada em todo seu significado simbólico e prático. Ela remete à posição do louco
no limiar do mundo medieval e renascentista, ao seu
estado de “prisioneiro-livre” — ele aparece ali como passageiro por excelência, como “prisioneiro da passagem”
—, remete também à longa história das ligações entre
loucura e falha moral, que terão na água um elemento
de purificação ou de cura. Esta curiosa figuração reporta-nos a uma percepção em que loucura e razão, de certo modo, coexistem, dialogam, percepção da loucura bastante diferente da clássica e da moderna.
Em História da loucura as imagens incômodas se
multiplicam, inquietando continuamente o pensamento. No final do livro, a descrição da liberação dos
acorrentados de Bicêtre por Pinel11, por exemplo, coloca o
leitor diante da percepção moderna da loucura, em que
esta (loucura) será aprisionada na estrutura objetivante
da doença mental. Ali, o jogo criado entre a imagem da
“libertação” dos loucos realizada por Pinel e o seu “aprisionamento” na categoria objetivante da doença mental é também um exemplo da relação peculiar entre o
incômodo das imagens e a inquietação do pensamento
em Foucault.
O incômodo causado por estas imagens, e que se repete em relação a muitas outras — em textos como História da loucura, O Nascimento da clínica e As palavras e
as coisas — conduz à inquietação de nosso pensamento,
de modo particular, inquietação em relação aos domínios e formas de saber que falam sobre o homem, inquietação quanto às condições de aparecimento destes saberes, quanto ao seu modo de distribuição, quanto à sua
pretensão de descrever o que somos.
52
verve
Do incômodo das imagens à inquietação do pensamento
Ao lado destas, muitas outras imagens criadas por
Foucault incomodam, e por este incômodo conduzem a
uma interrogação sobre os mecanismos e as estratégias de poder que atuam sobre os indivíduos e que os constituem. São imagens que incomodam porque revelam
os diferentes modos de intervenção de poder que, ao lado
das estratificações de saber, formam a rede de relações
que constituem uma subjetividade normalizada.
Vale lembrar, por exemplo, as dezenas de imagens
que compõem as análises de Foucault acerca do cruzamento dos discursos psiquiátricos e das práticas judiciárias presentes nos cursos do Collège de France de 1971
a 1975.
Em Os anormais12 (1975), os laudos psiquiátricos em
matéria penal — e as imagens criadas em torno de sua
narração — são o fundo sobre o qual Foucault procurará
construir uma genealogia das noções de “normal” e
“anormal” a partir das figuras do monstro humano, do
onanista e do incorrigível. É assim com a narrativa dos
casos da mulher de Sélestat, que mata a filha e come a
coxa da menina cozida com repolho; com o caso de
Henriette Cornier, mulher que corta a cabeça de um
bebê, filha de sua vizinha, sem nenhuma explicação;
assim também com a caracterização do casal monstruoso formado por Luis XVI e Maria Antonieta, expressões
da figura do monstro político, marcada pelos temas do
incesto e da antropofagia; do mesmo modo com a descrição do caso do soldado Bertrand, utilizado por Foucault
para discutir o problema da interpretação dada pela psiquiatria do século XIX sobre a mecânica do instinto sexual em face de outros instintos; da mesma forma com
a referência à figura de Ubu, que serve para caracterizar a expansão do que Foucault chama de “poder psiquiátrico”.
53
6
2004
Outras imagens incômodas, que também conduzem
uma interrogação acerca dos mecanismos de poder, aparecem nos escritos dos anos 70. Em Vigiar e punir13, por
exemplo, como não considerar a descrição do suplício de
Damiens, narração do ritual punitivo que em oposição
à descrição dos mecanismos disciplinares constitutivos
de uma anátomo-política dos corpos — cuja expressão
mais evidente aparece na descrição dos dispositivos
panópticos — serve para denotar as diferenças essenciais entre a forma poder soberano e os mecanismos do
poder normalizador?
Nesta mesma direção, estão as inúmeras apropriações literárias, como por exemplo, a do texto As jóias
indiscretas, de Diderot, que em A Vontade de saber14 ilustra a injunção no Ocidente moderno de “tudo se falar”
acerca do sexo. Estão também as descrições de espaços
e ambientes, como aquela da sala de julgamento do Imperador Romano Sétimo Severo, realizada por Foucault
no curso de 1980 (Du gouvernement des vivants), para
apresentar a implicação entre os elementos poder/direito/verdade, implicação que seria definida naquele
momento como fundamental para a compreensão de
grande parte de seus escritos.
São todas imagens que, num certo sentido, incomodam. Isto pela estranheza ou desconforto que causam,
pela força ou gravidade das situações a que remetem,
ou ainda pela sutileza e simplicidade com que expressam idéias muitas vezes difíceis de se conceituar. Por
vezes são imagens que suscitam mais diretamente interrogações acerca dos saberes que nos definem, por
vezes são interrogações acerca dos mecanismos e dos
modos de intervenção de poder que nos constituem.
Mas há também, em Foucault, imagens que conduzem a um tipo de interrogação um pouco diferente das
54
verve
Do incômodo das imagens à inquietação do pensamento
anteriores. Elas se referem, por sua vez, a formas de
constituição de si apoiadas em práticas que, de algum
modo, permitem o exercício da liberdade. Neste novo
domínio de preocupações, a que se convencionou chamar de “domínio da ética”, as figuras também são numerosas em textos como O Uso dos prazeres e O Cuidado
de si, bem como nos últimos anos de cursos do Collège
de France. Assim, no curso de 1982, intitulado A
Hermenêutica do sujeito15, por exemplo, aparecem imagens como a da “metáfora da navegação”, trazida por
Foucault a fim de ilustrar uma categoria discutida naquele momento do curso, a categoria do “retorno a si” ou
da “conversão a si”16 que, segundo suas análises, teriam fornecido um novo conteúdo, no pensamento
helenístico, ao velho imperativo “cuidar de si mesmo”.
Assim como a navegação, o movimento do “retorno a si”
comportaria, portanto, a idéia de um trajeto, de um deslocamento efetivo de um ponto a outro; comportaria a
idéia de um deslocamento marcado por um objetivo, uma
meta, um alvo; comportaria ainda a idéia de um retorno
a um lugar de partida; bem como a idéia de uma trajetória repleta de riscos e de perigos; comportaria também
a idéia de que esta trajetória, para ser concluída, implica um saber, uma técnica, uma arte.
Estas rápidas referências a algumas das imagens que
compõem os escritos de Foucault têm apenas a intenção de ilustrar a hipótese de que a filosofia como
problematização, neste filósofo, constrói-se, em grande
medida, apoiada na relação entre o incômodo das imagens presentes em seus escritos e a inquietação do pensamento que provocam, de tal forma que o primeiro destes elementos — o incômodo das imagens — não se esgota no que poderia ser entendido como a mera “forma”
do seu pensamento, nem o segundo — a inquietação do
pensamento — seria, por assim dizer, o seu “conteúdo”.
55
6
2004
Em Foucault, ao contrário, incômodo das imagens e inquietação do pensamento são, a um só tempo, “forma” e
“conteúdo” de uma filosofia que pretende ser uma atitude contínua de problematização.
Por meio deste jogo entre incômodo das imagens e
inquietação do pensamento somos confrontados a uma
filosofia que pode ser dita “uma empresa de problematização”. Esta é a expressão utilizada por Foucault,
numa entrevista de 198417, para definir o programa do
GIP (Grupo de Informação sobre as Prisões). Nesta entrevista, seu interlocutor pergunta por que as questões
que aquele movimento havia colocado não tinham sido
retomadas da mesma forma mais tarde, em relação a
outros domínios de experiência da vida social. Foucault
responde a esta questão afirmando que o GIP havia sido
“uma empresa de problematização”, (...) “um esforço para
tornar problemáticas e para se duvidar das evidências,
das práticas, das regras, das instituições e dos hábitos
que tinham se sedimentado há muitas décadas; e isso
a propósito da prisão, mas, através dela, a propósito também da justiça penal, da lei e, mais genericamente, da
punição”18. Neste sentido, pode-se compreender a experiência do GIP como uma espécie de “ação incômoda”,
uma vez que seu esforço se constituiu em tornar duvidosos e problemáticos os hábitos, as evidências, as práticas, as regras sedimentadas.
Em Foucault, é possível então falarmos em imagens
incômodas, que de algum modo provocam pensamentos
inquietos e que, por sua vez, são capazes de produzir ações
incômodas. E através desta idéia, talvez possamos compreender um pouco melhor o sentido de uma filosofia cujo
conteúdo e forma reportam-se à problematização.
56
verve
Do incômodo das imagens à inquietação do pensamento
Notas
M. Foucault. “Le souci de la vérité”, in Dits et Écrits, IV, Paris, Gallimard,
1994, pp. 668-678.
1
2
M. Foucault. Idem, p. 670.
M. Foucault. “À propos de la généalogie de l’éthique: un aperçu du travail en
cours”, in Dits et Écrits, IV, op. cit., pp. 609-631.
3
4
Cf. M. Foucault. Idem, p. 612.
Cf. M. Foucault. “Polémique, politique et problématique”, in Dits et Écrits,
IV, op. cit., pp. 591-598.
5
F. P. Adorno. Le style du philosophe. Foucault et le dire-vrai. Paris, Éditions Kimé,
1996.
6
Cf. P. Valéry. Oeuvres complètes, vol. I. Paris, Gallimard, 1960, apud F. P.
Adorno. Le style du philosophe, op. cit., p. 13.
7
Cf. M. de Certeau. de L’invention du quotidien, Paris, Gallimard, 1990, apud F.
P. Adorno. Le style du philosophe, op. cit., p. 16.
8
9
Cf. M. de Certeau. L’invention du quotidien, apud F. P. Adorno. Idem, p. 16.
M. Foucault. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo, Ed. Perspectiva,
1987. 2a ed., pp. 9s.
10
11
M. Foucault. Idem, pp. 463s.
M. Foucault. Os Anormais. Curso no Collège de France (1974-1975). Trad. de
Eduardo Brandão. São Paulo, Martins Fontes, 2001.
12
13
M. Foucault. Vigiar e punir. Tradução de Ligia M. P. Vassallo. Petrópolis,
Vozes, 1999, 21a edição.
14
M. Foucault. A Vontade de saber. Trad. de Maria Theresa C. Albuquerque e J.
A. G. de Albuquerque. Rio de Janeiro, Graal, 1997, 12a ed., pp. 75s.
M. Foucault. A Hermenêutica do sujeito. Curso no Collège de France (1982). Trad.
de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo, Martins
Fontes, 2004.
15
16
M. Foucault. Idem, pp. 302-303.
17
M. Foucault. “Interview de Michel Foucault”, in Dits et Écrits, IV, op. cit., pp.
688-696.
18
M. Foucault. Idem, pp. 688-689.
57
6
2004
RESUMO
Os recursos utilizados por Michel Foucault em seus trabalhos
(livros, conferências, cursos, etc) para sugerir os temas que quer
abordar são inúmeros. Dentre eles, a construção de imagens através de descrições, narrativas e análises ocupa um lugar importante. Quer no início quer no decurso de muitos de seus textos, tais
imagens não apenas ilustram as idéias tratadas, mas se integram
em uma rede discursiva que terá o efeito de prender o leitor em
sua trama. Pensar no sentido de algumas dessas imagens incômodas, bem como refletir sobre sua relação com a inquietação de
nosso pensamento é o objeto do artigo.
Palavras-chave: Michel Foucault, imagens, inquietação.
ABSTRACT
There are several resources used by Michel Foucault in his works
(books, conferences, lessons, etc) to suggest the subjects of his
approaches. Among them, the construction of images through
descriptions, narratives and analyses plays an important role.
Either in the beginning or in the extent of many of his texts, such
images not only illustrate his ideas, but also integrate a discursive
network, which intends to capture the reader in its tissue. The
aim of this article is to discuss the meaning of some of these
images and their relation with the inquietude of our thought.
Keywords: Michel Foucault, images, unrest.
58
verve
Intensidades abolicionistas e a cruel exposição da peste
intensidades abolicionistas
e a cruel exposição da peste
salete oliveira*
A peste em estilhaços
A peste. Há pestes. A peste empesteia a peste.
Empesteia o ar. O homem teme a peste. O homem combate a peste. A peste empesteia o homem. A peste
empesteia a atmosfera.
Há peste e pressão na atmosfera. Pressão atmosférica. Na pressão atmosférica há gravidade e peste. Na órbita da atmosfera o homem combate a peste com gravidade. O homem grave, a peste aguda.
Há a peste. Há o corpo.
O corpo em peste por Antonin Artaud:
“Antes de caracterizar qualquer mal-estar físico ou
psicológico, manchas vermelhas espalham-se pelo corpo, manchas que o doente só percebe, de repente, quando tornam-se pretas. Ele nem tem tempo de se assustar,
* Doutora e pesquisadora no Nu-Sol, professora na Faculdade Santa Marcelina
e professora-pesquisadora no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC/SP pelo PRODOC-CAPES.
verve, 6: 61-78, 2004
61
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2004
sua cabeça começa a ferver, a tornar-se gigantesca pelo
peso, e ele cai. Então apodera-se dele uma fadiga atroz, a
fadiga de uma aspiração magnética central, de suas moléculas cindidas em dois e atraídas para sua aniquilação. Seus humores descontrolados, comprimidos, em desordem, parecem galopar através de seu corpo. Seu estômago sobressai, o interior de seu ventre parece querer
sair pelo orifício dos dentes. Seu pulso, que ora diminui
até tornar-se uma sombra, uma virtualidade de pulso,
ora galopa, segue a efervescência de sua febre interior, o
borbulhante desnorteamento de seu espírito. Este pulso
que bate através de golpes precipitados como seu coração, que se torna intenso, pleno barulhento; este olho
vermelho, incendiado e a seguir vítreo; esta língua que
arqueja, enorme e grossa, primeiro branca e depois vermelha, a seguir preta, como se fosse de carvão e toda
rachada, tudo isto anuncia uma tempestade orgânica sem
precedentes. E logo os humores sulcados pela terra pelo
relâmpago, como um vulcão trabalhado pelas tempestades subterrâneas, procuram a saída para o exterior. No
meio das manchas, aparecem pontos mais ardentes, ao
redor desses pontos a pele se ergue em pelotas como se
fossem bolhas de ar sob a epiderme da lava, e essas bolhas são cercadas por círculos o último dos quais, como
um anel de Saturno ao redor do astro em plena
incandescência, indica o limite extremo de um bubão. O
corpo fica sulcado por bubões. Mas assim como os vulcões têm seus lugares prediletos para aquecer a terra,
os bubões também têm lugares especiais no corpo humano. A dois ou três dedos da virilha, sob as axilas, naqueles locais preciosos onde glândulas ativas realizam
fielmente suas funções, aparecem os bubões através dos
quais o organismo se livra ou de sua podridão interior
ou, conforme o caso de sua vida. Uma conflagração violenta e localizada num ponto indica na maioria das vezes que a vida central nada perdeu de suas forças e que
62
verve
Intensidades abolicionistas e a cruel exposição da peste
uma diminuição do mal ou mesmo sua cura é possível.
Assim como o cólera branco, a peste mais terrível é a
que não divulga suas feições”1.
Explorar a peste em estilhaços é apenas um jeito específico de tocar na exterioridade do corpo, sem pretender desvendar profundidades de qualquer ordem, pois o
desvendamento e a profundidade fazem parte de um discurso de vontade de verdade pautado, ora na soberania
do significado, ora na soberania do significante2. Situarse na exterioridade da peste, ou ainda, genealogicamente, na exterioridade do acidente é um arremesso da
vontade envolvida com a história marcada no corpo3. Não
é preciso mais do que um corpo metido no espaço para se
conhecer a história, pontual, pequena, um detalhe precioso, o acaso no disparate. E conhecer deste modo é saber apenas aquilo e daquilo que o corpo experimenta.
Trata-se de um conhecimento cruel, interessado em expor, expondo-se. Não há outra maneira. E esta exposição
em nada se confunde com o procedimento de se deixar
apanhar, de permitir a construção de uma identidade para
melhor caber na ordem das coisas, possibilitando, simultaneamente, ser identificado para assemelhar-se ao inocente, otário, mártir ou herói. Não. Esta exposição específica diz respeito a algo próximo daquilo que Artaud
explicita na crueza de Heliogabalo, um jovem de 14 anos,
um insurreto, pois, sua inssurreição ele pratica, antes
de mais nada contra si próprio.
“(...) Espreme a ordem estabelecida, as idéias, as noções comuns das coisas. Pratica a anarquia minuciosa e
perigosa, pois expõe-se aos olhos de todos. E isso é de um
anarquista corajoso”4.
A política treme. Apavora-se diante da ameaça de ruína de seu significado e seu significante, eternamente
remetidos a variações de grau entre quantidade e quali-
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dade, regimes de governo, hierarquias de poder, formas
de soberania, confinamentos justos e injustos, julgamentos propícios e inconvenientes. O insuportável para a política diz respeito ao espaço das intensidades. Diante delas é o abalo, o sobressalto da respiração de um corpo
incidido pela peste. O descompasso sôfrego de um pulsar
na fissura. De um corpo que diz na superfície de sua própria fratura. O contratempo da dança na ruína da linguagem. A intensidade cruel de um corpo que dança na
exterioridade de sua devastação. Uma tempestade sem
precedentes.
A morte de Heliogabalo por Antonin Artaud:
“É então que a guarda em armas se volta contra
Heliogabalo. Procura-o por todo o palácio. Júlia Soémia
acorre. Encontra Heliogabalo. Grita-lhe que fuja. Acompanha-o na fuga. Os gritos dos perseguidores vêm de todos os lados, as suas pesadas correrias fazem estremecer as paredes, um pânico indescritível apodera-se de
Heliogabalo e da sua mãe. Aonde quer que estejam vêem
a morte. Fogem pelos jardins que dão para o Tibre, pela
linha de sombra dos grandes pinheiros. Num recanto afastado, depois de espessas filas de buxo odorante e de carvalho verde, abrem-se ao vento as latrinas da tropa, escavadas como sulcos que arassem a terra. O Tibre está
demasiado longe. Os soldados, a um passo. Doido de medo,
Heliogabalo salta para as latrinas, mergulha no
excremento. É o fim. A tropa, que o viu, cerca-o. E a sua
própria guarda o agarra pelos cabelos. É uma cena de
magarefe, uma carnificina repugnante, uma velha imagem de matadouro. Os excrementos misturam-se com o
sangue no gume das espadas que devastam as carnes de
Heliogabalo e da sua mãe. Depois, içam os corpos,
carreiam-nos à luz de archotes, arrastam-nos pela cidade diante da populacho aterrorizada, diante das fachadas
das casas patrícias que abrem as janelas para aplaudir.
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verve
Intensidades abolicionistas e a cruel exposição da peste
Uma multidão imensa marcha agora para o cais, sobre o
Tibre, no rasto daquela pobre massa de carne exangue e
suja. ‘Atirem-nos ao esgoto’ clama agora a populacho que
aproveitou a liberalidade de Heliogabalo, que a digeriu
velozmente. ‘Para o esgoto os dois cadáveres, Heliogabalo
ao esgoto!’ Farta do sangue e da visão obscena dos dois
corpos nus que mostram destruídos todos os seus órgãos,
mesmo os mais secretos, a tropa tenta agora introduzir o
corpo de Heliogabalo na primeira boca de esgoto que encontra. Mas, embora delgado, ainda é muito largo. Há que
solucionar. A Elagabalus Bassianus Avitus, dito
Heliogabalo, já fora acrescentado o nome de Varius, porque provindo de múltiplos sêmens nascera de uma prostituída; deram-lhe ainda o nome de Tiberiano e Arrastado, porque foi arrastado e atirado ao Tibre depois de tentarem metê-lo por uma boca de esgoto; mas a boca de
esgoto não lhe deu passagem, ainda tinha as espáduas
muito largas, e então decidiram limá-lo. Assim, partiram-lhe a pele, pondo à mostra o esqueleto que queriam
intacto; com o que ainda poderiam ter-lhe posto nome de
Limado e Polido. Mas uma vez limado, continua largo, e
atiram-no ao Tibre, que o arrasta para o mar, seguido, a
alguns redemoinhos de distância, pelo cadáver de Júlia
Soémia. Assim acaba Heliogabalo (...) mas em rebelião
declarada”5.
Interessa experimentar lidar na mistura imprevisível
— pois a peste não se aparta da mistura —, num certo
tipo de amálgama heterogêneo da peste devastando um
corpo e dos efeitos de contenção da política sobre o corpo
de Heliogabalo que ousou instaurar a anarquia, que atravessa seu corpo, no corpo da cidade. O corpo em peste e o
corpo anárquico de Heliogabalo enunciam o transtorno
proveniente da vida tomada em suas intensidades
irredutíveis.
65
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E se por acaso, há uma imensidão daqueles que rogam pela segurança na política e vêem nas políticas de
segurança o refúgio mediano para a salvação diante da
peste, vale lembrar que não cessam de existir os intensos insubordináveis que fazem de suas vidas e seus corpos instrumentos cruéis que sabem, tal qual Artaud, que
“morrer de peste não é pior do que morrer de mediocridade”6.
Estilhaços sobre a cidade
Foucault, ao resenhar o livro Diferença e repetição, de
Gilles Deleuze, enfatiza, com muito humor, como a intensidade é o insuportável para a filosofia tradicional e
sublinha, de forma apaixonada, a subversão provocada
por uma filosofia intensa.
A intensidade por Michel Foucault:
“Chega então o momento de errar. Não como Édipo,
pobre rei sem cetro, cego interiormente iluminado; mas
vagar na festa sombria da anarquia coroada. Pode-se então a partir daí pensar a diferença e a repetição. Ou seja
— em vez de representá-las — fazê-las e jogar com elas.
O pensamento no ápice de sua intensidade será ele próprio diferença e repetição; permitirá distinguir o que a
representação buscava reunir, ele atuará a perpétua repetição da qual a metafísica obstinada buscava a origem.
Não mais se perguntar: diferença entre o que e o quê?
Diferença delimitando que espécies e repartindo que
grande unidade inicial? Não mais se perguntar: repetição do que, de qual acontecimento ou de que modelo primário? Mas pensar a semelhança, a analogia ou a identidade como tantos meios de velar a diferença e a diferença das diferenças; pensar a repetição, sem origem do
que quer que seja e sem o reaparecimento da mesma
coisa. Pensar antes as intensidades (e mais cedo) do que
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verve
Intensidades abolicionistas e a cruel exposição da peste
as qualidades e as quantidades; (...) mil pequenos sujeitos larvários, mil pequenos eus dissociados, mil passividades e pululações lá onde, ontem, reinava o sujeito soberano. Sempre se recusou, no Ocidente, a pensar a intensidade. (...) Não devemos nos enganar quanto a isso.
Pensar a intensidade — suas diferenças livres e suas
repetições — não é uma insignificante revolução em filosofia. (...) É recusar, enfim, a grande figura do Mesmo
que, de Platão a Heidegger, não parou de aprisionar em
seu círculo a metafísica ocidental. É tornar-se livre para
pensar e amar o que, em nosso universo ruge desde
Nietzsche; diferenças insubmissas e repetições sem origem que sacodem nosso velho vulcão extinto” 7.
O que Foucault aponta como o insuportável para a filosofia tradicional é possível ser estendido para a política.
No entanto, a intensidade está associada à crueldade. A
peste instaurada na cidade esboroa a ordem soberana da
política. Ela extrapola as fronteiras do território soberano. A peste se converte em risco incomparável pois ela é
um perigo à moral. É isto que a diferencia de uma epidemia. A peste não poupa nem a política nem a moral. A
peste não poupa ninguém. Nem a si própria. Ela se faz
em corpos, fogo, ar, água e lugar.
A peste na cidade por Antonin Artaud:
“Uma vez estabelecida a peste em uma cidade seus
quadros regulares desmoronam, não há mais lixeiros,
nem exército, nem polícia, nem prefeitura; surgem fogueiras para a queima dos mortos, conforme a disponibilidade de braços. Cada família quer ter sua fogueira. A
seguir, a madeira, o lugar e o fogo escasseiam, há lutas
entre famílias ao redor das fogueiras, logo seguidas por
uma fuga geral, pois os cadáveres já são em números
excessivo. Os mortos atravancam as ruas, em pirâmides
instáveis que os animais roem aos poucos. O fedor sobe
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pelo ar como uma labareda. Ruas inteiras são fechadas
pelo amontoamento dos mortos. Nesse ponto, as casas
começam a se abrir e pelas ruas espalham-se, gritando
pestilentos delirantes, com o espírito tomado por pavorosas imagens. (...) Outros empestados que, sem bubões,
sem dores observam-se orgulhosamente em espelhos, e
sentem-se estourando de saúde, caem mortos, as mãos
na bacia, cheios de desprezo pelos outros pestilentos.
Sobre os regatos sangrentos, espessos, nauseabundos,
cor de angústia e de ópio que brotam dos cadáveres, passam estranhas personagens vestidas de cera, com enormes narizes, olhos de vidro e calçadas com uma espécie
de sandália japonesa feita com uma dupla camada de
madeira, uma horizontal na forma de sola e a outra vertical, e que as isola dos humores infectos; elas passam e
psalmodiam litanias absurdas, cuja virtude não as impede de por sua vez tombarem nos braseiros. Esses médicos ignaros com isso mostram apenas o medo e a puerilidade que os acometem. Nas casas abertas, a ralé imunizada, ao que parece, por sua frenética cupidez penetra
e se apodera de riquezas que, ela sabe, não lhe serão de
nenhum proveito”8.
O alarido interminável e o silêncio estancado. Eis o
descompasso irremediável instalado na política. A peste
sacode as demarcações arbitrárias entre geografia, território e política, provocando uma mistura de contrários.
Não se trata de sobrepor construções abstratas da cidade-organismo e do organismo-corpo, pois corpo e cidade
são tomados no mesmo tom. E o que lhes inscreve uma
forma aguda repleta de marcas definitivas faz parte de
um certo tipo de furor incontrolável.
Há de se construir politicamente o medo do contágio
por contato direto. O medo deve ser erigido como a face
mais benevolente capaz de partilhar seu tempo
indissoluto com a esperança na política apaziguadora. A
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verve
Intensidades abolicionistas e a cruel exposição da peste
peste atingiu a política, e está a um passo de atingir a
moral, sua irmã predileta. Mas é inútil. A peste não tem
origem nem fim. Ela não parte de um fora, entendido sempre como o Outro, para atingir o interior na sua verdade
soberana, compreendido como o Mesmo a ser preservado. A peste se insinua sub-repticiamente e demole o regime da representação. Há muito, a peste já havia corroído a moral. A peste não vem de lugar nenhum, ela já
estava aqui. Habita em intensidades. A intensidade é o
insuportável para a política.
Intensidade em cisalhas
O teatro e seus gestos por Antonin Artaud:
“E nesse momento instala-se o teatro, isto é, a
gratuidade imediata que leva a atos inúteis e sem proveito para o momento presente. Os últimos que ainda
vivem se exasperam: o filho, até ali submisso e virtuoso,
mata o pai; o recatado sodomiza seus próximos. O libertino torna-se puro. O avarento joga seu ouro pela janela. O
guerreiro heróico incendeia a cidade que ele outrora salvou. O elegante se enfeita e vai passear nos ossários.
Nem a idéia da ausência das sanções, nem a da morte
próxima bastam para motivar atos tão gratuitamente
absurdos por parte das pessoas que não acreditavam que
a morte pudesse pôr um termo a tudo. E como explicar
esse aumento da febre erótica entre pestilentos curados
que, ao invés de fugir, ficam onde estão tentando conseguir uma volúpia condenável com moribundos ou mesmo mortos semi-esmagados pela montanha de cadáveres onde o acaso os alojou”9.
O teatro da crueldade é o duplo da peste. Tessitura
tramada em gestos duplos. Não há direito, não há avesso. Apenas o redobrar e o esgarçar de cada gesto. O
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estancamento e o agitar de contrários, que jamais vão
caber na dicotomia da moral normalizadora.
São os duplos gestos da peste instalados por Artaud. O
filho mata o pai; o recatado sodomiza o vizinho; o libertino torna-se puro; o avarento joga fora o ouro; o guerreiro
incendeia a cidade que salvou; o elegante passeia nos
ossários. Não se trata do furor assassino que se esgota,
mas de uma diferença sutil, que provém do furor do ator
trágico, que não cessa e atravessa o espaço incendiando-o e abrindo feridas, fazendo-se ferida e fissura. Não
caber em si mesmo.
Os duplos que aponta Foucault ao afirmar a
dissonância da intensidade num embate de forças
incidindo na demolição da representação. Livrar-se do
mensurável no jogo das igualdades, do qualitativo e o contínuo; recusar o negativo que implica rejeitar de um só
golpe as filosofias da identidade e da contradição; complementos recíprocos dos metafísicos e dos dialéticos;
escarnecer de uma só vez as filosofias da evidência e da
consciência. Tornar-se livre. Não é fortuito que Foucault
chame a filosofia intensa de teatro atual e ao reavivar
vulcões extintos, pois eles não estavam extintos, precise
este gesto como o vagar na festa sombria da anarquia
coroada, fazendo uma referência explícita ao sub-título
de Heliogabalo de Artaud.
Os duplos gestos de Heliogabalo, que imprimem o ritmo de sua crueldade e anarquia.
“Um estranho ritmo intervém na sua crueldade: este
iniciado faz tudo com arte e a dobrar. Quero dizer: sobre
dois planos. Todos os seus gestos têm duas caras.
Ordem, Desordem
Unidade, Anarquia
Poesia, Dissonância
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verve
Intensidades abolicionistas e a cruel exposição da peste
Ritmo, Discordância
Grandeza, Puerilidade
Generosidade, Crueldade”10
Onde se apregoa a cura sob a forma de salvação a intensidade cruel instaura o descompasso inacessível daquilo que não pode ser agarrado. Que se faz vários, fugidios.
Esgarça seu próprio nome. Afronta estabilidades remetidas a diversos arranjos de centralidade de poder. Solapa
o sossego da vida confortada nas migalhas de gestão da
morte em nome da preservação da espécie. Crueldade
generosa no espaço do excesso, da desmesura que esparrama o jamais contível. Fartura. Fratura. Fissura. Movimentos da peste duplo da crueldade, suscitados pela vida
de gestos trágicos.
Não caber em si mesmo. Tornar-se livre. Arrebatamento dissonante. Voracidade de vida. Apetite. Entrelaçamento fatal de vida e morte. Fertilidade. Secreções,
suores, excrementos, odor de sexo, pele, mucosa, sangue, saliva, muco da vagina, sêmen do pau, febres eróticas, lágrimas de dor e alegria, banquetes entre amigos,
aromas de iguarias, risos escancarados, sem subterfúgios, sons inaudíveis, gestos largos e imperceptíveis,
contundências, delicadezas, leveza, dança. O elegante se
enfeita e passeia sobre os ossários.
O aprisionamento da intensidade, a órbita de gravidade do direito penal e sua dissolução
A construção da prisão moderna foi a resposta disciplinar que a moral do confinamento deu para a peste.
“A peste (pelo menos aquela que permanece no estado
de previsão) é a prova durante a qual se pode definir
idealmente o exercício do poder disciplinar. Para fazer
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funcionar segundo a pura teoria dos direitos e as leis, os
juristas se punham imaginariamente no estado de natureza; para ver funcionar suas disciplinas perfeitas, os
governos sonhavam com o estado de peste. No fundo dos
esquemas disciplinares, a imagem da peste vale por todas as confusões e desordens; assim como a lepra, do
contato a ser cortado, está no fundo do esquema de exclusão”11.
Vale lembrar, a partir de Foucault, que os efeitos morais e políticos de combate à peste resultaram em um
modelo de organização médica baseada na ordem militar
que estabeleceu os contornos do confinamento. Diferente do modelo anterior implementado a partir da lepra com
base religiosa, delineada por mecanismos de expulsão.
Este modelo oriundo da peste calca-se em uma
interceptação do corpo pelo tríptico, lei, contenção da
transgressão e castigo decodificado sob a forma de prevenção, cujos desdobramentos têm por meta a defesa da
sociedade.
Trata-se neste caso do expurgo intra-muros, não mais
como exclusão e sim como agrupamento interior, envolvendo uma análise minuciosa da cidade, caracterizada
pelo registro permanente. Situa-se neste ponto preciso a
emergência do conceito de segurança frente ao conceito
de periculosidade. Deflagra-se o grande tribunal
inventariador de desvios, tudo o que for considerado pestilento, perigoso ganha estatuto de anormal.
A dissonância polivalente introduzida por Antonin
Artaud:
“Numa vida [a de Heliogabalo] cuja cronologia é impossível e onde os historiadores, que lhe assinalam toda
uma série de crueldades não datadas, vêem um monstro, vejo eu, uma natureza de uma plasticidade prodigio-
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Intensidades abolicionistas e a cruel exposição da peste
sa, que sente a anarquia das coisas e se rebela contra as
coisas” (Artaud, 1991: 100).
Diante da dissonância trazida por Artaud é possível
apresentar outras a partir da perspectiva abolicionista
penal.
Louk Hulsman destaca a atenção que o abolicionismo
deve dedicar à própria linguagem, quando traça estratégias fora da lógica penal. Isto implica contestar a natureza ontológica do crime — que, segundo Hulsman, é o pressuposto básico para a legitimidade da política criminal e
do sistema penal —, levando a discussão para um campo
distinto, no qual importa formular respostas para o que
passa a ser designado por ele de situação-problema, sendo que esta permite assumir uma postura de exterioridade que tece a perspectiva abolicionista.
A órbita de gravidade do sistema penal e sua ruptura
por Louk Hulsman:
“Do mesmo modo que foi preciso vencer a força da gravidade para explorar o mundo exterior à Terra, é preciso
sair da lógica do sistema penal para poder conceber uma
sociedade em que este tenha desaparecido. Os conceitos
e a linguagem do sistema penal nos retém em seu território o que faz ser necessário um esforço mental bastante considerável para conseguir desfazer-se deste campo
de gravitação. Queira-se ou não, quando se fala de ‘crime’ ou de ‘delito’ surge imediatamente uma imagem: a
de um sujeito culpado. Se, pelo contrário, utiliza-se o termo ‘evento’, a expressão ‘situação problema’ ou qualquer
outra de significação neutra, então se abre um espaço
no qual podem coexistir interpretações diversificadas. Se
substituímos os termos ‘delinqüente’ e ‘vítima’ pela expressão ‘pessoas implicadas em um problema’, evitamos
que se imputem mentalmente a estas pessoas etiquetas
pré-fabricadas (...) e as convertam ipso facto em adversá-
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rios. Deste modo se abre um âmbito no qual se podem
encontrar respostas muito distintas daquelas do modelo
punitivo. Apenas quando se sai da dialética penal se pode
romper com o ciclo ‘delinqüência-prisão-reincidênciaprisão’ que se apresenta como invencível na lógica penal”12.
Este detalhe sutil que Hulsman aponta e problematiza
em torno da linguagem se mostra como um elemento de
intensa potência no abolicionismo, pois possibilita o investimento em um combate que estabelece ressonâncias com a prática genealógica de estancamento das palavras como exercício de mapeamento de uma determinada lógica e sua conseqüente demolição, se a escolha for
realmente trafegar a partir de outros referenciais distintos daqueles arrumados e dispostos na sintaxe da sujeição.
A armadilha da gravidade do sistema penal por Louk
Hulsman:
“Sem dúvida isto se explica pela própria gênese do sistema penal, que foi idealizado em uma época de transição entre a sociedade religiosa e a sociedade civil e que
segue sendo devedor do modelo escolástico, por isso mesmo aparece também impregnado da cosmologia medieval. Uma verdade definida de uma vez por todas e imposta verticalmente, juízes encarregados de distribuir uma
justiça tão absoluta quanto serena, um determinado sofrimento imposto como réplica aos atos considerados maus
que há de ‘purificar’, uma filosofia maniqueísta que divide os homens entre bons e maus, em inocentes e culpados, tal como tem sido sempre e é, todavia hoje a lógica
do sistema penal vigente em nossas sociedades, que não
é senão a lógica do Juízo Final na qual o Deus onipotente, onisciente e justiceiro dos escolásticos foi substituído
pelo Código Penal e o tribunal de cassação”13.
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verve
Intensidades abolicionistas e a cruel exposição da peste
A proposta de Hulsman não é um mero jogo de retórica. Evidencia a trama da sintaxe que faz parte da grande
armadilha tecida pelo discurso da reforma, que ao transitar perpetuamente no interior da lógica do sistema penal, perpetua-se através do eterno rearranjo de seus elementos, cultivando a infindável troca de sinais entre a
providência divina e a providência da razão.
Resposta-percurso, a crueldade abolicionista, o
abolicionismo também é a peste
A armadilha da gravidade da justiça e a crueldade
abolicionista por Edson Passetti:
“O homem é finito e inexiste a grandeza na suposta
infinitude iluminista. Ele ficou refém da administração,
o procedimento que tomou o lugar de deus, de um deus
que ao ser morto foi transformado em um fato religioso.
As respostas trazidas pela filosofia e pela ciência foram
novas, mas as perguntas permaneceram teológicas. Agora
quem ordena a ordem é um procedimento sigiloso, burocrático e jesuítico. Deus teve de ceder lugar à onipotência da ciência. Trocamos de providencialismo e foram
instituídos dois universais rivalizando para ser a única
centralidade dos seres vivos, quando são o duplo da mesma unidade. A ciência e a religião responderam que somos iguais na cova, aumentando os vermes dos cemitérios, e nos fazem crer iguais no paraíso celestial ou na
utopia terrena. Querem nos legar um lugar seguro, unificando procedimentos (...) O abolicionismo é uma unidade da série liberdade que não encontra o absoluto, mas
se dirige ao infinito com conciliações. Ele não pode ser
encontrado em todos os lugares, nem provém de todos os
lugares; ele promove acontecimentos”14.
Acontecimentos cruéis. A peste-acontecimento. Não
há modelos, anteparos, tribunais, redes de segurança.
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As intensidades abolicionistas desafinam, reverberam
tons cruéis.
Resposta-percurso em Heliogabalo por Antonin Artaud:
“E a anarquia levada ao ponto em que Heliogabalo a
leva, é poesia realizada. (...) A poesia é multiplicidade triturada e incendiada. E a poesia que estabelece a ordem,
suscita primeiro a desordem, a desordem dos aspectos
incendiados; provoca o choque dos aspectos que leva a
um ponto único: fogo, gesto, sangue, grito. Trazer a poesia e a ordem a um mundo cuja simples existência já é
um desafio à ordem, é levar à guerra e à permanência da
guerra, é fundar um estado de crueldade incidida, é suscitar uma anarquia sem nome, a anarquia das coisas e
dos aspectos que acordam antes de soçobrarem de novo e
se fundirem na unidade. mas aquele que acorda esta
anarquia perigosa é sempre sua primeira vítima”15.
O abolicionismo exige estar disponível para ele. Ele
provém de cada pessoa. Incide, antes de mais nada, no si
que não cabe em si. Diferente da posição do devoto que
se coloca à disposição de uma receita, de um código, de
uma bula, seja ela qual for, para virar o Outro ou o Mesmo. A resposta-percurso abolicionista se tece em sua
própria superfície. Não há começo, meio e fim.
A noção de resposta-percurso é deliberadamente
inacabada em duas dimensões, já que por um lado não é
começo nem fim, mas um instrumento capaz de construir outras respostas, e por outro lado não traz em si
uma saída definitiva passível de ser universalizada como
modelo exemplar. A resposta-percurso propicia a demolição da órbita da gravidade da prática de modelo de diversas ordens. Não interessa mais escutar, escutar e repetir. Interessam gritos precisos lá onde eles vibram, gritos imprecisos em silêncios inundantes, cores e
movimentos.
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verve
Intensidades abolicionistas e a cruel exposição da peste
Para o abolicionismo os sins neste tipo de resposta
compõem com experiências libertárias que arruínam
teorias e centralidades e, ao passar ao largo do ideal de
felicidade, proporcionam experiências estéticas capazes
de valorizar vidas e obras, não no que lhes falta, mas no
que lhes excede e escapa.
Interessa afirmar o fim do encarceramento de jovens
no Brasil. Para um abolicionista cruel, intenso e em peste este é um incômodo inominável.
Só interessa viver o que precisa ser vivido. Não há
nada para ser salvo. O elegante se enfeita e passeia sobre os ossários.
No mais, só há o vazio. O cu do vazio ecoando os gestos
de Heliogabalo, este jovem anarquista que acorda a ferida e a faz fissura, interessado em ouvir e dizer: Contemporizar, submeter-se é consagrar a derrota sem defender a
vida.
Notas
1
A. Artaud. O teatro e seu duplo. São Paulo, Max Limonad, 1984, pp. 30-31.
A este respeito ver M. Foucault. A ordem do discurso. São Paulo, Edições Loyola,
1996.
2
3
Esta concepção de história é tratada com vigor por M. Foucault em “Nietzsche,
a genealogia e a história” in Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1979.
A. Artaud. Heliogabalo, ou o anarquista coroado. Lisboa, Assírio e Alvim, 1991, p.
97.
4
5
Idem, pp.129-131.
6
A. Artaud. Eu, Antonin Artaud. Lisboa, Hiena, 1988.
M. Foucault. “Ariadne enforcou-se” in Arqueologia das ciências e história dos
sistemas de pensamentos, Col. Ditos e escritos. vol. II. Rio de Janeiro, Forense,
2000, pp. 143-144.
7
8
A. Artaud. op.cit, 1984, pp. 34-35.
77
6
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9
Idem, pp. 35-36.
10
Op. cit., 1991, pp.121-122.
11
M. Foucault. Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes, 1987, p. 176.
L. Hulsman & J.B. de Celis “Argumentos para uma sociedad sin penas” in C.
Ferrer (org.) El lenguage libertário. Montevideo, Nordan Comunidad, 1993, pp.
189-190, grifos do autor.
12
13
Idem, p. 187.
E. Passetti. “Kafka e a sociedade punitiva” in E. Passetti et al. (orgs.) Conversações abolicionistas: uma crítica do sistema penal e da sociedade punitiva. São Paulo,
IBCCrim, PEPG-Ciências Sociais PUC-SP, 1997, pp. 177-185.
14
15
A. Artaud, op. cit., 1991, p. 100.
RESUMO
A crueldade artaudiana interessa ao abolicionismo penal, cuja uma
das exigências é estar atento à linguagem e seus gestos. As atitudes abolicionistas são heterogêneas e promovem misturas; tal qual
a peste, suas diferentes intensidades arruínam a ordem da política e da moral.
Palavras-chave: abolicionismo penal, crueldade, peste.
ABSTRACT
The Artaudian cruelty is subject of interest to penal abolitionism,
which one of its demands is to be alert to language and its
gestures. Abolitionist attitudes are heterogeneous and promote
mixtures; alike the pest, its diverse intensities destroy the order
of politics and moral.
Keywords: penal abolitionism, cruelty, pest.
78
verve
A beleza terrível
a beleza terrível
contador borges*
A imagem é um enigma, diz Maurice Blanchot. Ela
treme, oscila, mas de algum modo nos serve de acesso à
“realidade do irreal”, pois captura nosso olhar em sua tela
e o faz errar sobre ela, o olhar e sua exigência: ver, mas
não simplesmente ver; olhar, mas na medida extrema
em que, olhando, ele se perde, e, por assim dizer, se desrealiza.
Se a imagem é um enigma, o que dizer da beleza de
um rosto, de um corpo? Ela certamente não é natural:
está, há muito, afastada da natureza. Ou talvez sempre
esteve, porque sua percepção já implica uma certa sensibilidade codificada, uma tentação simbólica. E se não é
* Poeta, ensaísta e tradutor. Publicou os livros de poesia Angelolatria (1997) e
O reino da pele (2003); traduziu Aurélia, de Gérard de Nerval, (1991), O nu
perdido e outros poemas, de René Char (1995), e A filosofia na alcova, de Marquês
de Sade (1999), entre outros, todos pela editora Iluminuras. Tem colaborado
com artigos, poemas e traduções em várias revistas e jornais no Brasil e no
exterior.
verve, 6: 81-100, 2004
81
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natural, até que ponto seria real? Sua “realidade”, no
fundo, não se sustenta, já que não se pode tocá-la, quando muito apreendê-la. O que é tocar um rosto, um corpo,
a nudez que deles emana, essa luminosidade oscilante
que ainda persiste apesar de toda banalização, de toda
fabricação do nu como produto de consumo, esse nu retalhado em pedaços ou fetiches cuja topografia desoladora
lembra a figura mapeada de um boi na porta das churrascarias? Não se trata, afinal, do mesmo gesto de incitar o apetite à devoração compulsiva? Mas este “nu perdido”, exilado de si mesmo, certamente não possui a nudez essencial que aqui se visa, e cujo sentido milagrosamente resguarda uma relação profunda com o erotismo,
com o sagrado.
O que vem a ser, enfim, a beleza de um corpo quando
se admite atingir com os dedos tão somente sua carne,
sua materialidade, se o que lhe confere sentido permanece intocável? Não seria um pouco isso o que entendemos por “beleza”? A despeito de todo aparato conceitual
erguido à sua volta, seu significado, este objeto que foge,
a beleza, talvez seja, por isso mesmo, a mais enigmática
das imagens.
Por imagem, a imago, entenda-se o simulacro, todo
prolongamento de algo, seu duplo, e que de algum modo o
imita, ou seja: representação, retrato, fantasma, aparência, reflexo. Mas, principalmente, em sua acepção primeira: imagem, forma, aspecto. A imagem de um rosto,
de certo modo, está colada nele, é o véu de sua pele, a
ponto de o rememorarmos pela imaginação caprichosa.
Quantos rostos jamais esquecemos? Quantos não cintilam no panteão de nossas imagens recônditas?
Um rosto, para nós, talvez seja aquilo de que se esqueceu a nudez. O rosto, a parte mais emblemática do humano, parece jamais desapegar-se de sua própria imagem.
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A beleza terrível
Um rosto raramente é banal porque nos parece sempre
carregado de sentido. É a esfera escópica por onde comunicamos com o outro nossas impressões recíprocas, nossos pertences simbólicos, nossos desejos e fantasmas.
Cada rosto, nesse sentido, encerra um segredo e compreende, não apenas uma única imagem, mas várias,
pois diversos são os olhares que recaem sobre ele. A subjetividade, o desejo, determinam por sua vez o modo pelo
qual o olhar fabrica as imagens de um rosto. Estará de
fato a beleza, como reza o ditado, “nos olhos de quem a
vê”?
O que a modernidade parece ter ressaltado sobre a
beleza em cores fortes na literatura e nas artes, é que o
enigma de que falamos se deve fundamentalmente ao
seu caráter ambivalente. Autores como Poe e Baudelaire
ressaltam um aspecto ligado à beleza, tão essencial quanto ela, e que aos poucos vem à tona do fundo de seu segredo como um devir ao mesmo tempo maligno e imperioso que a corrompe tenazmente e a excede, abrindo seu
sentido para o horror e para a morte.
***
Durante as filmagens de Sauve qui peut (la vie), JeanLuc Godard comenta esta frase de Rilke com a atriz
Isabelle Huppert: “a beleza é o começo do terror que somos capazes de suportar”, dizendo-lhe em seguida que
“sua beleza tem algo a ver com o seu medo”. A atriz confessa que nem sempre se sente bela e que se angustia
quando a filmam de seu lado menos atraente, mas que
também se assusta quando se vê muito bonita. O cineasta então responde: “Ah, você sempre sente medo...”1
No extremo, por que haveria esta sensação de terror diante da beleza? E qual seria o ponto, a fronteira além da
qual a beleza tornar-se-ia insuportável, perdendo com isso
seu sentido?
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Que sentido é este que se pode apreender do que é
belo, senão o de que ele está ligado inexoravelmente a
um destino maligno? Sem dúvida, a idéia de belo aí implícita e que repercute modernamente, nada tem a ver
com o sentido platônico ou metafísico em que a beleza é
uma idéia ligada ao Bem, e que, entre todas as substâncias perfeitas, reserva-se o privilégio de ser a mais evidente e a mais amável. Com efeito, em Plotino, o “Bem”
ou as essências ideais, unificadas em Deus, imantam
todas as coisas no sentido da beleza.
Muito diversa é certa significação da beleza que contamina o espaço artístico e literário da modernidade, tão
bem definida nessa fórmula de Baudelaire: “o belo no horrível”, e que repercute no poema de Rilke. Assim, a beleza, desde a antigüidade (e mesmo constituindo-se em sentido corrente entre os modernos), entendida como algo
“agradável à vista”, transforma-se num monstro ambivalente, uma espécie de Janus de duas faces, a divindade
romana que presidia a passagem do tempo e das estações,
simbolizando o começo e o fim. Na literatura e nas artes
esta ambivalência parece justamente assinalar o trânsito entre estes dois aspectos, o terror e a beleza, abrindo-os
a uma significação maior e mais profunda em que jogam
os elementos sombrios do erotismo e da morte.
Em um texto célebre, “O pintor da vida moderna”,
Baudelaire apresenta uma teoria do belo contrariando a
visão única e absoluta da beleza. Para o poeta, a beleza
produz uma impressão única mas constitui-se essencialmente de um duplo aspecto: o belo é feito de um elemento eterno, invariável, e de um elemento relativo, circunstancial, conforme as manifestações da própria época no que possam significar a moda, a moral, a paixão2. E
assim, retomando as duas faces de Janus, pacificação
para dentro e a ameaça para fora.
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A beleza terrível
Tal dualidade na arte, acrescenta o poeta, é uma conseqüência fatal da dualidade do homem3. Haverá, portanto, um aspecto ideal e permanente da beleza e outro
sujeito às intempéries do tempo, bem como agente
disseminador de seus efeitos. Se o significado do belo
depende do equilíbrio entre ambos, é possível identificar
na produção literária e artística moderna, em Baudelaire
sobretudo, certa preponderância do último, entendida
nesta percepção de que o elemento relativo introduz um
movimento incontrolável, que parece assim antecipado
pela sensação do terror. O que este tipo de arte parece
elucidar é justamente o trânsito entre um elemento e o
outro, criando um efeito de dissonância no sentido da
beleza que acaba revelando, não somente a temporalidade
e seus signos, mas principalmente seus efeitos de
corrupção e degenerescência. Daí o sentido de “beleza
terrível”, que comunica algo que a potencializa, mas também que a ultrapassa. Ela é, pois, o signo de um excesso,
sendo que neste excesso reside a força de sua imagem e
o incômodo de seu enigma. Não é à toa que em Bataille,
a beleza é um objeto que invariavelmente pede para ser
profanado.
A máscara ideal da beleza se mostra com isso tênue e
diáfana, falsamente perene, retórica e moralizante, pois
rapidamente deixa transparecer o movimento irrefreável
da corrupção e da morte. O elemento eterno da beleza se
revela portanto ilusório, e o elemento circunstancial passa
a ser propriamente o que fundamenta o sentido da beleza moderna.
Deixemos afluir outro olhar sobre a teoria
baudelairiana do belo, refletido no Espelho da tauromaquia, de Michel Leiris. No duplo sentido da beleza
baudelairiana, Leiris aponta a erupção de uma ferida ou
fenda (fêlure). Esta fenda, tanto em Leiris quanto em
Bataille, é aberta pelo erotismo.
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Reencontramos aqui o viés pelo qual o erotismo e as
representações da sexualidade se manifestam na história da literatura e da arte. Em Bataille, a fenda, em princípio, é desordem, desequilíbrio, mas também permite
um acesso a uma ordem soberana. Não é esse o ponto
máximo que a beleza atinge? Quando sua evidência é
tamanha e sua afirmação tão vigorosa que ela se vê
ameaçada? Tal movimento, por entropia da imagem e
sobretudo pela intencionalidade do olhar moderno, faz
proliferar o sentido da beleza ligada ao terror, o qual, para
além de toda ameaça, pode deformá-la em horror e morte. Mas é a modernidade, sobretudo na leitura de Leiris,
que interfere no equilíbrio da beleza e acelera as forças
degenerativas do elemento temporal. Este é relativo, transitório, exatamente porque introduz na beleza o fator
corrupção. Por outro lado, esse processo acionado pelo olhar
moderno é o que impede que se caia numa “beleza abstrata e indefinível” e se perpetue indefinidamente a situação da “mulher antes de seu primeiro pecado”, nas
palavras de Leiris4. Ou seja, é o erotismo (e no extremo,
a libertinagem) que corrompe a beleza ao mesmo tempo
em que a transgride e a completa. À beleza é inevitável
tanto a degradação quanto o pecado, e o horror mais abjeto. Belo, nesse sentido, é tudo aquilo que sugere degradação. Nesta concepção de beleza, modernidade e erotismo são sinônimos de corrupção e degenerescência. O
porquê dessa associação talvez se deva ao fato de que,
segundo Foucault, nossa sexualidade, depois de Sade e
da morte de Deus, foi absorvida no universo da linguagem5. Isso fez com que se introduzissem com ela outros
elementos como a abjeção e os poderes do horror e da
violência. Entenda-se aqui, portanto, corrupção e
degenerescência enquanto elementos conjugados num
movimento que faz da beleza, de seu sentido, uma experiência de transgressão. Em outras palavras: é a consciência da transgressão e da violência, do terror e da ação
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A beleza terrível
devastadora do tempo, que parece ter motivado o olhar
moderno a produzir obras em que o elemento terrível se
sobrepõe ao da estabilidade ideal.
Se a corrupção é inevitável, exigida até pela erupção
do novo, do desconhecido (“no fundo do desconhecido encontrar o novo”, como diz o poema de Baudelaire), o uso
do artifício é necessário e se torna um fator determinante
para que se restabeleça o equilíbrio da beleza e seu encanto, mas cujo sentido parece agora assumir certo
artificialismo, certa precariedade, apresentando a
dualidade como “questão de estilo”. A beleza com isso se
torna “cínica” e ciosa de seu cinismo estetizado. Ela é
uma máscara que o portador se orgulha em ostentar, porque embora represente o elemento ideal e estático do
belo, se sujeita ao gosto do tempo, suas frivolidades, seus
“maneirismos”, apelos típicos da expressão de uma época, sintomas da inflexão de Cronos sobre os homens.
Eis o sentido da maquiagem em Baudelaire. A
maquiagem aproxima a mulher da estátua e, conseqüentemente, de um ser divino e superior 6. O que é a
maquiagem e todo o esforço da cosmética senão uma tentativa de simulação? Seu mister é disfarçar o trânsito da
beleza à degenerescência. A maquiagem é um artifício
pelo qual a beleza se conserva idêntica a si mesma. A
alteridade é um valor temerário ao elemento estático da
beleza. Toda indústria do cosmético age nesse sentido,
como se a corrupção pudesse ser detida, evitada. Embora
atue sob o signo do momento, a cosmética visa a manutenção do elemento eterno e abstrato da beleza. Nesse
aspecto, a maquiagem é irreal. Em Baudelaire, no entanto, ela é muito mais que um disfarce da degenerescência da vida, é um modo de o artista travestir-se para
ironizar a morte. E assim fazendo, quem sabe, eternizarse como um emblema radiante no fundo dos corações
decadentes.
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Entretanto, por mais que o elemento ideal e invariável da beleza produza seu efeito nos corpos belos e jovens,
o elemento circunstancial encarrega-se perversamente
de deteriorar este corpo e revesti-lo com seu manto de
ironia dolorosa, mas que ao mesmo tempo é uma espécie de gozo. Assim sendo, nenhuma beleza é possível sem
a intervenção de um elemento acidental ou de infelicidade, já que a infelicidade é gerada pela reação do sujeito diante dessa contingência: um sujeito marcado pelo
vazio ou fenda aberta pelo erotismo. De modo algum o
olhar moderno, sobretudo no século XIX, deixará de levar
em conta o fator temporal como influente em todas as
coisas. Há que se retirar “o belo de sua estagnação glacial”, na expressão de Leiris. Eis porque, para Baudelaire,
a infelicidade (malheur) talvez seja uma condição fundamental para a beleza.
Como se vê, Baudelaire elogia o artifício, faz apologia
da roupa, dos acessórios, dos cosméticos, da moda, porque são signos de transitoriedade. Os fenômenos transitórios, ao contrário do elemento ideal e estático da beleza, revelam-se extáticos, exuberantes, embora decadentes e indicadores de degenerescência. A beleza com isso
se torna um signo saturado, corroído em seu âmago, produzindo o infortúnio. A infelicidade é essa consciência
do trágico na arte, consciência de que a beleza está condenada ao horror e à morte, assim como o sujeito à mais
completa indiferença. Daí o efeito de “dissonância” do
caráter dúbio da beleza, ao mesmo tempo “ardente e triste”, voluptuosa e amarga.
A gênese dessa idéia baudelairiana talvez esteja em
Edgar Allan Poe. Num ensaio clássico, A filosofia da composição, o autor norte-americano declara ser a beleza “sua
província”, isto é, seu campo de ação e conhecimento.
Para Poe, a tonalidade (tone) essencial da beleza é a melancolia, a tristeza (sadness). A melancolia, portanto, “é o
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A beleza terrível
mais legítimo dos tons poéticos”7. O que determina aqui
o sentido exterior da beleza é a expressão, ou melhor: a
natureza melancólica do sujeito poético, angustiado com
o horror e a morte. O fundamento da beleza se mostra
assim vinculado a esta subjetividade. É o poeta e/ou artista que, refratários ao aspecto ideal, imutável da beleza, imprimem na sua carne o valor degenerante do transitório. Em conseqüência, a queda do indivíduo no mal é
tão inevitável quando a da “casa de Usher”, no célebre
relato do autor norte-americano.
Em Baudelaire, ainda se faz sentir o poder corrosivo
do mal em comprometimento com a moralidade cristã.
Seus escritos confirmam-no: o pecado “ocupa nossos espíritos e trabalha nossos corpos”, no poema introdutório
das Flores do mal8 Tal exigência irá determinar sua relação com a beleza em cujos “objetos repugnantes encontramos atrativos”9. O lugar da beleza se revela, portanto, o mesmo do horror. No poema “Le lecteur”, o pior
“monstro”, no entanto, não são os horrores bestiais e
hediondos, mas aquele estado de alma associado à melancolia, ao tédio (ennui), conhecido do leitor, este “hipócrita” reflexo do poeta, e por isso mesmo seu “semelhante e irmão” na dor, na melancolia e na decadência da
vida. Eis o verdadeiro terror para o sentimento do poeta
e seus contemporâneos cujo espírito traduz em seus poemas, na apreensão de que o sujeito está em crise e
em vias de desaparecimento. Na aparência, para esta
sensibilidade, a ameaça de algo insuportável talvez seja
pior do que o insuportável em si mesmo, como o horror
e a morte, porque neles o sujeito já está perdido para
sempre. O horror e a aversão que ele inspira, por sua
vez, são elementos valorizados nessa estética justamente porque, tematizados, permitem criar o vazio necessário para o culto da melancolia, do tédio e da infelicidade. Assim, em “Hino à beleza”, esta surge do abismo e
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tem um olhar “infernal e divino” que derrama “confusamente o benefício e o crime”10. Na seqüência, a “beleza”
do poema “caminha sobre os mortos”, beleza de cujas
jóias o “horror não é a menos encantadora”11. Toda a
ação da beleza in persona, se faz no poema sob o signo da
corrupção e da morte. Diante dela, enfim, “o amoroso
ofegante” (....) “tem o ar de um moribundo acariciando
sua tumba”. O século XIX, afinal, foi aquele que
redescobriu os “monstros”12.
Mas por que razão esta literatura se apraz tanto em
conspurcar a beleza associando-a ao crime, misturando-a
com a realidade abjeta da morte? Isso tanto ocorre que, no
limite, é o horror e a violência do erotismo que lhe conferem sentido. Quem ao ler os poemas de Baudelaire, ou de
Augusto dos Anjos, poderia pensar diferente? São estes os
elementos valorizados pelo texto, já que a beleza, “monstro enorme, aterrorizante, ingênuo, abre “a porta / de um
infinito que eu amo e que jamais conheci”13. Caberia então nos perguntar qual a natureza desse infinito? Seria a
mesma que, segundo Bataille, nos comunica a nudez, e
nos angustia com a experiência do erotismo e da morte?
A propósito, é freqüente em Baudelaire a ligação do
erotismo com a morte. No poema “Uma carcaça”, este
despojo encontrado pelo sujeito poético, “num leito semeado de seixos”, é visto em analogia a uma figura “de
pernas para o ar, como uma mulher lúbrica”14. Tal achado poético poderia servir de ilustração para uma frase
lapidar de Sade: “Não há melhor meio de se familiarizar
com a morte do que o de ligá-la a uma idéia libertina”.
Assim, neste sentido de beleza expresso pela literatura e pela arte, o que conta, não é propriamente a estabilidade do equilíbrio entre elementos antagônicos, o que
poderia apontar para uma estagnação da beleza em função de seu aspecto ideal, mas, ao contrário, o movimen-
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A beleza terrível
to terrível do devir na medida em que desencadeia e promove o fator de corrupção e o sentido da morte, trazendo
à tona o conteúdo do horror e da abjeção recalcados pela
cultura ocidental.
“Beleza é exuberância”, diz William Blake. A beleza
está do lado do luxo, do excesso; é da ordem dos gastos
inúteis como o riso, as lágrimas, o erotismo e a poesia.
Em Bataille, o proibido é o domínio do trabalho, da produção e do consumo. Mas os homens não se limitam a
produzir. Eles são dominados por um princípio de perda
que os leva ao excesso, no luxo, nas guerras, nos espetáculos, nas artes, na atividade sexual perversa. Tal energia constitui-se na “parte maldita”. A transgressão é o
que libera esta reserva, este excedente. Assim também
a morte, que para Bataille segue uma outra economia,
mais além da economia, pois é excessiva e inesgotável.
A morte excede sempre. Nesse aspecto, se pode dizer que
existe um elo estreito entre a beleza e a morte.
Se no dizer de Baudelaire, “o belo é sempre o efeito de
um cálculo difícil e terrível”, o horror é quando este cálculo deixou de fazer sentido ou foi além de seus limites.
No extremo, o horror e a beleza são dois lados opostos de
um mesmo movimento excessivo, para além de todo limite. Em sendo a beleza o objeto irresistível de uma imagem excessiva, parte de seu enigma talvez se deva ao
fato de que ela parece conter em si mesma algo que por
sua própria natureza não pode ser contido: a fluência pura
do excesso. Daí o medo, o terror que ela evoca, ainda que
suportável num primeiro momento.
Falar da beleza de um corpo é falar de erotismo. E o
erotismo inevitavelmente representa para o sujeito uma
experiência de limites, uma experiência de morte. O erotismo é o movimento que leva o sujeito a cindir-se, a
perder-se. Por isso, o erotismo corrompe a beleza. Ele faz
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aflorar o horror pela fenda aberta no sujeito em gesto radical e violento. Segundo uma intuição de Bataille, o erotismo é a saída infame do horror15. Em se tratando de erotismo, o aspecto do horror já está implícito no belo. Seria o
horror também uma forma deteriorada do belo, a beleza
levada ao extremo? Assim, a beleza de um corpo carrega
em si mesma o germe de sua transgressão ou profanação.
O gesto transgressor é o devir da beleza.
Quanto maior é a beleza, afirma Bataille, mais vigorosa é a experiência da profanação. Isto porque um excesso
só responde a outro, para fundir-se nele e realizar este
imperativo do homem: exceder-se por uma força cega que
se potencializa ainda mais quando ele transgride.
O sentido da beleza, para Bataille, nasce de uma
ambivalência, já que a beleza é um objeto que se afasta da
animalidade, do aspecto sagrado oculto sob as vestes e que,
no fundo, a própria beleza denuncia. A beleza exige profanação, para que este movimento, excedendo os limites,
produza um sentido último: a violação do sagrado. E profanar a beleza, sujá-la, é tocar a região sagrada dos genitais
simbolicamente carregada de morte. O erotismo é uma
tensão entre a beleza e a morte. Seu ponto máximo é a
experiência da transgressão, na qual o sujeito se desloca
de um pólo a outro num movimento de fusão e continuidade. Na prancha de Manuel Deutsche, “A morte em frangalhos abraça uma jovem”, temos uma ilustração precisa
dessa experiência transgressora. Não é um mero esqueleto que aí representa a morte, mas um corpo em adiantado processo decomposição. Enquanto beija a jovem na boca,
ele toca em seu sexo. Aqui se encontram todos os elementos da profanação da beleza e sua passagem ao horror
e à morte, assim como também jogam na imagem o terror
insuportável e o desejo desnudado do sujeito. Nada inspira
tanto horror quanto um cadáver. Diante de sua presença,
diz Bataille, ninguém fica indiferente. Mas se os ossos de
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A beleza terrível
um cadáver são suportáveis e assimiláveis culturalmente, dado sua limpeza, seu aspecto “solene”, a podridão, o
corpo em decomposição, são insuportáveis. A visão dos ossos
angustia, mas tais objetos estão longe do excesso de virulência ativa da podridão16. Como se sabe, o mais execrável,
por vezes, é o mais desejável. Eis o sentido do horror.
Uma incorporação desses elementos pode ser vista na
poesia de Artaud, onde, de acordo com Julia Kristeva, um
“eu” é invadido pelo cadáver. Com efeito, é o cadáver humano que permite a máxima concentração de abjeção e
fascinação17.
O movimento da transgressão do erotismo e da morte é
bem evidenciado por Georges Bataille em seus poemas e
relatos repletos de angústia, apontando sempre para o vazio absoluto. Neles sobejam imagens excessivas onde estão presentes a dor, o êxtase, a morte e outros elementos
da experiência erótica. Estes textos sombrios guardam algo
de trágico, de um tempo obscuro, condenado ao abismo,
sem qualquer esperança.
“Eu te encontro na estrela
eu te encontro na morte
és gelo em minha boca
tens o odor de uma morta
Teus seios se abrem como a cova
e riem para mim do além
tuas longas coxas deliram
teu ventre é nu como um ralo
és bela como o medo
és louca como uma morta” 18
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Neste poema lúbrico da experiência erótica, no qual a
beleza só existe em comparação com a morte, o sublime
também se faz presente. Nele, ao mesmo tempo em que
a morte mimetiza os elementos do texto, a linguagem
poética erotiza a morte. O erotismo com isso “enlouquece” a linguagem, esvazia o sujeito e suspende a reflexão.
A imagem “teu ventre é nu como um ralo” mostra bem a
função da nudez em Bataille. A nudez é esse objeto
inapreensível que ao mesmo tempo nos abre para a experiência do erotismo e nos comunica com a morte. A
nudez pede fusão, continuidade, assim como a poesia e a
morte.
A transgressão do horror recusa a neutralização da
morte e reabre o vazio que o discurso da proibição tenta
encobrir. Trata-se de reabrir a ferida, a fenda, retornar à
linha de falha que permite e exige a comunicação19. Daí
esta frase de Bataille: “Posso dizer que a repugnância,
que o horror é o princípio de meu desejo (...):”20 E tal desejo é o que “abre em mim um vazio não menos profundo
que a morte”21.
O horror é o que perturba e ameaça a ordem da beleza. Ele a invade, como a morte invade a vida, infectandoa, infestando-a. A sujeira é, assim, uma espécie de preparação para a morte. Ela nega o sujeito, e segundo Julia
Kristeva, nos coloca nos limites de nossa condição de
humanos”22.
Em seu artigo “a linguagem das flores”, Bataille comenta que a verdade destes seres vegetais é ocultada
por aquilo que eles exibem de mais superficial, como o
perfume e as cores das pétalas, resultando disso toda
simbologia ligada ao amor e à vida. No entanto, “a flor
trai rapidamente as exigências humanas, quando sua
maravilhosa corola apodrece e a flor se revela frágil e
fétida como o corpo humano”23.
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A beleza terrível
Por analogia com as flores, a pele é uma fronteira que
separa o exterior harmonioso e belo do interior repugnante, constituído de uma maçaroca de nervos, vísceras,
vasos linfáticos, órgãos, sangue, secreções, e outros componentes do organismo. O interior do corpo é tido como
horrível e repelente. Para Freud, a visão da carne interior é uma visão de angústia, o inverso da forma humana,
a essência do disforme. O “abjeto é uma fronteira”, diz
Julia Kristeva24; o abjeto está por baixo da superfície da
pele. A pele nos defende, nos resguarda do horror dessa
parte que não interessa ser vista. A nós, basta que funcione. Revirá-la significa ameaçar o corpo de alguma forma. Por sinal, ele só se expõe desse modo em casos de
cirurgia, acidente ou de morte na mesa de autópsia. Paradoxalmente, no entanto, é dentro do útero materno que
a vida começa. O rebento vem do horror das entranhas,
em meio a outros fluxos interinos como a urina, o
excremento, o sangue. Ele também é “expulso” do organismo à maneira destes líquidos e do sangue menstrual.
O filho, eliminado pelo organismo da mãe, vem do mesmo lugar imundo (e por isso mesmo sagrado) e é da mesma natureza do sangue, e do esperma. O nosso horror
diante da sujeira e da abjeção, de acordo com Julia
Kristeva, revela no fundo o recalcamento de um desejo
ligado ao corpo materno. De modo que tocar a sujeira é o
mesmo que tocar este corpo proibido e sagrado.
Como vemos, o corpo, por dentro e por fora, está sempre em constante relação com a sujeira e o horror. O
horror pleno é um dos devires da beleza.
“O belo é o que nos desespera”, diz Paul Válery. Este
momento é quando a beleza atinge provavelmente o máximo de si. Quando ela se torna insuportável é porque já
deixou de ser beleza e se tornou outra coisa.
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Se a beleza é o começo do terror que podemos suportar, o horror pleno, seu devir imediato, é insuportável;
ele é o limite onde nenhuma beleza é mais possível, a
não ser, é claro, como forma de arte. Isto, provavelmente, porque a arte é o terreno próprio da transgressão. Em
tese, tudo nela é possível, os maiores horrores e aberrações. A arte tudo incorpora, criando as condições formais
de sua materialização. Mas num território onde tudo é
possível, o poder transgressor tende a esvaziar-se, a perder a força na medida em que não encontra mais obstáculo, lei a ser transgredida. Neste aspecto, todas as fronteiras já foram tombadas pela arte. Suas vias de excesso
já foram por demais exploradas. O surrealismo, por sinal,
realizou uma dessas últimas operações abrindo-se ao
manancial do sonho, do inconsciente.
De modo geral, o século XX, segundo Foucault teria
descoberto e posto em evidência os “gastos que consumam e consomem”, e assim forjado categorias “análogas
ao gasto, ao excesso, ao limite, à transgressão...”25 A literatura (Artaud, Céline, Bataille), a arte (Picasso, os
expressionistas), teriam se utilizado desses procedimentos em sua estética. O século XX parece ter radicalizado
também essa tendência já assinalada pelos românticos
e por Baudelaire em especial, segundo a qual o horror é o
sentido imanente da beleza.
O “belo no horrível”. Desse gesto transgressor nascem
muitas obras da modernidade. Não se tratou, é claro, de
se opor simplesmente beleza e horror ou belo e feio como
duas faces antagônicas e excludentes do bem e do mal.
Em não havendo feiúra (laideur) nem mal, comenta
Bataille, a verdade da arte Moderna faz da ordem “espiritual” um sentido primeiro. Esta arte não é nem demoníaca, nem algo que se oponha a isso, mas religiosa no
sentido que entendia Apollinaire: para além do bem e do
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A beleza terrível
mal, na ingenuidade onde se acha arruinada a oposição
do belo e do horrível26.
O sentido do belo na arte moderna reencontra, portanto, o domínio religioso do sagrado, do sacrifício. Isso
explicaria o forte elo entre certa corrente da arte moderna com a arte e as religiões primitivas. Veja-se o impacto obtido com as máscaras africanas na obra de Picasso,
no início do século XX. Nesse ponto, já estamos num
mundo aberto pelo vazio deixado pela morte de Deus, pela
emergência da sexualidade, a qual, segundo Foucault nos
deixou nos limites do nosso pensamento27. Eis o mundo
retratado pela literatura e pela arte, onde a experiência
da violência excessiva das imagens, da transgressão e
da morte são a tônica, onde o erotismo e a dimensão sagrada arcaica encontram sua via de expressão e se inserem na experiência moderna.
O horror, as deformações promovidas pelo expressionismo representam a desenvoltura de um procedimento que leva o aspecto circunstancial e impuro da beleza
às últimas consequências, se pensamos sempre no fator
desencadeante de corrupção e degenerescência que ele
introduz nas imagens. Esta arte traz à tona os conteúdos
recalcados da abjeção e do horror. É comum nas telas de
Kokoschka, por exemplo, a transfiguração da figura humana, rostos que parecem cobertos de pústulas. Lá fervilham elementos que, à maneira de uma lepra, corrompem e arruinam o sentido de um bem ideal e abstrato
ligado à beleza. Eis o procedimento mediante o qual a
arte engaja suas formas no dilaceramento do humano
no sentido do horror e da morte, muito explorado no século XX, anunciando inclusive os horrores reais das duas
Grandes Guerras. No limite, a arte moderna exacerba as
formas do horror elevando-as à condição máxima de sua
estética porque elas provavelmente encarnaram o sentido mais profundo de sua época, marcada como vimos,
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pelo vazio de Deus e pela emergência violenta da sexualidade. As formas do horror erótico que de um modo ou de
outro evidenciam-se na arte ocidental desde o
maneirismo, pelo menos, passando depois pela valorização do corpo interno explorado pelos anatomistas e barrocos do século XVII, na modernidade apoderam-se violentamente da figura humana, para desfigurá-la a ponto de
tornar este corpo estranho a si mesmo. Mas esta estranheza, que de alguma forma revela uma dimensão profunda do humano, a arte traz à tona. É certo, porém, que
o horror e a violência mais crua, resistindo à representação da arte, acabando sendo neutralizados, estetizados.
Ao viabilizar o movimento de transgressão em solo neutro, a arte ao mesmo tempo nos reaproxima da dimensão
profunda da abjeção, do horror e de outras formas de erotismo, a arte diminui seu impacto sobre nós, suavizando
seu sentido essencial. É certo que a arte derruba fronteiras, mas também parece evidente que a dimensão profunda e arcaica do homem, a despeito de tantos apelos,
não abandona completamente seu subsolo.
Se a beleza mostrou definitivamente sua outra face
com a experiência moderna, é porque se tornou insuportável para o homem ignorá-la. Ele sentiu de perto o poder
dessa imagem e sua ameaça terrível. Talvez por isso
mesmo, a partir de então, tenha passado a olhar de frente justamente aquilo que no fundo não queria ver.
Notas
1
J-L. Douin. Jean-Luc Godard. Paris, Rivages, 1989, p. 83.
C. Baudelaire. “Le peintre de la vie moderne” in Oeuvres complètes. Vol. II.
Paris, Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 1976, p. 685.
2
3
Idem, p. 686.
4
M. Leiris. Miroir de la tauromachie. Paris, Fata Morgana, 1981, p. 36.
98
verve
A beleza terrível
M. Foucault. “Prefácio à transgressão” in Estética: Literatura e Pintura,
Música e Cinema. Col. Ditos & Escritos III. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2001, p. 45.
5
C. Baudelaire, op. cit., p. 717.
6
E. Allan Poe. “The philosophy of composition” in The complete works, vol.
V. Boston and New York, Colonial Press Company, p. 163.
7
8
C. Baudelaire. “Les fleurs du mal” in Oeuvres completes, Vol. I. Paris,
Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 1976, p. 5.
9
Idem.
10
Ibidem, p. 24.
11
Ibidem.
12
Sobre esta afirmação ver Victor Brombert. Flaubert. Paris, Seuil, p. 122.
13
C. Baudelaire, op. cit., 1976, p. 24.
14
Idem, p. 31.
15
G. Bataille. “Les larmes d’Éros” in Oeuvres completes, vol. X. Paris, Gallimard,
1987, p. 618.
16
G. Bataille. “L’érotisme”, op. cit., p. 65.
17
J. Kristeva. Pouvoirs de l’horreur. Paris, Seuil, 1980, p. 175.
G. Bataille. “L’archangélique” in Oeuvres complètes, vol. III. Paris, Gallimard,
1987, p. 85.
18
A. Arnaud e G. Excoffon-Lafarge. Bataille. Paris, Seuil, Écrivains de
toujours, 1978, p. 112.
19
20
G. Bataille, op. cit., p. 65.
21
Idem.
22
J. Kristeva, op. cit., p. 11.
G. Bataille. “Le langage des fleurs” in Oeuvres complètes, vol. I. Paris,
Gallimard, 1987, p. 176.
23
24
Idem, p. 18.
25
M. Foucault, op. cit., p. 44.
26
G. Bataille, “La laideur belle ou la beauté laide dans l’art et la littérature” in
Oeuvres complètes, vol. XI. Paris, Gallimard, 1987, p. 421.
27
M. Foucault, op. cit, p. 45.
99
6
2004
RESUMO
Análise de imagens na literatura e arte modernas nas quais a
beleza estabelece conexões com o horror, a transgressão e o erotismo.
Palavras-chave: erotismo, beleza, transgressão.
ABSTRACT
Analysis of images in modern literature and art in which beauty
establishes connections with horror, transgression and erotism.
Keywords: erotism, beauty, transgression.
100
verve
Canibal
canibal
dorothea voegeli passetti*
Havia uma mulher que sempre comia o próprio filho recém-nascido. Quando a criança nascia, ela mesma lavava,
cortava a barriguinha do nenê, preparava como caça e assava. Lambia os beiços. Dizia:
— Que gostosa essa comida, que criança gostosa!
Engravidou muitas vezes, sempre comia o filho. Seus
parentes a viam comer o filho, jamais criava o bebê.
— Por que essa mulher vive comendo criança?
Era assim, a mulher só vivia comendo seus filhos. O nome
dela era Iñ-ga-kãi.
Índios Gavião-Ikolen de Rondônia
* Professora no Departamento de Antropologia e no Programa de Estudos
Pós-Graduados em Ciências Sociais, pesquisadora do NEAMP (Núcleo de
Estudos Arte, Mídia e Política) e do Núcleo de Estudos de Etnologia Indígena,
Meio Ambiente e Populações Tradicionais, PUC/SP.
verve, 6: 103-126, 2004
103
6
2004
A palavra canibalismo direciona a atenção para uma
animalidade supostamente superada e quase extinta pela
nossa auto-domesticação. A ocidentalização do planeta e
o crescente domínio sobre a natureza que a acompanha
produziu a sensação de que a espécie humana cada vez
mais parece querer prescindir do sangue em suas veias
e substituí-lo por algo mais limpo, mais civilizado e
descartável. Mas, mesmo nos distanciando idealmente
da natureza, é impossível esquecer que somos, apesar
de tudo, seres de carne e osso.
Não foi o acaso que fez com que a palavra comer significasse, além de ingerir comida para alimentar-se,
transar, copular, comer alguém. Mas comer alguém pode
significar, além de tudo, degluti-lo, ingerir sua carne feito canibal num festim antropofágico. O fato é que alimentar-se e manter relações sexuais tem a ver com a vida.
Além de se traduzirem nos prazeres da carne, são atos
indispensáveis à reprodução da espécie e se, no imaginário asséptico, seriam atos superáveis por formas artificiais de reprodução — dos alimentos sintéticos à
clonagem —, a prática vegetariana seria um progresso
civilizatório. A assepsia portanto seria, nessa maneira
de ver as coisas, o que mais nos distanciaria de nossa
natureza carnal e animal. Ser mais civilizado exigiria
afastamentos da carne: de nossa própria e, principalmente, da dos outros.
Contudo, a palavra comer tem esse duplo sentido não
só no português, mas em muitas outras línguas, inclusive em diversas indígenas. Claude Lévi-Strauss alerta
para o fato que “entre as regras de casamento e as proibições alimentares existe, em primeiro lugar, uma ligação de fato”1. Ele exemplifica a afirmação com o caso dos
maridos entre os Tikopia e os Nuer (povos que vivem em
locais bem distantes um do outro) não comerem os animais e as plantas proibidas às suas mulheres, pois o ali-
104
verve
Canibal
mento ingerido contribuiria para a formação do esperma
e, agindo assim, evitariam introduzir o alimento proibido no corpo da mulher durante o coito. Conclui que “essas aproximações nada mais fazem que ilustrar, em casos particulares, a analogia profunda que, em todo o mundo, o pensamento humano parece fazer entre o ato de
copular e o de comer, a tal ponto que um grande número
de línguas os denominam com a mesma palavra”2. Os
exemplos se multiplicam, mas bastam mais dois: em
yoruba, conta Lévi-Strauss, um mesmo verbo refere-se a
comer e copular e, “na língua dos Koko Yao, da península
do Cabo Iorque, a palavra kuta kuta tem o duplo sentido
de incesto e canibalismo, que são as formas hiperbólicas
da união sexual e do consumo alimentar”3.
A presença da animalidade amedronta pela sua proximidade à antropofagia e ao incesto, as duas grandes transgressões da cultura, os excessos da carne, a forma mais
íntima que poderia existir entre dois que se unem em atos
de deglutição, seja pela forma do alimento, seja pelo sexo:
comer um igual — outro humano —, unir-se sexualmente
ao mais próximo — pai/filha, mãe/filho, irmão/irmã.
O binômio canibalismo-incesto pode ser desdobrado
em mais uma transgressão relacionada à comida sexual
que, em muitas sociedades e em alguns setores da nossa, mesmo hoje, é qualificada como desvio por não se
relacionar à reprodução: o homossexualismo. O perigo
não está, nesse caso, associado à proximidade do
animalesco, uma vez que o argumento lança mão de lógica contrária: o homossexualismo é “anormal” porque
se desvia da “natureza” e, natureza, aqui, obviamente
significa reprodução através do ato sexual entre um macho e uma fêmea, ou seja, o casal hetero. Naturaliza-se
a cultura reduzindo as relações amorosas à reprodução.
O mesmo pode ser dito sobre as justificativas para o casamento monogâmico, ou sobre os limites de idade con-
105
6
2004
siderados por nossos padrões como aceitáveis para alguém
manter uma vida sexual ativa, aquele no qual homens e
mulheres são férteis: nem antes, nem depois. Mas nem
sempre é assim.
A substância visível mais evidente e significativa dessa animalidade carnal é o sangue e, em especial, o sangue humano. Inúmeros tabus cercam a aproximação ao
sangue, substância perigosa da vida. A maior contaminação, obviamente, estaria diretamente relacionada à
reprodução: o sangue menstrual e, pior, o do parto4. Mitos, tabus e proibições de toda espécie abundam em todas as sociedades, pois parece que a concentração de
energia vital contida nesse sangue poderia ser nefasta
aos que se aproximassem dele, como se o contato tirasse
um pouco da vida de quem ousasse fazê-lo. A mulher
menstruada torna-se, assim, perigosa. Há pouco tempo
atrás, na nossa sociedade, estar menstruada — incomodada — a impedia de realizar diversas atividades corriqueiras, de tomar banho a cozinhar, pois seu estado vulnerável poderia contaminar os outros. Imagine-se, então, o que poderia acontecer se ela ousasse ter relações
sexuais com um homem..., a animalidade estaria evidente: sexo com sangue é coisa de bicho no cio.
Mas esses perigos, agora, se foram; e não foram. A
praga que assola homens e mulheres dos anos 1970 em
diante, a AIDS, tornou a vida sexual higienizada. A camisinha evita a contaminação do vírus e, de qualquer
modo, toda a contaminação, até aquela de um sangue
menstrual. Acostumamo-nos tanto a esses intermediários assépticos entre um corpo humano e outro, ou entre
o corpo e a comida, que nem mais nos questionamos a
quem deve proteger. No supermercado, o açougueiro usa
uma luva para preparar a carne que compramos no balcão. Usa a mesma luva para embalar, pesar, etiquetar,
operar os botões da máquina-balança, pegar uma carne
106
verve
Canibal
na geladeira, tirar o suor ou o cabelo da testa, cortar,
jogar pedaços de sebo num recipiente, e assim vai de
pedido em pedido. Estaria se protegendo do sangue ou
protegendo a carne de contaminações do meio? E a mulher que escolhe frutas, ali ao lado, usando um saco plástico como luva? O que ela pensa estar protegendo? Estaria menstruada, ou só com nojo daqueles produtos da
natureza, talvez ainda com um pouquinho de terra, e que
foram manuseados por tantas outras pessoas antes dela?
Ela certamente usa camisinha.
***
As incontáveis sociedades, objeto de pesquisa e reflexão antropológicas atestam que a regulação dos prazeres
da carne é assunto que envolve bem mais que formas
variadas de satisfação de desejos individuais. Qualquer
que seja a regra, ela institui o parentesco e possibilita a
passagem da consangüinidade à aliança, como sabemos
desde que Lévi-Strauss5 evidenciou o papel fundamental
da proibição do incesto — a única proibição universal —
na consolidação da cultura. Grupos de parentes consangüíneos associam-se através da circulação de suas mulheres, criando possibilidades de trocas econômicas e
relações políticas. No domínio da cultura — das trocas e
dos sistemas simbólicos — as regras ampliam e moldam
as relações para com o Outro. A grande regra, isto é, a
proibição do incesto, instaura a cultura porque a partir
dela se delimita grupos de parentesco que necessariamente devem interagir. Muito mais que obrigação de não
mais se fechar, ela cria possibilidades para que os grupos encontrem formas de troca e aliança.
O extremo complementar dos prazeres da carne, o
canibalismo, não escapa às regras e, para tal, realiza-se
segundo rituais que estabelecem quem é comido, como,
quando e por quem. Entre incesto e canibalismo há, por-
107
6
2004
tanto, nesse plano, uma diferença fundamental: o incesto é e sempre foi universalmente proibido, mas o canibalismo não. O fato da proibição do incesto instituir a cultura o faz universal, e não será necessário comprovar
empiricamente que as sociedades o proibiram desde sempre por saberem que não é possível haver sociedade sem
tal proibição. Ela possibilita a passagem da Natureza para
a Cultura. O canibalismo, contudo, é divisor de outras
águas: de um lado os selvagens e de outro aqueles que se
convencionou identificar por civilizados. A proibição do
canibalismo seria, portanto, a passagem do Selvagem ao
Civilizado? Assim como ao se criar a cultura a natureza
não é abolida, a civilização também não consegue extinguir o que há de selvagem em cada um. Se lembrarmos
da noção de pensamento selvagem de Lévi-Strauss, talvez fique mais fácil entendermos que, como o pensamento selvagem é o pensamento em estado selvagem, mesmo
em sociedades ocidentais ou globalizadas nas quais domina o pensamento domesticado, o estado selvagem é
uma forma de experiência mesmo na civilização. Não
há, portanto, uma linha divisória, dois domínios separados, mas sim predisposições.
Foi pensando nessas duas formas que Lévi-Strauss
propôs uma outra oposição: “[...] Ficaríamos tentados a
contrapor dois tipos de sociedades: as que praticam a
antropofagia, isto é, que enxergam na absorção de certos
indivíduos detentores de forças tremendas o único meio
de neutralizá-las; e as que, como a nossa, adotam o que
se poderia chamar de antropoemia (do grego eimen, ‘vomitar’). Colocadas diante do mesmo problema, elas escolheram a solução inversa, que consiste em expulsar esses seres tremendos para fora do corpo social, mantendo-os temporária ou definitivamente isolados, sem
contato com a humanidade, em estabelecimentos destinados a este fim. Na maioria das sociedades que chama-
108
verve
Canibal
mos de primitivas, tal costume inspiraria um profundo
horror; em seu entender, isso nos marcaria com a mesma barbárie que seríamos tentados a imputar-lhes por
causa de seus costumes simétricos” 6.
Bárbaros somos nós, portanto. Ou selvagens. Mas, selvagens ou civilizados, antropofágicos ou antropoêmicos,
isso não significa que, em qualquer uma das modalidades, tanto o incesto quanto o canibalismo não sejam praticados, transgredindo as limitações ou proibições impostas pelas diversas culturas e constituindo-se como dois
grandes incômodos.
Os Guayaki, caçadores pesquisados por Pierre Clastres7,
na década de 1960, no Paraguai, temerosos em parecer ao
etnólogo como um povo mais próximo da natureza que da
cultura, selvagens comedores de gente, custaram a revelar seu segredo. Não que eles mesmos se sentissem como
homens de segunda, mas como muitos outros povos indígenas, aprenderam a recusar certas classificações, uma
vez que a partir de meados do século XVI, reconhecer a
prática antropofágica era assinar a sua própria sentença
de morte. A guerra aos índios passou a ser proibida, a não
ser que fossem acusados de canibalismo. Aí, podiam ser
caçados, mortos ou escravizados, e assim se resolvia o problema da mão de obra barata nas colônias.
Eduardo Viveiros de Castro analisa a história da proibição do canibalismo no Brasil, evidenciando acontecimentos semelhantes a partir dos discursos jesuítas que se preocupavam com a inconstância da alma selvagem. Para os
missionários, era quase impossível moldar a alma indígena de uma parte dos povos com os quais mantinham contato e que deveriam tornar cristãos. Segundo a concepção
de Antonio Vieira, alguns eram duros de converter, mas
quando isso ocorria não havia mais perigo de volta ao paganismo. Outros, como os Tupinambá, eram inconstan-
109
6
2004
tes, uma vez que mostravam indiferença ao dogma cristão: nada havia para ser substituído, nenhum dogma ocupava o lugar daquele que os padres queriam ensinar. O
obstáculo seria, para o padre Vieira, o que identificava como
maus costumes: “canibalismo, guerra de vingança, bebedeiras, poligamia, nudez, ausência de autoridade centralizada e de implementação territorial estável”8.
Esses dois povos — os Guayaki da década de 1960 e os
Tupinambá do século XVI — podem exemplificar o que se
costuma chamar por endo e exocanibalismo, dois pólos
cuja distinção, como também já alertou Lévi-Strauss,
pode ser enganadora. “Entre essas duas formas extremas
surgem inúmeros tipos intermediários, e o contraste
inicial é abolido”9. Num dos pólos, no endocanibalismo,
come-se os membros da própria sociedade ou de seu grupo e no outro, no exocanibalismo, ocorre o contrário: comese apenas os estrangeiros.
Os Tupinambá, canibais que fizeram a fama dos povos
do Brasil no século XVI, aguçaram o interesse de pensadores e escritores sobre a antropofagia desde então. Missionários e viajantes, os cronistas os conheceram e os
descreveram com um requinte de detalhe que não permite dúvidas sobre como era a antropofagia que atraía
sentimentos dos mais variados, desde a repulsa até a
atração pelo indomável e honrado guerreiro exótico.
Michel de Montaigne que, com seu ensaio “Dos Canibais” inaugurou, em 1580, a reflexão sobre o Outro e, a
partir dela, o estranhamento em relação a sua própria
cultura, foi um dos entusiastas desses guerreiros: “não
vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem desses
povos e, na verdade, cada qual considera bárbaro o que
não se pratica em sua terra”10. Mas os cronistas dos séculos XVI e XVII não partilhavam dessas idéias. Em missão religiosa ou não, os relatos se referem ao canibalismo e aos povos que o praticavam com horror e descre-
110
verve
Canibal
vem os rituais antropofágicos de maneira muito exata e
coincidente. Ao menos, quanto aos Tupinambá, com os
quais os colonizadores tiveram inicialmente contato mais
próximo, marcado por intensas relações guerreiras, não
há dúvidas: eles executavam e comiam seus inimigos
num ritual que era realizado seguindo-se uma rígida etiqueta, motivados pela vingança. Menos que a manutenção do canibalismo, o que os Tupinambá não abriam mão
perante as pressões portuguesas era da vingança, a partir da qual alimentavam sua rede de relações. “Afinidade
relacional, portanto, não identidade substancial, era o
valor a ser afirmado”11.
Os cronistas Jean de Léry, André Thevet, Hans
Staden12, entre outros, descrevem o ritual do qual todos
da aldeia participavam, bem como convidados de outras
localidades. A vítima podia passar um bom tempo como
hóspede cativo, bem alimentado e com uma mulher como
companhia, e muitas vezes presenteado pelo seu captor
a um outro homem (chefe, sogro, aliado). A festa era
regada de bebida especialmente preparada pelas mulheres e consumida já desde o dia anterior. Pintado para a
ocasião, era levado ao centro do terreiro e amarrado, onde
travava o célebre diálogo com seu executor: “ ‘Sim, aqui
estou eu, quero matar-te, pois tua gente também matou
e comeu muitos dos meus amigos’. Responde-lhe o prisioneiro: ‘Quando estiver morto, terei ainda muitos amigos que saberão vingar-me’ ”13. Era assado num moquém,
depois de ter sido cortado em pedaços e esfolado. A gordura que escorria durante esse processo era recolhida pelas velhas, que a consumiam com especial prazer. Das
vísceras faziam um mingau, comido por mulheres e crianças, e estas últimas também recebiam toda a carne
da cabeça. O único a não comer a carne era o executor,
que compensava sua abstinência com a honra de, a partir da sua pancada com o ibirapema (o tacape) no crânio
111
6
2004
da vítima, incorporar seu nome e, com isso, aumentar
seu prestígio, sabendo que futuramente seria também
vingado por um inimigo.
Se a antropofagia tupinambá passou a ser conhecida
como aquela em que se devorava o inimigo pela vingança, não devemos confundi-la com um ódio pelo outro que
apenas se resolvia aniquilando-o através da ingestão. A
alteridade capturada e ingerida recriava constantemente a cadeia de relações que mantinha a sociedade viva.
O canibalismo foi, portanto, a forma peculiar que essa
sociedade encontrou para manter-se através do intercâmbio com os outros.
A versão complementar de canibalismo, na qual se
come os de dentro da própria sociedade, pode ser
exemplificado pelos Guayaki. Eles comiam todos os seus
mortos e, em caso de morte de um inimigo, ele também
não escapava. Mas, ao contrário do que muitas vezes se
pensa, a antropofagia não é o motivo da morte: nem aqui,
nem entre os Tupinambá, e provavelmente em povo indígena algum; não se mata com o fim exclusivo de comer
a vítima. A carne humana não é o equivalente a uma
carne de caça, em busca da qual o guerreiro ou caçador
empreende sua expedição.
Conforme relata Clastres, entre os Guayaki também
comia-se toda a carne e a gordura era igualmente apreciada, sugada nos pincéis com os quais era apanhada
quando escorria pelas ripas do moquém. A exceção era o
órgão sexual feminino, que era enterrado. A cabeça, cozida, era comida por velhos e velhas e proibida aos jovens
caçadores, e o pênis, igualmente cozido, era dado às
mulheres grávidas, para que seus bebês nascessem do
sexo masculino, futuros caçadores. Os ossos eram quebrados para se extrair o tutano, delícia das velhas. Ao
final de tudo, o crânio ainda devia ser quebrado e quei-
112
verve
Canibal
mado. O restante do moquém era deixado no local, a não
ser no caso de criança, quando seria destruído. Os únicos que não ingeriam a carne moqueada (ou cozida em
panela de barro, quando era de criança muito pequena) e
sempre neutralizada com palmito, eram os parentes mais
próximos — pai, mãe, filhos e irmãos — especialmente
do sexo oposto. “As mais severas proibições não são jamais transgredidas: não se verá jamais um irmão comer
uma irmã, um pai comer a filha, uma mãe comer seu
filho e reciprocamente. Os membros da família do sexo
oposto não se comem entre si. Por que? Porque comer
alguém é, de uma certa maneira, fazer amor com ele.
[...] Proibição do incesto e tabu alimentar se recobrem
exatamente no espaço unitário da exogamia e da
exocozinha”14 .
Os Guayaki comiam seus mortos porque temiam suas
almas. Se isso não for feito, a alma separada do corpo
morto busca um novo corpo, vivo. Mas, com o canibalismo, a alma que busca o novo corpo encontraria seu antigo, despedaçado e comido, transformado em restos de comida. Sem espaço próprio para ficar, a alma seria obrigada a assumir que é apenas um fantasma, e tomar seu
rumo para o país dos mortos, seguindo a fumaça do crânio que queima.
Um dado suplementar que une os canibalismos
Tupinambá e Guayaki é que em ambos os casos comer
carne humana é, sem dúvida, uma delícia. Dos
Tupinambá resta um diálogo travado entre Hans Staden,
artilheiro alemão cativo e constantemente ameaçado de
ser devorado, e o chefe Cunhambebe, que ameaçava executar uns prisioneiros e em favor dos quais Staden estava intercedendo. “Cunhambebe tinha à sua frente um
grande cesto cheio de carne humana. Comia de uma
perna, segurou-m’a diante da boca e perguntou-me se
também queria comer. Respondi: ‘um animal irracional
113
6
2004
não come um outro parceiro, e um homem deve devorar
um outro homem?’ Mordeu-a então e disse: [...]‘Sou um
jaguar. Está gostoso’”15.
Entre os Guayaki não há quem não goste. “Seria pouco dizer que apreciavam a carne humana, eles eram doidos por ela. Por quê? ‘Ee gatu’, explicavam, ‘é muito doce’,
melhor ainda que carne de porco selvagem. O que mais
se aproxima dela, do ponto de vista do sabor, é a carne de
porco doméstico dos brancos. Mas, acima de tudo, há gordura. Um homem é mais gordo que qualquer animal da
floresta; entre a pele e a massa muscular, há sempre
uma camada espessa de ‘kyra’, e isso é realmente bom.
‘Kyra gatu! Gordura boa!’, comentavam meus informantes brincalhões beliscando-me o bíceps. ‘Gaiparã! Jypi
pute! Está magro! Bem seco!’, eu respondia, e todo mundo caía na gargalhada”16.
Essa exaltação dos prazeres da carne aparece também na literatura do argentino Juan José Saer, autor
que afirma não reconstruir o passado, mas construir uma
visão do passado, uma imagem ou idéia que não diz respeito a nenhum fato preciso. Investiga, no romance O
Enteado17, a memória ocidental sobre o convívio com os
povos indígenas de um passado colonial e o imaginário
criado a respeito de alguns aspectos fundamentais de
suas existências remotas. Esses aspectos são condensados na descrição de festins desmesurados de uma tribo fictícia do rio da Prata nos quais todos, salvo as usuais
exceções, atiravam-se ao canibalismo e a relações sexuais fora de qualquer regra obedecida em dias de vida
social normal. As vítimas do moquém são estrangeiros
brancos, devorados uma vez por ano, ao mesmo tempo
em que relações sexuais de todas as formas imagináveis
ocorrem entre os índios. Depois de dois ou três dias, tudo
volta à ordem e a inversão dá lugar a uma vida pacata.
São festanças de prazer, orgias da carne. Ali, matava-se
114
verve
Canibal
gente para comer a carne humana, nada além. É isso
que o senso comum ocidental afirma e, parece, é dessa
exacerbação do prazer que se ressente, numa vaga lembrança de um passado ancestral da humanidade no qual
haveria uma suposta ausência de regras: aquelas que
fundam a cultura e as civilizações.
Essa parece ser, de fato, a diferença entre o canibalismo selvagem e os outros, civilizados. Para os ocidentais,
mata-se para comer a carne, ou mata-se e depois acrescenta-se mais um componente de violência extrema, a
ingestão da carne da vítima assassinada, num gesto criminoso. Michel Foucault analisa a caracterização desse
ato como praticado por um monstro moral e o associa ao
incesto. “O par antropofagia-incesto, as duas grandes consumações proibidas, parece-me característico dessa primeira apresentação do monstro no horizonte da prática,
do pensamento e da imaginação jurídicos do fim do século
XVIII”18. O monstro é o do abuso do poder, personificado
pelo casal Luis XVI e Maria Antonieta, como aparecem
nos livros e panfletos revolucionários da época: ávidos de
sangue, o chacal e a hiena. Ela, estrangeira que suga o
sangue do povo francês, além de mulher escandalosa, depravada e libertina. Ele, o déspota. Personificam o “lado
canibal, antropofágico do soberano ávido do sangue de seu
povo”19, que rompe o pacto social e afirma seu interesse
pessoal. A outra apresentação do monstro aparece na literatura contra-revolucionária, monarquista: é aquele que
rompe o pacto pela revolta, a partir de baixo, do povo que
violenta, dilacera, corta, sangra, assa corpos humanos em
praça pública, faz patês, obriga filhos beberem o sangue
para salvar a vida de seus pais. De um lado a depravação e
a libertinagem dos reis, de outro a violência do povo.
São eles, os monstros antropofágicos do povo revoltado
e os monstros incestuosos do déspota, os formadores da
temática jurídico-médica do monstro e da economia do
115
6
2004
poder de punir no século XIX. Hoje, abundam casos reais
e criados pela ficção sobre essas fomes populares e esses
apetites despóticos. O livro Hungry Ghosts – Mao’s Secret
Fanmine (Fantasmas Famintos – A Escassez Secreta da
Era de Mao) do jornalista britânico Jasper Becker relata
a morte de cerca de 30 milhões de chineses entre 1958 e
1962 em função da campanha “Um salto para a frente” do
Estado chinês, que lançou a população a uma fome tamanha que, “no noroeste da China, ‘crianças eram abandonadas ao longo da estrada, em valas cavadas no solo’,
como última esperança de que algum viajante as descobrisse e delas se apiedasse. O canibalismo, de acordo com
entrevistados, tornou-se uma prática alastrada”20. Lembrando o terror durante a Revolução Francesa, notícias
de jornal afirmam que grupos armados do Movimento pela
Libertação do Congo (MLC) e outros menores, apoiados
por Uganda, são responsáveis por “canibalismo, estupros
em massa, tortura e seqüestros, [...] usados como armas
por rebeldes em regiões remotas do Congo (ex-Zaire) habitados sobretudo por pigmeus. [...] Eles picam o coração
e outros órgãos de suas vítimas e forçam as famílias a
comê-los”21. Aqui, no Brasil, lê-se a seguinte notícia sobre um acerto de contas entre grupos de prisioneiros
durante uma rebelião, em março de 2001, na Penitenciária de Ribeirão Preto: “uma das vítimas do motim teve o
coração retirado, assado e, segundo informações de agentes, teria sido servido aos detentos, enquanto eles bebiam pinga”22.
Hilda Hilst relata, na crônica “Presidente, abre o olho:
tão comendo gente!”23, o caso de uma teta achada num
lixo hospitalar em Olinda e devorada por famélicos.
Polígono das Secas, de Diogo Mainardi24, começa com a
história de Manoel Vitorino que cai numa vala profunda
com o cadáver de seu filho e se alimenta de sua carne
para não morrer de fome. No teatro pudemos assistir, em
116
verve
Canibal
2002, à montagem da peça “Os Solitários”25 com o texto
Pterodátilos, de Nicky Silver, na qual uma mãe e um filho
sobrevivem a um acidente aéreo numa ilha deserta graças ao canibalismo, prática que continuam exercendo
após retornarem para casa, onde devoram o macho do
lar, marido e pai. Antropofagias, todas, produzidas pela
fome. Mas há algo além de fome.
Atualmente o canibalismo reaparece também no universo indígena, mas dessa vez invertido: na mitologia do
Norte da Amazônia contemporânea, o antropófago é o branco, monstro do terror. Michael Taussig já havia mostrado
isto em Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem26,
ao descrever a forma do terror implantada na exploração
de borracha no Putamayo, da qual o canibalismo foi um
componente importante, constante ameaça nas vidas dos
índios escravizados. A mitologia do contato pesquisada
atualmente fornece diversos exemplos. Os Macuxi, povo
que vive em Roraima e na Guiana, contam uma história
narrada para Paulo Santilli, em 1990, pelo ancião macuxi
Leonardo. Ele diz lembrar ouvir o velho pajé Jasmim contar a história ao seu pai, quando ele ainda era menino
pequeno, que foi pego por soldados para trabalhar, juntamente com seu cunhado. Chegando ao local foram colocados numa casa na qual não havia nada e ali esperaram, trancados, recebendo comida diariamente. Não faziam nada, só engordavam. Depois de uma semana
levaram o cunhado, dizendo que iria trabalhar, mas ele
não voltou. Quando perguntou, responderam “ta lá trabalhando ainda, ta trabalhando. Mas mentira deles, eles
tinham matado ele, já comeram ele. Daí ele conheceu,
porque ele é pajé, né! Ele conheceu, ele pensou muito”27.
Passados mais uns dias, quando perguntou do cunhado,
avisaram que viria no dia seguinte e que aí seria a vez
dele. “Mas ele, ele tá sabendo. Anoiteceu, ele pediu tabaco pra fumar, deram tabaco pra ele, e tem água pra ele
117
6
2004
beber aí também dentro da casa. Anoiteceu. Aí ele pensou muito: Não, eu vou-me embora hoje. — Ele disse, o
pajé disse: Embora hoje, eu vou escapar desses aí, eles já
comeram meu cunhado. Daí ele aguou o tabaco, no copo,
ele tomou... ele trabalhava batendo a folha aqui, quando
ele faz pajé, né, com a folha batendo assim para ele subir. Lá ele tirou a roupa dele, agora com aquele ele bateu,
com roupa dele foi batendo, foi cantando ali, ele cantou,
cantou, cantou. Não sei como pajé fica para ele subir. Aí
ele subiu, ele subiu e saiu lá pra cima. Ele saiu, quando
ele saiu ele virou aquele Wataima (estrela cadente), ele
subiu, virou Wataima e veio embora por cima, de lá ele
veio, veio [...] Eu caí aí meu filho, ele disse pra finado
meu pai. Sentou ali, atrás daquela serrota ali: — Daí eu
vim a pé, cheguei aqui de pé, aqui em casa, cheguei, eu
escapei desse branco. Quase que me comia. Assim eu vi
ele contar pro finado meu pai. E comeram cunhado dele.
Ele não fora pajé, eles tinha comido ele também”28.
Conforme Santilli, os Macuxi pensam o universo dividido em três planos: o terrestre, no qual vivemos, o subterrâneo, onde vivem os Wanabaricon, pequenos seres
semelhantes aos humanos, e o céu, no qual há diversos
seres. Tanto os subterrâneos quanto os celestes vivem à
semelhança dos Macuxi — plantam, caçam, pescam e
constroem aldeias — e não mantém nenhum tipo de relação com os humanos. O problema está mesmo na terra: aqui, além dos humanos e animais, existem os
omá:kon, seres selvagens que habitam as serras, áreas
rochosas e matas, têm unhas e cabelos longos e fala
inarticulada, manifestando-se como animais de caça, e
os makoi, seres aquáticos que se manifestam como diversos tipos de cobras. Esses seres antropófagos atraem
os humanos com sexo e comida, os caçam para aprisionar suas almas e assim os fazem adoecer e morrer, e
apenas os xamãs podem vê-los e neutralizá-los com suas
118
verve
Canibal
armas sobrenaturais, resgatando as almas aprisionadas
dos humanos e evitando que morram. Para realizar essas operações baseadas em cantos, o xamã vive e se
locomove em espaços intermediários, entre a terra e o
céu ou entre a terra e as profundezas da água.
Santilli conclui que entre os Macuxi as relações sociais são mantidas equilibradas a partir da reciprocidade
interna. Fora do domínio da sociedade reina a predação e
apenas o xamã tem condições de movimentar-se nesse
terreno perigoso. Quando essa predação não é atribuída
aos seres sobrenaturais ou até à natureza, os agentes da
economia extrativista desempenham simbolicamente a
função, na qualidade de brancos predadores fora de limites da sociedade e, desta forma, de canibais.
Esse canibalismo praticado pelo outro, o branco, invadindo e dividindo o lugar ocupado pelos seres canibais
exteriores ao mundo social macuxi, pode ser visto como
complemento das categorias clássicas do canibalismo
criadas pela antropologia. Obviamente, do ponto de vista
do branco, esse canibalismo seria uma forma de
exocanibalismo — comer o outro — e certamente da classe do canibalismo europeu dos poderosos, como apontou
Foucault em Os Anormais. Real ou simbólico, é um canibalismo do terror que provoca o efeito do imobilismo
estarrecedor perante o perigo mortal e inevitável: não
fosse a prevenção pela fuga dos soldados, todos seriam
comidos, apesar do esforço dos xamãs que só sabem salvar-se a si mesmos, no caso de canibais humanos.
Se a proibição ao canibalismo indígena do século XVI
resultou na morte dos canibais ou na escravidão deles, a
escravidão recente de grupos indígenas é interpretada,
por eles, como morte por canibalismo branco.
Inversamente do que ocorria entre os antigos
Tupinambá, não parece haver entre os Macuxi alguma
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forma de positivação do canibalismo. Se ali o canibalismo foi uma forma necessária de existência da sociedade
que se afirma no intercâmbio antropofágico com as outras sociedades — inclusive aquelas dos brancos — assim provocando seu (quase) extermínio, os Macuxi expulsam a prática canibal para fora da vida. Ela é, apenas,
a responsável por todas as mortes: aquelas provocadas
pelas doenças adquiridas em função do rapto das almas
humanas pelos seres sobrenaturais e as provocadas pela
antropofagia do branco, a antropofagia do trabalho escravo, do terror.
A positividade da antropofagia tupinambá era a vida
social e o prazer inerente à vida. Não só adoravam comer a carne humana como ensinavam a alguns brancos, menos preconceituosos, a compartilhar desses prazeres. O testemunho de Staden recusando o manjar oferecido por Cunhambebe é um indício dessa possibilidade29.
Os brancos não foram imunes a essas tentações no passado e esse prazer parece estar presente até hoje, ao
menos, como vaga lembrança de uma transgressão saborosa às vezes revivida na ficção como monstruosidade
criminosa. Ruben Fonseca cria, no conto “A natureza em
oposição à graça”, a situação em que o tímido Raimundo
relata ao policial como assassinou Sérgio, um grandalhão
esportista que o chama de raquítico à beira da piscina do
condomínio, enquanto envia olhares comprometedores
para a sua namorada, Alessandra, que finalmente consegue conquistar, fato que ele começa a adivinhar a partir do momento em que a namorada comenta a beleza
dos cílios do brutamontes. Numa noite Raimundo é abordado por um misterioso velho, um bruxo, que lhe diz que
seu medo para enfrentar o admirador de Alessandra advém
de sua alimentação de legumes e verduras. Falta-lhe
sangue:
120
verve
Canibal
“Ouça, jovem ignorante, o homem é um animal que
só adquiriu coragem quando deixou de comer raízes e
outras porcarias arrancadas da terra e começou a ingerir carne vermelha. Dize-me o que comes e dir-te-ei quem
és, até os cozinheiros sabem disso. Uma gazela come
verduras — e o leão? O leão come a gazela, você tem que
decidir se quer ser zebra ou tigre, há quanto tempo você
não come carne? [...] Se você quer resultados a curto prazo, ele disse, tem de beber o sangue do inimigo e se precisar matar o inimigo para beber o sangue dele, mata o
inimigo, o melhor é isso mesmo, matar o inimigo e beber o sangue dele, e depois comer a carne dele, era assim que se fazia antigamente, muito antigamente. E não
se mata o inimigo e bebe-se-lhe o sangue apenas para
deixar de ter medo dele, é para não se ter mais medo de
ninguém e de nada.”
Raimundo convida Sérgio para pescar, numa noite,
no alto de um precipício. Uma pedra grande o ajuda. “Peguei a pedra e bati com força na cabeça de Sérgio. Ele
caiu, sangrando muito, e despencaria no precipício, se
eu não o segurasse, colocando o meu corpo sobre o dele.
Colei a boca no ferimento da cabeça de Sérgio, para
sugar o sangue que escorria. Não senti nenhum nojo,
era como se fosse suco de tomate. Sorvi o sangue dele
durante uns dez minutos, enquanto sentia, com a ponta
dos dedos, a sedosidade dos seus longos cílios. Depois eu
o empurrei e ele rolou pela escarpa. Ouvi o ruído do corpo
batendo na água, ao afundar.
Ele escorregou? perguntou o tira.
Escorregou, eu não podia fazer nada, a não ser pedir
socorro, esperar os bombeiros.
O laudo do legista registra que as pálpebras do morto
foram arrancadas, disse o tira.
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Deve ter sido um peixe, eu disse.
O tira olhou para mim, viu à sua frente um homem
seguro e tranqüilo.
Muito obrigado pela sua cooperação, ele disse.
Saí da delegacia e a polícia nunca mais me incomodou.” 30
Nessa versão do assassino canibal ou em outras, nas
quais o monstro é apresentado de forma mais violenta e
requintada, como na série dos filmes sobre Hanibal the
Canibal, iniciada pelo filme O silêncio dos inocentes, a
carne, o sangue, são apreciados como iguarias. Lembram
os casos de amor incestuoso entre irmãos que não se
sabiam irmãos pois, ao menos em algumas vezes, são
situações nas quais comensais se deliciam sem saber
que aquela carne, na realidade, é de gente. Uma variação dessa situação está no pequeno conto “Alegrias da
carne” de Rubens Figueiredo31: um churrasco familiar
no qual uma garota sempre é encarregada de cuidar da
grelha e das carnes e um tio, solidário, bom churrasqueiro, mas bêbado, tenta consolá-la, uma vez que ela
prefere fazer outras coisas. Com o avançar da hora e das
cervejas ele perde o equilíbrio e se apóia justamente na
grelha encandescente. É levado ao pronto-socorro, e a
menina volta à sua tarefa, vira bifes e acrescenta carnes, sem deixar de observar que entre elas ficou um pedaço, não muito grande, da mão do tio. Sua vingança pela
tarefa de churrasqueira, que a deixa engordurada e
esfumaçada, é guardar o segredo para si.
Agora, um pedacinho do conto “Os Canibais”, do cubano Pedro Juan Gutiérrez32:
“— Companheiros, prestem atenção. Este cidadão foi
surpreendido por uma patrulha hoje de tarde, no momen-
122
verve
Canibal
to em que saía do necrotério com este saco de fígados
humanos...
O murmúrio dos vizinhos interrompeu o policial.
— Deixem eu terminar. Este cidadão é funcionário do
necrotério faz dois meses e desconfiamos que ele subtraiu fígados de cadáveres em outras ocasiões, para vender no mercado negro como se fosse fígado de porco. Precisamos de testemunhas...
Outra vez o murmúrio do povo. Uma velha foi a primeira a falar:
— Ai, filho da puta! Que desgraça! É verdade, seu guarda, é verdade que ele vendia fígado para a gente! Esse
filho da puta não tem mãe!
Isabel e eu nos olhamos. Me pus a rir às gargalhadas.
Isabel fazia caretas de nojo.
— Olhe, Isabel, já está comido e cagado. Esqueça. Além
disso estava uma delícia. Muito saboroso.
—
Não seja animal, Pedro Juan!”
Selvagens ou civilizados, não poderemos deixar de ser
animal pelo sangue que corre nas veias e abre apetites.
Moldados pela cultura, somos natureza nessas experiências e vivências carnais, inegáveis, fundamentais para
a vida, mesmo se aparecem como simbolismo, imaginário, recriando memórias de tempos em que homens e
animais conviviam em outros patamares e que nos comíamos, sem hesitação. Por mais que a higienização tire
o gosto do sangue e da vida, o canibal vive, pulsando, minúsculo e incomensurável.
123
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2004
Notas
1
C. Lévi-Strauss. O pensamento selvagem. Campinas, Papirus, 1989, p. 121.
2
Idem, p. 122.
3
Ibidem.
4
A antropologia debruçou-se sobre esse simbolismo do sangue produzindo estudos hoje clássicos como o de G. Balandier. Antropo-Lógicas. São Paulo, Cultrix /
Edusp, 1976, especialmente seu primeiro capítulo “Homens e mulheres ou a
metade perigosa”. Da produção brasileira, destaca-se o livro de J. C. Rodrigues.Tabu
do corpo. Rio de Janeiro, Achiamé, 1975.
5
C. Lévi-Strauss. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis, Vozes, 1976.
C. Lévi-Strauss. Tristes Trópicos. São Paulo, Companhia das Letras, 1996, pp.
366-367.
6
7
P. Clastres. Crônica dos índios Guayaki: o que sabem os Aché, caçadores nômades do
Paraguai. Rio de Janeiro, Ed. 34, 1995.
E. Viveiros de Castros. “O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma
selvagem” in A inconstância da alma selvagem – e outros ensaios de antropologia. São
Paulo, Cosac & Naify, 2002, pp. 188-189.
8
C. Lévi-Strauss. “Canibalismo e disfarce ritual” in Minhas palavras. São Paulo,
Brasiliense, 1986, p. 140.
9
M. Montaigne. “Dos canibais” in Ensaios, col. Os Pensadores. São Paulo, Nova
Cultural, p. 101.
10
11
E. Viveiros de Castro, op. cit., p. 206.
Para evitar dúvidas, todos os relatos foram acompanhados de farta ilustração.
Os filmes Como era gostoso meu francês de Nelson Pereira dos Santos (1971) e Hans
Staden de Luis Alberto Pereira (1999), podem ser entendidos como a contrapartida
contemporânea dessa iconografia.
12
13
H. Staden. Duas viagens ao Brasil – arrojadas aventuras no século XVI entre os
antropófagos do Novo Mundo. São Paulo, Sociedade Hans Staden, 1942, p. 182.
14
P. Clastres, op. cit., pp. 234-235.
H. Staden, op. cit., p. 132. Viveiros de Castro, em seu ensaio, apresenta diversos
relatos sobre as virtudes da carne humana registrados, entre outros, por Anchieta,
Azpicuelta, Blázquez, o próprio Staden, mas também encontra manifestações de
repugnância.
15
16
P. Clastres, op. cit., pp. 229-230.
17
J. J. Saer. O Enteado. São Paulo, Iluminuras, 2002.
124
verve
Canibal
M. Foulcault. Os Anormais. São Paulo, Martins Fontes, 2001, p. 122. Esse tema
do binômio antropofagia-incesto foi curiosamente retomado por Lévi-Strauss e
Foucault ao mesmo tempo. Foi o assunto da aula no Collège de France de Foucault
em 29 de janeiro de 1975 (publicada em Os Anormais) e do curso de Lévi-Strauss
no mesmo Collège, no ano letivo de 1974-75, intitulado “Canibalismo e disfarce
ritual” (publicado em Minhas palavras). O livro de Balandier, Antropo-Lógicas, que
trata em seu primeiro capítulo das mulheres, foi originalmente publicado em
1974.
18
19
Idem.
N. Eberstadt. “Canibalismo do grande salto para trás”, Folha de S. Paulo, 29/06/
1997.
20
21
“Guerra no Congo teve canibalismo, diz ONU”, Folha de S. Paulo, 16/01/2003.
“Selvageria marca motim em Ribeirão Preto”, O Estado de S. Paulo, 30/03/
2001.
22
H. Hilst. “Presidente, abre o olho: tão comendo gente!” in Cacos e Carícias:
crônicas reunidas (1992-1995). São Paulo, Nankin, 1998.
23
24
D. Mainardi. Polígono das Secas. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
Os Solitários, com Marieta Severo, Marco Nannini e outros, direção de Felipe
Hirsch, é composto pelos textos Pterodátilos e Homens Gordos de Saia do norteamericano Nicky Silver, e foi apresentado no teatro Alfa e depois no Teatro
Sérgio Cardoso, em São Paulo, em 2002.
25
M. Taussig. Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem – um estudo sobre o terror e
a cura. São Paulo, Paz e Terra, 1993.
26
P. Santilli. “Trabalho escravo e brancos canibais” in B. Albert & R.Ramos
(orgs.) Pacificando o branco – cosmologias do contato no Norte-Amazônico. São Paulo, Ed.
UNESP / Imprensa Oficial do Estado, 2002, p.498.
27
28
Idem, p. 498-499.
Viveiros de Castro fornece informações na mesma direção: “As cartas jesuíticas
abundam em queixas sobre os maus cristãos que estariam going native, casando
poligamicamente com índias, matando inimigos em terreiro, tomando nomes
cerimonialmente, e mesmo comendo gente” (op. cit., p. 207, nota 20).
29
30
R. Fonseca. “A natureza em oposição à graça” in Secreções, excreções e desatinos.
São Paulo, Companhia das Letras, 2001, pp. 37-48.
31
R. Figueiredo. “Alegrias da carne”, Folha de S. Paulo, 25/08/2002.
P. J. Gutierrez. “Os Canibais” in Trilogía suja de Havana. São Paulo, Companhia
das Letras, 2001, pp. 325-332.
32
125
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2004
RESUMO
Canibalismo e incesto formam um par, dois grandes incômodos
que se confundem no verbo comer: alimento e sexo, prazeres da
carne. O canibalismo, praticado ritualmente por muitas sociedades indígenas, transforma-se em prática criminosa quando é expulso para o domínio da natureza, da animalidade e da anormalidade, produzindo a divisão selvagem-civilizado. O incesto, sempre proibido, é a marca da cultura sobre a natureza. Ambos atraem
nossa atenção, alimentando imaginários baseados em apetites ancestrais. O canibalismo (o principal tema abordado aqui) reaparece
em noticiários policiais-psiquiátricos e de crimes de guerra como
terror, assim como fascina em expressões de literatura, teatro,
cinema e das artes, talvez por conseguir lembrar que — apesar
de tudo — jamais deixará de correr sangue em nossas veias.
Palavras-chave: canibalismo, incesto, arte
ABSTRACT
Canibalism and incest compose a duo, two great annoyances that
become indistinct in the verb “to eat”: food and sex, pleasures of
the flesh. Canibalism, undertaken ritualistically by several
indigenous societies, is transformed into criminal action when it
is expelled to natures’s domain, of animality and anormality,
creating the division between savage and civilized. The incest,
always forbidden, is the trace of culture over nature. They both
catch our attention, feeding imaginaries based on ancestral apettites.
Canibalism (the main subject addressed here) reappears in policepsychiatric and war crimes news as terror. It also facinates us in
expressions of literature, theatre, cinema and arts, perhaps by
remembering that, despite everything else, the blood will never
cease to run within our veins.
Keywords: canibalism, incest, art.
126
verve
Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis
drogas e liberação: enunciadores
insuportáveis
thiago rodrigues*
Persegui demais o mal
Busquei demais ter um corpo limpo
Antonin Artaud
Êxtase & medo
Fala-se em legalização, descriminalização, flexibilização das leis antidrogas. Os protestos contra a proibição das substâncias psicoativas se fazem por meio da
apresentação de visões alternativas, novos receituários, projetos outros para enfrentar o que não foi possível
pelo banimento e pelo expurgo. O presente regime internacional sobre psicoativos é o da política de guerra às
drogas, na qual a produção, circulação, venda e consumo de um significativo rol de compostos que agem sobre
o sistema nervoso central estão sob forte controle legal.
* Cientista político, poeta, pesquisador no Nu-Sol. Publicou Política e drogas nas
Américas (Educ/FAPESP, 2004); Narcotráfico, uma guerra na guerra (Editora
Desatino, 2003).
verve, 6: 129-156, 2004
129
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2004
As regras desse controle estão cristalizadas na Convenção Única sobre Drogas Narcóticas da ONU, celebrada
em 1961, e que é o documento-síntese de todos os tratados antipsicoativos acordados desde a primeira década
do século XX. A pretensão dos Estados que se reuniram
em Nova Iorque para discutir a Convenção Única era o
de construir pautas rígidas que classificassem todas as
drogas psicoativas segundo um critério elementar: potencial para uso médico. O tratado estabeleceu, assim,
listas que instituíam a legalidade ou não de um composto pelo seu pretenso “uso médico”. Os alucinógenos,
como o LSD, a mescalina e a maconha, foram completamente vedados. Como também o fôra a heroína. Para a
morfina e cocaína, certa liberdade para aplicações médicas. Barbitúricos e anfetaminas, sintetizadas por grandes indústrias farmacêuticas transnacionais, foram
brindados com mais tolerância por serem tidos como
importantes para o tratamento de certos males.
O argumento do “uso médico”, enfim, aplicado como
determinante na proibição ou legalidade de psicoativos,
gerara acirradas polêmicas ao longo dos anos de preparo para o encontro, pois não havia consenso entre os
especialistas da Organização Mundial da Saúde sobre
quais substâncias deveriam ser consideradas benéficas ou maléficas à saúde1. Talvez os técnicos da ONU
tenham sido assolados pelo princípio médico da Antigüidade Clássica que atribuía a uma droga propriedades curativas ou venenosas dependendo da quantidade
aplicada2. Como justificar a proibição completa do LSD,
droga de baixa toxicidade, e amparar a legalidade do álcool? Havia, contudo, um a priori. Algumas substâncias
deviam ser banidas e a justificativa científica para tanto necessitava ser construída. Os argumentos médicos,
sempre solicitados como produtores de provas para o direito penal, foram convocados uma vez mais para legiti-
130
verve
Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis
mar uma decisão; um veredicto com intencionalidades
políticas.
Não se desenhava a proibição às drogas naquele 1961.
O proibicionismo vinha sendo erguido em códigos nacionais e em tratados internacionais desde a passagem
do século XIX para o XX. A costura das normas antidrogas
não tem um princípio demarcável, único. Ela tem origens pequenas, descentralizadas no espaço, distribuídas nos anos. A proibição tem começos ínfimos. As leis
restritivas não foram meras obras de burocratas, mas
antes, responderam a demandas sociais precisas. Clamores por repressão que foram sendo alçados ao patamar de políticas de governo, tomando a forma de leis
que instituíam, por sua vez, meios para sua aplicação.
Os Estados Unidos foram o país no qual essas procedências da ilegalidade podem ser mais claramente identificadas por intermédio de um rastreamento interessado nos brados proibicionistas e na história da sua amplificação aos mecanismos de governo.
Quando a Harrison Narcotic Act, primeira lei proibicionista estadunidense, foi editada em 1914, o percurso que conduzira à norma era então um longo trajeto. Para investigá-lo seria preciso retornar, ao menos,
às pressões políticas exercidas pelas ligas de temperança, organizações não-governamentais avant la lettre que
cresceram pelas redes de igrejas e associações protestantes. Grupos religiosos, como a Antisaloon League ou
a Sociedade para a Supressão do Vício, foram constituídos na segunda metade do século XIX e levaram adiante a bandeira da abstinência, tão cara aos puritanos. O
alvo primordial das ligas era o extermínio dos hábitos
considerados nocivos para o corpo e para a alma. A
Antisaloon League, em especial, esforçava-se para que o
governo do país ordenasse o fechamento dos bares, “antros” que conjugavam jogo, prostituição e álcool. Com o
131
6
2004
passar dos anos, as ligas passaram a contar com representação política, com deputados, senadores e titulares
de cargos executivos comprometidos com essa base eleitoral. No mercado de votos da democracia estadunidense,
as organizações puritanas foram bem sucedidas porque
representavam os valores e anseios de grande parte dos
eleitores. Ao ser lançada na esfera política de discussões, a questão das drogas evidenciou um dos mais poderosos embates entre linhas de pensamento e ética
nos EUA. Formado sobre o solo movediço das tradições
puritana e liberal, o país viu com o debate sobre a proibição ou não dos psicoativos, mais um episódio do choque entre tais perspectivas. De um lado, o puritanismo
abstêmio, de outro, o princípio liberal da autonomia para
as decisões de cunho privado.
No entanto, o primado liberal da liberdade confinada
ao espaço privado não foi resistente às investidas
proibicionistas. Ao contrário, a concepção liberal de que
um ato privado que resulte em prejuízo a outrem deve
ser coibido foi uma passagem larga para que as petições
antidrogas ganhassem relevo. Isso porque, para os
proibicionistas, o uso de drogas era, a um só tempo, fonte de degradação pessoal e social. Um indivíduo intoxicado era ameaça considerável a toda ordem social, pela
propagação “do crime”, dos “atos desvairados”, dos “maus
exemplos”, da “degenerescência dos valores” resultante
de seu hábito. A condenação moral à prática de se embriagar tomava contornos mais amplos, cristalizandose em leis. E o código legal estadunidense universalizava
mais um conjunto de valores morais parcamente
laicizados na forma da Lei.
A construção de normas restritivas ao ciclo produção/venda/uso de substâncias psicoativas se deu por
intermédio dos argumentos médico-sanitários que identificavam no consumo de drogas um grave perigo
132
verve
Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis
epidemiológico3. Os esforços deveriam ser feitos para
impedir que compostos até então pouco regulamentados, como a cocaína e a heroína, se disseminassem pela
sociedade. O único modo legítimo para intoxicar-se era
aquele com a chancela médica. A relação entre médicos e seus pacientes passou a ser mediada pelo Estado,
num movimento que limitou de um lado a liberdade do
profissional em receitar psicoativos, mas que, de outro,
consolidou o monopólio da classe médica sobre as práticas curativas.
No entanto, a roupagem científica camuflava mal o
impulso puritano a fomentar as iniciativas proibicionistas. A mais antiga exigência dos grupos abstêmios
— a proibição do álcool — venceu as últimas resistências na Suprema Corte, em 1918, sendo aprovada, em
1919, por meio do Volstead Act. A Lei Seca contemplou a
força social proibicionista ao banir todas as etapas da
comercialização de bebidas alcoólicas em território
estadunidense. Durante sua vigência, a Lei Seca não
erradicou o hábito de beber álcool e, em conseqüência,
fomentou um poderoso negócio ilegal que alimentou
máfias e motivou o agigantamento burocrático-repressivo do Estado norte-americano. Ao ser abolida, em 1933,
a Lei Seca deixa como rastro organizações ilegais bem
sedimentadas e escritórios antidrogas, como o Federal
Bureau of Narcotics (FBN), dotados de grandes orçamentos. O relaxamento com relação ao álcool não significou
uma postura similar com as demais drogas psicoativas;
maconha, cocaína e os opiáceos receberam leis específicas ainda mais rígidas que seguiam os passos das iniciativas internacionais dos EUA. Fora de suas fronteiras, a diplomacia estadunidense promovia encontros
destinados à elaboração de normas que envolvessem
mais Estados no diapasão proibicionista. Num jogo complementar entre as iniciativas domésticas e externas,
133
6
2004
o campo das demandas sociais puritanas foi sendo absorvido pelas estratégias governamentais sem perder,
contudo, seu lastro.
A legislação antidrogas nos Estados Unidos foi
instigada por uma cruzada moral que acabou por ser
encampada pelo governo devido às potencialidades políticas que o proibicionismo apresentava. O espaço de clandestinidade produzido pelas leis de psicoativos tornouse um profícuo ambiente para a captura de grupos sociais indesejados ou tidos pela ordem como “perigosos”.
Nos EUA, o uso de drogas esteve vinculado a comunidades específicas por meio de estereótipos alimentados
pela parcela branca e protestante do país4. Os mexicanos eram considerados consumidores ávidos de maconha; os negros eram vistos como adeptos da cocaína; os
chineses, habituados ao ópio e os irlandeses, devotos do
álcool. Em todos os casos, e a despeito dos efeitos distintos provocados por estes psicoativos, os usuários eram
percebidos como violentos e selvagens. A lassidão sexual e a agressividade criminosa atribuídas às drogas
psicoativas eram imediatamente relacionadas ao “comportamento social” dos estratos mais pobres e minoritários dos Estados Unidos5. Com o lançamento do mercado
destes compostos na ilegalidade, os braços desta economia passaram a ser largamente convocados entre as
classes menos privilegiadas. As leis antidrogas, assim,
inauguraram o tráfico de drogas e, por extensão, uma
nova categoria de criminoso: o traficante.
Um inédito campo de combate na perpétua guerra
que o Estado sustenta contra os indivíduos e grupos
dissonantes e, portanto, perigosos à ordem ampliou-se
com a proibição às drogas. O Estado Moderno deve manter estratégias amplas de controle social que, como
mostrou Michel Foucault6, preocupam-se a um só tempo em atentar para o indivíduo e para a população, com-
134
verve
Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis
preendendo a dinâmica de ambos dentro de uma
governamentalidade. A estatística, ciência do Estado por
excelência, passa a contabilizar viventes e mortos para
uma prática de governo que não se limita a reprimir
seus súditos, mas que investe no controle pelo oferecimento de vida. Na Europa Ocidental, a passagem do século XVIII para o XIX será marcada pela confecção de
aparatos de Estado interessados na ordenação e no
esquadrinhamento das cidades e espaços públicos em
nome da salubridade e do bem-estar geral7. Com isso, o
controle social não sobrevive apenas em atitudes negativas (perseguição, aprisionamento), mas também, em
ações positivas (vacinações, em massa, campanhas de
alfabetização, leis assistencialistas). À vigilância policial agregou-se a vigilância sanitária reguladora do corpo
e dos espaços. Essa tática de governo, de olhar particular e totalizante, foi chamada por Foucault de biopolítica.
Segundo o filósofo, a biopolítica foi “a maneira pela qual
se tentou, desde o século XVIII, racionalizar os problemas postos à prática governamental, pelos fenômenos
próprios a um conjunto de seres vivos constituídos em
população: saúde, higiene, natalidade, raças”8.
O Estado e a teoria da soberania que o sustenta não
implodem com a biopolítica, mas são instrumentalizadas
em seu interior novas técnicas pautadas pela lógica de
um poder disciplinar. Não cabia mais punir o agressor à
ordem com um suplício público, mas produzir indivíduos
docilizados politicamente e ativos economicamente.
Trabalhar sem contestar. Para Foucault, o discurso da
disciplina não será o “da regra jurídica derivada da soberania, mas o da regra ‘natural’, quer dizer, da ‘norma’”9. A malha tecida pelas ciências humanas conferirá aos homens e situações, novas categorias: normais
ou anormais. A aferição da normalidade põe em marcha
saberes clínicos operando em consonância com as de-
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mais técnicas de gestão dos corpos. A sociedade é
medicalizada e o Estado é colonizado por dispositivos de
governamentalidade.
Na passagem do século XIX para o XX, o controle de
drogas psicoativas — tendo como epicentro os Estados
Unidos — passa a fazer parte do espectro mais amplo
das técnicas de controle e gestão dos indivíduos e da
população. A Proibição emerge como um recurso potente acionado no quadro maior das estratégias de
governamentalidade. De um lado, milhares de usuários
são localizados como anormais, situação que os torna
excrescências morais e antígenos à segurança sanitária geral. De outro, os indivíduos responsáveis pelo
gerenciamento da economia ilegal das drogas, se transformam em agentes do vício e da degradação pessoal e
social. Consumidores e traficantes formam, desse modo,
um par indissolúvel, ambos visados pelos aparatos de
segurança e pela ojeriza social.
A Proibição interessou ao Estado norte-americano,
pois os grupos que ocuparam as posições do lado da oferta de psicoativos eram justamente segmentos considerados perigosos: negros e imigrantes de diversas procedências. A perseguição a tais populações sob a chancela da guerra às drogas configurou um recurso adicional
de controle social que não passou desapercebido pelo
governo. Pelo prisma dos consumidores, a vedação do
uso contentou a moralidade puritana que pôde ver, assim, a incontinência pecaminosa tornada crime. O Estado assumiu, nesse momento, o papel de agente moralizador a purificar a sociedade dos vícios e da degradação, reprimindo negociantes e usuários de substâncias
proibidas. Pelo lado governamental, a possibilidade de
investir em hábitos privados significou a expansão do
raio de vigilância sobre os indivíduos e suas existências.
136
verve
Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis
A construção do proibicionismo não foi, portanto, uma
imposição estatal, tampouco se restringiu aos Estados
Unidos. A regulamentação ampliada dos psicoativos internacionalizou-se na esteira dos encontros diplomáticos convocados pelos Estados Unidos10. A participação
em tais encontros não indicou a mera submissão dos
países participantes às determinações estadunidenses.
Em diversos deles, um ritmo próprio de repressão ao
consumo de drogas psicoativas caminhava em paralelo
à cristalização da Proibição nos Estados Unidos.
No Brasil, até que a primeira lei proibicionista fosse
promulgada em 1921, muito havia ocorrido nas relações
entre usuários de drogas e partidários de uma sociedade “livre de vícios”. Em centros cosmopolitas, como a São
Paulo dos anos 1910, o consumo de drogas importadas,
como a cocaína e a heroína, foi tolerado pelo Estado e
pelas sentinelas morais enquanto se restringiram aos
jovens filhos da oligarquia cafeeira. Quando o hábito disseminou-se entre prostitutas, pequenos fora-da-lei,
cafetões e cafetinas, os brados antidrogas começaram a
ser ouvidos na imprensa paulistana e nos círculos conservadores, como a Loja Cruzeiro do Sul, espécie de
maçonaria nacionalista instalada na capital do estado11.
Junto à recriminação aos “vícios elegantes” havia a condenação do uso de maconha associado a negros, caboclos e seus cultos sincréticos. Assim, o momento no qual
inúmeras substâncias passaram à ilegalidade no país
significou uma versão brasileira do impulso moralista
sendo colonizado e colonizando o Estado na forma de estratégias de controle social. A partir da proibição às drogas, estratos que já recebiam atenção especial das forças policiais passaram a ser alvos potencializados das
técnicas de governo e vigilância.
A questão do controle de drogas nas décadas iniciais
do século XX emerge como um grande tema de saúde e
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segurança públicas. O uso desmedido de psicoativos passou a ser coibido para evitar epidemias ou degenerescências físicas e mentais nos usuários e, também, para
reprimir os negociantes de tais “venenos” pelo crime de
os disponibilizar à sociedade. O consumidor foi
encampado pelos códigos penais como uma figura mista entre o doente e o criminoso, ao passo que o traficante recebia a clara definição de delinqüente. As âncoras
dessa ampla penalização repousam, no entanto, nas práticas moralistas que, tanto nos EUA como no Brasil, deram impulso para a Proibição e foram, com a adoção de
leis restritivas, incorporadas pelos Estados em seus esforços para governar os vivos. A sociedade sã insurgiuse contra a “degradação moral e cívica” por meio de determinações proibicionistas prenhes de positividades
enquanto garras para capturar indesejáveis, dissonantes
e “perigosos”.
Os gestos toleráveis
A partir dos anos 1980, a política de guerra frontal à
economia ilegal das drogas, disseminada pelo globo em
moldes estadunidenses, passou a enfrentar resistências localizadas. Alguns Estados, como a Holanda e a Suíça, flexibilizaram suas leis antidrogas, identificando a
implausibilidade de se erradicar o uso, e por extensão, o
consumo de psicoativos12. A motivação para tais reformas legais foi proveniente de grupos de usuários organizados (como o Junkiebond holandês) e de especialistas (cientistas sociais, psicólogos, médicos) que passaram a pregar medidas alternativas à penalização dos
usuários de substâncias ilícitas. Mesmo nos Estados
Unidos, comissões e conselhos de estudiosos iniciaram
um processo de reavaliação das diretrizes governamentais sobre combate ao narcotráfico e ao consumo de dro-
138
verve
Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis
gas proibidas. Em 1996, o Council on Foreign Relations
(Conselho de Relações Exteriores), centro de pesquisa
sediado em Nova Iorque, organiza um encontro com a
participação de profissionais e acadêmicos das mais diversas procedências para criticar os rumos tomados
pelos governos estadunidenses desde a declaração de
“guerra às drogas” proferida pelo governo de Richard
Nixon, em 1972. A síntese dos ítens discutidos veio a
público no ano seguinte13, trazendo como principal mensagem a necessidade de uma reforma sutil no proibicionismo. O mote que incitou a discussão foi a constatação
de que a “guerra às drogas”, como política deliberada de
ataque à oferta e à interceptação dos carregamentos de
psicoativos, fracassara em seu intento: o tráfico continuava a crescer, assim como o número de usuários no
Estados Unidos. Para os especialistas reunidos pelo
Council, a tônica das iniciativas governamentais deveria ser direcionada para a demanda por drogas
psicoativas, por meio de campanhas de orientação a jovens e apoio ao tratamento daqueles que desejassem
se “desintoxicar”. Em outras palavras, os milhões de
dólares anuais dispensados pelo governo estadunidense
para combater organizações narcotraficantes no país e
fora dele, seriam mais bem empregados se destinados
ao cuidado com os usuários e com os possíveis futuros
consumidores.
O proibicionismo não é, de forma alguma, contestado
em seus princípios. As drogas ilícitas deveriam assim
permanecer e o consumo desses compostos teria de ser
desencorajado ainda com mais determinação. A crítica
era destinada à ênfase militarista da “guerra às drogas”
e não à Proibição. Na lógica dos participantes do foro, o
único caminho consistente para eliminar o uso de
psicoativos era impedir a constituição de novos consumidores. A permanência do narcotráfico, segundo essa
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avaliação, decorria da desatenção governamental ao
usuário, já que lhes parecia evidente que sem procura
não há oferta. As ações preventivas, no entanto, não
eram uma completa novidade nos Estados Unidos; ao
menos, desde 1983, programas educativos em escolas
públicas foram elaborados para expor os perigos das drogas. Naquele ano, o departamento de política de Los
Angeles pôs em prática um projeto de orientação sobre
drogas para colégios chamado Drug Abuse Resistence
Education – D.A.R.E. (Educação para a Resistência ao
Abuso de Drogas)14. Disseminado posteriormente pelo
país, o D.A.R.E. levou às classes de 5a e 6a séries policiais uniformizados que se propuseram a explicar aos alunos os efeitos maléficos dos psicoativos e as táticas para
evitar a armadilha das drogas15. A experiência dos educadores fardados foi exportada para outros países, como
o Brasil, onde policiais militares vêm, desde o final da
década de 1990, participando de projetos similares16. No
discreto reformismo proibicionista, as críticas se
direcionam ao modo de manutenção do combate às drogas, mas não ao combate em si. As substâncias permanecem banidas pelas avaliações de cunho médico-psicosocial que ocultam mal os veios moralistas nelas
identificáveis.
Formas mais contestadoras ao proibicionismo podem
ser encontradas no heterogêneo conjunto de iniciativas conhecido como redução de danos. Aplicadas em alguns países, principalmente europeus, desde os anos
1980, as políticas de redução de danos partem de um
princípio oposto ao da proibição no que concerne ao uso
de drogas psicoativas. Para seus partidários, a meta
proibicionista de banir o uso de drogas das sociedades é
um objetivo inalcançável. A demanda sempre existirá,
pois “não há na história uma sociedade que não tenha
usado substâncias psicoativas”17. Frente à impossível
140
verve
Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis
redução do uso, a realizável redução de prejuízos ao usuário.
O primeiro alvo das políticas de minimização dos danos foi os usuários de drogas injetáveis. A expansão dos
casos de AIDS, em meados da década de 1980, motivou
a defesa por parte de médicos e ativistas holandeses e
ingleses, a adoção de programas estatais de troca de
agulhas. Os usuários poderiam encontrar ajuda em estabelecimentos ou unidades móveis oficiais que forneceriam novas agulhas e seringas e poderiam prestar
apoio psicológico, testes de pureza da heroína adquirida
ilegalmente, exames para detectar o HIV, além de eventuais indicações para tratamentos de desintoxicação.
Montados nas malhas assistenciais do welfare state, as
iniciativas de troca de agulhas justificavam-se a partir
do pragmatismo redutor de danos: frente à impossibilidade em impedir que usuários injetem heroína, que ao
menos passem a injetar com maior segurança.
As políticas de redução de danos foram concebidas
como uma estratégia para atrair o usuário de drogas
injetáveis por meio de uma abordagem que não o considerasse um criminoso, mas alguém que inspirava cuidados. Os consumidores usuais destas substâncias passam a ser tidos como indivíduos “com hábitos de mal
adaptação que precisam de tratamento”18. Desse modo,
é possível notar a migração que houve de uma visão
estritamente penalizadora para outra que investe na
terapeutização de comportamentos. Pequeno deslocamento, as propostas redutoras de danos não se apresentaram como ruptura ou afronta direta ao regime legal
da Proibição.
Encarada como uma alternativa para a política de
drogas, as indicações para minimizar prejuízos do uso
de psicoativos não são, necessariamente, posturas fa-
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voráveis ao consumo destes compostos. Ao contrário,
autores como Marlatt19 e Lurie20 fazem questão de frisar que as políticas de redução de danos não formam
um corpo de idéias favoráveis ao uso de drogas, tampouco
à flexibilização demasiada das leis antipsicoativos. Segundo esses especialistas, a Proibição é nociva porque
desconsidera o usuário em sua dimensão pessoal, considerando-o um mero infrator. A atenção que uma perspectiva redutora de danos assume para com o usuário
teria a grande vantagem de romper com a estigmatização
do consumidor que o lança em circuitos marginais e
em padrões “pouco saudáveis” de intoxicação. Nesse
sentido, as leis antidrogas devem ser transformadas,
principalmente, no que diz respeito à sua aplicação sobre os usuários. Assim, as políticas de redução de danos
não têm dificuldades em defender a descriminalização
das substâncias psicoativas ilícitas.
A reforma legal que implemente a descriminalização
de psicoativos proibidos abranda o modo como os indivíduos flagrados com drogas ilícitas são tratados juridicamente. A legislação estabelece quotas consideradas para
“uso pessoal” que identificam o usuário; qualquer indivíduo que leve consigo quantidade acima do permitido
pela lei, são considerados traficantes. Flagrado por um
policial, o indivíduo classificado como “usuário” pode ser
obrigado a prestar serviços comunitários, pagar multas
administrativas, comparecer a grupos de educação sobre drogas ou, se avaliado como “adicto” pela Justiça,
ser internado para tratamento compulsório de desintoxicação. Países como a Inglaterra e a Holanda têm leis
abrandadas no sentido da descriminalização para a
maconha, mas mantém o proibicionismo para outras
substâncias como a heroína, a cocaína e as drogas sintéticas como o LSD e o ecstasy. Em Portugal vigora, desde 2002, uma nova lei que descriminalizou o uso de to-
142
verve
Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis
das as drogas ilícitas instituindo sanções alternativas
ao encarceramento.
A tendência das leis proibicionistas reformadas vem
sendo o relaxamento das leis que penalizam o usuário
acompanhado do endurecimento nas leis contra o
narcotráfico. A manutenção da produção e da comercialização de psicoativos como crime propicia cenários nos
quais o mercado negro permanece intocado e os consumidores não deixam de ser assediados, ainda que de
modo distinto21. Para os negociadores de drogas ilegais,
continuam cabendo as mesmas medidas de repressão
policial que movimentam as engrenagens governamentais e a busca de alvos entre os segmentos “perigosos”
da população; para os usuários, não há mais o encaminhamento para o sistema prisional, mas o controle se
dá em novos termos, por meio de uma vigilância médico-jurídica que o lança em outros campos de regulamentação.
O deslocamento realizado pela descriminalização de
psicoativos é perfeitamente assimilável dentro de um
ambiente legal proibicionista; pois institui padrões modificados e novas gradações de controle sobre todos os
envolvidos com substâncias ilícitas. Os defensores das
políticas de redução de danos podem se satisfazer com a
descriminalização porque não há uma defesa explícita
do uso de drogas em tal postura. O uso de drogas é notado como uma fatalidade, não como desejável ou, simplesmente, como um dado social. Situação alguma seria mais ideal que a total abstinência: dano algum ocorreria, medida alguma para minimizar sofrimentos seria
necessária. No entanto, a abstinência é uma utopia; a
utopia das políticas de redução de danos. Inalcançável,
a redução do uso deve ser substituída como objetivo pela
melhoria nas condições de consumo. O proibicionismo
visa um impossível “mundo livre das drogas”, portanto,
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há que se encarar a inevitabilidade do uso de drogas e
trabalhar para minorar prejuízos ao indivíduo e à sociedade. Desse modo, apenas um proibicionista ortodoxo
pode encontrar alarme nas propostas de redução de danos.
Análises mais críticas aos efeitos da Proibição chegam a pleitear a urgência da legalização das drogas, reforma legal mais profunda que colocaria os psicoativos,
hoje banidos, em uma situação similar aos dos legais
álcool e tabaco. Em linhas gerais, os argumentos prólegalização giram em torno da avaliação de que “a proibição e a aplicação da proibição impõem custos sociais
que superam o valor das metas que ambiciona a proibição [os custo sociais do uso de drogas]”, além de “criar
um mercado negro ameaçador (...) sem diminuir consideravelmente a quantidade de drogas consumidas”22. A
percepção preliminar é muito próxima daquela que fazem os proibicionistas do Council on Foreign Relations e
os partidários da redução de danos, pois se fia na noção
de que a política de tolerância zero contra o uso e o mercado de drogas ilícitas não produziu o resultado esperado da queda do consumo e fim do narcotráfico.
Defensores mais ousados das políticas de redução de
danos, como Marks23, chegam a pleitear a legalização
das drogas como meio para a consecução das metas de
diminuição de prejuízos sociais e individuais. Essa legalização deveria ser, no entanto, conduzida com firmeza pelo Estado, por intermédio de mecanismos de controle eficazes de fiscalização da produção e da comercialização de psicoativos. A modalidade de legalização
estatizante, como a defendida pelo autor, prevê um mercado lícito para as substâncias psicoativas hoje ilegais
sob total controle do Estado: da produção à venda ao consumidor, o processo seria comandado por agências estatais criadas para esse fim. A garantia do acesso a dro-
144
verve
Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis
gas de boa qualidade aliada aos preços acessíveis e à
ausência de punição ao hábito de se intoxicar, levaria
os usuários à esfera legal do consumo de drogas, matando o narcotráfico por inanição. A desarticulação do
mercado clandestino traria um considerável ganho em
termos de segurança social, pois vedaria a principal fonte de lucros de incontáveis organizações ilegais, ao
mesmo tempo em que poria fim à violência dos combates entre polícia e narcotraficantes. Além disso, a legalização estatizante faria de todo ponto de venda oficial
de psicoativos um centro de educação visando
“conscientizar” sobre o uso destes compostos.
Em um caminho mais radical, há aqueles que, como
os economistas neoliberais da Escola de Chicago, pregam a legalização sem controle estrito do Estado. Dessa
perspectiva, as substâncias psicoativas são vistas como
uma mercadoria amplamente desejada e que deve ser
regulada pelas forças de mercado, sem intromissão estatal. Lastreia essa premissa o princípio liberal que reconhece o indivíduo como unidade racional que tem o
direito de eleger as práticas que lhes digam respeito,
sem prestar contas disso a outrem ou ao Estado. Qualquer hábito privado, ainda que nocivo ao indivíduo, é
válido desde que assim permaneça. Nesse sentido, toda
gestão externa à vida privada é intolerável. Cabe ao Estado intervir quando o exercício da liberdade de um sujeito afrontar o espaço de liberdade de outro sujeito. Em
uma palavra, os danos que alguém causa a si estão no
soberano plano das escolhas individuais, campo vedado
à normatização exterior. Os prejuízos àqueles que vivem com o usuário de psicoativos podem existir, mas
por si só não justificam uma proibição ampla e universal que avilte a supremacia do indivíduo em eleger os
caminhos para si. A legalização liberal responde às preocupações dos entusiastas da redução de danos com uma
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lógica menos humanitária e aos defensores da legalização estatizante, com argumentos anti-autoritários.
Em todos os casos mencionados — proibicionismo
com enfoque na demanda, políticas de redução de danos, descriminalização, legalização estatizante ou liberal — percebe-se um ímpeto que contesta em graus
variados o proibicionismo. No entanto, nenhuma das
propostas foge à mesma lógica em que repousa a Proibição; todos estão no campo da normatização. As indicações para reforma da repressão total ao narcotráfico
e ao consumo de drogas psicoativas transitam ainda
no campo da legalidade, sugerindo alterações também
universais. O inconteste avanço com relação à Proibição esbarra na vontade de produzir outras estruturas e
padrões que não se pode perceber como necessariamente favoráveis ao consumo de drogas. Nas medidas de
redução de danos, o fatalismo referente ao uso de drogas norteia as ações; nas reformas de descriminalização, o usuário é enredado por redes mais sutis que
as grades do sistema prisional, mas não deixa de sê-lo;
na defesa da legalização pela via do monopólio estatal,
há a possibilidade de um controle potencializado dos
usuários e na legalização liberal, uma redução do uso
de psicoativos em termos utilitários e individualistas.
O direito, terreno onde se cristalizam as demandas
morais, segue sendo o agenciador a mediar a relação
entre os indivíduos e as drogas psicoativas; razão pela
qual se pode pressupor o porquê da grande difusão destas visões alternativas como legítimos vetores críticos
ao proibicionismo.
Éticas & incômodos
O psicanalista estadunidense Thomas Szasz, ao questionar a proibição das drogas psicoativas, enfatizou a
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verve
Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis
necessidade de que se fosse além da mera reformulação
em termos legais do controle de drogas. Para Szasz há
pouca diferença entre os proibicionistas e os defensores da legalização, pois estes últimos se arvorariam a
regulamentar o que já é extremamente restrito, como
se algo já “legal pudesse ser legalizado”24. O autor chama a atenção para o fato de que as políticas de legalização criariam uma espécie de “socialismo químico”25, com
o Estado monopolizando todo o circuito de produção e
venda de psicoativos; situação que instauraria outras
modalidades de vigilância sobre os consumidores. Filiado
ao que se poderia chamar de liberalismo radical, Szasz
nutre profunda ojeriza pela substituição de uma legislação negativa por outra positiva: muitas semelhanças
existiriam entre uma situação legal em que o Estado
interfere nas condutas individuais e nos grupos sociais
tidos como ameaçadores com a justificativa de aplicar a
Proibição e um ambiente no qual o consumo fosse permitido sob determinadas circunstâncias ditadas por um
Estado agigantado. A planificação química levaria adiante a apropriação que os Estados ocidentais realizaram
da medicina como recurso fundamental para o
esquadrinhamento social, formando o que Szasz chama
de “Estados Terapêuticos”26. Em termos foucaultianos, o
proibicionismo agrega à marcha da governamentalização
do Estado, técnicas de disciplinarização ampliadas que
reforçam as positividades de um aparato de governo que
se coloca como fornecedor de saúde e bem-estar, ganhando livre passagem nas mais sutis táticas de vigilância e condicionamento dos sujeitos sujeitados27. A
legalização, por seu turno, não levantaria as guardas
deste Estado provedor de vida, mas, em sentido oposto,
tornaria mais sofisticada a normalização dos corpos ao
produzir novos lugares, circuitos e identidades.
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Uma reforma progressista destinada a descriminalizar um leque de substâncias psicoativas sem abdicar
da reprovação médico-jurídica, não produziria mais que
uma outra modalidade de encarceramento: o usuário
identificado como um doente não deixa de ser enquadrado como um anômalo social; não mais o criminoso,
mas o empestado, que deve ser isolado para que não
cause mal a si e à sociedade. Confinado não na prisão,
mas no hospital psiquiátrico, o paciente da sociedade deve
sofrer intervenções saneadoras que o restabeleçam para
sua ótima reinserção entre os corpos saudáveis e produtivos. A lógica, como se nota, é a mesma dos reformadores
das prisões que pregaram, nos séculos XVIII e XIX, a
urgência em transformar as masmorras em humanitárias fábricas de novos cidadãos. Nesse sentido, a construção de novas leis não desmonta, mas, ao contrário,
reforça e legitima padrões outros de controle e confinamento.
As novas modalidades de intervenção podem se dar
por meio de leis abrandadas se for levado em conta, como
afirma Gilles Deleuze, que à sociedade disciplinar descrita por Foucault — aquela em que a produção de subjetividades se dá em mecanismos como a prisão, a escola, a família e o exército — sobrepõe-se uma sociedade de controle que “funciona não mais por confinamento,
mas por controle contínuo e comunicação instantânea”28. Numa sociedade de controle os sujeitos não são
conformados em definitivo; são submetidos e vigiados
por intermédio da formação permanente, num processo
que os transforma em uma cifra a transitar por fluxos
cibernéticos. Não mais o operário da fábrica, mas o gerente da empresa; não mais o estudante graduado, mas
o aluno eterno que necessita reciclar-se; não mais somente um número na cédula de identidade, mas também as senhas sem as quais nada se acessa. Nesse
148
verve
Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis
ambiente do controle perpétuo, o regime das prisões —
forma mais bem acabada da ortopedia disciplinar — pode
ceder espaço para “penas ‘substitutivas’, ao menos para
a pequena delinqüência, e [à] utilização de coleiras eletrônicas que obrigam o condenado a ficar em casa em
certas horas”29. Não é preciso manter o indivíduo sob os
olhos de um outro, na posição de vigia. Os recursos
tecnológicos presentificam o big brother de George Orwell
ou a versão eletrônica do panóptico de Jeremy Bentham
e, desse modo, aquele que deve ser controlado não deixa
de sê-lo por não estar atrás dos muros da prisão.
A partir dessa perspectiva, tem-se que as drogas entendidas pelos especialistas do Estado como leves não
levariam a nada mais grave do que crimes brandos. Os
mais ousados progressistas defendem, até mesmo, a
flexibilização para as drogas ditas pesadas, como a heroína e a cocaína, desde que haja uma supervisão estrita do aparato médico estatal. Assim, o ajuste penal pode
transcorrer sem causar surpresas, uma vez que estão
em movimento novos recursos para rastrear e mesmo
confinar temporariamente (os tratamentos de desintoxicação compulsórios). As críticas ao proibicionismo
impressas nos discursos pela descriminalização e pela
legalização (estatizante ou liberal) são assimiláveis porque transitam num repertório que não é estranho ao
que sustenta a Proibição. Vibrando no mesmo diapasão,
defensores da descriminalização, da redução de danos e
das modalidades de legalização jogam com o mesmo recurso do regime contra o qual se opõe, pois exigem o
soerguimento de um corpo jurídico de novas formas e
cores, mas ainda um código normativo amplo e regulador. As forças sociais progressistas pregam a necessidade imperiosa em regulamentar em outros termos as
relações entre usuários e os psicoativos hoje banidos; o
que significa novas leis que permitam o acesso às dro-
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gas. Tais leis, no entanto, teriam o mesmo perfil das
leis proibicionistas, já que seriam universais e impositivas. Os partidários das leis reformadas poderiam contra-argumentar afirmando que a flexibilização das leis
é menos autoritária que a Proibição, pois deixariam a
cargo do indivíduo a eleição sobre usar ou não substâncias psicoativas. De fato, há poucas atitudes mais
impositivas do que o proibicionismo, entretanto, a economia das penas, ponto de apoio do direito, não se abala, mas antes, reafirma-se como foro legítimo para a deliberação das questões sociais e dos desejos individuais. O que se questiona aqui, portanto, é a validade em
se construir leis universais no lugar de uma já preexistente.
Ao se perguntar como seria possível legalizar algo já
legalizado, Szasz provocava a reflexão exatamente deste ponto. A Proibição foi, em si, um grande movimento
que trouxe para o âmbito das regulamentações legais
temas que antes do início do século XX passavam ao
largo das preocupações jurídicas. Relações não previstas em lei, mas existentes e difundidas socialmente,
foram encampadas pelas normas e, por conseguinte, pelo
Estado. O campo do uso de psicoativos foi, talvez, um dos
últimos a ser colonizado pela medicalização da sociedade, pela intervenção ampliada dos mecanismos de controle governamentais sobre os indivíduos e sobre os grupos sociais. Estratégia prenhe de possibilidades para o
reforço da necessidade do Estado em garantir a ordem
pública, a disciplina das coisas, a pacificação dos descontentamentos e a manutenção da propriedade. Se,
como afirma Foucault, “a classe no poder se serve da
ameaça da criminalidade como álibi para endurecer o
controle da sociedade”30, a Proibição produziu delinqüentes do lado dos consumidores e dos negociadores de
psicoativos, fato que ativa um filão fértil para a repres-
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verve
Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis
são e o policiamento das populações. Diante do impasse
colocado pelas propostas de reforma legal que não abdicam da vigilância — nem a desarticulam —, Szasz defende o caminho da deslegalização: a legalização é até
tolerada pelo estadunidense como uma estratégia, se a
meta for a abolição das leis sobre drogas31. Nem proibir,
tampouco permitir; simplesmente desregulamentar.
O argumento histórico levantado pelos entusiastas
da redução de danos e da legalização, de que não há sociedade humana que não tenha estabelecido relações
com alguma droga psicoativa, ressurge com outro potencial. O uso de psicoativos é e foi parte dos repertórios
culturais de diversos povos, fato que desencoraja a consecução de qualquer proposta que vise a supressão definitiva da ebriedade química entre os homens. Esse fato,
no entanto, não significou o desmembramento das comunidades, a desestruturação da vida social. No entanto, uma mesma mirada histórica que se interesse também pelas relações de poder que perpassam os controles sobre drogas psicoativas, traz à vista incríveis
potencialidades para a gestão de vidas individuais e de
grupos sociais. Não é hermético ou de difícil assimilação notar a Proibição como técnica de governo dos vivos;
entretanto, é preciso rastrear suas procedências e tal
ímpeto leva invariavelmente ao campo da moral.
A defesa da legalização ou de transformações legais
intermediárias é plausível não só porque se propagam
no mesmo espaço e lógica do proibicionismo, mas também porque não afrontam o rechaço moral à intoxicação. Sob as camadas de discursos médicos e jurídicos
jaz a reprovação moral aos psicoativos; sob a articulação entre a necessidade em salvaguardar a salubridade
e a segurança públicas, encontra-se a vontade de proteger a moralidade pública. A batalha contra as drogas
psicoativas é uma luta aparentada àquela contra o sexo,
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na medida em que o alvo, o grande incômodo é o prazer
em vida. As “desintegrações de lares”, as “destruições
de vidas” e tragédias similares soam no diapasão da reprovação ao gozo de si. A satisfação que provém do dispor de si parece intolerável a qualquer campo de
moralidade, já que a moral exige padrões de comportamento universais. A emergência de condutas criadas
na localidade que prescindam de normas globais — e,
portanto, normalizações — é insuportável para as
moralidades, pois rompe com o padrão, com a previsibilidade de comportamentos.
A liberação das drogas significa a deslegalização, a
desnormatização, mas não a inevitabilidade do
desregramento. A desmesura e a continência são ambos comportamentos possíveis no campo das opções particulares. Indivíduos abstinentes, usuários comedidos
e aqueles sem controle existem em tempos de Proibição Universal e não desapareceriam num mundo sem
regulamentação legal. As escolhas sobre si, apesar das
conformações que visam disciplinar o corpo e apaziguar
os instintos, seguem vivas e irrepresáveis. A relação de
alguém com uma substância psicoativa pode ter
incontáveis motivações; pode ser um contato religioso
ou ritual, um signo de identidade grupal ou simples
hedonismo. Os usos não são passíveis de catalogação,
nem são necessariamente libertários ou autoritários.
Entretanto, é possível conceber que as regras a nortear
o consumo destes compostos possam se dar na localidade, sendo formuladas pelos interessados diretos. As regras locais, diferente das leis proibicionistas ou progressistas, são flexíveis, maleáveis, forjadas pelos indivíduos que vivenciam concretamente a situação sobre a qual
pensam e regulamentam. Não há, portanto, a transcendentalidade da norma, a metafísica do direito.
152
verve
Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis
A noção de bem-comum desvanece na medida em
que éticas locais32 estabelecem seus parâmetros, suas
linhas de condução. A ausência de receituário quando
se pensa em liberação ou abolição das leis anti ou pródrogas transtorna tanto como ouvir uma língua da qual
se compreende pouco. É um transtorno de linguagem,
um abalo a noções cristalizadas, um rasgo profundo e
quase ininteligível.
Todavia, a escolha sobre o que fazer de si independe
de rupturas legais. Aliás, esse trabalho de agir sobre
sua própria existência compondo um trajeto que se subleve contra as formatações externas começa com uma
decisão. Decidir sobre si é uma atitude, não uma modificação legal, não um novo cânone moral. Não é, desse
modo, uma utopia, uma projeção para um mundo vindo
após um ato heróico ou redentor. As práticas de si são
dadas no particular de cada existência33, são confeccionadas por poucos e para poucos. Dependem das ações e
das posturas inventadas por cada um, não de uma criação proveniente de cima e destinada a todos. O que fazer com a desmesura, com a incontinência? É o mesmo
que se questionar sobre o que fazer com a morte. Na
contramão, poder-se-ia perguntar: o que fazer com a
vida? O você faz de si?
A eliminação do sofrimento é uma das utopias
humanistas mais fortes e presentes. A dor do outro é
insuportável para a sensibilidade ocidental e, como conseqüência, o incontornável compadecimento. Quando
Antonin Artaud vociferava contra a proibição do ópio afirmando que “os perdidos estão por natureza perdidos” e
que, por isso, “todas as idéias de regeneração moral nada
farão por eles”34, afirma que a ânsia de salvação vibra
na mesma freqüência da preocupação humanista com
as mazelas sociais e que não há proibição que barre os
intuitos daqueles que querem destruir-se. Pode-se sus-
153
6
2004
tentar, em adição, que a ilegalidade leva a um obscurantismo que pode, ele sim, levar à destruição não voluntária: numa bala que atinge um soldado do tráfico,
na overdose que mata um usuário de heroína.
A reprovação moral às drogas é um episódio da ojeriza
à gestão de si. Agir para a produção de uma ética de si,
em termos foucaultianos, é mais e menos do que defender o uso de psicoativos. Num mundo em que a norma é
abolida em cada um de nós, não há espaço para preconizar o uso ou o não uso. O padrão cede lugar às condutas
e às relações que são estabelecidas entre aqueles que
decidiram não ser o que se espera, mas o que se quer
ser. Não num futuro, mas no incômodo que se dá no
presente, ao lado, dentro, fora, pelas minhas frestas.
Notas
W. McAllister. Drug diplomacy in the XXh century. Londres, Routledge,
2000.
1
2
A. Escohotado. Historia elemental de las drogas. Barcelona, Anagrama, 1997.
3
T. Szasz. Nuestro derecho a las drogas. Barcelona, Anagrama, 1993.
E. Passetti. Das ‘fumeries’ ao narcotráfico. São Paulo, EDUC, 1991; e A.
Escohotado. Historia de las drogas, vol. 2., Madrid, Alianza, 1998.
4
5
T. Szasz. op. cit.
M. Foucault. Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes, 1997; e “A governamentalidade” in Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1998.
6
7
M. Foucault. “ O nascimento da medicina social” in Microfísica do poder.
Rio de Janeiro, Graal, 1998.
M. Foucault. “Nascimento da biopolítica” in Resumo dos cursos do Collège de
France. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1997, p. 89.
8
9
10
Idem. “Soberania e disciplina” in op. cit., 1998, p. 189.
W. McAllister. op. cit.
B. Carneiro. A vertigem dos venenos elegantes. São Paulo, Dissertação de
mestrado, PUC-SP, 1993.
11
154
verve
Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis
G. A. Marlatt. “Redução de danos: uma breve história” in G. A. Marlatt
et all.. Redução de dano. Porto Alegre, Artmed, 1999.
12
M. Falco. Reflexiones sobre el control internacional de las drogas. México,
Fondo de Cultura Económica, 1997.
13
É importante notar que a sigla D.A.R.E. significa, em inglês, “desafio” ou
“ousadia” e seus verbos correspondentes.
14
G. A Marlatt. “Princípios e estratégias de redução de danos” in G. Allan
Marlatt et all. op. cit.
15
16
G. Corrêa. “Escola-droga” in Verve, n 1. São Paulo, Nu-Sol, abril 2002.
J. Marks. “Dosagem de manutenção de heroína e cocaína” in M. Ribeiro
& D. Seibel (orgs.). Drogas: hegemonia do cinismo. São Paulo, Memorial da
América Latina, 1997.
17
K.Wingardt & G. A. Marlatt. “Redução de danos e políticas públicas” in
G. A. Marlatt et all. op. cit., p 254.
18
G. A. Marlatt. “Princípios e estratégias de redução de danos” in G. A.
Marlatt et all., op. cit.
19
P. Lurie. “Redução de danos: a experiência norte-americana” in M. Ribeiro & D. Seibel (orgs.), op. cit.
20
M. Kleiman & A. Saiger. “Impuesto, regulaciones y prohibiciones: vuelve
a formularse el debate por la legalización” in P. Smith (org.). El combate a las
drogas en América. México, Fondo de Culura Económica, 1993.
21
22
M. Kleiman & A. Saiger. op. cit., p. 292.
23
Idem.
24
T. Szasz, op. cit., p. 152.
25
Idem, p. 148.
26
Ibidem.
27
M. Foucault. “O nascimento da medicina social”, op. cit.
G. Deleuze. “Controle e devir” in Conversações. São Paulo, Editora 34, p.
216.
28
Idem. “Post-scriptum: sobre a sociedade de controle” in Conversações, op.
cit., p. 225.
29
30
M. Foucault. “A prisão vista por um filósofo” in Estratégia, Poder-saber,
col. Ditos & Escritos IV. Rio de Janeiro, Forense, 2003, p. 157.
31
T. Szasz, op. cit., p. 206.
155
6
2004
E. Passetti. Éticas dos amigos: invenções libertárias da vida. São Paulo, Imaginário, 2003.
32
M. Foucault. História da sexualidad2: o uso dos prazeres,vol. 2. Rio de Janeiro,
Graal, 2001, p. 30.
33
A. Artaud. “Seguridad general: la liquidación del opio” in Textos. Buenos
Aires, Aquarius, 1971, p. 79.
34
RESUMO
Análise da gestação e cristalização do proibicionismo de substâncias psicoativas; os desdobramentos de sua lógica presentes nas
políticas de redução de danos, descriminalização e legalização. O
incômodo provém da liberação de si.
Palavras-chave: drogas, proibicionismo, liberações.
ABSTRACT
Analysis of the construction and establishment of the psicoactives
substances’ prohibitionism; the continuity of its logics in harm
reduction, discriminalization and legalization policies. The
annoyance comes from the liberation of the self.
Keywords: drugs, prohibitionism, liberations.
156
verve
Incomodando
incomodando
silvio ferraz*
O que faz com que a gente comece a escrever uma
música?
Quando é que se começa a escrever qualquer coisa?
O que faz com que a gente queira sair da cama de manhã?
Seria isso o incômodo?
Talvez.
Como entender incômodo? Prefiro talvez pensar em
inquietação.
Algo me inquieta. Alguma coisa me tira da cama, alguma coisa me leva a não ficar parado, a me mexer, e logo.
Mas e se essa alguma coisa for grande demais? Daí eu
fico parado e não faço nada. Enrolo na cama o que posso.
Deixo o dia passar entre os dedos e nem quero pensar
nisso. Olho e olho pro papel de música e não escrevo nada.
* Compositor e professor no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC/SP.
verve, 6: 159-168, 2004
159
6
2004
Sento-me ao piano e começo a tocar qualquer coisa. Como
se aquilo fosse aplacar essa inquietação, essa coisa que
quer existir, mas fica pesada demais pra existir.
Fazer música é viver o tempo todo este incômodo. O
que é esse incômodo, essa inquietação? Ela é a diferença,
ela é o movimento, a condição de realizar potências, a condição da idéia. Essa inquietação é a linha de fuga que
emerge em meio à ciranda diária de demarcar lugares,
de deixar rastros e rastros expressivos de um território
demarcado. A inquietação é uma das manifestações desse desenho constante, incessante, mas descontínuo, de
ritmo irregular e insistentemente passageiro.
Ser afetado por uma inquietação é notar, é ver a tal da
linha de fuga, da linha que traça o percurso centrífugo:
deixar de ficar aqui parado e me sentar ao piano e começar a tocar algo e escrever uma linha ou outra, depois
atender ao telefone e daí escrever uma carta pra alguém,
ler um trabalho infernal, ler outro trabalho infernal e ir a
uma reunião imaginária, terminar um projeto e daí escrever mais uma linha de música e tocar mais um pouco,
enfiar a mão nos bolsos e dar um dinheiro à empregada
pra comprar alguma coisa imensamente necessária para
o almoço, acender uma lâmpada porque ficou escuro, apagar a lâmpada por que não é tão necessário assim e sair
de casa pra tomar um café ou quem sabe dar uma volta no
parque encontrar com alguém, ter mil idéias e compor
muitas muitas músicas andando pelo parque querer voltar pra casa pra registrar tudo, voltar e tomar um banho,
terminar o banho e dar um cochilo e daí lembrar que é
hora de ir jantar, ou que é hora de ir dar aula, ou que é
preciso sair? pra uma nova reunião infernal com algum
estudioso sério das comunicações e ouvir no rádio do carro algum cantor fingindo que é moderno e manifestando
suas vontades de ter dinheiro, vontade de ter sucesso, vontade de vender muitos discos e deixar o pai, a mãe, o ir-
160
verve
Incomodando
mão satisfeito e poder convencer algumas meninas de que
aquilo sim é que é música, aquilo sim é que é cantar e
você ali desligando o rádio infernal do carro e parando porque finalmente chegou onde tinha que chegar e chegando lá ter mais e mais idéias de uma música que talvez
seja escrita um dia sabe-se lá quando, mas é claro que
será escrita quando você tiver tempo e vai ter tempo depois que ler todas as teses que tem que ler, depois de ler
as dissertações e aprovar e desaprovar alunos em cerimoniais de qualificação e de defesa e em comissões de bolsistas e logo lembrar que tudo aquilo não pode ser feito
porque tem um projeto importante a ser levado adiante.
Essa é a linha de fuga, isso é o sair do centro e entrar a
todo tempo em uma nova ciranda, em uma nova cantiga
de roda, em um novo ritmo circular que crava um centro,
que se vale de uns movimentos e de algumas coisas que
estão ali por perto (jogar a mochila na poltrona da sala
depois largar uma calça amarrotada na maçaneta do banheiro e sair por aí deixando marcas e marcas) tudo de
modo a contracenar o centro, o giro e os outros centros e
outros giros que nos levam a um novo centro, um novo
giro.
Mas tem uma hora em que a gente pára. Tem um momento em que sentar ao piano não é só sentar-se ao piano e não rapidamente sair dali como se algo estivesse incomodando mais ainda. É ficar quase que imóvel, escolher umas notas, tamborilar um pouco, ouvir um som, rodar
em volta dele, rodar um pouco mais e daí começar a desenhar alguma coisa. Uma nova brincadeira. Ao invés de
correr de um lado para o outro é como se tudo se fechasse
em um único plano: o piano, os dedos, a madeira do piano,
o cheiro da poeira que assentou com os dias sem tocar,
um pouco do barulho que vem de fora. Mas é só um pouco
deste barulho e se o barulho aumenta vem uma força que
faz com que a janela seja fechada, com que haja forças
161
6
2004
para se levantar, ir até a varanda, dar uma olhada para
fora, fechar a porta de correr e voltar para o piano. O movimento é outro. Não é mais de abrir é de fechar, é de viajar
sem sair do lugar. Visto de longe parece que o barato é
fazer um lugar, desenhar um cantinho. É assim que a
criança parece fazer quando canta uma cantiga pra si mesma. Mas se para a criança aquilo era o suficiente para
fazer um muro, para desenhar um entorno, não é sempre
assim que as coisas acontecem. Eu desenho um muro,
um muro feito de notas que soam ao piano, ou mesmo que
soam em minha cabeça, ou que ressoam junto com a maquina de fazer bolhas do aquário, ou por que não um carro
que passa na rua. Mas desenhado o muro a viagem pede
para continuar. É toda uma potência que encontra lugar
para acontecer. Acontecer logo antes que alguém tenha o
poder de interromper tudo: um telefonema de alguém que
pede dinheiro, o computador anunciando que mais um email acaba de chegar, a porta… a campainha da porta,
para alguns o interfone… pode ser que comece a soar em
breve. O tempo é pouco se visto assim. O tempo é pouco e
é preciso enfiar em meio disto um pouco de tempo puro,
de um tempo sem medida, de um tempo sem espera, de
um tempo sem expectativa, sem previsão de um fim. Um
infinito, como um deserto que se desenha na superfície
do pedaço de papel que olho de relance e me deixo levar,
ou as dunas e altas montanhas do brim da calça redobrado. Preciso deste tempo puro, deste pouco de duração. Antes que alguém traga de volta o tempo cheio de estrias do
relógio, o tempo cheio de marcações e marcações, e nomes, e estratégias, e vícios e caminhos já percorridos que
se impõem para serem percorridos de novo. O muro pode
jogar tudo pra fora, mas o muro não tem força suficiente
para ficar de pé. Preciso fortalecer o muro. Volto para o
piano. Volto a tocar as notas que desenhavam melodias
circulares, fazendo pequenas marcas no espaço e eu ouço
cada marca. Elas não são mais dedos no teclado, não são
162
verve
Incomodando
mais relações tão simples. Elas são marcas, são marcas
que de quando em quando se afastam e se tornam de uma
força irreconhecível, eu até posso contar com elas e elas
são tão grandes que nem sequer consigo saber do que se
trata. São muito grandes. E nessa grandeza sinto-me fora
de casa, me sinto com aquela vontade estranha de sair
dali, de dormir, de deixar tudo viajar, mas de outro jeito. E
nessas eu mesmo vou e pego no telefone, ligo para alguém
depois abro todos os e-mails que ficaram suspensos e respondo tudo com pressa. Queria poder voltar para o piano,
mas tem muita coisa me impedindo. Volto… se a força é
grande eu volto. Volto e vejo tudo aquilo que está ali no
papel. Aquilo é claro, que consegui anotar de tudo aquilo
que se perdeu enquanto tocava meio desapercebido viajando nas linhas curvas que desenhavam a melodia. Não
é mais um jogo de dedos, não é mais um jogo de sons. Eu
então toco tudo de novo e fico ali esperando compreender
tudo que fizeram antes. Um peso. Colocar um pouco de
peso, dar uma pequena, mesmo que passageira consistência para tudo aquilo. Lembro dos pássaros e de como
sua plumagem colorida pelas forças dos hormônios se torna uma qualidade específica daquele indivíduo pássaro,
qualidade que o permitirá acasalar-se, que o permitirá espantar seus inimigos e garantir assim sua sobrevida,
mesmo que transitória. Nada disso que faço me pertence,
assim como a cor não pertence ao pássaro, ela é uma placa, um cartaz que anuncia o pássaro. Mas não resisto, vou
dormir.
Desenha-se um ritmo quando passo de um lugar a outro, quando saio do piano, me deito um pouco, volto ao piano, desenho uma melodia, reescrevo tudo no papel, apago
tudo que escrevi, resolvo ler umas partituras de Beethoven,
depois Chopin, depois Jobim, e assim vai até que retomo
uma linha do que vinha escrevendo e desisto de tudo. Por
hoje chega. Cheguei no ponto final, é a fadiga. Tudo isso é
163
6
2004
um ritmo, a membrana de um movimento roçando na
membrana do outro movimento, os dois pulsantes, os dois
em movimentos constantes de sístole e diástole, vai e vem,
irregular. O ritmo não é o ritmo do movimento em que
estou, mas o ritmo entre os movimentos, o pulsar das membranas.
E se estou escrevendo sobre incômodo, e prefiro falar
em inquietação. Falo do incômodo que todo mundo tem, e
não do incômodo que a gente causa. Um fala de uma potência que se realiza o outro fala de um poder que se impõe. Mas não quero falar do poder que se impõe. O poder de
interromper uma potência que se atualiza. O poder de
impedir que algo venha a aparecer. Diferente da potência
que é sempre voltada para frente, sempre voltada para o
futuro. A potência de atualizar. Mas nada se atualiza sozinho. Não vem uma música sozinha, do nada. Ela pode vir
de uma técnica, sobretudo de uma técnica que não tenho.
Não tenho a técnica e umas notas soam em minha cabeça. A inquietação me parece vir a todo tempo. Estar inquieto e em movimento, estar o tempo todo sobre uma linha
de fuga, saltando com cavalos no precipício, saltando com
cavalos a fina camada que me segura em um lugar. As
notas todas jogadas no papel, os sons todos circulando em
minha cabeça, e de repente a sensação de que tudo está
solto, de que todo aquele movimento está solto, que nada
se segura por ali. Então noto um outro movimento, noto
um ritmo que se desprendia das paredes dos movimentos
contíguos. As notas todas confusas no papel, para que
mesmo? Passo então à mesa, desenho alguma coisa que
as ordene, vejo-me frente a uma longa fileira de verdades
e estratégias históricas, e do outro lado uma fileira de
experimentalismos que pedem por uma história. Como é
que faço pra jogar tudo isto fora? Nem a história nem o
modismo, nem a determinação do passado nem a do presente. Como ficar aberto no futuro? Mas tudo que está junto
164
verve
Incomodando
se relaciona, queiramos ou não. Sempre há relação. Deixo tudo ali, marca da imperfeição, marca da falta de técnica, marca de um trabalho abandonado no meio e mil vezes retomado sem que a lógica da unidade ou da explicação viesse participar. Deixar tudo em aberto como em um
rascunho de Rembrandt, como em uma carta mal redigida,
como em um livro abandonado. É preciso organizar? Não.
Simplesmente passo direto e faço daquela confusão o meu
território, faço do amontoado de notas uma linha por onde
passear e ser aprendida. E tanto o organizado quanto o
disperso, de súbito, pedem que eu fuja dali. Tudo perde
sua função, tudo se torna expressivo. E eu apenas reúno
as forças, reúno as linhas, ponho umas ao lado das outras,
faço com que elas se visitem, se conheçam, se toquem,
troquem de idéias, e depois voltem ou não aos seus lugares.
Deleuze diz que a arte não espera o homem para começar. O que quer dizer isso? Ela começa sempre, ou ela
simplesmente começa sem que saibamos onde, quando,
por que, e no meio de quem. Seus ciclos não são os do
homem. Não há acordar pela manhã, alimentar-se e voltar a dormir pela noite. Não é o mesmo ciclo. É outro, outro
em que o homem não participa com os seus ciclos. O personagem deste ritmo não é um eu que vive, quase que
um relógio solto, é o próprio movimento que é o personagem, é o próprio ritmo que é um personagem. E nesses
ciclos, nesses começares e recomeçares faço minha opção. Deixo a marca do tempo, consigo escrever apenas
curtas anotações, pequenas cirandas, pequenas cantigas
rodando rapidamente e por muito pouco tempo em torno
de algum lugar. Uma assinatura? Não, não chega a ser
nem assinatura. Deleuze fala de assinatura, fala de estilo
e fala de dar uma consistência. Fujo até mesmo da consistência, tamanha a inquietação. É como se todo um monte
de vidas, um monte de tempos, um monte de coisas estra-
165
6
2004
nhas quisesse passar por mim naquele pequeno momento, naquela pequena dobra de tempo em que escolhi justamente pra me esconder. E até mesmo enquanto escrevo
este texto fico pensando em quanta coisa deixei pelo meio
do caminho, em quantas coisas foram largadas. Tudo sem
consistência, tudo quase que sem nexo, tudo em uma escrita rápida e que não tem sequer estilo, não deixa sequer
marcas, não serve nem como cartaz, nem como placa: aqui
está uma escrita! Nem isso. Agindo rápido assim não dou
tempo para que nenhuma coisa se associe ao que estou
escrevendo em minha música, nem ao que estou tocando, nem ao que estou ouvindo, nem ao que estou tentando
pensar e muitas vezes anotar na margem de uma partitura, num pedaço de papel velho, num monte de pequenos
papeizinhos espalhados pela casa, espalhados pelo tempo.
Você percebe que aqui não tem código nenhum, que nada
quer dizer nada.
“Logo pela manhã ela chegou em casa tirou o casaco e
jogou no sofá da sala, pegou da mochila e largou na cadeira da cozinha, olhou para suas coisas, foi até o banheiro e
deixou marcas e marcas. Tudo sem nenhum propósito,
ela só foi andando e marcando, andando e largando pequenas coisas, pequenos pertences. Não tardou muito a fazer
com que os outros que ali estavam se enfezassem, reclamando da falta de espaço, da desorganização. Ela mesma
se deu conta e passou a recolher tudo até que se viu fora
dali. Já havia saído dali. Foi embora com todas suas coisas
sem conseguir nunca mais largá-las onde quer que fosse.
Significados! Significados! Largar era criar significados e
isso não lhe fazia bem”.
Mas uma coisa é certa, quando toco eu crio uma distância, crio uma distância… tudo que possuo: distâncias.
O brinquedo de girar das notas em torno de um eixo fez
distância, de direção fez-se dimensão, abriu um espaço
naquele vinco de tempo e de lugar, um vinco em meio ao
166
verve
Incomodando
descontínuo que tem uma dimensão. Que dimensão é essa?
Uma dimensão sem medida, um tempo sem medida; tempo puro, duração, espaço puro, dimensão. E isto é abrir um
espaço para o que gostaria de sentir como diferença: não
difere de nada, difere em si, é pura diferença, um dia quem
sabe descubra-se do que difere, e daí em diante não será
mais diferença, será a velha semelhança disfarçada em seu negativo. E neste jogo de achar a diferença
vem uma idéia: quem é que junta tudo isso? Quem é que
junta todas as partes aparentemente soltas? A diferença
em si, a própria diferença que retorna enquanto condição
de trazer mais e mais diferença. É o abrir-se do jogo para
fora dele que faz com que exista uma consistência em
tudo que estava sendo feito assim, como um movimento
de largar os casacos por aí. Quem deu uma consistência
ao movimento foi justamente aquele curto espaço de tempo, aquela pequena reentrância na qual um movimento
puro e simples, movimento com a função de se livrar do
peso das coisas que trazia, de livrar-se do peso da inquietação, de se livrar de um incômodo… foi nesse pequeno
ponto sem medida que aquilo que não tinha forma, que
não tinha permanência tornou-se expressivo, marcou um
lugar, tornou-se um cartaz. E criou um outro tipo de distância. O que junta não é a unidade, não é o jogo de diferenciar algo de algo e dar permanência a um ciclo que já
se fechou. Preciso da permanência do ciclo aberto. O que
junta, consolida alguma coisa, um movimento, é um pedaço de lugar. Pedaço de lugar em que as coisas se ligam
sem que precisem ter uma coerência, sem que precisem
falar a mesma língua, significar uma coisa só. Sem que
precisem ter uma função naquele conjunto. Fazer uma
casa, espaços vazios, espaços cheios, coisas sobrepostas,
articuladas umas às outras. Uma porta; um quadro; uma
mesa; alguém que passa correndo; uma pequena imagem
de santo; o barulho do gorgulhador do aquário; as pedras da
calçada; a janela aberta e depois fechada, aberta e depois
167
6
2004
só fechada pela metade; uma garrafa de água solta, largada na mesa. As coisas sobrepostas e intercaladas, intercaladas e criando intervalos: o tempo de ir da cozinha até
a sala, o giro que é preciso se fazer em torno do sofá; a cor
da parede que divide uma sala da outra.
RESUMO
Música narrativa em sua fugidia criação.
Palavras-chave: música, diferença, inquietação.
ABSTRACT
Narrative music in its scaping creation.
Keywords: music, difference, unrest.
168
verve
Incomodando
169
6
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170
verve
Revolta, ética e subjetividade anarquista
revolta, ética e subjetividade anarquista
nildo avelino*
Há em nossa sociedade uma demanda constante de
adesões e de mobilizações massivas tornadas “midiáticas” e “burocratizadas”, demanda que tem por finalidade sensibilizar a opinião, emocionar, indignar, apelar à solidariedade de todos e cada um. A exposição
espetacular da exclusão social, de pessoas devastadas
pela miséria, pela fome, pela guerra, pelas epidemias,
enfim, há uma massa de sofrimentos que alimenta
campanhas e solicita adesões, exige lágrimas, reclama indignações e nos pretende tornar doadores compulsivos.
Verdadeira laiscização da caridade, os jogos televisivos suscitam a compaixão e o desejo de ajudar. Porém,
o objeto desta solidariedade não é mais o sofrimento do
próximo como ocorria outrora, mas o sofrimento geral
de toda gente; não se trata mais “... de dar a alguém
que se conhece e menos ainda de esperar algo de um
reconhecimento que nunca será recebido pessoalmente. O dom tornou-se um ato que liga sujeitos abstratos,
* Mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP, pesquisador no Nu-Sol e secretário
do Centro,de Cultura Social de São Paulo.
verve, 6: 171-196, 2004
171
6
2004
um doador que ama a humanidade e um donatário que
encarna por alguns meses, o tempo de uma campanha
de donativos, a miséria do mundo”1.
Há também nessas mobilizações algo que beira totalitarismo. É que elas reclamam um conformismo prévio em relação às verdades que veiculam e provocam
adesões irrefletidas que pressupõem o apagamento de
todo registro ético. Trata-se de ver, portanto, um outro
aspecto dessas adesões massivas e involuntárias que
diz respeito à dominação ou, em todo caso, a uma forma de dominação. É preciso ver nelas a legitimação de
uma realidade histórica e conceitual com efeitos de
poder, legitimação de verdades que estão sempre ligadas às instâncias de poder; e legitimação, enfim, que,
longe de ser ocasional, está no cerne da nossa tradição
ocidental da constituição do sujeito moderno e que, finalmente, encontra nessas adesões apenas um dos
seus efeitos sociais mais imediatos.
Quero mencionar aqui alguns dos aspectos dessa tradição para que possamos inserir nessa discussão um
questionamento postulado por Michel Foucault no qual
consiste em saber: “de que maneira e até onde seria
possível pensar diferentemente em vez de legitimar o que
já se sabe?”2. A pergunta liga-se diretamente às formas de subjetivação, as maneiras pelas quais os indivíduos se tornam sujeitos de uma conduta.
Na genealogia do sujeito moderno Foucault distinguirá dois registros em nossa tradição ocidental. O primeiro é relativo à antiguidade clássica e alcança os
primeiros séculos do paganismo romano. Nele a constituição do sujeito é marcada pela existência de práticas refletidas e voluntárias destinadas a fundar um
estilo de existência que fosse mais próximo possível
das proposições da filosofia entendida como sabedoria
172
verve
Revolta, ética e subjetividade anarquista
prática. Foucault chamou essas formas de subjetivação
de “artes de existência”, por que elas diziam respeito a
um sujeito auto-constituinte, quer dizer, estavam na ordem do “pensar diferentemente”. O outro registro diz
respeito à concepção constituída pelo cristianismo, de
uma subjetividade cujo fundamento estaria na renúncia, deslocando o eixo da experiência ética do cuidado
de si para o mundo da transcendência como busca da
verdade por meio da revelação divina. Um dos efeitos
da renúncia cristã será a subjetividade concebida como
interioridade e consciência de si, como prática de purificação da alma traduzida pelo desprendimento da individualidade de suas referências terrenas. A noção
de verdade será, doravante, permeada pelo dispositivo
da culpa e da penitência, e o desdobramento ético e
filosófico desse registro subjetivo será não apenas uma
modalidade reflexiva da subjetividade com Descartes,
no século XVII, como a formulação da categoria de lei
moral em Kant no século XVIII, sendo possível afirmar
que “... essa concepção original de subjetividade e de
experiência ética, construída pelo cristianismo, seria
a condição de possibilidade para a constituição da filosofia do sujeito que marcou o Ocidente de Descartes a
Hegel”3. Nesse registro o sujeito ocupa a posição de
objeto de um domínio de saberes que lhe é exterior e
que funda sobre ele uma relação de dominação; por
conseguinte, esse registro se inscreve na ordem do “legitimar o que já se sabe”.
Esse último registro é o que teve pertinência histórica, tendo as suas técnicas de produção do sujeito se
reelaborado e se aprimorado ao longo dos tempos. Essas técnicas, por sua vez, provocaram práticas culturais de classificação, exclusão, disciplinarização e controle que nos deram não apenas a nossa visão de mundo sobre as coisas como também os corpos que
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possuímos; em outras palavras, essas técnicas inscreveram em nosso corpo e em nossa alma as verdades
pelas quais zelam; verdades que, por exemplo, instituíram a loucura como experiência negativa privando-a
de uma positividade existencial. A importância que
possui o estudo desse procedimento é percebida ao se
ler que o objetivo dos trabalhos de Foucault foi o de “criar
uma história dos diferentes modos pelos quais, em
nossa cultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos”4. Não é, portanto, o poder, mas o sujeito que constitui o tema geral de suas pesquisas, ainda que a questão do sujeito envolva complexas relações de poder e
verdade, o foco de suas preocupações intelectuais e
políticas está na constituição do sujeito “naquilo que
ele considera a maior ameaça, esta estranha, de certo
modo improvável, mistura de ciências e práticas sociais desenvolvidas ao redor da subjetividade”5.
Com efeito, dessa estranha mistura resultou historicamente um tipo de poder que se aplicou à vida cotidiana das pessoas, um poder que colocou como problema
do governo a correta disposição dos homens visando
conduzi-los a um fim conveniente; enfim, um poder que
após estabelecer-se sobre o território, adotou como objeto de seu saber um conjunto mais imprevidente, de
qualquer forma, mais inopinado e descuidado: os indivíduos. De algum modo o governo passou a cuidar da
sua correta disposição, estabelecendo saberes que tiveram em vista categorizá-lo, marcá-lo na sua individualidade, prendê-lo a uma identidade, na qual lhe foi imposta uma lei reconhecível por ele e pelos outros: “É uma
forma de poder que faz dos indivíduos sujeitos. Há dois
significados para a palavra sujeito: sujeito a alguém
pelo controle e dependência, e preso à sua própria identidade por uma consciência ou autoconhecimento.
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verve
Revolta, ética e subjetividade anarquista
Ambos sugerem uma forma de poder que subjuga e torna sujeito a”6.
Na atualidade, a luta contra as formas de sujeição,
contra as formas de submissão da subjetividade, tem
se tornado cada vez mais importantes. Se por um lado
essas lutas sempre ocuparam um lugar importante ao
longo da história, por outro é em nossa atualidade onde
elas estão na iminência de desempenhar um papel preponderante.
Para isso Guattari chamou atenção. O grande movimento desencadeado pelos estudantes chineses não fôra
acompanhado por apenas palavras de ordem de democratização, mas foi também “... todo um estilo de vida,
toda uma concepção das relações (a partir das imagens
vinculadas pelo Oeste), uma ética coletiva, que ai é posta em questão”. Assim como no Leste Europeu, “... a
queda da cortina de ferro não ocorreu pela pressão de
insurreições armadas, mas pela cristalização de um
imenso desejo coletivo aniquilando o substrato mental
do sistema totalitário pós-estalinista”7.
Esses acontecimentos, pelas formas que assumiram,
por suas estratégias e modos de expressão, autorizam
afirmar que a história contemporânea está imersa em
lutas por “reivindicações subjetivas”: movimentos
antipsiquiátricos, de liberação sexual, ecologistas,
autonomistas, feministas, etc, que provocaram uma
verdadeira renovação das lutas sociais a partir dos anos
1960. Muitas vezes ambíguas e conservadoras, em todo
caso são lutas contra aquilo que liga o indivíduo a si
mesmo submetendo-o aos outros, lutas contra as diversas sujeições, contra as formas de subjetivação e
submissão que governam a individualidade; potencialmente políticas, essas lutas possuem a originalidade
de afirmar o direito de ser diferente e de enfatizar “tudo
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aquilo que torna os indivíduos verdadeiramente individuais”. Elas são a recusa daquelas abstrações que
ignoram quem somos individualmente, assim como daquelas investigações científicas e administrativas que
pretendem determinar o que somos. Em suma, são lutas anárquicas e minoritárias que têm como desdobramento a emergência de saberes sujeitados; que provocam a redescoberta de críticas descontínuas e locais,
de saberes não-conceituais, e por isso historicamente
sujeitados e hierarquicamente menores, mas conteúdos históricos que foram sepultados e que vêm à tona
naquilo que Foucault chamou de “insurreição dos saberes sujeitados”8.
O reaparecimento desses saberes provoca, por sua
vez, um tipo de crítica que faz suspender os efeitos das
teorias totalizantes e globais, permitindo recolocar
essa crítica numa perspectiva singular e local: na perspectiva do delinqüente, do doente, etc. Essa crítica
reaviva aquilo que estava em jogo nesses saberes,
reaviva o saber histórico de suas lutas, a memória dos
combates e combatentes, o “saber das pessoas”; nestas batalhas subjetivas “Trata-se, na verdade, de fazer
que intervenham saberes locais, descontínuos,
desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica unitária que pretenderia filtrá-los, hierarquizálos, ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome dos direitos de uma ciência que seria
possuída por alguns”9.
Frente a uma atualidade que postula o apagamento
ético em constantes adesões irrefletidas, o importante
não é descobrir o que somos, mas recusar o que somos,
provocar a reviravolta desses saberes que pretendem,
a partir do exterior, impor-nos sua verdade e sua lei. É
preciso “imaginar e construir o que poderíamos ser para
nos livrarmos deste “duplo constrangimento” político,
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verve
Revolta, ética e subjetividade anarquista
que é a simultânea individualização e totalização própria às estruturas do poder moderno. A conclusão seria que o problema político, ético, social e filosófico de
nossos dias não consiste em tentar liberar o indivíduo
do Estado nem das instituições do Estado, porém nos
liberarmos tanto do Estado quanto do tipo de individualização que a ele se liga. Temos que promover novas formas de subjetividade através da recusa deste tipo de
individualidade que nos foi imposta há vários séculos”10.
Novas formas de subjetividade que provoquem rupturas contra as identidades secularizadas do nosso presente: eis um tipo de pesquisa que provoca incômodos.
Com efeito, a genealogia do sujeito moderno empreendida por Foucault fere de morte a leitura transcendente da verdade contida na tradição do pensamento ocidental; a filosofia que se restringia ao trabalho da
exegese dos diversos sistemas, passa a ter uma incidência sobre a atualidade, e a atividade filosófica pode
atuar como “trabalho crítico do pensamento sobre o próprio pensamento”11.
Birman12 faz lembrar que, quando Foucault formula
a existência de tecnologias de si, enuncia também que
a subjetividade não constitui um dado ou origem, mas
uma produção e um devir. A subjetividade sendo múltipla e plural e não possuindo qualquer fixidez, encontra nos modos de subjetivação uma dimensão onde a
produção de sujeitos é da ordem do devir-produção. A
análise assim formulada revela, de outro lado, a inconsistência ontológica do sujeito, já que as subjetividades antes de possuírem uma substância que as torna
invariante e universal, são forjadas a partir de registros éticos e estéticos com desdobramentos políticos e
sociais.
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Sob essa perspectiva veremos no anarquismo a produção de uma ampla problemática a respeito da autoformação do indivíduo e sobre o governo que o indivíduo deve exercer sobre si mesmo; problemática que
envolve relações entre revolta e ética anarquista, provoca práticas culturais e constitui formas de subjetividades cujo valor está no afastamento em relação às
instâncias de poder.
O desenrolar da problemática da constituição de uma
ética e uma estética de si no anarquismo devemos buscar na própria atitude que o anarquista mantém consigo mesmo e com os outros. Uma das primeiras conseqüências que se pode tirar dessa atitude anarquista
é que nela a persuasão é insuficiente. Não basta estar
convencido do ideal, é preciso querê-lo e desejá-lo a
ponto de transformar a própria existência pessoal através de critérios de estilo, através de uma estilização
do pensamento. Opera-se, nesse sentido, uma efetuação da lógica e do pensamento anarquista em vontade:
a morte daquilo que é da ordem do ideal e que diz respeito ao dever; e o nascimento do que é da ordem do
vital e que diz respeito ao querer. Essa efetuação do
pensamento em vontade possui como operador ético a
revolta.
Com efeito, é na revolta que se dá um estado de tensão que exclui o indivíduo de toda autoridade que lhe é
exterior, provocando a ruptura necessária entre a moral e suas instituições, e deixando livre curso para a
emergência de novas experiências subjetivas. A revolta pressupõe o afastamento dos “objetivos dominantes”
e dos “padrões vigentes” que passam a ser considerados arbitrários, fazendo-os perder com isso seu poder
de sujeição e sua legitimidade. É desta forma que a
revolta evolve uma “transvaloração”: na sua sociologia
do comportamento desviante, Merton colocou a revolta
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Revolta, ética e subjetividade anarquista
num plano distinto dos outros tipos de reações por tratar-se do rompimento com o sistema normativo vigente13. Assim também, como na definição de Camus, o
homem revoltado é, primeiramente, aquele que diz
“não!”. Onde a revolta, nascida também do espetáculo
da des-razão diante de uma condição injusta e incompreensível, se efetuará no indivíduo sujeitado de uma
maneira solitária como o grito: “A revolta clama, ela
exige, ela quer que o escândalo termine e que se fixe
finalmente aquilo que até então se escrevia sem trégua sobre o mar. Sua preocupação é transformar”14.
Porém, sendo uma característica da revolta a recusa do intolerável, ela não se abstém, ela não renuncia,
trazendo consigo um certo valor em cujo movimento
há sempre uma adesão integral do revoltado a uma
certa parte dele mesmo, fazendo-o contrapor o que é
preferível ao que não é. Um certo ímpeto que retira o
indivíduo de um estado de impotência para um estado
de potência e que se inicia sob a forma de uma resistência irredutível, para tornar-se valor pessoal preferível a tudo, e que acaba por fazer o revoltado colocar “...
esta parte de si próprio, que ele queria fazer respeitar,
acima do resto”15.
Neste sentido a revolta não pode sustentar nenhum
ideal abstrato, já que ela exige que seja levado em conta aquilo que no revoltado não pode ficar limitado ao
plano das idéias, por tratar-se daquela “parte ardorosa
que não serve para nada a não ser para existir”.
Esta dimensão imanente da revolta situa o indivíduo fora do sagrado. Mais do que isso; Camus vai distinguir dois universos possíveis e ao mesmo tempo
opostos: o do sagrado e o da revolta; e perguntará: “Longe do sagrado e de seus valores absolutos, pode-se encontrar uma regra de conduta?” A questão assume
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grandes proporções, pois a revolta vai provocar uma
reviravolta no cogito cartesiano: para existir é preciso
revoltar-se e colocar-se fora do sagrado e da transcendência que a revolta repele pelo sentimento do intolerável causado pela experiência do sofrimento e do
escândalo.
Podemos afirmar, em primeiríssima aproximação,
que a revolta é um ato de conhecer na experiência do
insuportável, como na metáfora nietzschiana da borboleta: “Compreender tudo isso pode causar dores profundas, mas depois há um consolo: elas são as dores do
parto. A borboleta quer romper seu casulo, ela o golpeia, ela o despedaça: então é cegada e confundida pela
luz desconhecida, pelo reino da liberdade. Nos homens
que são capazes dessa tristeza — poucos o serão! —
será feita a primeira experiência para saber se a humanidade pode se transformar, de moral em sábia”16.
É assim que a revolta se constitui em uma porta
aberta para experiências subjetivas dessujeitadas. Essa
“estranha ascese da revolta” devemos buscar nas relações com a ética anarquista. Há sobre isso uma primeira reflexão na obra de Augustín Hamon, que coloca
entre os caracteres constitutivos da personalidade anarquista, o espírito da revolta: “O anarquista socialista é
um indivíduo revoltado”17.
Na problemática da constituição de uma ética do sujeito anarquista, a revolta cumpre a função de liberar
o indivíduo dele mesmo, de desligá-lo de uma identidade subjetiva que o mantinha sob um estado de dominação e que, doravante, tratar-se-á de negá-la em toda
sua dimensão existencial. Por essa razão, a revolta não
deve ser confundida com insurreição ou revolução,18
que trazem em si uma conotação política ou social: a
revolta é “uma transformação nas circunstâncias que
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Revolta, ética e subjetividade anarquista
entretanto não são provocadas por ela mas pela própria
insatisfação dos homens. A [revolta] não é um levante
armado mas um levante de indivíduos” que, ao contrário da Revolução, “nos leva a não aceitar mais a idéia
de que alguém pode determinar por nós mesmos [as
condições de vida]”19. Dessa forma, a revolta acarreta a
derrubada da ordem vigente sem, no entanto, ter isso
em vista; ela não conduz a um “novo regime” social ou
político como faz a revolução, daí a crítica de Stirner:
“A revolução não se dirige contra a ordem em geral,
mas contra a ordem estabelecida, contra um estado de
coisas determinado. Ela derrubou certo Governo, não o
Governo [...]. Na revolução não foi o indivíduo quem lutou e cuja ação teve valor histórico, e sim um povo: a
nação soberana fez tudo”20. Na revolta a ordem é derrubada pelo seu abandono, elevando-se o indivíduo revoltado acima de seus princípios e fazendo-o desapegarse de tudo o que o tornava escravo a esse princípio.
No anarquismo, essa reflexão vai encontrar um lugar especial nos escritos de Proudhon e Malatesta, o
primeiro pensará a imanência anarquista que encontra
grande repercussão na concepção malatestiana da
anarquia.
Com efeito, Malatesta não apenas irá explicar o nascimento da anarquia pelo que chamou de “rebelião
moral”, negando o vínculo de seu surgimento a qualquer sistema filosófico, como também vai declarar a
auto-suficiência do anarquismo do ponto de vista moral, desvinculando-o de quaisquer aportes científicos
ou ideológicos; essa perspectiva autárquica permitirá
a Malatesta conceber a “anarquia como uma forma de
convivência social” e o “anarquismo como o método para
realizar a anarquia mediante a liberdade, sem governo, ou seja, sem órgãos autoritários”21.
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Nessa concepção da anarquia como arte de viver é
que se dão mais intensamente as relações entre revolta e ética. Ao liberar-se, pela revolta, do sistema
conceitual que o prende a uma identidade, o indivíduo
é levado a chamar para si o governo e a responsabilidade de seus atos. Isso tem por efeito uma faculdade
ética como conteúdo moral, que Proudhon denominou
moral imanente; assim, em oposição à tradição ocidental que remonta a Platão e que derroga o conteúdo moral na transcendência, no anarquismo ele é imanente
ao indivíduo.
A formulação do plano de imanência proudhoniano
está na base de sua crítica ao cristianismo que se estende à filosofia e à moral, à essa “multidão de reformadores que, mesmo separados da Igreja e do próprio
teísmo, permanecem fiéis aos princípios de subordinação externa, colocando no lugar de Deus a Sociedade, a Humanidade, ou qualquer outra Soberania, mais
ou menos visível e respeitável”22. Para Proudhon, a religião fornece uma razão, uma autoridade e uma base
à Justiça, sem a qual a sociedade não subsistiria. Ela
habita todos os conceitos fundamentais, as primeiras
hipóteses da razão, ainda formuladas em lendas poéticas e narrações maravilhosas que, sustentada pela fraqueza de espírito dos filósofos, instalou-se na consciência dos homens: “Sabe-se por qual salto de peixe (saut
de carpe) o incomparável Kant, após ter derrubado na
sua Crítica da razão pura todas as pretensas demonstrações da existência de Deus, a reencontrou na razão
prática. Descartes, antes dele, chegara ao mesmo resultado; e é maravilhoso ver os últimos discípulos desses metafísicos acrobatas rejeitarem a autoridade da
Igreja, a revelação de Jesus, de Moisés, dos patriarcas,
de Zoroastro, dos Brahms, dos Druidas, todos os sistemas religiosos, e afirmarem em seguida, como fato de
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Revolta, ética e subjetividade anarquista
psicologia positiva, a revelação imediata de Deus nos
espíritos. Segundo esses senhores, Deus se manifesta
diretamente a nós pela consciência; isto que se chama senso moral é a impressão mesma da Divindade.
Somente por ela eu reconheço a obrigação de obedecer
à Justiça, eu sou, segundo eles, ‘crente apesar dos
meus dentes’, adorador do Ser-Supremo, e partidário
da religião natural. O Dever! É suficiente que eu pronuncie esta palavra para atestar, contra meu desejo,
que eu sou duplo: Eu, incontinente, ligado ao dever; e o
Outro, quer dizer Deus, que formou essa relação, que
se estabeleceu no meu espírito, que possui todo meu
interior, que, no momento em que me imagino acima
da lei moral fazendo ato de autonomia, me conduz, sem
que eu me aperceba, para sua imperiosa sugestão”23.
É dessa forma que sem a noção de Deus ou de providência não haveria lugar nem para a lei nem para obrigação moral propriamente dita, e é por meio dessa noção, por analogia a ela, que chamamos leis a vontade
de homens que possuem autoridade de nos recompensar e de nos punir. Por isso, para Proudhon, a transcendência não lhe aparece apenas como um conjunto de
teorias, mas como um modo de ser e atuar, uma prática social que justifica uma política, provoca uma ação
e incide diretamente na orientação de uma sociedade.
A transcendência consolida a subordinação social ao
lhe dar um princípio superior a ela na forma do Estado,
e assim como a igreja sustentava que a verdade e a
justiça emanavam de Deus, os legisladores sustentam
que emanam do Estado: o crente ontem subordinado
ao sacerdote é hoje o cidadão subordinado aos legisladores. Ao afirmar a transcendência do sagrado a religião instauraria uma relação de autoridade e obediência entre deus e homem, entre saber e não-saber; é
também o princípio que fundamenta a política e do qual
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resulta a separação entre governo e governados; com
isso a religião não apenas postula a necessidade do
governo, como também a sujeição do indivíduo por intermédio da disciplina.
Ao contrário, Proudhon caracteriza a imanência como
a faculdade de reconhecer a lei e de fazê-la sua, a lei
serve à imanência como a instrução do mestre serve
ao aluno; o conhecimento do justo e do injusto resulta
dessa faculdade. Portanto, “cada um se encontra juiz,
em última análise, do bem e do mal, e se constitui em
autoridade frente a ele mesmo e dos outros. Se julgo
por mim mesmo que tal coisa é justa, é em vão que o
príncipe e o padre me afirmarão a justiça e me ordenarão segui-la: ela segue injusta e imoral, e o poder que
pretende me obrigar é tirânico”24. Na imanência, a justiça é definida como a faculdade de sentir e de afirmar
nossa dignidade, e por conseqüência de querê-la e
defendê-la, tanto na pessoa alheia como em nossa própria pessoa.
Duas hipóteses, portanto, que sob a ciência da moral se partilha o mundo: da transcendência ou Revelação que porta a subordinação do indivíduo ao governo;
e da imanência ou Revolução que porta o indivíduo ao
governo de si por si mesmo.
No plano moral a imanência anarquista resulta em
conteúdo ético expresso na atitude que tem por efeito
a coerência entre pensamento e vida. Trata-se, portanto, de um tipo de atitude cujo pensamento postula e
acompanha uma verificação existencial, na qual a formação de um saber parte de um imediato sentimento
da vida: com efeito, a anarquia apenas se realiza na
sua dimensão existencial, em que os princípios adquirem valores que são atestados no comportamento, do
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Revolta, ética e subjetividade anarquista
contrário o anarquismo se anularia num verbalismo,
tornando-se prisioneiro da palavra.
Essa é uma forma de subjetividade na qual o indivíduo é levado a intensificar as relações que ele tem consigo mesmo e que vai postular o “exemplo como sendo
a melhor das propagandas”, porque é no exemplo que
está a “vida vivida” do anarquista como sendo a mais
eficaz expressão em detrimento do mais completo sistema ou programa de idéias. É a “atitude anarquista”
que transpõe o que é meramente eidético, aquilo que
diz respeito às essências, e inaugura sua existência,
seu uso e disposição ética.
Aqui situamos a vida e a obra de Errico Malatesta,
que delineou em seus escritos e na sua trajetória existencial o que ficou conhecido como voluntarismo anárquico: a dimensão ética na qual é valorizada a atitude
anarquista, o comportamento antiautoritário e de solidariedade.
Para Malatesta, antes de mais nada, os anarquistas
devem estar convencidos da prioridade absoluta do valor desempenhado pela vontade, em seguida, que este
valor é condicionado por eventos exteriores nem sempre controláveis; dessa forma, saberiam que meios autoritários realizam processos autoritários. Prenunciase o que se tornará o núcleo de todo o seu pensamento,
esboçado, inicialmente, no Agitazione em plena crise
de fim de século. A partir de 1897 Malatesta definirá a
validade da idéia anárquica como derivação da universalidade dos seus valores propositivos, isto é, como um
conjunto de motivações que correspondem a uma aspiração; derivando disso que o anarquismo não é fundado sobre um ser, mas sobre um querer ser, para ele:
“O anarquismo, em suma, é antes de tudo uma ética e
como tal se realiza sobre a base de uma vontade positi-
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va de ação voltada para a transformação da realidade.
Daí a necessidade de colocar em primeiro plano a questão moral como critério discriminador para definir a
idéia anárquica como idéia ética por excelência; uma
definição, ao mesmo tempo, que quer ser também uma
distinção a respeito de outras possíveis identificações
do anarquismo”25. Anarquia se torna ética que se expressa no comportamento anarquista. Uma ética que
julga imprescindível a negação de todo fanatismo e sectarismo causadores de exageros e alimentadores da tendência, sempre presente nos homens, de tomar os meios pelos fins; tendência que, no calor da batalha, faz
com que os indivíduos percam o controle sobre si mesmo. Controlar a si mesmo, sustentar o comportamento
anárquico frente a toda vicissitude é, portanto, manter-se no caminho que leva a anarquia. Isso fica claro
quando Berti sublinha a crítica malatestiana feita, simultaneamente, aos terroristas e tolstoianos, precisando que ambos, partindo de princípios antagônicos,
chegam a conseqüências práticas iguais: “Uns não hesitariam em destruir meia humanidade para fazer triunfar a idéia; outros deixariam que toda humanidade
padecesse sob o peso dos maiores sofrimentos para não
violarem um princípio”26. Com essa reflexão Malatesta
abandonaria definitivamente todo determinismo histórico e naturalístico, negando não apenas a herança
do catastrofismo marxista como também as concepções
de fundo positivistas, incluindo aquela kropotkiniana,
que terminavam por colocar em segundo plano o fator
ativo da vontade enquanto elemento resoluto para realização positiva e criativa do socialismo; o problema
social se lhe apresentava agora como “problema de vontades contrapostas”.
Um querer revolucionário, uma vontade que possui
como motor a revolta. Em 1900 Luigi Fabbri escreve no
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Revolta, ética e subjetividade anarquista
L’Agitazione um artigo reprovando e julgando politicamente contraproducente o atentado que matou o presidente dos EUA, William Mc Kinley, dizendo que a ele
sucedeu Roosevelt, permanecendo tudo como antes,
exceto para os anarquistas, sobre os quais desabou a
represália. Escreve Malatesta: “Pode ser que L’Agitazione
tenha razão. Mas não se trata de uma questão de tática.
Trata-se agora de uma questão maior: do espírito revolucionário, daquele sentimento quase instintivo de ódio
contra a opressão, sem o qual nada significa a letra morta
dos programas, por mais libertárias que sejam as afirmações propostas; daquele espírito de combatividade, sem
o qual também os anarquistas se domesticam. É estultice, para salvar a vida, destruir as razões do viver. Para
que servem as organizações revolucionárias, se deixase morrer o espírito revolucionário?”27.
Por fim, é possível localizar essa problemática nas
práticas culturais ocorridas nos anos pós-1930 em São
Paulo, quando o refluxo do movimento operário provocado pela tríplice conjugação repressão-trabalhismo-comunismo, fariam com que as energias libertárias fossem direcionadas para outros focos de militância que
não o sindicato propriamente dito. Sem dúvida, esses
focos sempre existiram como invenções culturais
libertárias tendo o sindicato como grande baluarte de
suas lutas, o que ocorrerá neste período será a retomada destas práticas mais ou menos à margem do sindicato e, mais particularmente, a partir de uma
problematização do sindicalismo revolucionário como
forma de resistência anarquista.
Dentro da problematização do sindicalismo durante
a década de 1930, os anarquistas atribuíram o processo de “degeneração” dos sindicatos em órgãos de colaboração entre as classes a dois motivos fundamentais:
de um lado, a investida comunista da “frente única”
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inspirada no bolchevismo russo, esforçava-se pela organização centralista e disciplinada dos sindicados subordinados à sua seção central (a CGT); de outro, a
implementação das regulamentações trabalhistas nos
moldes do governo fascista, com a criação do MTIC e da
Lei de Sindicalização, vão consolidar as investidas governamentais ocorridas após as jornadas de julho de
1917, encontrando no trabalhismo e no chamado
sindicalismo amarelo contrapontos aos princípios de ação
direta e de autonomia do sindicalismo revolucionário.
A partir da formação do PCB, em 1922, os anarquistas tiveram que enfrentar as forças capitalistas e católicas cujo principal concorrente eram os comunistas,
que pregavam o caminho único dirigido pelo partido, com
delegação de poderes e viam na colaboração de classes
circunstâncias úteis de luta, assim como na legislação trabalhista um instrumento válido para o conflito
de classes.
Juntando-se a isso, o golpe de 1930 será acompanhado de grandes mudanças implementadas por Getúlio Vargas; com ele se dá a criação do Ministério do
Trabalho em 26 de Novembro e em 19 de março de 1931
é decretada a Lei de Sindicalização, instituindo o sindicato único e tornando o desejo comunista do bloco
sindical uma realidade.
Apesar da sua persistência em manter os sindicatos livres de toda e qualquer influência ideológica, os
anarquistas assistem a uma crescente adesão à via
oficial que era, sobretudo, consentida e apoiada pela
concorrência comunista, trotskista e católica. Esse
estado de coisas vai provocar uma reação dentro do próprio movimento que será levado a redimensionar sua
luta devido ao refluxo do movimento operário.
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Revolta, ética e subjetividade anarquista
Isso é claro quando Florentino de Carvalho lança o
seguinte questionamento divulgado pela A Plebe, afirmando que havia chegado, “(...) cada vez mais, a conclusão de que o sindicato operário é uma agremiação
insipiente, de funções muito restritas, e a luta, e bem assim, as aspirações sindicais estão longe de preencher as
necessidades requeridas pelas reivindicações capitais e
decisivas do proletariado. E muito mais longe ficam como
forças propulsoras, se marcham a esmo, movidas pelos
insignificantes valores específicos”28.
As palavras de Florentino contrastam com as “idades do ouro” do sindicalismo: não obstante seu engajamento no meio sindical, o “balanço” de seu entendimento revela uma mudança que estaria operando nos
meios e táticas do movimento anarquista.
Inicia-se então, pelas páginas de A Plebe, uma
problematização do sindicalismo revolucionário como
forma de resistência anarquista. Em 29/04/1933 A Plebe anuncia a realização de mais uma reunião “preparatória para a formação de grupos de Ação e Cultura
Proletária, que, à margem dos sindicatos organizados,
atuarão na obra de propaganda, procurando influir com
a palavra, com a pena e com a ação revolucionária nos
movimentos de organização proletária”. Esses grupos
têm como finalidade, preparar militantes, educar e esclarecer o proletariado na sua finalidade revolucionária, fazendo, por meio das pequenas agrupações, o que
o sindicato, pela sua base de lutas econômicas não pode
fazer, isto é: “o preparo dos trabalhadores para a conquista da riqueza social, a sua habilitação técnica para
a posse das fábricas, dos campos e das oficinas, o seu
preparo revolucionário para a obra de expropriação da
burguesia. O seu fim não é absorver a luta do sindicato, mas completar a sua missão revolucionária. [...] Na
última reunião ficou resolvido que os grupos serão
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constituídos com o máximo de 15 pessoas, constituindo-se depois a Federação de Grupos, que terá representação junto à Federação Operária de São Paulo”29.
Em outro artigo A Plebe dizia que era preciso dar
“algumas palavras de incentivo com o fim de procurar
orientar aqueles que, mesmo estando filiados em qualquer sindicato queiram fazer obra de propaganda de
modo a animá-los para a luta indicando-lhes o caminho a seguir. [...] Os grupos de afinidade devem ser
agrupações de indivíduos afins mais ou menos conscientes de penetrar na alma da dor universal”30.
Associação de indivíduos afins que, à margem dos
sindicatos, atuarão como seu complemento no objetivo
de “preparar militantes, esclarecer e educar o proletariado na sua finalidade revolucionária”: essa será uma
constante preocupação dessa época. O apelo já não é
aos “operários em geral” para que se associem por categoria profissional, mas ao indivíduo consciente e afim
para que, por meio de suas pequenas agrupações, possam fazer aquilo que os sindicatos estão impedidos de
fazerem. Não se trata apenas de “conclamar as massas”. Certamente se irá apelar a elas em circunstâncias determinadas, porém é preciso perceber que essa
também foi uma época de adesões massivas e involuntárias31. E tais fatos questionavam as possibilidades efetivamente revolucionárias do sindicato como órgão
transformador da sociedade e, frente ao desânimo da
luta sindical, uma recorrida forma de resistência anarquista foram os chamados “grupos por afinidade”.
Por ora, o termo que os denomina não possui importância, mas o fato desses grupos serem fundados dentro de interesses peculiares e do relacionamento entre seus associados ser muito intenso; esses grupos
tinham em vista buscar que cada um descubra o ambi-
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Revolta, ética e subjetividade anarquista
ente que lhe convenha, que cada um possa trabalhar
segundo suas idéias e seu temperamento, e encontre
na associação, não um limite a sua liberdade, se não o
modo de fazer mais eficaz sua atuação, mais verdadeira sua liberdade. Foram essas associações que permitiram a intensificação das relações que o indivíduo é
levado a manter consigo mesmo e com os outros, exercendo-as num movimento recíproco. O grupo foi o meio
pelo qual essa “cultura de si” tornou-se prática social.
Tudo indica que aquelas funções de militância pública estejam longe de esgotarem as reais possibilidades desses grupos. Que eles tinham um papel importante dentro do próprio âmbito de instâncias particulares e estratégicas de formação individuais, é o que se
percebe quando Malatesta lamenta “que haja, ainda
entre nós, quem não pense com a própria cabeça e espere a opinião de fulano ou beltrano, quando a lógica
das idéias professadas deveria bastar para decidi-lo; e
reconhecemos o perigo sempre presente dos maus pastores. [...] quanto mais há companheiros desorganizados e isolados, mais prepondera a influência do orador
e do periodista e, não achando resistência nem observação eficaz na coletividade, pode degenerar em autoridade efetiva e nefasta. No fim de contas, a base de
tudo é sempre a consciência do indivíduo, de cada indivíduo; e esta consciência tanto mais se desenvolve e
se eleva quanto mais são os contatos, as discussões,
as coisas feitas em comum”32. Em relação a isso, é curioso ver na trajetória do militante anarquista Oresti
Ristori um desenvolvimento pessoal que, no curto espaço de oito anos, o retira de uma qualificação precedente de “discreta inteligência”, “cultura muito limitada” e alfabetização de “apenas ler e escrever”, para
uma outra qualificação de “engenho não comum, vivo,
e, em especial modo, assimilador”, que se apreendia
191
6
2004
em seus artigos escritos em italiano, espanhol e francês33. Não é possível pensar uma tal transformação sem
práticas e técnicas de si, sem o desenvolvimento de
uma cultura de si.
E, mais uma vez, é preciso insistir que essas associações ganharam uma maior realidade a partir da
problematização do sindicalismo revolucionário, apontando que: “O sindicato, (...) agindo nos limites do sistema de salários e, ao mesmo tempo, colaborando com
os capitalistas na vida e desenvolvimento das respectivas indústrias, não é suscetível de transformação no
sentido da subversão do regime econômico (...) [e que a
obra das agrupações anarquistas deveria ser feita] de
forma que, em lugar de reproduzir mentalidades de
pobres, crie homens de pensamento esclarecido com
princípios definidos e convicções profundas, senhores
da filosofia e da ética anarquista”34. E que, ainda, apenas por meio dessas associações é que se garantiria a
efetuação daqueles trabalhos de exposição tendo “em
vista formar consciências, que se multipliquem, e não
formar rebanhos que obedeçam ao mando de qualquer
palavra de ordem”35.
É preciso apreender nessas associações que elas funcionaram como o locus privilegiado para aqueles exercícios cujo objetivo é reativar os saberes do anarquismo,
fazê-los presente, refletir sobre eles, assimilá-los, enfim, estar preparado para enfrentar a realidade. Essas
associações possibilitaram e incentivaram modos de
subjetivação dos saberes anarquistas; elas reuniriam
práticas discursivas, de leituras, de escrita, e tudo o
mais que se fazia sob a insígnia do autodidatismo, e
neste sentido cumpriram uma função assinalada por
Foucault de etopoiética: elas foram os operadores da
transformação do discurso anarquista em ethos, reunindo e captando aquilo que se pôde ouvir, ler ou avis-
192
verve
Revolta, ética e subjetividade anarquista
tar, com a finalidade de constituir a si mesmo como
sujeito portador de saberes e condutas singulares.
Elas também constituíram uma resposta às formas
de sujeição do indivíduo em determinada época, uma
estratégia que tentou neutralizar os efeitos de um poder que pretendeu manter o indivíduo preso a uma individualidade sujeitada. Seu aparecimento está conectado a um momento histórico em que o anarquismo no
Brasil, suas preocupações e táticas, tornou-se fundamentalmente ético, contrariamente ao tipo de luta sindicalista precedente, que se ligava a uma base de massas por questões essencialmente econômicas.
Notas
M. Godelier. O enigma do Dom. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001,
p. 12.
1
2
M. Foucault. História da sexualidade: o uso dos prazeres. Vol. II. Rio de Janeiro,
Graal, 1994, p. 13, grifos meus.
J. Birman. Entre cuidado e saber de si – sobre Foucault e a psicanálise. Rio de
Janeiro, Relume Dumará, 2000, p. 85.
3
M.Foucault. “O Sujeito e o Poder” in H. L. Dreyfus & P. Rabinow. Michel
Foucault, uma trajetória filosófica - Para além do estruturalismo e da hermenêutica.
Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995, p. 231.
4
P. Rabinow. Antropologia da Razão. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1999, p.
31.
5
M. Foucault. “O Sujeito e o Poder”, op. cit., p. 235.
6
F. Guattari. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo, Ed. 34, 1992, p.
12.
7
F. Ewald e A. Fontana in M. Foucault. Em defesa da sociedade. São Paulo,
Martins Fontes, 1999, p. 11.
8
9
Idem, p. 13.
10
M. Foucault, “O Sujeito e o Poder”, op. cit., p. 239.
11
Idem., op. cit., 1994, p. 13.
193
6
2004
12
J. Birman, op. cit., pp. 80-82.
R. K. Merton. Sociologia – teoria e estrutura. São Paulo, Ed. Mestre Jou, 1970,
p. 267.
13
14
A. Camus. O homem revoltado. Rio de Janeiro, Record, 1999, p. 21.
15
Idem, p. 27.
16
F. Nietzsche. Humano, demasiado humano – um livro para espíritos livres. São
Paulo, Cia. Das Letras, 2001, p. 82.
A. Hamon. Psicolojia do anarquista-socialista. Lisboa, Guimarães & Cia. Editores, 1915, pp. 57-58.
17
18
Na transcrição feita por G. Woodcock, Os grandes escritos anarquistas. Porto
Alegre, L&PM Editores, 1998, pp. 156-157, “Revolução e Insurreição”,
Max Stirner coloca em oposição essas duas noções. Entretanto, Thiago S.
Santos, “Ode à petulância” in Verve, 2004, nº5, pp. 301-305, chamou atenção dizendo que “Barrué se mostra um atento leitor ao dar a devida importância aos sentidos etimológicos. Atenção presente quando Stirner trata da
questão da revolução-insurreição. Segundo Barrué, ele empresta a palavra
francesa révolution, de origem latina. À “palavra Revolução Stirner opõe
Emporung, cujo sentido habitual é revolta, rebelião”. Desse modo, enquanto
a revolução vem colocar uma nova ordem nas coisas, seja por meio de um
novo Estado ou da manutenção da idéia de sociedade, a insurreição pretende
que o indivíduo se eleve, e não seja dominado por qualquer ordem”.
19
M. Stirner. “Revolução e Insurreição” in G. Woodcock, op. cit.
M. Stirner. El único y su propriedad. Valência, F. Sempere y Cia. Editores, s/
d, pp. 152-153.
20
E. Malatesta. “Pensiero e volontà”, 01/09/1925 in V. Richards. Malatesta,
vida e ideas. Barcelona, Tusquets Editor, 1977, p. 24.
21
P.-J. Proudhon. De la justice dans la révolution et dans l’Église: études de philosophie
pratique. Tome I. Paris, Fayard, 1988, p. 169.
22
23
Idem, pp. 176-177.
24
Ibidem, p. 181.
G. Berti. Errico Malatesta e il movimento anarchico italiano e internazionale
(1872-1932). Milão, Franco Angeli, 2003, p. 235.
25
26
E. Malatesta. “Errori e rimedi” in G. Berti, op. cit., p. 237.
Idem, “Arrestiamoci sulla china: a proposito dell’attentato di Buffalo” in G.
Berti, op. cit., p. 330, grifos nossos.
27
28
F. Carvalho. “Carta aberta”, A Plebe, nº 11, 28/01/1933, grifos meus.
194
verve
Revolta, ética e subjetividade anarquista
29
“Núcleos de ação e cultura libertária”, A Plebe, nº 22, 29/04/1933.
30
“Pela formação de agrupações libertárias”, A Plebe, nº 23, 06/05/1933.
“A atitude dos anarquistas frente à Revolução de 30, de modo semelhante
ao que ocorrera diante da rebelião tenentista em 1924 e também da Revolução Constitucionalista de 1932, apresentava-se inicialmente como uma reação de indiferença. Devido ao caráter político-partidário desses acontecimentos, os anarquistas, que se firmavam como apolíticos, viam simples troca
de governantes que não afetaria a condição operária”, R. de Azevedo. A
resistência anarquista: uma questão de identidade (1927-1937). São Paulo, Arquivo do Estado/Imprensa Oficial, 2002, p. 58.
31
E. Malatesta apud L. Fabbri. Malatesta. Buenos Aires, Americalee, [194-],
p. 321.
32
Cf. C. Romani. Oreste Ristori – uma aventura anarquista. São Paulo,
Annablume/Fapesp, 2002.
33
“Do comitê de relações dos grupos anarquistas”, A Plebe, nº 51, 23/12/
1933.
34
“Como encarar a obra de organização dos grupos”, A Plebe, nº 49, 09/11/
1933.
35
195
6
2004
RESUMO
Aborda a constituição da subjetividade anarquista por meio da
noção de estética da existência de Michel Foucault e da conexão
revolta-ética, e a repercussão no anarquismo brasileiro.
Palavras-chave: estética da existência, revolta, anarquismo no Brasil.
ABSTRACT
The author addresses the development of the anarchist subjectivity
through the Michel Foucault’s concept of aesthetic of existence
and the connection revolt-ethics, and the repercussion in Brazilian
anarchism.
Keywords: aesthetic of existence, revolt, anarchism in Brazil.
196
verve
O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade
o corpo obsoleto e as tiranias do upgrade
paula sibilia*
Começando pela biotecnologia e avançando velozmente
rumo à nanotecnologia, tratamos a matéria como informação. Essa redução ao nível molecular irá nos permitir digitar
as moléculas no computador para criarmos o produto de consumo desejado. Este irá se apresentar, emulando o funcionamento do mundo biológico.
R.U. Sirius
A forma viva leva a sua atrevida existência na matéria,
paradoxal, lábil, insegura, rodeada de perigos, finita, profundamente irmanada com a morte.
Hans Jonas
* Mestre em Comunicação, Imagem e Informação (UFF), e doutoranda em
Comunicação e Cultura (ECO-UFRJ) e em Saúde Coletiva (IMS-UERJ). É
autora do livro O homem pós-orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais (Rio
de Janeiro: Relume Dumará, 2002).
verve, 6: 199-226, 2004
199
6
2004
O ideário da tecnociência contemporânea — com a
teleinformática e as biotecnologias balizando a rota —
está se expandindo pelo tecido social, cada vez com mais
veemência, atingindo as áreas mais diversas e turvando
muitas definições que outrora pareciam claras. Durante
milênios vigorou, na tradição ocidental, uma distinção
radical entre physis e techne (em termos gregos) ou natura
e ars (em termos latinos). Natural e artificial. De um lado,
o ser que é princípio do seu próprio movimento; de outro
lado, as operações humanas para utilizar, imitar e ampliar o escopo do natural. Dois mundos nitidamente diferenciados. Hoje, porém, a fronteira entre ambos está se
dissipando, e os discursos das mídias, das artes e das
ciências estão engendrando um novo personagem: o homem pós-orgânico.
Do que se trata? Para começar a abordagem do assunto, o melhor talvez seja recorrer a alguns dos muitos fenômenos inquietantes que assinalam essa tendência e
estão inundando o nosso cotidiano, permeando o imaginário contemporâneo e desestabilizando as velhas
cosmovisões. Um exemplo é o caso da jovem eleita Miss
Brasil em 2001, cujo título foi questionado quando veio a
público que seu corpo fora submetido a uma longa série
de cirurgias plásticas, revelando-se como uma construção da tecnociência — uma obra de arte talhada com
bisturis e modelada em silicone — em vez de um autêntico expoente da “beleza natural feminina”. Estranheza
semelhante é suscitada pelos projetos de clonagem animal e humana e pelas experiências transgênicas, que
dão à luz a tomates com genes de salmão, milho com
genes de vagalume e porcos com genes de galinha. E,
também, pelas tendências virtualizantes da teleinformática: pessoas que se relacionam por meio da Internet,
por exemplo, prescindindo do encontro físico dos corpos
para criarem laços afetivos. Cabe refletir, também, so-
200
verve
O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade
bre os chamados “produtos orgânicos”, que ocupam um
espaço específico (e reduzido) nos supermercados, com
uma aura sofisticada que justifica seu preço maior, insinuando de alguma maneira que todos os demais alimentos teriam algo de não(pós?)-orgânico.
O que é essa organicidade, essa “natureza” originária
da qual todos os casos acima mencionados estariam se
distanciando? Em que consiste essa característica que
parecia definir a vida e o propriamente humano, mas agora
começa a perfilar-se como ultrapassada?
Metáforas cosmológicas: impõe-se um upgrade
Para responder às perguntas do parágrafo anterior, é
necessário mergulhar brevemente no século XVII, a fim
de resgatar um gesto fundamental na história das idéias
que esculpiram a tradição ocidental. Naquela época longínqua, novas cosmologias brotaram da física e da astronomia, sacudindo a imagem do mundo vigente até o momento. Em seguida, tais idéias foram apropriadas pelos
filósofos para re-explicar o homem, a vida e o universo
em termos mecânicos. Desse processo resultou a fértil
metáfora do homem-máquina, que procurava decifrar o ser
humano com o instrumental da ciência da época, isto é:
dissecando seus mecanismos e observando suas engrenagens em funcionamento. Assim, o Tratado sobre o homem de René Descartes, por exemplo, jamais poderia ter
prescindido das inúmeras analogias de máquinas hidráulicas, relógios e autômatos na tentativa de definir o corpo
humano.
No final do século XX, de modo semelhante, a tecnociência de alcance molecular começou a estimular a revisão dos conceitos filosóficos herdados daquela antiga
visão do mundo, disseminando suas propostas e ambições para fora dos laboratórios e tingindo o universo com
201
6
2004
suas novas idéias. Hoje, as ciências da vida se aliam à
teleinformática de maneira cada vez mais intrincada,
numa junção das duas vertentes mais significativas dos
saberes hegemônicos contemporâneos. Com seu
paradigma digital, sua tendência virtualizante e seu
embasamento na informação imaterial, ambos os tipos
de saberes e ambos os conjuntos de técnicas estão sendo
aplicados aos corpos, às subjetividades e às populações
humanas, contribuindo para a sua produção.
Carne e microchips
Em mais de um sentido, de fato, os computadores e as
novas técnicas biológicas estão intimamente aparentados. No nível econômico, esses dois poderosos campos da
tecnociência estão unindo esforços e investimentos, através da fusão de companhias de ambas as origens e da
participação conjunta em diversos projetos de pesquisa.
A área da biotecnologia, caracterizada por uma proliferação de empresas novas e pequenas porém muito pródigas no desenvolvimento de tecnologias inovadoras e descobertas surpreendentes, requer um poder de processamento computacional e uma capacidade de armazenamento em bancos de dados cada vez maiores. Os gigantes conglomerados da informática descobriram o nicho de mercado e começaram a se associar ou a adquirir
as pequenas empresas já existentes, abrindo também
novos departamentos dedicados às Ciências da Vida. Mas
a fusão não está ocorrendo apenas no terreno dos negócios: os dispositivos em desenvolvimento são autênticos
exemplos de uma hibridização profunda, que mistura
matérias orgânicas e inorgânicas nos próprios aparelhos
que estão sendo fabricados. Já existem, por exemplo, os
chamados biochips ou wetchips (chips úmidos). Trata-se
de uma nova classe de microprocessador, em cuja com-
202
verve
O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade
posição intervêm circuitos eletrônicos e tecidos vivos. Os
dois tipos de componentes se conectam logicamente e
intercambiam dados, porque ambos operam de acordo com
a mesma lógica: a da informação digital.
Cientistas israelenses descobriram que uma molécula de DNA (a estrutura química que codifica os genes
dos seres vivos) é capaz de armazenar bits e processar
instruções lógicas, podendo integrar os circuitos de um
computador. No sistema que foi assunto de capa da revista Nature no final de 2001, cada conjunto de seis pares
de bases nitrogenadas da cadeia de DNA corresponde a
um bit. Por outro lado, a tecnologia de “chave biológica”
desenvolvida na Universidade de Boston permite comutar os genes entre as posições ligado (on) e desligado (off),
através de produtos químicos ou alterações de temperatura. A partir daí é possível operar uma correspondência
entre tais posições binárias dos genes, por um lado, e,
por outro, os zeros e uns que constituem a linguagem
básica dos computadores. “Embora a comutação seja bastante lenta em comparação com a dos computadores tradicionais, a descoberta é importante por demonstrar que
as células também podem ser programadas de tal maneira que estarão aptas para conduzir a outras operações úteis”, conclui o artigo que anunciava a novidade
no jornal The New York Times, em junho de 2000.
Atualmente, os chips de DNA são fabricados por empresas como Motorola e Affymetrix, aliando vidro e silício
a milhares de fragmentos de material genético humano.
Tais dispositivos são utilizados para efetuar diagnósticos
mais precisos de doenças como a diabetes e o câncer. No
horizonte, a meta é detectar tumores e outros problemas
de saúde antes de os sintomas aparecerem, inclusive
antes mesmo de eles surgirem, bastando apenas ler as
instruções inscritas no código do paciente. A tecnologia
avança rapidamente neste campo, com fortes investimen-
203
6
2004
tos e certo furor na cotação das ações das companhias da
área. As terapias genéticas, tanto as preventivas quanto
as corretivas, a e-medicine e a “medicina personalizada”
(que se propõe a criar drogas específicas a partir do
genoma de cada indivíduo, contemplando a inserção de
células programadas no DNA) figuram entre os frutos do
recente matrimônio entre as empresas de teleinformática e as de ciências da vida. Daqui a pouco, como diz
um livro de divulgação popular sobre a genética, “toda
uma seqüência de DNA será tão fácil de ler como o código
de barras nos produtos à venda nos supermercados”1. A
analogia mercadológica não deve passar desapercebida,
pois ela toca o âmago das novas configurações de saber e
de poder.
A desmaterialização do corpo
A passagem da metáfora do homem-máquina — na qual
se apoiava o arcabouço da ciência moderna — para o modelo do homem-informação parece dar conta de um materialismo levado até as últimas conseqüências. No entanto, a materialidade da substância com a qual são constituídos todos os seres vivos é ambígua: afinal, o DNA é
um código, é pura informação. As instruções contidas nos
genomas das diversas espécies, inclusive a humana, estão sendo decifradas nos laboratórios por meio de equipamentos específicos denominados “seqüenciadores automáticos de DNA”, e toda uma aparelhagem computacional
capaz de processar uma enorme quantidade de dados. A
informação obtida dessa forma é digital: meras cadeias
de zeros e uns feitos de luz. E nelas reside o “segredo da
vida”, de acordo com o paradigma hegemônico do saber
contemporâneo.
Nos laboratórios onde ocorrem as pesquisas e descobertas da biotecnologia, como já fora mencionado, os ma-
204
verve
O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade
teriais genéticos estão se fundindo com os dispositivos
informáticos. Logo, não são apenas “as coisas da mente”
que estão sendo representadas cada vez mais por meio
de bits e bytes, como lembra uma figura ícone da
cibercultura, o norte-americano R.U Sirius2. As reflexões
aqui esboçadas sugerem que “as coisas do corpo” também ingressaram nesse processo de digitalização universal. O materialismo da genética, portanto, pode ser
enganador, pois para essa disciplina científica o fundamento da vida reside em uma série de instruções
digitalizadas: longas seqüências de letras A, T, C e G,
processadas por meio de uma parafernália informática
que funciona sem cessar, 24 horas por dia. Os organismos não entram nos laboratórios da biotecnologia; eles
ficam do lado de fora. Basta os pesquisadores contarem
com um fragmento minúsculo do DNA extraído de uma
célula qualquer do corpo e conservado numa geladeira.
Uma vez seqüenciado o código, até mesmo essas moléculas tornam-se dispensáveis, pois o “segredo da vida” já
passou para as mãos da tecnociência.
De outro lado, as tendências virtualizantes da teleinformática parecem ancorar-se, igualmente, em bases
“etéreas”. Elas privilegiam o pólo imaterial do velho
dualismo cartesiano, potencializando a mente e descartando o corpo como um mero obstáculo demasiadamente
material. É comum encontrar, entre os entusiastas desse ramo da tecnologia atual (tanto na área artística da
cibercultura quanto na área acadêmica das pesquisas
científicas), apelos em favor da hipertrofia da mente e do
abandono do corpo. “Os seres humanos se tornarão um
único e grande cérebro pelo qual as coisas voarão a toda
velocidade”, pontifica o mencionado R. U. Sirius, e prossegue: “isso acontecerá, provavelmente, antes de abandonarmos os nossos corpos físicos”. No mundo volátil do
software, da inteligência artificial e das comunicações
205
6
2004
via Internet, a carne parece incomodar. A materialidade
do corpo é um entrave a ser superado para se poder mergulhar no ciberespaço e vivenciar o catálogo completo de
suas potencialidades.
Com sua vocação transcendentalista, os projetos da
inteligência artificial que hoje estão em andamento em
diversas instituições científicas do mundo se propõem a
escanear o cérebro humano e fazer download da mente,
a fim de conquistar a imortalidade encarnada em um
computador, livre de todos os riscos e dos avatares suspeitos do corpo orgânico. Para vários pesquisadores dessa disciplina de candente atualidade, como Hans
Moravec, Marvin Minsky e Raymond Kurzweil, a definição do ser humano se apóia em seu lado incorpóreo, a
mente, desdenhando o corpo como um mero empecilho
para a sua expansão ilimitada no tempo e no espaço. Para
todos eles, contudo, a tecnologia informática logo irá superar tal limitação, concedendo imortalidade à mente na
sua hibridização com o software — o tom profético e o
estilo enfático, aliás, também são características compartilhadas por certos cientistas dessa área.
Teimosamente orgânico, porém, o corpo humano resiste à digitalização, recusa a submissão total às modelagens das tecnologias da virtualidade. Contudo, persiste
nesse imaginário o sonho de abandonar o corpo para
adentrar um mundo de sensações digitais. Um universo
“virtual”, que tem a luz elétrica como matéria-prima e
pretende ignorar as limitações que constringem o corpo
vivo. Surge assim, paradoxalmente, no cerne de uma sociedade em feroz corrida tecnológica, avidamente
consumista e adoradora da “boa forma” física, um novo
discurso da “impureza” ligado à materialidade corporal.
É possível mergulhar mais fundo nessa direção. Na
física contemporânea, que perscruta todos os elementos
206
verve
O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade
do real em nível microscópico, a matéria deixa de ocupar
um lugar no espaço e passa a ser estudada como uma
forma de energia. E essa energia imaterial costuma adquirir, cada vez com maior freqüência, a face da informação,
que se apresenta como uma metáfora todo-poderosa e de
longo alcance. “A noção de informação hoje tende a se
generalizar, em detrimento da de massa e da de energia”, constata Paul Virilio em A arte do motor3. As confirmações desse deslocamento estão por toda parte, por
exemplo: “o principal acontecimento do século XX é a
superação da matéria”, sentencia um dos tantos manifestos que a nova “era da informação” tem inspirado entre seus adeptos e que circulam agilmente pelos meandros virtuais da Internet4.
Ultrapassar a condição humana
Apesar de serem propostas bastante diversas, todos os
casos aqui comentados fazem parte do mesmo paradigma
tecnocientífico. Seu objetivo último coincide: ultrapassar os limites da matéria, transcender as restrições inerentes ao organismo humano à procura de uma essência virtualmente eterna. Essas ânsias de superar as limitações do corpo material denotam uma certa
repugnância pelo orgânico, uma espécie de aversão pela
viscosidade do corpo biológico. Apesar da crescente preponderância da cultura do fitness, do bodysm e do healthism
— ou, talvez, como mais um ingrediente dessa tendência — o corpo recebe uma grave acusação: é limitado e
perecível, demasiadamente orgânico, e portanto fatalmente condenado à obsolescência. Impõe-se, então, o imperativo do upgrade tecnocientífico.
“Ultrapassar os parâmetros básicos da condição humana — a sua finitude, contingência, mortalidade, corporalidade, animalidade, limitação existencial — aparece como
207
6
2004
um móbil e até como uma das legitimações da tecnociência”, confirma o sociólogo português Hermínio Martins,
autor de alguns ensaios bastante esclarecedores sobre a
filosofia que alicerça a tecnociência contemporânea5. Tanto nas promessas quanto nas realizações dos programas
biotecnológico e teleinformático aqui percorridos percebese claramente essa intenção de superar a condição humana ultrapassando as falências inerentes ao corpo orgânico. Assim, são desafiados os limites espaciais e temporais ligados à materialidade corporal, recorrendo ao arsenal
de tecnologias da virtualidade (que prometem acabar com
as distâncias, as fronteiras geográficas e outras restrições espaciais) e da imortalidade (declarando guerra ao envelhecimento, às doenças e à própria morte, todas restrições temporais).
Já não basta, simplesmente, melhorar as condições de
existência e lutar contra as forças hostis da natureza, como
propunha o projeto científico moderno. O novo sonho aponta para bem mais longe: visa à transcendência da humanidade. À luz dessa meta, o corpo que interage intimamente
com essas vertentes da tecnociência é conformado por informação. Deixando para trás o modelo mecânico do corpomáquina, as novas configurações corporais da era pós-industrial inspiram-se no modelo da informação digitalizada.
Assim, anunciam e buscam uma possível dispensa dos suportes orgânicos e materiais, para poderem atravessar tempos e espaços sem qualquer restrição.
Metafísica high-tech
Esse embasamento do humano em um substrato puramente imaterial não é algo novo na história das idéias
ocidentais. No século XVII, além do homem-máquina, o
mundo viu emergir uma série muito poderosa de conceitos e metáforas: o dualismo corpo-mente, uma força que
208
verve
O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade
vem constituindo as subjetividades ocidentais pelo menos ao longo dos últimos quatro séculos. Amalgamando
antecedentes das filosofias platônica e cristã com as novidades científicas da época, foi precisamente René Descartes quem definiu o homem como um misto de duas
substâncias completamente diferentes e separadas: por
um lado, o corpo-máquina, um objeto da natureza como
outro qualquer, que podia e devia ser examinado com o
método científico (res extensae); por outro lado, a misteriosa mente humana, uma alma pensante cujas origens
só podiam ser divinas (res cogitans). O filósofo notou que
— diferentemente do corpo, com sua prosaica materialidade — o fluxo de idéias, sensações, desejos e reflexões
que emanavam da alma não parecia ocupar espaço nenhum. Contudo, apesar da sua qualidade etérea e vagamente incompreensível, essa “substância imaterial” possuía uma importância fundamental para o ser humano:
“penso, logo existo”. A essência do homem era, portanto,
pura substância imaterial. De acordo com a perspectiva
cartesiana, pelo menos em teoria a mente poderia sobreviver sem qualquer suporte físico, incluindo o cérebro
humano. “Eu poderia supor não possuir um corpo”, raciocinava o filósofo; mas era impossível admitir a própria
existência prescindindo do pensamento, fruto do “espírito incorpóreo”, a alma, a mente, a consciência. Para Descartes, portanto, o corpo não faz parte da essência do ser
humano; é dispensável, na medida em que o pensamento dele independe: “sou realmente distinto do meu corpo
e posso existir sem ele”, concluía na sexta e última das
Meditações Metafísicas6.
Essa idealização metafísica do ser humano parece ressurgir hoje em um cenário aparentemente inesperado:
o das redes informáticas, em plena consonância com o
novo paradigma tecnocientífico. Neste neo-cartesianismo
high-tech, a velha oposição corpo-alma corresponderia ao
209
6
2004
par hardware-software. E a balança se inclina, também neste caso, para o pólo imaterial do software. Pois, com sua
proposta de dissolução da matéria na luz, nos impulsos
elétricos que constituem o cerne tanto das máquinas quanto dos organismos depurados e hibridizados pela
tecnociência, a nova perspectiva parece estar levando às
últimas conseqüências a transmutação dos átomos em
bits anunciada pelo “guru digital” Nicholas Negroponte. Em
seu best-seller Being Digital, publicado em 1995 e imediatamente traduzido para várias dezenas de línguas, o famoso diretor do MediaLab do MIT (Instituto Tecnológico de
Massachusetts) explicava que os bits constituem “o DNA
da informação”, e pressagiava a iminente conversão de
todos os elementos constitutivos da realidade material
nessa substância virtual7.
Hoje se realiza um processo que foi sendo incubado
nas últimas décadas: a informação perdeu seu corpo.
Como constata Katherine Hayles em seu estudo sobre a
construção do imaginário pós-humano na ciência e na
literatura, foi operada uma cisão conceitual entre a informação e o seu suporte material, desqualificando este
último e convertendo a primeira numa sorte de “fluido
desencarnado” que é capaz de transitar entre diferentes
substratos sem perder sua forma e seu sentido8. Dessa
maneira, a informação adquiriu uma relevância universal como denominador comum a todas as coisas — tanto
vivas quanto inertes — e uma supremacia sobre a matéria. Quando essa noção atingiu o domínio do ser humano, foi inevitável assumir que o corpo orgânico não faz
parte da sua “essência”. Ao contrário, a encarnação biológica dos homens seria um mero acidente histórico em
vez de uma característica inerente à vida. E mais: se a
“essência” da humanidade for de fato informática, então
não há diferenças radicais entre computadores e seres
210
verve
O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade
humanos, pois ambos compartilham a mesma lógica de
funcionamento.
Tal operação conceitual desembocou na atual proliferação de metáforas ligadas ao universo digital que se espalham por todos os âmbitos, com a imaterialidade da
informação como um ingrediente fundamental dessa retórica. Nos discursos publicitários, nas telas do cinema,
na literatura e, inclusive, em alguns textos teóricos, subitamente a realidade inteira pode se revelar como um
programa informático que está sendo executado em um
computador cósmico. Assim, a tecnociência contemporânea estende em todas as direções seu horizonte de
digitalização e de dissolução das matérias mais diversas
em feixes de bits: nos sinais eletrônicos que se apresentam como um “fluido vital” universal, capaz de sustentar
tanto as máquinas quanto os organismos virtualizados.
Mas há uma certa resistência: o corpo biológico ainda se
ergue. E a sua materialidade se rebela; por vezes, ele
parece ser orgânico, demasiadamente orgânico. A teimosia do sensível persiste, o homem parece estar enraizado em sua estrutura de carne e osso. Ao menos — talvez caiba acrescentar — por enquanto.
Digitalização do humano e pós-evolução
De acordo com estimativas publicadas na revista
Scientific American, a “evolução tecnológica” é dez milhões
de vezes mais veloz do que a “evolução biológica”. E o futuro se anuncia ainda mais vertiginoso: neste século,
segundo o especialista em inteligência artificial Raymond
Kurzweil, os avanços tecnológicos da humanidade prometem dobrar a cada dez anos, de maneira exponencial.
Nesse ritmo, os velhos mecanismos da Natureza não podiam senão se tornarem ultrapassados, obsoletos. No
nascente século XXI, a atualização tecnocientífica dos
211
6
2004
organismos vivos já não obedecerá (ou, pelo menos, não
exclusivamente) às ordens arcaicas e vagarosas da evolução natural descrita pelos biólogos do longínquo século
XIX, seguindo a trilha aberta por Charles Darwin. Abrese, agora, um novo caminho, que aponta para a evolução
pós-biológica ou pós-evolução de caráter informático e
genético: o homem lança mão dos saberes tecnocientíficos para operar seu próprio upgrade.
As terapias genéticas prometem revolucionar a medicina com a prevenção e até mesmo a “correção” dos
“erros genéticos” detectados nos códigos dos pacientes.
Tais técnicas poderão ser aplicadas tanto em nível
somático (afetando somente o indivíduo em tratamento)
quanto em nível germinativo (operando nas células sexuais e embrionárias, habilitando assim a transmissão
do novo traço para toda a descendência do organismo alterado). Por outro lado, a engenharia genética oferece um
catálogo de “tecnologias da alma”, surgidas de um campo
de saber que hoje recebe atenção permanente da mídia:
a genética comportamental. Esta disciplina se propõe a
identificar as supostas relações existentes entre um determinado gene e um certo traço da subjetividade (inteligência, ansiedade, preguiça, desejo sexual, ambição,
pessimismo, etc.), utilizando a estatística como método
básico para estabelecer as correspondências. Seu objetivo final coincide com o da genética médica: diagnosticar,
prevenir e eventualmente “ajustar” determinados “erros” inscritos nos códigos genéticos dos indivíduos. Assim, alterando a informação contida no DNA seria possível, por exemplo, transformar um criminoso — potencial
ou real — em um “homem honesto”. O desafio está lançado: se a propensão à violência é controlada pelos genes,
por que não intervir para corrigi-la? Do mesmo modo, se
ela é transmitida geneticamente, por que não praticar
logo uma terapia em nível germinativo, ao invés de limi-
212
verve
O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade
tar-se à extirpação somática no indivíduo, para assim eliminar o “gene violento” de toda a descendência do sujeito
e livrar-se para sempre desse grave problema social?
Além das trocas e alterações na informação genética,
que apontam para a modelagem dos corpos e das subjetividades, a tecnociência contemporânea também facilita
a inserção subcutânea de componentes não-orgânicos,
hibridizando os corpos com materiais inertes. Trata-se
do processo que Paul Virilio denominou endocolonização
e que caracteriza a conquista do interior do organismo
humano por parte da tecnociência mais recente: da aparelhagem videoscópica utilizada para o diagnóstico e o
tratamento de diversas doenças até as experiências mais
inovadoras de cirurgias sem cortes por meio da inserção
de dispositivos nanotecnológicos. Cada vez mais
introjetados, transparentes e diluídos em trocas íntimas
e fluidas, os agentes artificiais se misturam com os orgânicos, dissolvendo as fronteiras e tornando obsoleta a
antiga diferenciação, visto que ambos os tipos de elementos compartilham a mesma lógica da informação digital.
Assim, hoje são criados materiais inéditos, híbridos de
ambos os mundos, representados pelos microchips com
componentes orgânicos e pelos implantes biônicos. Estes últimos se apresentam como capazes de devolver a
visão aos cegos e a possibilidade de andar aos paraplégicos, graças à implantação cirúrgica de microprocessadores no cérebro e outros dispositivos teleinformáticos ligados aos nervos, aos músculos ou a órgãos
específicos. Soluções semelhantes estão sendo testadas
para tratar de doenças como a epilepsia e os males de
Parkinson e Alzheimer; e, inclusive, de distúrbios nervosos como a obsessão compulsiva, a síndrome do pânico
e a depressão.
Em seu livro mais recente, The Singularity is Next, o
mencionado Kurzweil afirma que a evolução tecnológica
213
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2004
logo será tão rápida e profunda que representará “uma
ruptura no tecido da história humana”. Tal descontinuidade histórica ocorrerá, segundo o autor, por causa
do apagamento da linha que costumava separar os seres
humanos dos dispositivos informáticos: “ela ficará cada
vez mais tênue, à medida que computadores do tamanho
das células — os nanobots — permitam aos cientistas o
desenvolvimento de modelos do cérebro humano baseados em computadores, além do aperfeiçoamento das mentes através de pequenos implantes digitais”. Assim, combinando as diversas habilidades dos homens com a velocidade, a precisão e a capacidade de processamento dos
computadores, a inteligência humana poderá ser
incrementada: “o cérebro humano não terá mais um limite estabelecido pela natureza”, conclui Kurzweil. Além
dos implantes de memória artificial, o cientista destaca
a possibilidade de introduzir dados no cérebro através de
canais neurais diretos. Dessa forma, seria possível aumentar a própria capacidade de armazenar informações
a velocidades inusitadas, deixando obsoletos os árduos
processos de aprendizado tradicionais. Como resultado
dessa fusão entre o órgão cerebral e os circuitos eletrônicos, é oferecida uma possibilidade sedutora: a de efetuar um upgrade sistemático da alma, a partir da variedade de menus oferecidos no mercado.
A compatibilidade entre homens e computadores
Se somente agora essa interação orgânico-eletrônica
está se realizando nos laboratórios, há muito tempo que
ela vive no imaginário da ficção-científica: na última década, a idéia foi recriada em filmes como eXistenZ, Johnny
Mnemonic, Matrix, O vingador do futuro e Estranhos prazeres9. Ultrapassando os limites da ficção, todavia, o cientista britânico Kevin Warwick oferece um exemplo per-
214
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O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade
feito dessa novíssima compatibilização entre homens e
computadores. Ele próprio explica o objetivo das experiências em andamento na Universidade de Reading, baseadas na implantação de um microchip em seu braço
para comunicar seus nervos com um computador: “Captaremos em meu sistema nervoso os sinais físicos produzidos por sensações como a dor, a raiva, o medo e a
excitação sexual. Depois os devolveremos ao sistema
nervoso e observaremos os resultados. Será possível recriar a dor, por exemplo? Cremos que sim. Poderemos
enviar impulsos eletrônicos para inoculá-la, como uma
espécie de anestesia local? Seria muito útil se pudéssemos inserir um chip nos corpos das pessoas que sofrem
de dores constantes para eliminá-las de forma eletrônica e dispensar assim os calmantes químicos, com todos
seus efeitos negativos. Procuraremos também enviar
sinais de uma pessoa para outra, de um sistema nervoso
para outro, através da Internet, a fim de conhecer os efeitos provocados pelos impulsos alheios. Eu tenho certeza
de que a criação eletrônica de estados de ânimo será possível em um futuro muito próximo, talvez daqui a dez
anos”10.
Assim, utilizando um léxico e uma retórica comuns
ao reino biológico e ao informático, o homem contemporâneo se torna compatível com os computadores. A lógica
digital envolve a ambos e os interconecta. Se essa interconexão é viável, então também serão possíveis a
interação, a troca de dados e a operação conjunta entre
os dispositivos informáticos e os órgãos corporais. Na
Universidade de Califórnia, por exemplo, foi desenvolvido um implante do tamanho de um grão de arroz: após a
inserção subcutânea, ele é capaz de operar como intermediário na comunicação entre os nervos e as mais diversas peças eletrônicas implantadas no organismo, permitindo efetuar todos os processos computacionais no
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interior do corpo e dispensando a necessidade de fios e
próteses externas.
A integração de circuitos eletrônicos no corpo humano — por meio de próteses e implantes conectados ao
organismo para restaurar funções danificadas —
corresponde à biônica, um dos ramos da medicina que
gera mais expectativas na atualidade por conta de alguns
avanços surpreendentes registrados nos últimos anos e
das promessas que reserva para o futuro próximo. A disciplina mereceu um dossiê completo da revista Science
em fevereiro de 2002, no qual nove especialistas sintetizaram os projetos e as conquistas mais importantes da
área. Uma equipe médica dos Estados Unidos, por exemplo, divulgou uma experiência de implantação de chips
microscópicos no globo ocular de um homem com problemas na retina, na tentativa de reverter sua cegueira. Do
mesmo modo, existem experiências tendentes a restaurar o sentido auditivo em pacientes surdos, também por
meio de próteses biônicas e implantes eletrônicos embutidos no corpo.
Confiantes no ritmo em que avançam a miniaturização dos componentes eletrônicos, a criação de materiais biocompatíveis e os conhecimentos sobre genética e
engenharia de tecidos, os cientistas acreditam que as
próteses informáticas para diversos fins abandonarão o
terreno puramente experimental e estarão disponíveis
no mercado já na próxima década. Por causa disso, atualmente, várias dezenas companhias biomédicas estão investindo centenas de milhões de dólares na pesquisa que
conduzirá ao desenvolvimento de novas técnicas e
próteses biônicas. Por enquanto, um dos acontecimentos mais festejados foi a criação da primeira mão artificial que permite ao portador utilizar os canais nervosos
existentes para controlar cinco dedos protéticos comandados por um computador. A comunicação com o disposi-
216
verve
O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade
tivo se efetua por meio de sinais elétricos emitidos pelos
músculos e tendões do usuário, permitindo a realização
de tarefas complexas como tocar piano e digitar no teclado. A prótese informática foi desenvolvida por uma equipe da Universidade de Rutgers (EUA) liderada por William
Craelius, quem considera que “as tecnologias biônicas
podem restaurar quase qualquer função perdida, pelo
menos em algum grau”11.
Nesse projeto de digitalização do humano, corpo e mente se tornam programáveis. Como resume Davi Geiger,
pesquisador em inteligência artificial no MIT: “somos simplesmente uma máquina, um tipo muito especial de máquina similar a um computador, com programas desenvolvidos ao longo da evolução das espécies”. Extrapolando
a metáfora até implodi-la, o cientista conclui que não
existe nenhum tipo de informação que não possa ser processado no computador-homem; a única limitação residiria “no tamanho da memória, do processador e dos programas nele instalados”12. O único obstáculo para atingir a compatibilidade absoluta, portanto, nessa perspectiva
de equivalência total entre computadores e homens, parece ser o estágio ainda insuficiente de desenvolvimento tecnológico. Sabe-se, entretanto, que a capacidade da
aparelhagem informática aumenta de maneira
exponencial e suas potencialidades não têm limites: elas
são, por definição, infinitas. “O número de transistores
que podemos incluir dentro de um circuito integrado se
duplica a cada 18 meses”, confirma em depoimento à
revista Science o cientista responsável pela invenção da
primeira mão biônica. E prossegue William Craelius: “nesse ritmo, o processamento para a atividade biônica complexa poderá ser implantado no cérebro ou em qualquer
outra parte do organismo daqui a dez anos”. Nesse horizonte de universalismo infinitista, pode-se dizer que tudo
e todos — todas as coisas e todos os seres vivos — pode-
217
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2004
rão ingressar na ordem digital. Tudo pode ser convertido
em informação. Tudo pode ser processado, à medida que
se estende o projeto de digitalização dos reinos orgânicos
e inorgânicos.
O imperativo da reciclagem
Amparada na alquimia digital, enfim, a nova
tecnociência parece ter condições de oferecer o instrumental necessário para realizar o tão desejado sonho de
modelar os corpos e as almas, gerando os mais diversos
resultados ao gosto do consumidor. Auto-produzir-se e viver eternamente: duas opções que hoje são oferecidas no
mercado. Graças ao acúmulo de saberes e técnicas, os
discursos da tecnociência expulsam a velhice e a morte
do neoparaíso humano. Enfraquecidas as restrições impostas pela velha Natureza, com suas severas leis colocadas em xeque, o sujeito contemporâneo é incitado a
gerir seu próprio destino, tanto em nível individual como
da espécie.
As derivações dessa proposta são, basicamente, duas.
De um lado, abre-se o caminho rumo à realização do sonho individualista e narcisista por excelência: o da autocriação — a proposta, idealizada e perseguida com fervor
pelos modernistas, de fazer de si mesmo uma “obra de
arte”13. Contudo, os alcances e limites de tais sonhos hoje
são demarcados, em grande parte, pelas diretrizes do mercado que impelem os sujeitos a se tornarem “gestores de
si”, administrando suas potencialidades a partir das escolhas de produtos e serviços oferecidos pelas empresas.
De outro lado, é inegável a importância desta questão
em nível macro-social: o replanejamento da espécie humana, possibilitado pela pós-evolução auto-dirigida, é um
tema extremamente problemático que carrega obscuras
conotações éticas e políticas. A responsabilidade pela
218
verve
O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade
produção de corpos e subjetividades da população global
parece cair, hoje em dia, nas mãos de uma tecnociência
que opera conforme a lógica cega do capital, minguando a
capacidade de ação dos organismos públicos, das instâncias políticas tradicionais e dos Estados-Nação; instituições,
todas elas, que costumavam orquestrar o biopoder característico das sociedades industriais. Nesse contexto, um
espectro torna a assombrar o mundo: o da eugenia. Os projetos de aprimoramento da espécie humana com base no
novo arsenal tecnocientífico despertam inquietantes ecos
totalitários que pareciam já esquecidos; agora, porém, eles
retornam numa nova versão: globalizada, sem referências nacionalistas ou raciais explícitas, e comandada com
mão firme pelas tiranias e alegrias do mercado.
Novas estratégias de biopoder configuram, hoje em dia,
outras formas de dominação e de produção subjetiva, apontando para um novo modelo de humanidade: desprovido
das profundezas do inconsciente, do compromisso social
e do peso da história. A mutação envolve um forte apego
aos valores associados ao mercado, como rentabilidade,
eficiência, visibilidade e performance, no intuito de proporcionar soluções técnicas a todos os problemas (sejam
eles da alma, do corpo ou da sociedade), na busca pragmática de resultados rápidos, tangíveis e mensuráveis.
Assim, uma gama diversificada de serviços com boa relação custo-benefício é oferecida aos consumidores, acompanhando a decadência da força biopolítica das instituições estatais e a disseminação da lógica da empresa por
todo o tecido social. Desse modo, os novos saberes colocam no mercado uma série de dispositivos de prevenção,
que permitem a cada sujeito — ou obrigam-nos — a administrar os riscos inerentes à sua informação orgânica
pessoal a partir do conhecimento de suas próprias tendências, propensões e probabilidades. Uma informação
vital que é decifrada por meio de um complexo instru-
219
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2004
mental tecnológico de tipo digital. Terapias preventivas,
enfim, cujo objetivo biopolítico é o controle da vida.
Detecta-se, portanto, uma transição para um novo regime de poder: uma passagem da vigilância disciplinar
analisada por Michel Foucault para essa gestão privada
dos riscos. Novas “terapias para os normais” se generalizam, dissolvendo o sujeito da sociedade industrial para
conformar outros modos de subjetivação. Nesse movimento, os indivíduos são impelidos a se tornarem gestores de
si, planejando as próprias vidas como os empresários delineiam as estratégias de seus negócios, avaliando os
riscos e fazendo escolhas que visem maximizar sua “qualidade de vida”, otimizando seus recursos pessoais e privados, e gerenciando as opções de acordo com parâmetros
de custo-benefício, performance e eficiência. Desse modo,
os sujeitos contemporâneos procuram enfrentar a tragédia da própria obsolescência, assumindo as ferozes exigências da “competitividade”. A própria saúde é um capital que os indivíduos devem administrar, escolhendo consumos e hábitos de vida e calibrando os riscos que deles
podem decorrer. Mais uma vez, é a lógica da empresa
espalhando-se por todas as instituições e conquistando
novos espaços. Pois, no mundo contemporâneo, só os paranóicos sobrevivem — parafraseando o famoso executivo da Intel, Andrew Grove14. Ou seja: aqueles sujeitos
que demonstram uma capacidade de se adaptarem às
mudanças constantemente exigidas pelo capitalismo pósindustrial dos fluxos globais, aqueles que conseguem se
auto-programar a partir dos veredictos da tecnociência
ligada ao mercado. Enfim: sujeitos eficazes, flexíveis e
recicláveis. As medidas preventivas e a gestão dos riscos,
portanto, canalizam das forças vitais conforme as exigências da nova formação política, econômica e social.
Todos os membros da espécie humana têm probabilidades de adoecer e morrer, todos possuem erros nos có-
220
verve
O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade
digos, todos são virtualmente doentes, todos estão condenados à obsolescência e, por causa disso, devem se submeter à economia dos riscos; assim como na sociedade
industrial todos os sujeitos deviam ser vigiados e corrigidos, o tempo todo, para serem enquadrados na esteira da
normalidade. Hoje é função de cada indivíduo conhecer
suas tendências e administrar seus riscos, numa forma
de auto-policiamento privado que implica o dever de lutar contra o próprio destino, ultrapassando os limites da
própria configuração biológica com a ajuda da tecnociência. É assim que o biopoder propaga atualmente o
imperativo da saúde e da vida eterna no campo de batalha pela produção de corpos e subjetividades, na tentativa de evitar que os erros inscritos como probabilidades
nos códigos genéticos se efetivem — tanto nos organismos quanto no corpo social.
Esse imperativo da saúde incita a obsessão pelo cuidado do corpo e à procura por “estilos de vida saudáveis”.
Copiosamente alardeado nos mídia, tanto no jornalismo
quanto na publicidade, tal imperativo chega a adquirir
tons agressivos, em ocasiões, com um certo “terrorismo
visual” que vai se intensificando nas propagandas. Um
bom exemplo é fornecido, no Brasil, pela campanha de
prevenção das doenças vinculadas ao fumo por meio da
impressão de imagens explícitas sobre os malefícios do
cigarro no verso das embalagens de todas as marcas
comercializadas no país. Assim, o sujeito atingido pelas
novas modalidades biopolíticas de formatação subjetiva
metaboliza o imperativo da saúde: assumindo-se como
gestor de si, minimiza ou maximiza os riscos provavelmente inscritos em sua predisposição genética, ao
combiná-los com um estilo de vida saudável ou perigoso.
Pois, em pleno processo de formatação do homem pósorgânico, a tecnociência adverte: quem não conseguir
atingir a categoria de pós-humano, selando o pacto de
221
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2004
transcendência com suas sedutoras promessas e seus
árduos imperativos, pode estar condenado a virar subhumano.
Dos “corpos dóceis” aos “corpos ligados”
Quando Paul Virilio descreve o “homem superexcitado”
como um tipo característico da subjetividade contemporânea, assinala a ênfase voltada para os nervos: um território privilegiado do estresse e de outros distúrbios típicos da contemporaneidade, tais como a depressão, a
anorexia, a síndrome de pânico e os comportamentos compulsivos e obsessivos15. Compatível com os circuitos eletrônicos da aparelhagem digital — assim como o código
genético cifrado no DNA —, o sistema nervoso estrutura
os corpos informatizados da sociedade pós-industrial. Ele
é o alvo fundamental dos psicofármacos e outras “tecnologias da alma” que se propõem a estimular e tranqüilizar
os nervos superexcitados dos sujeitos do mundo atual,
investidos pela figura do consumidor e impelidos à
reciclagem acelerada contra a ameaça permanente de
obsolescência.
Nas configurações atuais dos corpos e subjetividades,
em mais de um sentido, parece que os nervos alterados —
assim como os genes alteráveis — venceram os músculos
cansados da antiga sociedade industrial. Na mutação
daquela formação social para a contemporânea, acompanhando o deslocamento do foco da produção para o consumo no capitalismo mais recente, os corpos dóceis (e úteis)
inspirados no modelo mecânico do robô parecem cada vez
mais se “digitalizar”. Perderam atualidade aqueles corpos-máquina cujo cenário por antonomásia era o interior das fábricas: organismos equipados com próteses de
madeira ou de metal (ou a elas equiparáveis) que acentuavam seus movimentos rígidos e ritmados pela cadên-
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O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade
cia mecânica. Figuras firmemente assentadas no imaginário ocidental, plasmadas em filmes clássicos como
Metrópolis e Tempos modernos e em toda uma saga literária16.
Assistidos pelas novíssimas próteses teleinformáticas
e biotecnológicas, e por toda a retórica e o imaginário
que as acompanha, os organismos contemporâneos transformaram-se em corpos ligados, ávidos, antenados, ansiosos, sintonizados — e, também, sem dúvida, úteis. Corpos acoplados à tecnologia digital, estimulados e aparelhados por um instrumental sempre atualizado de
micro-dispositivos não-orgânicos. Corpos cuja “essência”
é considerada imaterial: pura informação composta de
luz elétrica que eventualmente poderia ser transferida
para um arquivo de computador, ou alterada em sua base
gênica como uma correção de um suposto erro no código,
ou hibridizada com os bits de outros organismos ou dispositivos eletrônicos — à maneira de uma transmutação
que aponta, sempre, para o upgrade em nome da performance e da eficiência.
Não se trata mais, portanto, daqueles corpos laboriosamente convertidos em força de trabalho, esculpidos em
longas e penosas sessões de treinamento e disciplina
para saciar as demandas da produção industrial; aquelas
almas dolorosamente submetidas às sondagens
psicoanalíticas, impelidas ao auto-conhecimento profundo
da sua intimidade. Em lugar dessas configurações, agora
emergem outros tipos de corpos e subjetividades: autocontrolados, inspirados no modelo empresarial, imbuídos
a administrarem seus riscos e seus prazeres de acordo
com seu próprio capital genético, avaliando constantemente o menu de produtos e serviços oferecidos no mercado, com toda a responsabilidade individual necessária
em um mundo onde impera a lógica automatizada do selfservice. Corpos permanentemente ameaçados pela som-
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bra da obsolescência — tanto do seu software mental como
do seu hardware corporal — e lançados, por isso, no turbilhão do upgrade constante, intimados a maximizarem a
sua flexibilidade e a sua capacidade de reciclagem. Enfim:
corpos investidos pelo impulso de ultrapassagem de todos os limites, que marca os saberes e as ferramentas
da nova tecnociência.
Os debates em torno destes assuntos costumam exalar pretensões de “neutralidade” ou “naturalidade”. Cremos que se impõe, ao contrário, a necessidade de politizar
a problemática aqui exposta. Em vez de nos acomodarmos, então, incomodar-nos. Quais são as implicações
políticas destes processos? Os limites do possível expandem-se em novos desdobramentos, ou se esgotam no deserto de uma mesmice asfixiante? As potências da vida
se enriquecem nestes movimentos, ou são fatalmente
cerceadas? Abrem-se novas opções de resistência e de
criação, ou fecham-se todos os caminhos que poderiam
conduzir ao “outramento”? Crescem as possibilidades
tecno-demiúrgicas de produção de si mesmo e de construção de novos mundos? Ou, pelo contrário, esfacelamse as dimensões pública e política, face à utopia do conforto e às tiranias do upgrade impostas pelas demandas
do capital? Não há respostas simples e unívocas para tais
questões. O mero fato de podermos formulá-las, entretanto, talvez esteja assinalando a possível emergência
de algumas linhas de reflexão. E, é claro, um certo incômodo.
Notas
1
D. Hamer & P. Copeland. El misterio de los genes. Buenos Aires, Ed. Vergara,
1998, p. 296.
R. U. Sirius. “¿Hablas en serio?” in El paseante. Madrid, Ed. Siruela, v. 27-28, pp.
82-85, 2001.
2
224
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O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade
3
P. Virilio. A arte do motor. São Paulo, Estação Liberdade, 1996.
A Magna Carta for the knowledge age, assinado por um grupo de figuras proeminentes na divulgação e teorização das novas tecnologias: Esther Dyson, George
Gilder, George Keyworth e Alvin Toffler; disponível em www.pff.org/
position.html.
4
5
H. Martins. Hegel, Texas e outros ensaios de teoria social. Lisboa, Ed. Século XXI,
1996, p. 172.
6
R. Descartes. Meditaciones metafísicas. Navarra, Ed. Folio, 1999.
7
N. Negroponte. Ser digital. Buenos Aires, Editorial Atlántida, 1995.
K. Hayles. How we became posthuman: virtual bodies in cybernetics, literature, and
informatics. Chicago, The University of Chicago Press, 1999.
8
eXistenZ (David Cronenberg, EUA, 1999); Johnny Mnemonic (Robert Longo,
EUA, 1995); Matrix (Andy e Larry Wachowski, EUA, 1999); O Vingador do
Futuro (Paul Verhoeven, EUA, 1990); Estranhos Prazeres (Kathryn Bigelow, EUA,
1995).
9
K. Warwick. Entrevista pessoal via e-mail, 13 nov. 2001. Mais informações em
www.kevinwarwick.org.
10
11
W. Craelius. “The Bionic Man: Restoring Mobility”. Science. 8 fev. 2002.
12
D. Geiger. “Inteligência artificial: máquina pode pensar?” in O homem máquina.
Rio de Janeiro, Centro Cultural Banco do Brasil, 2001, pp. 18-19.
Uma das representantes mais célebres da body-art de orientação tecnológica, a
francesa Orlan, pratica cirurgias plásticas em seus próprios rosto e corpo, convertendo as salas de operações em cenários performáticos e veiculando as experiências em discursos sobre a “auto-produção estética”. A artista define os resultados
das intervenções cirúrgicas como “arte carnal”, variantes radicais do “auto-retrato”.
13
14
A. Grove. Só os paranóicos sobrevivem. São Paulo, Editora Futura, 1997.
P. Virilio. “Do super-homem ao homem superexcitado” in A arte do motor. São
Paulo, Estação Liberdade, 1996.
15
Metrópolis (Fritz Lang, Alemanha, 1927); Tempos modernos (Charles Chaplin,
EUA, 1936).
16
225
6
2004
RESUMO
Paira sobre os homens uma incômoda ameaça: o risco de cair na
obsolescência. Seduzidos e pressionados pelos ímpetos
mercadológicos, os corpos contemporâneos devem se tornar compatíveis com os computadores e com uma miríade de dispositivos
baseados na lógica digital – assim como os sujeitos da sociedade
industrial sofreram um longo processo de ortopedização que acabou sincronizando seus ritmos com as engrenagens da paisagem
mecânica. O novo contexto coloca em cena uma versão atualizada do
velho dualismo cartesiano, que se projeta na cisão hardware/
software. Assim, impõe-se uma série infinita de upgrades tecnohumanos, que tornam obrigatória a reciclagem constante do software
(mente/código) e do hardware (corpo/organismo). A força da
organicidade, porém, ainda persiste. Mas onde reside o maior incômodo? Nessa teimosa persistência da carne, ou em seu trêmulo
sucumbir às investidas da tecnociência aliada ao mercado?
Palavras-chave: tecnologia, informação, upgrade
ABSTRACT
An annoying threat hovers mankind: the risk of falling into
obsolescence. Seduced and pressured by marketing motivations,
contemporary bodies should become compatible to computers and
with a myriad of devices based on digital logic — in the same way
as the subjects of industrial society have suffered a long process
of formatting that ended up synchronizing their pace with the engines
of mechanic landscape. The new context introduces an updated
version of the old Cartesian dualism, which is projected in the
division hardware/software. Therefore, an infinite series of technohuman updating is imposed, which makes it compulsory the constant
recycling of software (mind/code) and of hardware (body/organism).
Although, the power of organic still persists. But where does the
greatest annoyance can be found? In this stubborn persistency of
the flesh or in its feeble collapse before the attempts of technoscience and market?
Keywords: technology, information, upgrade
226
verve
Devires minoritários: um incômodo
devires minoritários: um incômodo
silvana tótora*
Pensar e agir como minoria é tanto um ato de resistência como uma invenção-experimento. Trata-se, para
usar um termo de Deleuze, de um “pensamento do Fora”,
um pensamento “máquina de guerra” contra o “aparelho
de Estado”. Pensamento da imanência, liberto do paradigma lógico da verdade, que suscita problemas fazendo da
criação do conceito a condição de sua crítica e a construção de novas possibilidades de pensar e de existência.
A “ciência nômade de máquina de guerra” é da ordem
do devir, portanto não se deixa fixar em um modelo ou
paradigma, tampouco se constitui em um saber. Seguir
os fluxos imanentes à realidade sem aprisioná-los em
qualquer representação transcendente impossibilita a
essa ciência formatar-se em um saber-poder. Seu efeito
no campo social, que as “ciências régias ou de Estado” tentam conter, é abalar as representações que se rotinizam
em convenções formais promovendo a adaptação ao que é
odioso.
* Professora no Depto. de Política, Programa de Estudos Pós-Graduados em
Ciências Sociais e Vice-Coordenadora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC/SP.
verve, 6: 229-246, 2004
229
6
2004
Deleuze cria o termo “noologia” para designar o estudo
da imagem do pensamento1. O pensamento “máquina de
guerra” não constitui outra imagem, mas sim uma potência na destruição da imagem e suas cópias. Construir
um pensamento que não se firma em “uma imagem
tranquilizadora da representação”2, em que a diferença é
pensada sob uma quádrupla sujeição: ao que é idêntico,
semelhante, análogo e oposto3, com a finalidade de controlar, domesticar as diferenças, prevenindo-se contra as
distribuições nômades.
O pensamento nômade não permite ser capturado pelo
poder, porque, em vez de formar uma imagem, é desprovido de um centro ou de convergências globalizantes, é um
pensamento-acontecimento que não se deixa fixar, “seguindo” o movimento imanente da realidade. Suscita problemas que remetem a soluções não científicas, a cargo
das atividades coletivas.
Pretende-se, neste texto, diferenciar a multiplicidade
do pluralismo presente em uma tradição do pensamento
liberal, que não abandona a forma-Estado, nem a representação. O pluralismo, no discurso liberal, não se
desvincula da moral e da verdade, como parâmetro para
exorcizar diferenças que não são totalizáveis.
Remeter-se ao pensamento de Nietzsche, Deleuze e
Foucault é olhar a política a partir de um outro plano que
não a forma-Estado, criando novos problemas que passam
por devires-minoritários, múltiplos, mutáveis e que escapam a toda forma de poder-saber constituído.
Pluralismo: domesticação
O discurso de Hobbes dirige-se àqueles que desejam a
estabilidade sob a égide de um governo com poder para
criar leis como critérios do que se deve ou não fazer. Viver
230
verve
Devires minoritários: um incômodo
sob a proteção de um Estado, “Deus terreno”, que estabelece o que é justo e injusto, ou seja, do que é conforme ou
contrário à regra. Para Hobbes, uma vez que a natureza
humana não muda e tampouco pode ser educável, é impossível firmar-se um pacto social baseado na dependência mútua de seus concidadãos. O contrato hobbesiano é
político, fundando ao mesmo tempo súditos e soberano representante. O pensamento político moderno dirige-se aos
homens capazes de maioria, ou seja, de acordos e consensos sob regras comuns válidas para todos, sejam estas regras estabelecidas por representantes ou diretamente.
Rousseau, embora criticando a representação política, pois
a “vontade geral” não se representa, afirma a impossibilidade da existência de uma sociedade sem um ponto comum em que todos os interesses concordem4.
Rompendo com o caráter abstrato das teorias do direito
natural anteriores às instituições governamentais, a teoria utilitarista de Stuart Mill concebe o homem como ser
progressivo. Ao atribuir à natureza do homem a qualidade
de se desenvolver, Mill dedica-se a demonstrar a utilidade
das instituições livres na promoção do desenvolvimento
humano. A democracia liberal representativa seria a forma de governo mais adequada para “desenvolver nos membros da comunidade as várias e desejáveis qualidades morais e intelectuais”5. Combinando a participação do homem
comum nos governos locais e indiretamente na escolha
dos representantes, Mill aposta nesta via para educar o
cidadão, estimulando o interesse pelos negócios públicos,
pelas ações dos governantes e, sobretudo, forjando a consciência de pertencer à grande comunidade política.
O pensamento de Mill filia-se a uma tradição do pensamento liberal preocupada em frear a expansão da ingerência do poder governamental, impedindo que o indivíduo ou os grupos possam gozar da liberdade. O pluralismo
de Mill visa assegurar não só a representação das minori-
231
6
2004
as na esfera central do poder político, propondo o escrutínio proporcional, mas também obstaculizar a tirania da
opinião pública e dos valores dominantes. Só a liberdade
política não é suficiente, é necessário combiná-la com a
liberdade civil.
Porém, o pluralismo de Mill não dispensa um princípio
regulador da liberdade individual: o ajustamento do interesse individual ao coletivo. A interferência do poder sobre a ação de um indivíduo justifica-se somente para impedi-lo de causar danos a outrem. Segundo Mill, “a única
liberdade que merece esse nome é procurar o próprio bem
pelo seu próprio método sem causar danos a terceiros”6.
A afirmação de um princípio geral, conforme enuncia
Mill, visa não só reprimir os excessos, mas também dar à
sociedade a justa medida. Daí ser necessário que “normas gerais” sejam observadas para dar a medida da conduta de uns para com os outros7. Na razão utilitária o critério para estabelecer-se uma ação é ou não conveniente
ao ajuste da liberdade individual e o interesse coletivo
reside em uma longa experiência de práticas sociais. “O
que se procura tolher são coisas experimentadas e condenadas desde o começo do mundo, coisas que a prática
mostrou não serem úteis ou convenientes à individualidade de ninguém”8. O longamente experimentado adquire caráter de uma verdade moral ou prudencial. O
pluralismo, neste caso, limita e seleciona aqueles que
estão de acordo com os valores firmados pela experiência.
O cultivo da individualidade independente do costume
e da tradição é um requisito para a liberdade, embora Mill
não deixe de afirmar a observância das normas gerais
impostas pela coletividade. Como conciliar obediência e
liberdade? Mill não resolve essa contradição. O autor segue exaltando as iniciativas e autonomia de escolhas enquanto estímulo para o desenvolvimento das faculdades
232
verve
Devires minoritários: um incômodo
humanas. Fortalecer os talentos individuais, que distam
da opinião das “massas mediocrizantes” aferradas ao costume, é o caminho para o avanço da humanidade e o progresso de um povo. Os impulsos e desejos não são prejudiciais às ações, desde que regrados pela consciência. São
as consciências fracas que não são capazes de compatibilizar os impulsos pessoais com o amor à virtude e o domínio de si.
O homem “como ser intelectual e moral”9, segundo Mill,
“é capaz de retificar os seus enganos pela discussão e a
experiência”10. Movido pela vontade de verdade, o “método
racional” para alcançá-la é permitir a discussão e a refutação. A verdade é o prêmio para aqueles que se lançam
ao choque das opiniões contrárias. O caminho para o “conhecimento completo”11 é ouvir os representantes de cada
variedade de opinião. Depois de muito discutir e experimentar, a verdade se revela pela dificuldade em ser contestada.
Multiplicar interpretações não significa ouvir todos os
lados, ou, como diz Mill, “os representantes de todas as
opiniões”, como se aumentar o número de pontos de vista
fosse o caminho para se aproximar da verdade. O choque
de opiniões contrárias não deixa de ser outra forma de
totalização, pois as diferenças se desdobram em oposições
reversíveis em um mesmo todo. É comum, nessa perspectiva, fazer-se síntese dos vários pontos de vista, o que denota seu caráter de variação do mesmo, a filiação a um
centro comum, pois um fenômeno não é um mesmo que
se expõe a diversos pontos de vista. Trata-se de perspectivas distintas que se configuram em histórias diferentes
que se confrontam sem se deixar totalizar.
Outra via se abre, diversa desse pluralismo liberal: a
da multiplicidade. Trata-se de um modo diferencial de fazer emergir interpretações diferentes. A multiplicidade
233
6
2004
envolve relações de força e um terreno de luta em que as
distintas interpretações se confrontam e não se somam,
ou se ampliam, ou se esclarecem com vistas a um “conhecimento mais completo”. Distinguir conceitualmente
multiplicidade e pluralismo objetiva diferenciar as relações de forças que não se deixam totalizar ou se referir a
um centro, abertas aos fluxos moventes e mutáveis. Sem
princípio ou finalidade, os acoplamentos das séries divergentes se dão pelo “meio”, por ressonância que se desdobram em outras diferenças.
O pensamento liberal insiste no pluralismo de opiniões, do agir e de se associar, sem contudo deixar de delimitar o campo do tolerável e a recognição de valores validados pela experiência. O pluralismo reverte-se em um
modelo de partilha de poderes que integram as partes ao
todo. Princípios morais universalizantes definem a boa
convivência em uma sociedade, sendo que o liberalismo
demarca o cultivo da liberdade individual desde que se preservem os direitos e interesses alheios. As normas gerais
são defendidas para que se possa garantir uma previsibilidade nas ações humanas. Princípios universais e normas gerais, traduzíveis ou não em leis, são indispensáveis ao caráter previdente de um modo de pensamento
que domestica as diferenças, responsabilizando e punindo as transgressões.
Multiplicidade: o combate
Nietzsche lança um novo problema que permite outra
via de interpretação dos valores. O autor insurge-se contra aqueles que justificam o que está posto, dirigindo sua
crítica aos ingleses, particularmente aos utilitaristas.
Como genealogista, ele remete ao elemento diferencial
dos valores. Trata-se de um novo “método de interpretação e avaliação”, que faz incidir sobre os valores as rela-
234
verve
Devires minoritários: um incômodo
ções de forças e a vontade de potência. Fazer a história
das lutas e não a descrição de fatos em nome de uma objetividade científica. Nietzsche investe contra o positivismo
moderno que substituiu os valores transcendentes para
os reencontrar como forças que sustentam o mundo atual. Pôr em questão os valores estabelecidos, destruí-los,
referindo-se às próprias condições de sua criação. A
genealogia diz respeito ao questionamento do “valor dos
valores”12.
Querer a verdade, seja como valor utilitário progressivo,
seja pela fidelidade ao “fato”, situa-se no terreno da moral.
Tomando a vida como critério de avaliação, a vontade de
verdade, no sentido que se propõe a ciência, é afirmar outra coisa diferente da vida, da natureza e da história. Moral
é toda forma de proceder em busca do verdadeiro, justificado pelo desejo de não se enganar ou querer enganar os outros13. O desejo de verdade traduz a crença na existência de
uma essência, uma significação oculta a ser interpretada
segundo seus fins últimos. Ora, uma aliança com a vida é
dispor-se para o inesperado, o intempestivo, ao que extravia, o que ilude, o que muda de direção, sem uma finalidade última. Por isso, Nietzsche afirma: a vida é imoral, “nada
é verdadeiro, tudo é permitido”14. Declara guerra contra
toda a pretensão de se criar uma justa medida, liberandose para a experimentação.
À fidelidade ao fato defendida pelos positivistas como
estratégia de justificar os valores existentes, Nietzsche
contrapõe-se afirmando que interpretar é “violentar, ajustar, abreviar, omitir, preencher, imaginar, falsear, ...” 15.
Interpretar, nesse sentido, é transvalorar os valores estabelecidos e inventar novos valores que são os da vida; e a
vida é vontade de potência, o querer expandir, diferenciar-se. O desejo de se conservar, ou a busca de estabilidade, traduz uma vontade fraca, nem por isso menos ambiciosa de poder. Aliás, diz Nietzsche, “quanto menos se sabe
235
6
2004
comandar mais se aspira a fazê-lo, e a fazê-lo severamente”16.
A vontade de se conservar é a restrição do instinto
vital, pois tudo que vive quer expandir-se, tornar-se mais
forte. A natureza é transbordante, marcada pelo excesso
e não pela escassez. Conhecer não é tornar as coisas
familiares, submetidas ao “órgão mais frágil e falível”17
que é a consciência. É o instinto do medo que movimenta o desejo de tornar o estranho conhecido. Nessa direção, conhecimento e consciência são forças de contenção da vida. Os experimentadores e inventores deixam
fluir a natureza indomesticável. Os artistas da vida —
“inconscientes e involuntários”18 — são os que imprimem
formas e inventam novas tábuas de valores que são os da
vida. Foi contra essa liberdade que se ergueram o Estado
e a consciência. Segue-se, daí, todo o cortejo de responsabilidade e punição.
As forças estão sempre em relação, agindo ou resistindo. Os corpos, sejam político, social ou biológico, são o resultado de forças que os atravessam. Como a expansão é
própria das forças, exprimindo sua vontade de potência, a
relação entre elas é de combate. A genealogia faz entrar
em cena as lutas e as relações de forças, confrontando
com a vontade de verdade da ciência. A genealogia, longe
de ser o estudo de uma essência originária, ou significação oculta, é o procedimento de fazer emergir as forças,
bem como a vontade de potência que as impulsiona, produzindo formas singulares e diversas de submissão. A história, nesse sentido, é a “emergência de interpretações
diferentes”19.
Seguindo essa via, Foucault afirma ser as “genealogias
anticiências”20, seu alvo é o combate aos efeitos de poder
de um discurso que se declara científico. As genealogias,
ao explicitarem as relações de forças, desafiam os sabe-
236
verve
Devires minoritários: um incômodo
res que se pretendem totalizadores, que hierarquizam,
ordenam e filtram, subjugando a multiplicidade e a dispersão dos saberes em nome de um discurso verdadeiro e
unitário. O problema para o genealogista é fazer emergir
as lutas, os saberes que na batalha foram silenciados,
desqualificados ou domesticados. “Dessujeitar os saberes
históricos e torná-los livres, isto é, capazes de oposição e
de luta contra a coerção de um discurso teórico unitário,
formal e científico”21, eis um dos empreendimentos da
genealogia para Foucault.
Segundo Foucault, Nietzsche como genealogista “recusa a pesquisa da origem”22, ou seja, de uma essência originária das coisas, uma verdade que possibilite um
parâmetro ideal para servir de medida/fundamento ao
devir histórico. Essa forma de saber, através do recurso da
construção de um veio comum que encapsula a diversidade em uma totalidade, permite deslocamentos em direção
ao passado sem ferir uma continuidade no presente. Serve, também, aos temerosos, que só se sentem seguros
naquilo que reconhecem como idêntico a si mesmos. A
genealogia dirige-se aos “começos inumeráveis”, explodindo as sínteses, as referências que buscam traçar coordenadas e um sentido supra-histórico. Seguindo a dispersão, os acidentes e os pequenos desvios, o genealogista
encontra-se com inúmeros acontecimentos.
Nietzsche, de acordo com Foucault, diferencia o estudo
da proveniência daquele da origem que marca um pensamento tradicional em busca de parâmetros ideais e unitários. Nessa direção, afirma Foucault, “a pesquisa da proveniência não funda, muito pelo contrário, ela agita o que
se percebia imóvel, ela fragmenta o que se pensava unido; ela mostra a heterogeneidade do que se imaginava em
conformidade consigo mesmo”23. Com esse procedimento,
o genealogista reintroduz no devir tudo o que fora aprisionado em identidades fixas.
237
6
2004
Seja com os genealogistas, Nietzsche e Foucault, seja
com os cartógrafos, Deleuze e Guattari, o que está em jogo
é a dissolução das identidades, a abertura aos fluxos
mutáveis, sem referências que tornem as coisas objetos
de reconhecimento ou recognição por um sujeito do conhecimento. O que ressoa entre eles é uma forma nômade, experimental e minoritária de pensamento, que não
se deixa totalizar. A emergência da multiplicidade confrontando-se com o pluralismo, tão em voga no discurso
atual, configura-se como um pensamento de combate.
As totalidades englobantes neutralizam a virulência da
multiplicidade numa forma de pluralismo, ou seja, o que é
múltiplo se afirma de uma unidade prévia, a partir da qual
se hierarquizam os saberes, ou se selecionam os interlocutores. O pluralismo domesticado, diferentemente da
multiplicidade, faz convergir os saberes às exigências da
ordem estabelecida e seu ideal é a reprodução dos poderes
existentes. No pluralismo predomina a defesa do consenso e/ou de divergências que se dicotomizam e unificam.
Como as operações do bom senso, o pluralismo, presente
no discurso da atualidade, opera segundo uma partilha de
poder-saber entre vários componentes. Previdente, essa
distribuição visa conjurar a diferença. As multiplicidades
são diferenças que não pressupõem nenhuma identidade
a priori. Mais do que isso, não convergem, mas divergem
dos valores e dos poderes instituídos.
Denominamos de pluralismo o que Deleuze e Guattari24
denunciam como “pseudomultiplicidades arborescentes”25,
distinguindo-as das “multiplicidades rizomáticas”. As
multiplicidades-acontecimentos são o modo de ser tanto
do pensamento como da sociedade, da história e da vida.
A representação “arborescente” como modelo de pensamento procura bloquear o livre desenvolvimento das
multiplicidades reais, traçando eixos de ordenação que se
afirmam de uma unidade prévia, faz representar uma re-
238
verve
Devires minoritários: um incômodo
lação do Uno como sujeito e como objeto, dicotomizando e
unificando. Essa forma de pensamento hierarquiza, identifica e neutraliza as multiplicidades nômades, ou de devir,
em sistemas sedentarizantes por pontos e filiações.
Romper com o modelo dualista de pensamento, em que
os termos — sejam dois ou mais — se organizam a partir
de identidades dicotômicas e unificadas, é abrir-se para
as multiplicidades-acontecimentos. Indivíduos ou coletividades, afirma Deleuze, são feitos de linhas diversas. A
primeira espécie de linha é a de segmentaridade dura, ou
molar, que fixa as identidades, o gênero, a classe, a profissão, as instituições, ou seja, caracteriza segmentos bem
definidos. Uma segunda espécie de linha compreende a
de segmentaridade flexível, ou molecular, que atravessa a
sociedade, os indivíduos e os grupos. As linhas moleculares
não são segmentos, mas sim fluxos, micro-devires. Infixas,
mutantes, as linhas moleculares fluem em zonas limiares características dos processos de transformações, sendo que seu tempo-espaço é o do acontecimento. Uma terceira espécie de linha, é a linha de fuga ou linha de ruptura. As três linhas são imanentes, constitutivas da
sociedade, grupos e indivíduos. O estudo dessas linhas é
a cartografia26.
Uma sociedade ou “agenciamento coletivo” se define
por suas linhas de fuga27. “O agenciamento — afirmam
Deleuze e Guattari — é todo conjunto de singularidades e
de traços extraídos do fluxo”28. Agenciar é um processo de
diferenciação que recorta os fluxos e efetua novas configurações e, nesse sentido, corresponde sempre a uma
invenção.
Deleuze confere primazia às linhas de fuga, como ele
mesmo diz, para garantir o “direito do intempestivo”. As
linhas de fuga conjugam todos os movimentos de
desterritorialização, campo de intensidades infixas que
239
6
2004
configuram um “campo de consistência” ou “máquina
mutante”. Nas linhas moleculares, as desterritorializações
“são relativas, sempre compensadas por reterritorializações que lhes impõem voltas, desvios, equilíbrio e
estabilidade”29. Nas linhas molares as reterritorializações
se acumulam para constituir um “plano de organização”
ou “máquina de sobrecodificação”.
As linhas de segmentaridade dura, ou molar, são
agenciamentos de “máquinas binárias” bem diversas,
como classes sociais, homem-mulher, público-privado,
raças, etc. Essas máquinas são dicotômicas e operam
diacronicamente, funcionando com distintos dispositivos
de poder. Foi a analítica desses dispositivos que permitiu
a Foucault, segundo Deleuze, inovar a análise da política,
revelando a heterogeneidade dos mecanismos de poder e
suas estratégias e rompendo com as abstrações jurídicas
de Estado, lei e contrato. “Sobre a linha de segmentaridade
dura, afirma Deleuze, deve-se distinguir os dispositivos de
poder que codificam os segmentos diversos, a máquina
abstrata que os sobrecodifica e regula suas relações, o
aparelho de Estado que efetua essa máquina”30.
A máquina de sobrecodificação é a que confere a ordem de uma dada sociedade, seus enunciados e saberes
dominantes e a organização de seus segmentos. O Estado,
embora nem sempre se confunda com a máquina abstrata de sobrecodificação, é a sua forma de agenciamento
concreto31. Diferentemente das segmentaridades duras,
os segmentos moleculares procedem “por limiares constituindo devires, blocos de devir, marcando contínuos de
intensidade, conjugações de fluxos”32. A máquina abstrata não é de sobrecodificação, mas sim mutante, “marcando suas mutações a cada conjugação”33. O plano de
imanência, próprio das máquinas mutantes, difere do plano de organização das máquinas de sobrecodificação, sendo que o agenciamento se dá por individuações, por acon-
240
verve
Devires minoritários: um incômodo
tecimentos. Não se trata de um dualismo de máquinas e
planos, mas de uma multiplicidade de dimensões que
implicam várias direções no âmbito de um agenciamento.
As máquinas coexistem e concorrem em um “campo perpétuo de interação”. O que é possível comparar em cada
caso é o movimento de desterritorialização das linhas
moleculares e de reterritorialização das molares34.
A multiplicidade de máquinas e planos que coexistem,
combatem e rivalizam se confirma na existência de dois
gêneros de ciências: uma “ciência régia” ou do Estado,
cujo procedimento consiste em “reproduzir”, isto é, “a permanência de um ponto de vista fixo exterior ao objeto”35; e
uma “ciência nômade” que “segue” os fluxos abertos, singulares, mutáveis, inventando problemas. O Estado, afirmam Deleuze e Guattari, sempre esteve em relação com
um Fora, sejam as “máquinas mundiais” sejam as minorias nômades, segmentárias ou moleculares. As fronteiras entre ambas são permanentemente móveis. Se o Estado não pára de capturar, sedentarizar e organizar os fluxos nômades — que se renovam em linhas de fuga —,
também a “ciência régia” procede da mesma forma com a
ciência nômade, apropriando-se do seu conteúdo que, por
sua vez , “não pára de fazer fugir os conteúdos da ciência
régia”36.
O que rivaliza os dois modelos de ciência é que as ciências nômades suscitam problemas e não soluções, o que
obstaculiza seus efeitos de poder, ou sua dificuldade em
se fazer autônoma e se fixar no poder. “No campo de
interação das duas ciências, afirmam Deleuze e Guattari,
as ciências ambulantes [ou nômades] contentam em inventar problemas cuja solução remeteria a todo um conjunto de atividades coletivas e não científicas”37.
Tendo em vista as linhas, suas múltiplas dimensões e
direção, Deleuze afirma que “toda política é um campo de
241
6
2004
experimentação ativa”38. Todos os processos de invenção
ou experimentação são devires, movimentos de fuga às
condições existentes, à sua forma atualizada e territorializada. Os acontecimentos são devires que se concretizam em ocorrências históricas individuais ou coletivas
sem, contudo, serem totalmente integráveis ou se confundir com elas, mantendo sua face trans-histórica de
metamorfose, como puro devir. Se a política é uma experimentação é porque não se pode prever a direção que tomará uma linha, pois em uma sociedade tudo escapa e,
portanto, é possível definir uma sociedade por suas linhas
de fuga, contra-efetuação em acontecimentos-devires.
Pensar a política por acontecimentos implica se livrar
das formas fixas de identidade subjetivas, sejam partidos,
indivíduos e raças, sejam oposições e dualismos. Pensar e
agir por acontecimento força a um devir-outro, estar no
“meio” trocar o É pelo E, fazer do múltiplo um substantivo.
“Uma multiplicidade, diz Deleuze, está somente no E”39. O
E não é a simples soma de elementos, mas dá às relações
uma outra direção, que se instala em uma linha de fuga:
fuga das identidades, lançar-se ao aberto, conexão por composição em um plano de imanência.
Devir-minoria: multiplicidade de fuga
Todo devir é um devir-minoritário, é traçar uma linha
de fuga do padrão ou modelo estabelecido, ou seja, da maioria. Fugir, nesse sentido, não é se recusar à ação e
tampouco se evadir da realidade, mas um ato de criação
— um experimento-invenção. Criar é começar algo novo,
um deslocamento em direção aos fluxos mutáveis. Por isso,
uma minoria nunca se deixa sedentarizar e também não
constitui um conjunto fechado sobre si; e porque não se
deixa fixar, seu movimento está sempre em conexão com
outros devires-minorias.
242
verve
Devires minoritários: um incômodo
O que distingue uma minoria de uma maioria não é o
número, mas sim “fazer valer a potência do não
numerável”40. Ora, numerar supõe fixação identitária; ser
minoria, pelo contrário, é diferenciar, subtrair-se, promover desvios, é inumerável porque é um contínuo deviroutro. O inumerável é a conexão entre dois conjuntos sem
se identificar com nenhum deles, é o que escapa traçando uma linha de fuga41.
Um devir-outro não é imitar as formas estabelecidas
ou reconhecer-se no outro, mas conjugar fluxos desterritorializados, encontrar-se pelo “meio”. “O devir-mulher,
devir-negro, devir-índio, etc. não é tornar-se mulher, negro, índio, tampouco agir como se fosse o outro por imitação”, mas, nas palavras de Deleuze, “um encontro entre
dois reinos, um curto-circuito, uma captura de código onde
cada um se desterritorializa”42. Trata-se de atingir uma
zona de vizinhança, fazendo valer a potência do indefinido, isto é, deixar-se determinar apenas pelo devir. Tornase um outro e não o outro, o indefinido que, longe de ser
uma generalidade, constitui-se em potência singular.
Só se conectam devires-minoritários, pois uma composição se faz a partir de fluxos que se desterritorializam.
“Um fluxo [afirma Deleuze] é algo intensivo, instantâneo
e mutante, entre uma criação e uma destruição. Somente quando um fluxo é desterritorializado ele consegue fazer sua conjugação com outros fluxos, que se desterritorializam e vice-versa” 43. As formas identitárias,
dicotômicas, unificam-se sem dispensar mecanismos de
centralização que articulem as partes ao todo. É identificando que o aparelho de Estado realiza a captura.
Um devir-minoritário não é o mesmo que assegurar a
identidade para as minorias — excluídas do Estado, dos
direitos de cidadania. Movimentos de busca de identidade
ou se fecham em grupos isolados, ou reivindicam o reco-
243
6
2004
nhecimento de direitos iguais, ou seja, fazer parte de uma
maioria. Não se pode ignorar que grupos minoritários, tão
logo se sentem fortalecidos em sua identidade, buscam
fixá-la na forma Estado.
Uma minoria nunca define um estado, conjunto
numerável, identitário, mas um movimento, um devir.
Trata-se de desfazer as formas fixas que identificam indivíduos ou grupos. Abrir-se às forças e linhas do devir que
nos atravessam e que não têm princípio nem fim. Devir é
estar “entre”, é nomadizar, é sempre uma multiplicidade
de fuga e, como tal, é uma “experimentação vida”44. Como
toda experimentação, ultrapassa a possibilidade de prever, ou seja, saber antes o que vai acontecer. Experimentar é uma forma singular, um novo começo.
Notas
1
G. Deleuze e F. Guattari. Mil platôs. São Paulo, Editora 34, vol. 5, 1997, p. 46.
2
Deleuze G. Diferença e repetição. São Paulo, Graal, 1988.
3
Trata-se de uma filosofia da representação em que as diferenças se subordinam
à identidade no conceito pelo sujeito pensante, à semelhança no objeto, à
analogia no juízo, à oposição no predicado. São as quatro raízes do princípio da
razão. Qualquer diferença que escape a esses princípios será considerada “desmesurada, incoordenada, inorgânica”. G. Deleuze, idem, p. 415.
J. J. Rousseau. Do contrato social. São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 49 (Coleção Os Pensadores).
4
5
S. Mill. Considerações sobre o governo representativo. Brasília, UnB, 1980, p. 19.
6
S. Mill. Sobre a liberdade. Petrópolis, Vozes, 1991, p. 56.
7
Idem, p. 119.
8
Ibidem, p. 123.
9
Ibidem, p. 63.
10
Ibidem, p. 63.
11
Ibidem, p. 64.
244
verve
Devires minoritários: um incômodo
12
F. Nietzsche. A genealogia da moral. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 12.
13
F. Nietzsche. Gaia ciência. Lisboa, Guimarães Editores, 1996, § 344.
14
F. Nietzsche, Genealogia da moral. Op. cit. p. 138.
15
Idem, p. 139.
16
F. Nietzsche. Gaia ciência. Op. cit., § 347.
17
F. Nietzsche. Genealogia da moral. Op. cit. p. 73.
18
Idem, p. 75.
M. Foucault. “Nietzsche, a genealogia e a história” in Microfísica do poder. Rio
de Janeiro, Graal, 1993, p. 26.
19
20
M. Foucault. Em defesa da sociedade. São Paulo, Martins Fontes, 1999, p. 14.
21
Idem, p. 15.
22
M. Foucault, “Nietzsche, a genealogia e a historiai”. Op. cit. p. 16.
23
Ibidem, p. 21.
G. Deleuze e F. Guattari. “Introdução: Rizoma” in Mil platôs. Rio de Janeiro/ São Paulo, Editora 34, vol. 1, 1995.
24
25
Idem, p. 16.
26
G. Deleuze e C.Parnet. Diálogos. São Paulo, Escuta, 1998, pp. 145- 170.
27
Idem, p. 158.
28
G. Deleuze e F. Guattari. Mil platôs. Vol. 5. Op. cit. p. 88.
29
G. Deleuze e C. Parnet. Op. cit., p. 159.
30
Idem, p. 151.
31
Ibidem, p. 150.
32
Ibidem, p. 151.
33
Ibidem, p. 151.
34
Ibidem, p. 155.
35
G. Deleuze e F. Guattari. Mil platôs. Vol 5, Op. cit. p. 40.
36
Idem, p. 34.
37
Ibidem, p. 42.
38
G. Deleuze e C. Parnet. Op. cit., p. 159.
39
Idem, p. 71.
245
6
2004
40
G. Deleuze e F. Guattari. Mil platôs. Vol. 5. Op. cit. p. 174.
41
Idem, p. 173.
42
G. Deleuze e C. Parnet. Op. cit. p. 57.
43
Ibidem, p. 63.
44
Ibidem, p. 61.
RESUMO
Pensamento nômade como incômodo, diante dos saberes régios.
Pensamento de combate. Máquina de guerra, que investe na
multiplicidade, e não no pluralismo, pois evidencia neste a preservação da forma-Estado. Como investimento em liberdades,
Nietzsche, Foucault, Deleuze e Guattari interrompem os desdobramentos totalizantes do pensamento liberal.
Palavras-chave: devir, multiplicidade, pluralismo.
ABSTRACT
The nomad thought as an annoyance before regal knowledge.
Combat thoughts. War machine that goes through multiplicity and
not pluralism; showing how pluralism keeps the state-form
working. By investing in liberties, Nietzsche, Foucault, Deleuze
and Guattari stop the totalizing continuities of liberal thought.
Key words: becoming, multiplicity, pluralism.
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verve
Um incômodo: a acomodação
um incômodo: a acomodação
guilherme castelo branco*
Uma música infantil fala do incômodo, numa ordem de
grandeza crescente: um elefante incomoda muita gente,
dois elefantes incomodam muito mais, três elefantes incomodam muita gente, quatro elefantes muito mais, enfim,
em ordem aritmética, muitos elefantes incomodam muita
gente. A música que fala desse incômodo com os elefantes,
por sinal bastante escassos aqui nos trópicos, se repetida à
exaustão, incomoda e é um incentivo à irritação. Os grandes paquidermes, todavia, não poderiam ser os campeões
na brava arte de incomodar. Imaginemos os ratos, nos esgotos e subterrâneos da cidade, pensemos também nos ratos de superfície, e toda a fauna de seres asquerosos da
urbe e do campo, bem menores que elefantes, para nos lembrarmos de que muita coisa incomoda. Os animais, e por
extensão, os vegetais e minerais, no fim das contas, podem
causar incômodo, mas não causam tanto incômodo assim.
O que incomoda são coisas variadas, de diferentes naturezas e gêneros: o mundo que nos cerca, as estruturas
sociais, os aparelhos de Estado, a ordem familiar, as organizações políticas, as conjunturas econômicas (sempre pes* Professor no Departamento de Filosofia da UFRJ.
verve, 6: 249-258, 2004
249
6
2004
simistas), o zumbido dos mosquitos, o cotidiano que plasma
os sonhos e leva à perda de toda esperança no porvir, a dor
de ver tanta gente sendo morta de modo estúpido e brutal,
ver pessoas se desgastando e desperdiçando a si mesmas
por nada ou por muito pouco, o congestionamento, a falta de
dinheiro, etc; inúmeras são as motivações para que a gente se incomode.
Os agentes do incômodo são inumeráveis; os incomodados, infinitos. Entretanto, os incomodados, na imensa
maioria dos casos, não se retiram, não são exterminados,
não realizam nenhuma operação estratégica especial para
se livrarem do que os incomoda. Na maioria dos casos, quando o incômodo é alicerçado nas desigualdades sociais, políticas, jurídicas, institucionais, eles suportam. Chegam a
suportar, como as bestas de carga, tal peso de incômodo,
que tornam aturáveis situações absolutamente desnecessárias e evitáveis, tais como viver em campos de concentração, participar de guerras. Muitos bandeiam-se para o
lado dos que incomodam, tal como ser agente voluntário de
controle social, ser psiquiatra internador convicto, ser carcereiro orgulhoso de sua tarefa, etc. É a civilização. Demasiado civilizados nos tornamos. Freud não descobriu a pólvora. Civilização e mal-estar sempre estiveram imbricados.
A vida civilizada traz paradoxos: leva ao empobrecimento pessoal e à auto-aniquilação tanto quanto pode trazer
formas de vida inventivas. Tanto é que podemos viver em
casas de acordo com nossos estilos e conforme nossos recursos. Tanto é que podemos viver segundo nossas regras
próprias, nossas invenções, nossos comandos e mandamentos. Pois em toda capacidade de autodeterminação, de autonomia, quando existe tal potência nos nossos horizontes
existenciais, estão investidos muitos prazeres, gozos, usufrutos da vida. Pena que tão poucos ajam e façam algo dessa
ordem, devido à sua própria condição, pois a massa de ex-
250
verve
Um incômodo: a acomodação
cluídos e alijados é enorme. Todavia, o mais estranho é ver
que muitas pessoas, com possibilidade real de levar uma
vida mais livre e autônoma, descartam de suas vidas todo
potencial contestatário e criativo.
Em si mesmo, sentir incômodo é um sentimento que
tem seu lado positivo. Urgiria, para o incomodado, fazer algo
para eliminar a fonte de tal sentimento. Se temos diante
de nós ou em nós coisas que nos incomodam, bastaria encontrar a saída, no prazer, na tranqüilidade, na serenidade,
em grandes intensidades para fora dos padrões de comportamento corriqueiros, pouco importa. Assim seria, mas não
é. Espantoso fato da vida, os tempos modernos criaram
tecnologias, dispositivos, métodos de levar a viver o incômodo no incômodo, sem que o incômodo seja percebido como
tal. Estranho nosso tempo; vive-se a administrar, isto é,
tornar insípido, o tempo, o dinheiro, o dia-a-dia, o bom-gosto, a dor, o sexo, a palavra. Tudo comedido. Tudo dominado.
No labirinto do desentendimento humano, o anjo rebelde
se debate em busca de uma saída, mas no mundo
administrável a saída é não sair; basta ficar o mais quieto
possível e administrar tudo que é visto como demasiado e
excessivo, de maneira a se gerir um estilo de vida conformado, acomodado.
Desde o período heróico da arte contemporânea, que podemos definir, um pouco arbitrariamente, como sendo aquele que vai de Lautreamont a Bataille, passando por Breton e
Artaud, ficou claro que o modo de vida moderno era insípido. Que poderia ser pior ainda no porvir, cronificando a chaga da insensatez da conformidade pequeno-burguesa.
Rimbaud, ainda bem jovem, quando fala de seus amigos de
escola e da pequena cidade em que vivia, afirma: “...deixo
que me conversem; desenterrei velhos imbecis do colégio:
tudo que posso inventar de estúpido, de sujo, de mal, em
ação e em palavras, eu passo para eles: pagam-me com
cerveja e vinho”1. Fala Rimbaud de algo bem conhecido de
251
6
2004
todos nós; dos ganhos e benefícios secundários da vida medíocre, da vida acomodada, obtidos devido a se andar no bom
caminho, de fazer o que todos fazem, ainda que esse bom
caminho seja um faz-de-conta, seja hipocrisia ou semblent.
Todavia, quando Rimbaud faz essa crítica ao modo de vida
pequeno-burguês, não permanece num lugar ressentido;
na verdade, Rimbaud é arrebatado por um chamamento,
que o leva para além do razoável: “Quero ser poeta e trabalho para me tornar Vidente: o senhor não compreenderá
nada e eu não saberei como lhe explicar. Trata-se de chegar ao Infinito pelo desregramento de todos os sentidos. Os
sofrimentos são enormes, mas é preciso ser forte, nascer
poeta, e eu me reconheci poeta. Não é culpa minha, absolutamente”2.
Os artistas contemporâneos perceberam a necessidade
de irromper no desconhecido, de desbravar novos territórios da linguagem, ainda que às expensas do despedaçamento
do Eu, cartesiano ou não, ainda que sondando abismos que
fragmentam toda representação habitual, acima de todo
compromisso com as ordens cognitivas e especializações.
Arte e alta magia se imbricam, tornando pequenas a ciência, a filosofia, a religião instituída, a arte subjetiva e comportada. Ao se perceber como vidente, Rimbaud, tomado aqui
como simples exemplo, sabe que é compelido a uma experimentação artística onde todo um universo de co-possibilidades e de coexistências de coisas, reais ou irreais, materiais e imateriais, comparecem através dele, apesar dele,
e mesmo sem ele. Trata-se de um desvelamento arrebatador do Real, bem maior que a realidade limitada na qual
os saberes convencionais se apoiam. Percebe, num mesmo golpe, que a experiência artística tem um componente
existencial e social indiscutível: o artista é e tem que ser
um estranho iluminado, que vivencia uma iluminação profana, bem entendido, que o destaca necessariamente das
formas de viver instituídas. O artista é vidente, profanador,
252
verve
Um incômodo: a acomodação
mago, desbravador. O autêntico artista traz para o mundo
um pedaço de fogo sagrado. Ele vive aqui e alhures, e, por
isso mesmo, não poderia ter um modo de vida burguês ou
assemelhado, com seus valores e normas. O artista é um
ser diferente por ter uma relação com a linguagem totalmente diferente e, por extensão, por possuir uma outra
vivência dos códigos sociais.
Nem todos os artistas contemporâneos partilharam ou
partilham desse espírito livre e independente. Mas sem
dúvida, a maioria deles, ao menos os que deixaram para a
posteridade marcas inequívocas, assumiu o espírito novo
ou a vanguarda com um modo libertário de ser e de viver.
Michel Foucault denomina esse estilo de vida libertário de
“vida artista”, e entende que é um modo de resistência ao
poder, especial e digno de nota, que faz parte da luta pela
autonomia, com o objetivo de livrar o sujeito dos controles e
técnicas de normalização postos em jogo pelo conjunto
multiforme das instituições contemporâneas. O modo de
vida artista se contrapõe ao estilo de vida burguês; vejamos: “o prazer por si pode assumir, perfeitamente, uma forma cultural, como o prazer pela música. E deve-se compreender que se trata, nesse caso, de alguma coisa muito diferente do que se considera interesse ou egoísmo. Seria
interessante verificar como, nos séculos XVII e XIX, toda
uma moral do ‘interesse’ foi proposta e inculcada na classe
burguesa — por oposição, sem dúvida, a todas as artes de si
mesmo que poder-se-iam encontrar nos meios artísticocríticos; a vida ‘artista’, o ‘dandismo’, constituíam outras
estéticas da existência opostas às técnicas de si que eram
características da cultura burguesa”3. Não seria descabido,
dessa maneira, falar de uma real oposição entre vida
assujeitada e vida livre, desde que tendo no horizonte as
determinações históricas, políticas e sociais com as quais
todo indivíduo tem que lidar.
253
6
2004
Dentre as características que fazem a burguesia e, por
extensão, as classes sociais a ela vinculadas e dependentes, se pensarmos em valores e padrões de comportamento
mais usuais, a acomodação tem se revelado a mais empedernida e persistente. Como caracterizá-la, de modo breve? Como uma escolha, estratégica e calculada, de viver de
acordo a uma certa “ignorância”. Para tentar abordar essa
escolha pelo “desconhecimento que evita problemas e dá
muitos benefícios”, vou me utilizar, seguindo sugestão de
Michel Foucault, de algumas considerações kantianas.
Kant escreve sobre essa ignorância, com muita pertinência,
no Was ist Alflkärung, texto de 1784, quando fala do estado
de menoridade, e vale a pena seguir suas considerações.
Cito: “A menoridade é a incapacidade de se servir de seu
próprio entendimento sem ser dirigido por outra pessoa.
Ela deve-se a nossa própria culpa quando resulta não de
uma falta de entendimento, mas de uma falta de resolução
e de coragem para se servir dele sem ser dirigido por um
outro”4. É de se notar que Kant não afirma que a menoridade é mera expressão da falta de entendimento, mas que
ela é produto de uma deliberação, de uma escolha estratégica, pela qual os indivíduos, de um só golpe, delegam poder
e submetem-se a algum padrão de autoridade. O que caracteriza a menoridade é a escolha decidida de não se ousar ser livre, deixando toda decisão e responsabilidade nas
mãos de outros. Todo menor é aquele que delega poder de
deliberação, de decisão, de ação. E isso independe, claro, de
idade. Kant continua: “a preguiça e a frouxidão são as causas que explicam porque um número tão grande de homens,
enquanto que a natureza os libertou, há muito tempo, de
toda direção externa (naturaliter maiorenes ), permaneçam,
entretanto, por livre vontade, durante toda a sua vida, menores; e também porque seja tão fácil para outros de afirmarem como seus tutores. É muito cômodo ser menor”5.
254
verve
Um incômodo: a acomodação
O tom do texto kantiano é indignado, possui passagens
muito irônicas ao falar dos menores, ou acomodados, como
pacatas criaturas, tímidas, temerosas de pensar, decidir,
até de andar. Esse recurso à autoridade, em todos os campos da vida, segundo Kant, livraria os indivíduos (menores)
da fastidiosa tarefa de pensar e de se conduzir, fazendo com
que eles vissem toda ousadia e autodeterminação como
penosas e perigosas. Triste destino da máxima socrática,
desde o século XVIII: “eu sei que nada sei” converteu-se no
lema daqueles que nada querem saber além da conta bancária, das aparências, da propriedade, do direito de herança. Aí, não tem dúvida: os membros das camadas burguesas querem saber; todavia, como muitas vezes não sabem
tanto como deveriam ou poderiam, acabam por engordar a
conta bancária de outros, mais bem informados ou espertos, em certas passagens críticas da vida institucional ou
em certas épocas da vida pessoal.
Por outro lado, a “ignorância” dos membros da pequeno
burguesia e da burguesia, tem alcance político inequívoco:
todos evitam arriscar-se em tematizar e/ou em se envolver com assuntos e práticas considerados cabíveis ou a
autoridades competentes ou a pessoas fora dos padrões da
normalidade, que se arriscam para além do esperado. Nesse particular, a acomodação tem forte caráter estratégico:
tem a deliberada intenção de deixar aos decisores,
governantes, aos políticos, aos padrões, ou às “oposições
isoladas”, a tarefa de levar a cabo e de discutir certas operações “delicadas”, necessárias para que o mundo siga como
está, na ordem pedida e estabelecida. No caso dos assuntos
delicados e práticas fora dos padrões de normalidade, os que
se aventuram nesses campos numa posição de resistência sabem dos riscos que correm: práticas corretivas, punitivas, prisão, internamento psiquiátrico; em certos casos,
a morte. O outro lado da moeda, seria se criar um silêncio
sobre o que poderia incomodar, através de uma ignorância
255
6
2004
‘real’ e constitutiva da própria subjetividade, é fazer do processo de acomodação um processo de normalização. Daí decorrem indivíduos que não andam fora da linha e não falam
demais, que são os bons moços, os felizes assujeitados. Os
normalizados não são nem loucos, esquerdistas, anarquistas, terroristas, bandidos, nem pesquisadores e defensores
da sociabilidade libertária... Enfim, a boa gente acomodada apercebe-se de que sua sujeição aos padrões de normalização é condição necessária para a preservação do bemestar, linha mestra dos valores em curso no mundo social
contemporâneo. O bom comportamento recebe, por sua vez
uma boa paga, como uma vida sem vicissitudes e sem maiores ameaças ou riscos. Neste mundo dos assujeitados, feito
em nome do bem-estar, em nome do bom comportamento,
em nome do silêncio, a melhor coisa a fazer é culpar os
elefantes pelo incômodo: são eles, sobretudo eles, que incomodam muita gente.
Enganam-se os que pensam que a operação produtiva
do poder, ao constituir subjetividades normalizadas, tem
como efeito real a instalação de uma atmosfera familiar,
íntima, centrada na preocupação com o mundo imediatamente próximo. O egoísmo, característico da moral do interesse burguesa, é de tal monta, que acaba por esfacelar o
próprio mundo familiar, que vive das aparências de um
mundo sem grandes conflitos; na prática, os conflitos são
de grande escala, a ponto de serem muitos os saberes e
profissionais que intervém constantemente na célula familiar, em especial médicos, psicólogos, religiosos e até
mesmo livros de aconselhamento (o que é uma demonstração cabal da crítica kantiana: a família é incapaz de resolver até mesmo os seus problemas, e todos nela permanecem menores).
Dados de pesquisa recente, realizada pelo LAPS/
FIOCRUZ, vem demonstrar que a família burguesa ou pequeno burguesa brasileira solicita internação de um de
256
verve
Um incômodo: a acomodação
seus membros, em especial quando dispõe de recursos, em
três casos principais: quando tem comportamento sexual
demasiado inusual, quando torna-se demasiado generoso
com os outros, quando decide mudar o curso de sua vida e
virar artista. O núcleo familiar, no caso do artista, somente
se tranqüiliza quando surge reconhecimento público, com
sucesso financeiro. Enquanto o sucesso não vem, ele é um
candidato constante à indigência e ao internamento psiquiátrico. No outro caso, o do excesso de prodigalidade, cabe
notar um antigo provérbio do nordeste, que afirma que o
sujeito está verdadeiramente louco somente quando rasga dinheiro. No caso de sexo bizarro, excessivo, explicitado,
dispensamos comentários: já se falou muito nesse assunto.
A acomodação, assim cria uma lei do silêncio e impõe
padrões de comportamento através dos quais se evita todo
contato possível com parcelas significativas da realidade e
das subjetividades. A autonomia e a liberdade são mercadorias de troca nesse negócio, cujo preço é se abrir mão da
coragem de desejar e de pensar. Para finalizar, lembro a
todos uma expressão, que sintetiza o modo de acomodação
em curso no Brasil, que tem força de lei e afeta todas as
classes sociais: “manda quem pode e obedece quem tem
juízo”.
Isso me faz lembrar Henfil, nas cartas que publicou quando da época em que morou nos Estados Unidos, e de sua
constatação óbvia, e porque óbvia muito inteligente, sobre
o regime político em vigor na América, que vale hoje para o
mundo, quase trinta anos depois: “ditadura do capital”.
Notas
1
A. Rimbaud. A correspondência de Arthur Rimbaud. Porto Alegre, L&PM, 1983, p. 33.
2
Idem, p. 34.
257
6
2004
3
M. Foucault. Dits et Écrits, vol. IV. Paris, Gallimard, 1994, p. 629.
I. Kant. “Réponse à la question: que’ est-ce lês lumière?” in Critique de la faculte de
juger. Paris, Gallimard, 1985, p. 497.
4
5
Idem.
RESUMO
Trata-se de perceber, a partir de uma perspectiva libertária —
segundo o ponto de vista da autonomia, liberdade, e auto-governo
— o que é incômodo, uma vez que trivial e esperável, no mundo
das escolhas sociais e históricas. A acomodação torna-se uma
escolha que se faz de chofre, adequada como é com o modo de ser
contemporâneo, onde a sociedade de controle estabelece prêmios
para os assujeitados, de todas as idades. O mundo das escolhas
fáceis, oferecidas pelas ordens sociais, não se mostra tão evidente e cômodo, como qualquer pessoa, com um mínimo de perspicácia, pode entender.
Palavras-chave: autonomia, liberdade, acomodação.
ABSTRACT
The article seeks to demonstrate, from a libertarian perspective —
according to the point of view of autonomy, freedom and selfgovernment — what is annoyance, since trivial and expectable, in
the context of social and historical choices. The accommodation
becomes a choice that one immediately makes, appropriate as it is
to the way of being contemporary, where the society of control
establishes prizes for the subjected ones, of any ages. The world
of the easy choices, given by the social orders, does not show
itself so evident and comfortable, as any person, with a minimum
of shrewdness, can understand.
Keywords: autonomy, freedom, accommodation.
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verve
O inumano
o inumano
manuel da costa pinto*
Procuramos o Bem através do Mal. De Baudelaire a
Artaud, de Dostoiévski a Céline, de Mallarmé a
Beckett, a modernidade nos acostumou conviver com
anti-heróis que buscam a transcendência e o sublime
através da abjeção e da auto-imolação. O grotesco, o
estranho, o disforme, o onírico, o desviante e o perverso são modos de, a um só tempo, presentificar a experiência do choque que está no cerne da condição moderna e de abalar nosso sistema de representações,
constituindo, pela enunciação do não-sentido, um sentido renovado, conseqüente com a perda de um fundamento único para o existente.
Esta crise do fundamento único (político, moral, religioso, metafísico) se confunde com a própria modernidade e com sua progressiva guinada estética (a transição da representação da verdade para as verdades da
representação). Como diz Jean Starobinski em
Montaigne em Movimento, “o discurso da ciência moder-
* Editor , ensaísta e crítico no jornal A Folha de S. Paulo, jornalista e mestre em
Teoria Literária pela USP, autor de “Albert Camus - Um Elogio do Ensaio”
(Ateliê Editorial).
verve, 6: 261-276, 2004
261
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2004
na se desenvolverá (...) em uma polêmica incessante
contra as ilusões da percepção sensível e da imaginação indisciplinada (...); o progresso do saber dará origem a uma confiança cada vez mais segura em relação aos poderes da consciência, armada do instrumento matemático e do método experimental. (...) O
sensível, todavia, não pode ser apagado: é a experiência primeira. Mesmo quando triunfava, no século XVIII,
a ‘verdade lógica’, foi preciso que a linguagem filosófica constituísse uma nova categoria — a da ‘verdade
estética’ — para atribuir uma legitimidade (certamente inferior) ao que a natureza ou a arte oferecem à
percepção direta de nossos sentidos. (...) Precisamente
no momento em que se impunha incontestavelmente
a abordagem ‘copernicana’ da realidade física, a literatura recebeu o estatuto que a caracteriza na idade moderna: é o testemunho de uma ‘experiência interior’,
de um poder da imaginação e do sentimento, sobre os
quais o saber objetivo não tem poder”.
Aquilo que Starobinski diz sobre Montaigne vale
para toda a modernidade, para um tipo de escrita que
— a despeito do gênero literário ao qual pertença —
está impregnada pela tensão entre a desesperança filosófica de compreender a essência do mundo e representações literárias que circulam ao redor desse vazio
ontológico (o caráter irredutível da experiência interior e, por extensão, a realidade fugidia do mundo exterior), nomeando-o, trabalhando-o estilisticamente e restaurando, na superfície da obra, uma precária unidade
de sentido, cuja nostalgia e impossibilidade animam o
movimento da própria escrita.
Essa “conversão estética”, que Starobinski identificou em Montaigne, pode ser encontrada tanto no
niilismo perspectivista ou na filosofia da não-identidade quanto na absolutização do fenômeno estético con-
262
verve
O inumano
tida nas idéias de Novalis (“A poesia é a religião original da humanidade”) e dos primeiros românticos (que
são, literariamente, os precursores da crise da razão
que atinge seu apogeu no fim do século XIX). Na verdade, ao sugerir que existe uma linhagem de escritores
que dramatizam a busca dos fundamentos dos seres e
das coisas e os abismos de sua impossibilidade, estou
pensando nos escritores que abordaram — de maneira
mais ou menos explícita — um tema recorrente na literatura ocidental: o tema da morte de Deus.
Presente em diferentes autores de diferentes épocas, o tema da morte de Deus pode ter diferentes
conotações. Há, por exemplo, o topos romântico — analisado por Octavio Paz em Os Filhos do Barro — pelo qual
poetas como Jean Paul ou Nerval anunciam, numa clave paródica em relação à religião, o desaparecimento
de Deus na cena espiritual, que passa a ser ocupada
(ou criada) pela mitologia pessoal de autores como
Blake, Coleridge, Hölderlin, etc. Matando ou satanizando a divindade, o poeta romântico diviniza a poesia:
“O poeta desaloja o sacerdote e a poesia se converte
numa revelação rival da escritura religiosa”, conclui
Paz.
Mas há também uma conotação que corresponde a
um espectro mais amplo: aqueles autores que — desconfiando dos poderes do conhecimento para atingir as
essências e recusando-se a substituir o saber inessencial da filosofia e da ciência pela “verdade” estética
— depositam a última esperança de transcendência
numa autoridade divina cuja morte, quando se anuncia, só pode ser contemplada com um frêmito de pavor
metafísico. O sentimento de solidão perante um céu
vazio e as paisagens abandonadas pela graça, a devoção a cosmologias imaginárias, a construção de catedrais invisíveis, o sofrimento sem remissão e o gozo
263
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sem porvir, as contrições da razão, o apego desesperado a um corpo que apodrece, a corrupção moral de um
mundo sem salvação, o impulso irresistível em direção a um absoluto no qual não se crê — são sentimentos que estão no cerne de um certo tipo de literatura
em que as aventuras da forma sempre traem as meditações da moral e em que, inversamente, as aflições
espirituais se desencadeiam a partir do contexto
ficcional que as encena.
É no âmbito dessa aflição existencial que nasce a
representação literária da morte de Deus como uma
espécie de emblema de uma determinada condição moral e de uma determinada estrutura epistemológica do
homem diante do mundo. O autores que mais explicitamente formularam esse tema foram Nietzsche (sobre quem falarei mais à frente) e Dostoiévski.
No caso do escritor russo, pode-se dizer que a seqüência central de sua obra, a cena que articula retrospectivamente toda a evolução de seus romances e
contos, está naqueles capítulos de Os Irmãos Karamazov
que compreendem o encontro de Ivan e Aliocha no
traktir “A Capital” e a parábola “O Grande Inquisidor”.
Não cabe aqui esmiuçar as diferentes possibilidades de interpretação destes episódios, mas talvez seja
suficiente dizer que a personagem de Dostoiévski postula ali a insuficiência do saber humano para resolver
as mais importantes questões espirituais e, assim, faz
com que todas as nossas ações dependam da existência de um Deus que não existe ou que, na hipótese de
existir, deverá ser negado. Para Ivan Karamazov, a inteligência está submetida “inteiramente à geometria
euclidiana” e, portanto, não pode compreender que o
sofrimento sobre a Terra seja justificável por um mundo
que está para além das leis espaciais que a regem.
264
verve
O inumano
Sua resposta é uma rejeição daquilo que se pretende
feito à imagem e semelhança de Deus: “Houve um velho pecador no século XVIII que declarou: Si Dieu
n’existait pas, il faudrait l’inventer. E com efeito, o homem inventou Deus. (...) Quanto a mim, já resolvi há
muito tempo não perguntar mais a mim próprio se foi
o homem que criou Deus ou se foi Deus que criou o
homem. (...) Assim, pois, eu aceito Deus de boa vontade, e também Sua sabedoria e Seus desígnios, que nós
não conhecemos absolutamente”. E, depois de citar as
atrocidades que acometem os inocentes, Ivan conclui:
“Recuso-me categoricamente a aceitar o mundo de
Deus; sabendo que ele existe, não o admito entretanto”.
Tal rejeição assume duas feições ao longo do romance. A primeira é a afirmação pura e simples de que Deus
não existe e que, portanto, “tudo é lícito” (frase que Ivan
dissera na reunião com o starets Zossima e que Aliocha
relembra ao final do encontro entre ambos), lançando o
homem no mais profundo abismo moral. A segunda é a
afirmação de que, mesmo que admitamos a existência
de Deus, seus desígnios permanecerão ocultos, de modo
que nossa liberdade para hesitar entre o Bem e o Mal é
a fonte da maior aflição — à qual os inquisidores reagem oferecendo-nos uma servidão feliz, uma utopia negativa que já estava prefigurada nos devaneios de personagens demoníacas como o “homem subterrâneo” de
Memórias do Subsolo, o Raskólnikov de Crime e Castigo e
o Stavroguin de Os Demônios.
É claro que não se pode tomar a personagem pelo
autor/narrador e que o apólogo de Ivan Karamazov não
se confunde com a voz de Dostoiévski, mas o fato é que
a representação mais geral de Os Irmãos Karamazov coloca como eixo central do romance um problema que
percorre toda a obra do escritor: de um lado, colhe as
265
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conseqüências morais do ateísmo, explorando ao máximo esse cenário do qual Deus se retirou sem deixar
substituto; de outro, convida à reação assassina contra uma divindade que — ainda que existente —
aprofunda o sofrimento dos humilhados e ofendidos.
Pelas mesmas razões, o maior romance de
Dostoiévski é uma espécie de pedra angular de toda
uma tradição de escritores “deicidas”. Os Irmãos
Karamazov concentra, em maior ou menor grau, as principais variações do tema da morte de Deus que percorrem a história da literatura e do pensamento ocidentais. Estão ali, claramente, a sensualidade herética de
Sade, a melancolia desesperada de Leopardi, a santidade laica de Camus e o misticismo niilista (ou seria
um ceticismo místico?) de Cioran. Mas, assim como
esses autores vivenciam a experiência da falta de fundamento e elaboram o luto da perda de Deus (às vezes
ostentado sob um véu de luxúria, como no caso de Sade),
há uma outra categoria de autores que, procurando
restaurar a ordem perdida através da arte ou do exercício da razão, acabam aprofundando as fendas sobre
as quais se erguem edifícios destinados a reconciliálos com o mundo. A justificação do Mal em Santo Agostinho, a cosmologia poética criada por Dante para mitigar num plano poético ideal a crise do modelo teológico de apreensão do mundo, a religião natural de
Montaigne, o deísmo de Diderot e os paraísos subterrâneos do próprio Dostoiévski são expressões daquela
nostalgia da identidade que vem sempre de par com a
consciência de sua impossibilidade. As tentativas que
eles fizeram de “salvar Deus” muitas vezes aprofundam
sua perda — o que pode ser vivido com pavor e patetismo
(casos de Agostinho, Dante e Dostoiévski), mas também pode revelar as intenções ocultas de uma “apologia deicida” (casos de Montaigne e Diderot).
266
verve
O inumano
Esse breve (e certamente impreciso) panorama mostra até que ponto a necessidade de um fundamento para
o humano acompanha a reflexão filosófica e a representação literária. Obviamente, o tema da morte de Deus
é um caso limite — que, no entanto, está no coração da
obra de um autor central para a filosofia contemporânea como Nietzsche.
De alguma forma, o “deicídio” de Nietzsche é complementar ao de Dostoiévski. Neste, Deus é inaceitável por razões morais, mas, ao mesmo tempo, sua
desaparição é sentida como uma tragédia para o homem. No caso do pensador alemão, os ídolos religiosos
foram banidos pelo homem moderno, pelo Iluminismo
confiante no progresso da ciência e desconfiado das superstições, mas sobrevivem na forma de abstrações
(Bem, Mal, Verdade, Falsidade, Justiça, Virtude) que
impossibilitam a reconciliação trágica do homem consigo mesmo — algo que só poderá acontecer com a
morte de Deus, que Nietzsche anuncia em A gaia ciência.
Seja como for, estes casos paroxísticos de crise da
metafísica ou de tentativa de superação da metafísica
apontam para um projeto claro: a preservação ou instituição da autonomia do humano e de suas esferas morais e existenciais. Divinizar a poesia ou dessacralizar
Deus, reivindicar o direito humano de substituir Deus,
mesmo que ao preço da submissão a uma natureza corrompida e destrutiva (Sade), ou ao preço de uma
refundação política violenta do mito de Prometeu (caso
dos niilistas russos) — todas essas propostas estéticoliterárias oscilam entre o reles e o sublime, mas há
nelas uma fidelidade ao humano, a fidelidade a um além
do homem formulado pelo próprio homem (Nietzsche)
ou a fidelidade a um homem que está aí, com sua face
abjeta e contraditória.
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2004
A insubmissão e a perversão mais radical são, paradoxalmente, formas de defender a criatura contra o
criador — e, mesmo quando estamos num registro distante dessas reverberações metafísicas, sente-se que
há uma sacralidade profana na subversão, como acontece, por exemplo, com um escritor como Céline. Seu
elogio da abjeção e sua confissão de egoísmo estavam
destinados a ridicularizar todo e qualquer programa
estético-político — e, no entanto, há tanta verdade nesse reconhecimento da mesquinharia e da covardia
universais que a obra de Céline consegue o milagre de
atingir o sublime através da sordidez, preservando
intactas as iluminações de seu bas fond existencial e
os encantamentos de sua prosa talhada por espasmos
de agonia.
Dos dadaístas aos surrealistas, de Artaud a Bataille,
de Kafka a Beckett, nosso século iconoclasta é pródigo
de seres insubmissos e espíritos revoltados que reivindicam a verdade da transgressão: o estranho, o grotesco, o outro advogam uma ampliação dos limites daquilo que é tolerável pela razão, até o ponto em que a
própria razão é forçada a recensear seus domínios e a
assimilar essa “perversidade polimorfa” como sendo sua
segunda natureza. Através do Mal, enfim, chegamos
ao Bem.
***
Há algo de incômodo — já que esse é o nosso mote —
nessa epifania, nessa reconciliação com o mundo através da negatividade. Sartre notou isso em seu livro sobre Baudelaire. Afinal, por que se insurgir contra o
mundo, por que fazer profissão de fé no anátema, por
que celebrar missas negras, por que glosar esse espetáculo de silêncio, dor, opacidade e desrazão se, ao final, os objetivos dessas heresias e dessas litanias do
268
verve
O inumano
Mal não diferem muito dos objetivos da moral e da
espiritualidade convencionais? Se o exercício do Mal
pelo Mal nos conduz a uma forma secularizada de Bem,
esse exercício não difere em essência e necessidade —
mas apenas como acidente e contingência — da busca
do Bem em sentido metafísico ou idealista.
Tal incômodo, porém, logo se dissipa se pensarmos
que esse Mal libertador e essa verdade da transgressão culminam não em uma restauração da ordem do
espírito, de uma abstração que renega o humano, mas
numa fidelidade ao homem e a suas representações,
numa ética da escrita. Pois é pela experiência da escrita, pela poiesis, pelo fazer poético, pelo ato de fabricar algo a partir de nossa dimensão limitada e mortal,
que alternamos à incompreensível ordem divina uma
outra ordem, humana, demasiado humana — a ordem
das palavras, que certamente comporta transcendência
(um além do homem), mas sempre a partir da
imanência da linguagem. É nessa direção, aliás, que
aponta a resposta de Bataille a Sartre em A literatura e
o mal.
Há, porém, um incômodo que me parece mais radical, justamente porque é a negação não da metafísica,
do idealismo ou dessa imagem idealizada que afasta o
homem do homem (negação que, afinal, culmina numa
positividade). A história da literatura apresenta alguns
casos raros em que a linguagem afirma sua insuficiência absoluta, enuncia a inutilidade da arte e, por
meio desta, a inviabilidade fundamental do homem.
Essa dupla recusa da vida e de suas formas de representação encontra expressão paroxística em Pascal e
Tolstói, na condenação jansenista de toda existência
mundana e na condenação da arte como forma de perpetuação da inutilidade humana.
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Pascal e Tolstói — autores tão díspares entre si —
esvaziam todo e qualquer projeto de superação das contingências pela práxis e de refundação do sentido pela
linguagem. Eles são, respectivamente, referência obrigatória para a separação razão pura/razão prática e
para a consumação e apoteose do romance (essa epopéia do espírito); ao mesmo tempo, são incômodas expressões de anti-modernidade no coração da
modernidade: Pascal e Tolstói não ultrapassam a
desrazão essencial da existência por meio da
transcendência espiritual, da idéia de liberdade ou da
estetização, mas pela aniquilação simbólica (e pessoal) de qualquer laço de sociabilidade ou linguagem que
preserve a memória do humano.
Bem entendido, a anti-modernidade de Pascal e
Tolstói não é de forma alguma algo que esteja no centro de suas obras. Se eles são um incômodo para essa
modernidade que, de alguma forma continua a nos seduzir e que é o ar que respiramos, é porque há neles,
em germe, um projeto de negação da autonomia do
humano, do caráter prometeico que reconhecemos
como nossa arché, como aquilo que nos dá forma, função, matéria e finalidade.
Admitamos, por um momento, que Pascal e Tolstói
sejam essencialmente modernos.
A leitura que se faz de Pascal à luz da filosofia e da
lingüística contemporâneas, por exemplo, vai bem além
do sentido apologético de seus Pensamentos. Como observa Gérard Lebrun, ao substituir a ordem do mundo
por uma ordem sobrenatural (a “ordem da caridade”),
Pascal não estava se curvando à ortodoxia cristã, mas
revelando que nada estaria ao alcance do homem pela
razão — a não ser as propriedades físicas e inessenciais
dos objetos do mundo. “Esse antimetafísico permane-
270
verve
O inumano
ceu obcecado pelo ideal de uma segurança que a
metafísica — ele foi o primeiro a vê-lo — não podia mais
trazer ao homem ocidental. E não é de forma nenhuma desvalorizar a fé cristã de Pascal ligar essa necessidade à força do seu investimento religioso: ele chamou de ‘Jesus Cristo’ o único centro que permanecia
possível. (...) Se Pascal se submete, é a uma religião
que recriou na medida das suas necessidades; se ele
se abandona a Deus, é que encontrou um referencial
na antropologia agostiniana. A fé de Pascal foi para ele
um meio de expressão e não uma ‘última instância’
que teria condicionado seu pensamento e sua vida. Foi
a mutação que ele operou da metafísica em religião
que fez dele um Moderno no coração da idade clássica”.
As conseqüências da hermenêutica pascaliana para
a filosofia são bastante conhecidas. Antecipando Kant,
ele anuncia o fim da metafísica e circunscreve a razão
à descrição dos fenômenos do mundo natural, conferindo a suas meditações um fundo moral que — como
um reflexo invertido desse mundo físico e “homogêneo”
— encontra em Deus um ponto fixo que organiza e traduz sua verdade ontológica. E se esta é uma ontologia
negativa, apenas entrevista, à qual o homem se agarra como consolação e aprendizado de sua condição miserável, isso não oblitera o caráter moral e, portanto, a
finalidade antropológica de sua apologia religiosa.
Da mesma maneira, pode-se dizer que os principais
livros de Tolstói reafirmam o primado do humano. A
própria escolha do “romance” (esse gênero burguês,
esse épico do indivíduo) denota a adesão do escritor à
pluralidade e à irredutibilidade da alma. Encontramos
em Tolstói temas presentes nas obras de Rousseau,
Schiller ou Stendhal (o “bom selvagem”, a aspiração ao
sublime, as verdades parciais da vida afetiva). Uma obra
como Ana Karênina reúne em suas personagens — e
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muitas vezes em uma única personagem — todo o mosaico possível de acepções do humano: os abismos interiores de desejo e culpa, os determinismos materiais e a tentativa de transcendê-los social e espiritualmente, as utopias políticas e religiosas, a fronteira
tênue entre sanidade e demência, renúncia e ciúmes.
Tolstói é o remate perfeito da épica burguesa, da arte
como percepção do drama humano em sua totalidade
fraturada — e seu repúdio ao estilo “mal-acabado” dos
romances de Dostoiévski, por exemplo, demonstra o
quanto havia de preocupação estética, de l’art pour l’art,
nessa obra que se propunha flagrar os conflitos políticos de seu tempo (como é o caso de Guerra e Paz).
No entanto, também é preciso admitir que Pascal e
Tolstói são essencialmente anti-modernos.
“A conversão verdadeira consiste em aniquilar-se”,
escreve Pascal em seus Pensamentos. Deus é a única
certeza que poderia nos oferecer um alívio. Todas as
demais certezas (das matemáticas, da física, da substância extensa) são ontologicamente mudas: “O silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora.” E em
nenhum momento ele admite perder a possibilidade
dessa certeza: melhor seria perder o homem. É essa a
ética inumana da aposta pascaliana. Existem apenas
duas possibilidades razoáveis: 1) Deus existe e, se apostarmos nele, ganhamos tudo (a salvação); 2) Deus não
existe e, mesmo que apostemos nele em vão, não perdemos nada. A alternativa não-razoável seria apostar
na concupiscência, no amor pela criatura, e constatar
no além-túmulo que Deus existe, ganhando a danação. Logicamente, portanto, o razoável é optar pela danação na terra, na renúncia da vida em vida: a aposta
pascaliana é uma forma de terrorismo lógico que assimila a conversão à aniquilação.
272
verve
O inumano
Tudo o que é certo é nada, menos Deus, que é tudo,
ainda que seja incerto. Por isso, no opúsculo intitulado
Sobre a conversão do pecador, Pascal insiste em que
uma alma está convertida no momento em que “considera as coisas perecíveis como (...) já perecidas”, no
momento em que “começa a considerar como um nada
tudo aquilo que deve retornar ao nada, o céu, a terra,
seu espírito, seu corpo, seus parentes, seus amigos,
seus inimigos, seus bens, a pobreza, a desgraça, a prosperidade, a honra, a ignomínia, a estima, o desprezo, a
autoridade, a indigência, a saúde, a doença e a própria
vida”.
Numa reunião dos aforismos pascalianos sobre os
costumes e os poderes, André Comte-Sponville escreveu esta frase admirável: “O extraordinário em Pascal
(...) é que ele não crê em nada: nem na justiça, nem
nas leis, nem na tradição, nem no progresso. A fé o
protegia de nossa superstições: ele só acreditava em
Deus; o resto lhe aparecia sob a luz mais impiedosa,
desprovido, não certamente de razão (qual o efeito sem
causa?), mas de toda justificação ou legitimidade absolutas” (Pensamentos sobre a Política; grifo meu). Haveria forma mais eloqüente de definir a recusa radical
do humano que subjaz à antropologia de Pascal?
Essa defesa da aniquilação parece de maneira muito mais nuançada em Tolstói. Não encontramos em
Tolstói um programa de degradação sistemática da vida
em sociedade. Pascal falava para os libertinos; Tolstói
era um libertino arrependido (talvez um libertino aposentado...). O autor de Ressurreição estava preocupado
com o desenraizamento do povo russo e pregava o retorno à simplicidade da igreja primitiva e aos valores
da vida camponesa — uma fuga do mundo tematizada,
por exemplo, em um livro como Padre Sérgio. Em Tolstói,
as crises religiosa, política (sua renúncia aos privilé-
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gios de nobre latifundiário) e até mesmo estética (sua
rejeição da arte ao final da vida) podem ser interpretadas como expressão das frustrações de uma utopia inspirada em Rousseau. A crítica ao “homem inútil” contida em A Morte de Ivan Ilitch deságua no vazio sem consolo do humanista confrontado com a morte e com um
mundo que lhe escapa por entre os dedos. Enquanto
escreveu, Tolstói jamais conseguiu se libertar de seu
próprio talento literário, em nenhum momento ele consentiu em transgredir as regras da grande arte como
forma de superação de suas limitações: quando a arte
se demonstrou incapaz de transformar o mundo, abdicou dela. Mesmo Ana Karênina, que deveria ser uma
condenação da vida “mundana”, se desdobra em dois
enredos paralelos (a história da adúltera Ana Karênina
e do camponês aristocrático Liévin) que resultam numa
sinfonia perfeita, uma sinfonia como as de Beethoven.
Mas é justamente esse gênio da música que se
transforma em um dos alvos de sua catilinária contra
a arte supérflua, a arte distanciada do povo, a arte que
ele degrada no libelo O que é a arte?. E é justamente
Beethoven que fornece o mote para A Sonata a Kreutzer,
a novela sobre um episódio de traição e crime passional
em que Tolstói proclama o caráter nocivo das relações
“artificiais”, dos saberes que garantem as relações sexuais como um fim em si mesmas (a medicina e seus
métodos contraceptivos) e das artes que encarecem
esses jogos de salão, essa coreografia dos corpos.
Há um moralismo tosco, “evangélico”, em A Sonata
a Kreutzer. Mas há também um naturalismo ambíguo
que percorre essa novela envolvente na trama e repulsiva no conteúdo. Para Tolstói, os encantamentos da
vida em sociedade contrariam a natureza (a narrativa
é pródiga em aproximações entre os atavismos humanos e a vida animal), mas, ao mesmo tempo, a nature-
274
verve
O inumano
za humana se divorcia da natureza tout court pelos seus
objetivos (progresso, elevação espiritual, Bem, verdade). Ou seja, os objetivos “naturais” do homem são uma
negação da própria idéia de sociabilidade e, no limite,
da própria perpetuação do homem: “A Humanidade podia desaparecer”, sugere a Pozdnichev (personagem
central de A Sonata a Kreutzer), ao condenar a procriação como um fim desnaturalizado pela concupiscência.
***
A radicalidade do espírito moderno está na demolição de todo fundamento, cujo emblema mais forte é o
da morte de Deus, que afirma o primado do humano, a
verdade de nossas certezas provisórias, nossa
positividade negativa. O que seria, então, o avesso do
moderno? Seria talvez a morte do homem (não no sentido foucaultiano, mas no sentido jansenista), o primado de um Deus ressurrecto, a verdade indiferente de
nossas certezas teológicas. Pascal e Tolstói: dois crentes contra o homem, dois apóstolos do inumano.
275
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2004
RESUMO
A necessidade do fundamento para o humano, na literatura ocidental, encontra em percursos de escritores “deicidas”, uma
problematização no limite. De tal forma que Deus, no Ocidente,
evidencia a grande encruzilhada filosófica que deverá ser confrontada para pensar o humano: se Deus é moralmente condenável, a sua inexistência está no cerne da moderna tragédia humana.
Palavras-chave: literatura, humano, modernidade.
ABSTRACT
The necessity of a definition for the human condition, in Western
literature, provokes radical questionings made by deicide writers.
In the West, God is the philosophical measure that have to be
faced in order to establish the “human”: if God is morally wrong,
His inexistence is on the core of modern human tragedy.
Key words: literature, philosophy, modernity.
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verve
A “mulher cordial”: feminismo e subjetividade
a “mulher cordial”:
feminismo e subjetividade
margareth rago*
Nós podemos ir a qualquer lugar, menos para casa
Gloria Wekker
Décadas depois da incorporação dos estudos feministas e das discussões sobre a categoria do gênero nos
debates acadêmicos e nas disputas políticas, é possível
referir-se ao momento atual das lutas e reivindicações
feministas como “pós-feminismo”, entendendo o conceito
não como um marco temporal que indicaria um tempo
depois, implicando um momento pré e um pós, mas a
partir da instauração de novas configurações nas
problematizações e relações que se travam no interior
deste movimento.
Nessa proposta de falar em “pós-feminismo”, não pressuponho evidentemente o fim do feminismo, acreditando que estaríamos vivendo num período posterior das
lutas sociais e políticas das mulheres, segundo um recorte temporal que operaria com a linha da continuida* Professora no Departamento de História da Unicamp.
verve, 6: 279-296, 2004
279
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de histórica, como se as conquistas feministas já tivessem sido todas elas alcançadas e consagradas. Muito
pelo contrário, recorro, nessa direção, a Rose Braidotti,
para quem “as feministas estão em uma ótima posição
para saber que a desconstrução do sexismo e do racismo não acarreta automaticamente sua ruína...”1
Entendo, assim, inspirando-me também em Michel
Foucault, que é possível perceber no contexto atual das
batalhas feministas, uma nova relação que o feminismo estabelece consigo e nas imagens de si que projeta
para o mundo2. Na atitude de meta-crítica, esta relação
se caracterizaria por um dobrar-se sobre si mesmo, isto
é, pela reflexão crítica sobre o próprio feminismo e por
sua historicização, num movimento de avaliação e balanço de suas conquistas, avanços, limites e impasses,
seja no campo das práticas, seja no do pensamento.
Portanto, essa relação diferenciada também pode ser
vista como efeito das próprias árduas lutas travadas
pelas mulheres, ao longo dos últimos trinta ou quarenta anos. Resulta de muitas conquistas, a partir das quais
um determinado patamar foi atingido, o qual poderia ser
caracterizado por alguns aspectos, dos quais destaco
quatro: a transformação nacional e internacional da
própria imagem do feminismo, hoje reconhecido como
um dos maiores e mais bem sucedidos movimentos do
século XX, a exemplo das referências feitas a esse propósito pelo historiador inglês Eric Hobsbawm, em seu
famoso livro A Era dos Extremos3; o reconhecimento da
importância do feminismo brasileiro, como movimento
social relativamente avançado em relação ao dos outros países, não só da América Latina; a desestigmatização da imagem da “feminista”, outrora associada às
figuras negativas da feiura e da velhice, ou taxadas de
“sapatão” e “mal-amadas”, desde seus inícios no século
XIX; a maneira pela qual o feminismo se reconfigura e
280
verve
A “mulher cordial”: feminismo e subjetividade
generaliza amplamente, atingindo setores muito jovens
da população, como moças de 15 e 16 anos.
Em relação a esse aspecto, vale notar que, hoje, não
apenas as mais jovens entram de outro modo no mercado de trabalho e no mundo público e social, isto é, com
muito mais autonomia do que as mulheres experimentaram nessa idade em décadas anteriores, como também se encontram em condições de estabelecer relações de gênero bastante relaxadas e bem menos
hierarquizadas, se compararmos novamente com aquelas vivenciadas pelas que tinham vinte anos, na década
de 1960. A juventude pós-feminista, em boa parte
educada por pais anti-autoritários, sobretudo nas camadas médias e mais intelectualizadas da população, mantém relações mais libertárias com o corpo, o sexo, o outro, a natureza e a vida. De certo modo, o discurso feminista, tanto quanto o ecológico, o étnico, para não falar
do anarquista e socialista em geral foi incorporado em
muitas dimensões, produzindo importantes efeitos na
sensibilidade e no imaginário social, tanto quanto na
vida cotidiana.
Portanto, é possível afirmar que há um reconhecimento social, na atualidade, de que as lutas feministas
afetaram positivamente a maneira pela qual se deu a
incorporação das mulheres no mundo do trabalho, num
momento de ampla modernização sócio-econômica no
Brasil, desde os anos setenta, e que contribuiu para que
houvesse uma grande mudança nos códigos morais e
jurídicos, nos valores, nos comportamentos, nas relações estabelecidas consigo e com os outros, nos sistemas de representações e no modo de pensar. Especialmente a partir da constituição de um novo olhar sobre
si e sobre o outro — e, nesse sentido, penso num processo de feminização cultural em curso, o mundo temse tornado mais feminino e feminista, libertário e soli-
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dário ou, em outras palavras, filógino4, isto é, amigo das
mulheres e do feminino, o que resulta decisivamente
do aporte social e cultural das mulheres no mundo público.
Certamente, não deixo de considerar as constantes
denúncias de violência sexual e moral praticadas contra jovens, as inúmeras formas de desqualificação e de
humilhação a que são submetidas as mulheres cotidianamente, permanências que revelam que as conquistas estão longe de terem sido esgotadas. Embora seja
visível que um determinado patamar de aquisições foi
estabelecido, as negociações de gênero ainda estão muito
longe de se encerrarem.
No entanto, quero aqui privilegiar um outro aspecto
que me parece menos discutido e que adquire sentido
quando se aceita que, com todas as suas dificuldades e
limitações, o feminismo criou um modo específico de
existência, — muito mais integrado e humanizado, já
que desfaz oposições binárias como a que hierarquiza
razão e emoção —, inventou éticamente e tem operado
no sentido de renovar e reatualizar o imaginário político e cultural de nossa época. Gostaria de examinar,
mesmo que brevemente, a questão da crítica do sujeito
e a da produção de subjetividade, na contemporaneidade,
perguntando pelos modos de constituição de si propostos pelo feminismo.
Novas imagens do feminismo
Dentre as suas inúmeras críticas, o feminismo investiu incisivamente contra o sujeito, não apenas tendo como alvo a figura do homem universal, mas visando
a própria identidade da mulher. Desnaturalizando-a,
mostrou o quanto a construção de um modelo feminino
universalizante foi imposta historicamente pelo discur-
282
verve
A “mulher cordial”: feminismo e subjetividade
so médico vitoriano, pelo direito, pela família, pela igreja, enfim, pelo olhar masculino reforçado principalmente nos centros urbanos, pelos estímulos da indústria de
consumo. Já são inúmeros os estudos, pesquisas, livros,
publicações e revistas que desconstroem as muitas leituras sobre o corpo e a fisiologia da mulher, sobre seus
sentimentos, desejos e funcionamentos físicos e psíquicos, subvertendo radicalmente a ordem masculina do
mundo, especialmente ao desconectar a associação
estabelecida entre origem e finalidade, que justificava
a definição de uma suposta essência feminina a partir
de sua missão para a maternidade.
Contudo, ao criticar esse ideal de feminilidade, que
vigorou até as décadas de 1950/60, que dessexualizava
a mulher e que valorizava a associação romântica do
feminino com a esfera do mundo privado, o feminismo
também abriu mão do corpo, da beleza, da estética e da
moda, considerados reificadores, apropriando-se paradoxalmente do modo masculino de existência que questionava e, ao mesmo tempo, desconstruía. A feminista
apareceu, então, na figura da “oradora”, da mulher que
rompe o espaço público e toma a palavra, denunciando e
revolucionando como os homens. De Olympe de Gouges
às sufragettes, socialistas e anarquistas, como Emma
Goldman e Federica Montseny, chegando ainda à “queima de sutiãs” em praça pública, desde o final dos anos
sessenta, elas se opuseram à figura conservadora e santificada da “mãe”, enaltecida pelo discurso rousseauísta,
provando que poderiam igualar-se, no espaço público,
aos seus opositores, com muita competência5.
Refiro-me a um passado relativamente recente, mas
agora já passado, em que a dimensão desconstrutivista
prevalecia nas percepções do feminismo. Isto porque as
próprias mulheres que se identificam como feministas
têm criado, desde então, novos padrões de corporeidade,
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beleza, cuidados de si, propondo outros modos de constituição da subjetividade, ou o que bem poderíamos chamar de estéticas feministas da existência6. Embora — e
felizmente — já não seja possível definir um sujeito
único do feminismo, pode-se afirmar que as feministas, de modo geral, estão preocupadas tanto com o refinamento do espírito, quanto com a beleza coporal, a saúde, a agilidade, a elegância e a moda, na construção de
si e de uma nova ordem social e sexual.
Portanto, a feminista deixou de ser a “oradora” pública de outrora, avessa à maternidade, enquanto que ser
mãe também deixou de implicar necessariamente a
perda do desejo sexual. Mostrando que poderiam existir
modos diferentes de organizar o espaço, outras “artes
de fazer”7 no cotidiano, da produção científica e da formulação das políticas públicas às relações amorosas e
sexuais, a crítica feminista evidenciou que múltiplas
respostas são sempre possíveis para os problemas que
enfrentamos e que outras perguntas deveriam ser colocadas femininamente, isto é, a partir de um pensamento
que singulariza, subverte e diz de onde fala.
A crítica feminista foi radical ao buscar a libertação
das formas de sujeição impostas às mulheres pelo
patriarcalismo e pela cultura de consumo da sociedade
de massas e, se num primeiro momento, o corpo foi
negado ou negligenciado, como estratégia mesma dessa recusa das normatizações burguesas, desde os anos
oitenta, no Brasil principalmente, percebe-se uma mutação nessas atitudes e a busca de novos lugares para o
feminino, o que implica a emergência de novas formas
de feminilidade, de novas concepções de sexualização,
beleza e sedução, inclusive corporais, que poderiam
aproximar-se, como mencionamos acima, daquilo que
Foucault definiu como “artes da existência”, isto é, técnicas de constituição estilizada da própria subjetivida-
284
verve
A “mulher cordial”: feminismo e subjetividade
de desenvolvidas a partir das práticas de liberdade. Para
Joel Birman, aliás, essa década marca o retorno triunfal de Carmen, personagem sensual, sedutora, quente,
erotizada, com seu vestido decotado e vermelho, radicalmente oposta à mulher assexuada e santificada do
imaginário ocidental tradicional, seja da mãe abnegada, seja da feminista ressentida e masculinizada, ou a
“oradora”, a que se refere Joan Scott8. Como diz esse
autor:“(...) Carmen se apresenta agora também semcerimônia e resplandecente na sua sublime beleza, não
apenas para assumir inteiramente como também para
viver radicalmente as possibilidades entreabertas por
suas paixões. O excesso é a marca fundamental da personagem, sem dúvida”9.
É possível observar, pois, uma certa erotização também no feminismo. Nesse sentido, a mãe pós-moderna
integrou a figura da “mulher independente”, pois além
de emancipada e, muitas vezes, chefe de família, ela
quer gozar sexualmente. Ademais, num outro polo, constata-se que até as prostitutas se tornaram feministas,
recusando sua antiga identidade construída a partir de
parâmetros estabelecidos pela medicina vitoriana e pela
antropologia criminal, para se pensarem como “trabalhadoras do sexo”, sem a presença dos antigos gigolôs e
cafetões. Se o feminismo não soube trabalhar a questão
da prostituição, procurando muito mais contorná-la do
que enfrentá-la diretamente, se o abismo que separou
militantes feministas e prostitutas poucas vezes foi
transposto, não há dúvida de que as “mulheres públicas”, como antigamente se chamavam, souberam muito bem incorporar várias das proposições e práticas experimentadas e defendidas por aquelas.
Certamente esses não foram os únicos saldos, em
termos da produção da subjetividade, trazidos pelo feminismo. Aqui, abordo o lado conservador desse processo,
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uma vez que esse movimento também produziu aquelas que copiaram e traduziram o modelo retrógrado do
“coronel urbano”, dando vida à figura da “mulher cordial”, que até há pouco tempo não constava do repertório
brasileiro das subjetividades femininas. O “homem cordial” era uma figura essencialmente masculina.
A “mulher cordial”
Antes de avançar a discussão e para evitar confusões, gostaria de fazer alguns esclarecimentos. Entendo a cordialidade definida por Sérgio Buarque de Holanda,
em sua pioneiríssima obra Raízes do Brasil10, de 1936,
como a expressão de uma maneira de ser que nada tem
a ver com a bondade e a tradicional passividade atribuídas ao povo brasileiro, como explica seu autor: “Seria
engano supor que essas virtudes (a lhaneza no trato, a
hospitalidade, a generosidade) possam significar “boas
maneiras”, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e
transbordante”11.
Trata-se, antes, de uma subjetividade privatista, que
se manifesta através de comportamentos e práticas de
apropriação privatizadora do mundo público, práticas de
apossar-se do espaço, fazendo do público o “quintal da
própria casa”, como observaram vários autores. Para
Holanda, o pater poder inconteste e ilimitado, o predomínio da família e da casa-grande sobre o Estado e a
vida pública, a ditadura do campo sobre as cidades, a
extensão do poder da esfera privada impediram a formação do conceito de cidadania, no país. Foram sempre
muito grandes os obstáculo para se mudar “a mentalidade criada ao contato de um meio patriarcal, tão oposto
às exigências de homens livres e de inclinação cada
vez mais igualitária”12.
286
verve
A “mulher cordial”: feminismo e subjetividade
Portanto, a subjetividade cordial opõe-se radicalmente
àquela desejada e prometida pelo feminismo, que se
constituiria a partir de uma intensificação dos cuidados de si, muito próxima à perspectiva desenvolvida por
Foucault, e que se caracterizaria por uma abertura em
relação ao outro e pela capacidade de estabelecer novos
vínculos de sociabilidade, baseados no reconhecimento
da diferença, na amizade e na solidariedade13. Para esse
filósofo, esse trabalho de reinvenção de si implica uma
dimensão intersubjetiva, pois o indivíduo se constitui
na relação com o outro, e não isoladamente, e fundamentalmente comporta uma atitude ética, pois se trata
do exercício da liberdade.
Nessa direção, a feminista abrigaria uma subjetividade libertária, capaz de demarcar os limites entre os
seus interesses pessoais e os do público, ao contrário
da personalidade narcísica e egocêntrica, isto é, daquela que confunde e sobrepõe o privado no público, como
alerta Richard Sennett, ao discutir a falência do “homem público” e a descrença no político, no mundo contemporâneo14.
Na linha de raciocínio que estou desenvolvendo, portanto, a feminista teria uma função social especial no
sentido de ajudar a refazer as sociabilidades públicas,
cada vez mais desgastadas e destruídas pela privatização
do cotidiano, isto é, pela desvalorização da política e pela
sobreposição, no mundo público, do modelo da amizade
constituído pela referência familiar, isto é, na esfera da
vida privada. Esse modelo, como bem conhecemos, seleciona alguns pares para serem considerados “amigos”,
a partir da referência dessexualizada da fraternidade,
excluindo todo o resto como inimigos em potencial. Portanto, não pode servir de base para a constituição de
novas redes de relações de amizade, como adverte o filósofo Francisco Ortega:
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“A amizade é um fenômeno público, precisa do mundo e da visibilidade dos negócios humanos para florescer. Nosso apego exacerbado à interioridade, a ‘tirania
da intimidade’, não permite o cultivo de uma distância
necessária para a amizade, já que o espaço da amizade
é o espaço entre os indivíduos, do mundo compartilhado
— espaço da liberdade e do risco — , das ruas, das praças, passeios, dos teatros, dos cafés (...)”15.
É a partir dessas referências que me refiro, aqui, às
mulheres que adotaram o modelo masculino do “homem
cordial” e tornaram-se “coronelas” — palavra que ainda
não consta de nossos dicionários, pois o fenômeno é recente —, em suas instituições, casas, escolas, escritórios, universidades, ongs, de uma maneira profundamente nociva às concepções formuladas pelo movimento feminista. Afinal, a “mulher cordial” é sedentária e
reafirma o lar, ao invés de abandoná-lo. E como diz Rose
Braidotti, na esteira de Deleuze, é preciso “abandonar
o lar”, lugar privilegiado da constituição de identidades
normatizadas, “porque o lar é freqüentemente local do
sexismo e racismo — um local que nós precisamos
retrabalhar política, construtiva e coletivamente. Ao que
eu acrescentaria, com Deleuze e outros, identidades fixas devem ser abandonadas, como o local sedentário,
que produz paixões reativas tais como ganância, paranóia, ciúme edipiano e outras formas de constipação
simbólica”16.
Essa questão é fundamental, a meu ver, pois o feminismo firmou um compromisso social, principalmente
num país em que nasce pelo impulso e pela iniciativa
de mulheres ativistas de esquerda, de presas políticas e
de exiladas envolvidas com as lutas pela redemocratização e pela mudança social, ou seja, cercado por figuras que lutaram pela definição de uma identidade pública e ética da mulher prioritária à privada.
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verve
A “mulher cordial”: feminismo e subjetividade
Assim, se no Brasil, o feminismo nasce e se caracteriza como um movimento de esquerda, independente do
grupo político e partidário que apoie ou pelo qual seja
apoiado, é de se perguntar como pode ter produzido e
reproduzido figuras tão conservadoras e autoritárias,
inspiradas na cordialidade da “casa-grande”, se já nos
anos trinta, um historiador liberal como Sérgio Buarque
acreditava que o “homem cordial” estava em vias de
extinção, com a modernização dos costumes e a democratização cultural? Minha pergunta, nesse sentido,
pode ser formulada nos seguintes termos: como foi e
tem sido possível a existência dessa forma de subjetividade narcisista entre as feministas, se estas mesmas
estiveram criticando incisivamente as relações de poder e as formas de sujeição de e entre homens e mulheres? Como o feminismo pôde acolher um modelo masculino de relação, baseado na exploração e opressão
entre mulheres e fortalecer aquelas que se beneficiam
de determinadas situações e status para afirmarem
hierarquias entre as próprias mulheres? Hierarquia e
feminismo deveriam ser termos antitéticos, como nos
ensinou o feminismo libertário do passado, através das
experiências de figuras como Emma Goldmann, Luce
Fabbri, Maria Lacerda de Moura, as “Mujeres Libres”
espanholas e tantas outras. Em se tratando da construção de novas formas de vida em sociedade, mais
humanizadas e solidárias, já sabemos que não é suficiente um mundo feminista, se não for libertário.
É claro que até recentemente a questão da produção
de subjetividade não havia adquirido a visibilidade e
importância que assume nos debates contemporâneos,
no Brasil e no mundo. Contudo, isso não significa que
não se criticassem as figuras autoritárias de nosso universo social e político, especialmente marcado pelo
clientelismo, ou que não se buscassem novos modos de
289
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experiência. Negando as práticas e visões masculinas
autoritárias, aquelas que abraçaram a causa da emancipação feminina lançaram críticas contundentes às
formas hierárquicas e excludentes de organização social e cultural, insistindo e visando promover uma ampla
transformação nas relações sociais e de gênero.
Mas, desde que se tem falado nas “relações de gênero”, deslocando-se deste modo da “filosofia do sujeito” para
a “pensamento da diferença”, fortemente marcado pelas teorias pós-coloniais, por filósofos pós-estruturalistas como Foucault, Deleuze e Derrida e por talentosas
intelectuais feministas como Luce Irigaray e Julia
Kristeva, como aceitar essas formas de sujeição que são
impostas a outras e a si mesmas e que manifestam
movimentos repetidos de uma reterritorialização profundamente indesejável? Afinal, em nossos tempos, já
não é necessário masculinizar-se — e aliás a própria
masculinidade deixa de definir-se pelo tão criticado
“coronelato” — para adentrar na esfera pública, e nem
as que se definem como lésbicas necessariamente valorizam exclusivamente o masculino. Vale notar como
o próprio movimento gay se masculinizou, enquanto o
feminismo se feminizou. Ou nos hibridizamos...
Pergunto-me como se coloca para o feminismo brasileiro, entre teóricas e militantes, a questão da figuração de novas subjetividades, questão que certamente
não afeta apenas o Primeiro Mundo, se não se visam
apenas transformações das condições de exterioridade.
Como pergunta a historiadora Tânia Swain, preocupada em desconstruir a suposta identidade-essência feminina: “Quem somos ‘nós’”, assim, encerrados em corpos sexuados, construídos enquanto natureza, passageiros de identidades fictícias, construídas em condutas
mais ou menos ordenadas? Quem sou eu, marcada pelo
feminino, representada enquanto mulher, cujas práti-
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verve
A “mulher cordial”: feminismo e subjetividade
cas não cessam de apontar para as falhas, os abismos
identitários contidos na própria dinâmica do ser?”17
Rose Braidotti, por sua vez, aproximando-se de
Deleuze, em sua defesa das subjetividades nômades,
propõe: “...figurações de subjetividade móveis, complexas e mutantes estão aqui para ficar. Falando como uma
mulher feminista branca, anti-racista, pós-estruturalista, européia, eu apoio figurações de subjetividade
nômade, para agir como uma desconstrução permanente do falologocentrismo eurocêntrico. Consciência nômade é o inimigo dentro desta lógica.”
É nessa lógica, a meu ver, que as discussões sobre
as relações de gênero têm sentido, como um modo de
escapar da filosofia do sujeito e das armadilhas da afirmação das identidades, para entrar num novo campo
epistemológico e político, capaz de se abrir para a formulação de novas perguntas e respostas, ou antes, para
novos modos de existência. É, ainda, nesse sentido, que
o diálogo com Foucault e Deleuze, entre outros filósofos
contemporâneos, tem sido fundamental para o feminismo, pela profunda crítica que lançam ao pensamento
cêntrico e à ciência ocidental, fundados na lógica da identidade, assim como pelas saídas que apontam.
Perguntando “o que o feminismo tem a oferecer ao
futuro do pensamento? O feminismo teria um futuro no
pensamento?”, Elisabeth Grosz afirma a necessidade de
reconceitualização do que o feminismo entende por subjetividade, já que discorda que se trata de libertar as
mulheres, pois reconhecer identidades seria defender
uma política servil:
“O feminismo (...) é a luta para tornar mais móveis,
fluidos e transformáveis, os meios pelos quais o sujeito
feminino é produzido e representado. É a luta para se
produzir um futuro, no qual as forças se alinham de
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maneiras fundamentalmente diferentes do passado e
do presente. Essa luta não é uma luta de sujeitos para
serem reconhecidos e valorizados, para serem ou serem vistos, para serem o que eles são, mas uma luta
para mobilizar e transformar a posição das mulheres, o
alinhamento das forças que constituem aquela ‘identidade’ e ‘posição’, aquela estratificação que se estabiliza
como um lugar e uma identidade.”
Muito próximo a Foucault e Deleuze, trata-se então
de recusar o que somos, as subjetivações femininas ou
masculinas que nos são impostas pelo Estado e, portanto, a identidade-mulher-santificada, tanto quanto a subjetividade cordial, retrógrada e autoritária.
O feminismo tem uma dimensão política profundamente crítica e libertadora, que não pode ser negligenciada, afinal foram e têm sido imensas as suas contribuições, especialmente ao questionar as formas e as
práticas masculinas de um mundo que, misógino, é
opressivo para as mulheres e ao mostrar como a ciência fundamentou essas concepções, com seus conceitos sedentários, mascarando sua realidade de gênero.
Portanto, o feminismo trouxe esperança, juntamente com novas imagens do pensamento, ao revelar que o
mundo também poderia ser outro, isto é, feminino e
filógino, e que as mulheres não são apenas sistemas
reprodutivos passivos, nem natureza transbordante e
incontrolável ameaçando destruir a cultura, com seu
desejo ninfomaníaco e selvagem, como sugerem várias
peças e filmes, a exemplo de Salomé e O Anjo Azul.
O feminismo deixou claro, ainda, que as feministas
são capazes de inventar novos mundos, organizar de
modo não-elitista, dar respostas diferentes das já conhecidas e que não satisfazem apenas a alguns setores sociais e sexuais. Mostrou que as mulheres podem criar
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A “mulher cordial”: feminismo e subjetividade
novas ciências — novas formas de produção de conhecimento, as epistemologias feministas, transversais, pois
as mulheres estão em todas as classes e grupos sociais, orientadas por agendas feministas, como observa
Sandra Harding.
Finalmente, o feminismo não visou apenas o benefício das mulheres, pois atingiu e desestabilizou também
a solidez da identidade masculina do guerreiro, em oposição ao modelo aristocrático de masculinidade da “sociedade de corte”, e reforçada pelo sucesso de Tarzan,
desde os inícios do século XX18. Expondo a unilateralidade
e limitação dessa identidade masculina, que exclui tudo
o que é considerado culturalmente feminino, como as
emoções, os sentimentos, a fragilidade e a possibilidade de experiências e vivências mais reais, porque mais
integradas psiquicamente, forçou a busca de novas formas de redescrição de si também para os homens. Como
afirma aquela autora: “Portanto, nessa linha de raciocínio, as mulheres não são as agentes exclusivas do conhecimento feminista. O pensamento feminista deve
fundamentar suas análises críticas da natureza e das
relações sociais no âmbito das vidas das mulheres. Entretanto, os homens também precisam aprender como
fazer o mesmo a partir das suas condições históricas e
sociais particulares, agindo como homens traidores da
supremacia masculina e das relações de gênero convencionais”19.
O feminismo, tanto enquanto teoria, como enquanto
prática, teve e tem uma função social eminentemente
política, por seu potencial profundamente subversivo,
desestabilizador, crítico, intempestivo, assim como pela
vontade que manifesta de tornar o mundo mais humano, livre e solidário, seguramente não apenas para as
mulheres. Por tudo isso, não pode recuar diante do enorme desafio que é uma avaliação contínua das próprias
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subjetividades e dos estilos éticos e estéticos de existência que promove, impedindo a ação das forças reterritorializantes paralizadoras, pois modos feministas de
existir só devem se tornar incômodos enquanto movimentos intensos de afirmação da vida.
Notas
R. Braidotti. “Diferença, diversidade e subjetividade nômade”, Revista online Labrys, estudos feministas, n.1-2, julho-dez. 2002; Tânia Navarro Swain,“As
teorias da carne: corpos sexuados e identidades nômades”, Revista on-line
Labrys, estudos feministas, ns. 1-2, jul.-dez.2002.
1
2
M. Foucault. “Qu´est-ce que les Lumières?” in Dits et ecrits. Paris, Gallimard,
1994.
3
E. Hobsbawm. A era dos extremos. São Paulo, Companhia das Letras, 1996, p.
304.
Veja-se a respeito M. Rago. “Feminizar é preciso. Por uma cultura filógina” in
Revista São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Sead, 2002.
4
5
J. Scott. “Fantasy echo: história e a construção da identidade” in Revista online Labrys, estudos feministas, números 1-2, jul.-dez. 2002.
6
Reporto-me obviamente ao conceito de M. Foucault desenvolvido na História da sexualidade: o uso dos prazeres. vol II, Rio de Janeiro, Graal, 1984.
No sentido utilizado por M. de Certeau em A invenção do cotidiano. Petrópolis,
Vozes, 1994.
7
J. Birman. “Se eu te amo, cuide-se” in Cartografias do feminino. Rio de Janeiro,
Editora 34, 1999.
8
9
10
Idem, p.67.
S. B. de Holanda. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro, Ed. José Olympio, 1982.
Idem, p. 107. O autor prossegue, em nota de rodapé: “Cumpre ainda acrescentar que essa cordialidade, estranha, por um lado, a todo formalismo e
convencionalismo social, não abrange, por outro, apenas e obrigatoriamente,
sentimentos positivos e de concórdia. A inimizade bem pode ser tão cordial
quanto a amizade, nisto que uma e outra nascem do coração, procedem, assim
da esfera do íntimo, do familiar, do privado”.
11
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12
Idem, 104. Veja-se M. Rago. “Sexualidade e identidade na historiografia
brasileira” in Maria Andrea Loyola (org.) A sexualidade nas Ciências Humanas.
Rio de Janeiro, Editora da UERJ,1998, pp. 175-200.
M. Foucault. História da sexualidade: o cuidado de si. vol. III, Rio de Janeiro,
Graal, 1985.
13
14
R. Sennett. O declínio do homem público. S. Paulo, Companhia das Letras, 1989.
15
F. Ortega. Genealogias da Amizade, São Paulo, Iluminuras, 2000, p. 161.
16
Braidotti. Op. cit.
17
Swain. Op. cit.
18
E. Badinter. XY, La identidad masculina. Barcelona, Editorial Norma, 1993.
S. Harding. Whose Science? Whose knowledge? Ithaca, New York, Cornell
University Press, 1991, p. 311.
19
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RESUMO
A atualidade do feminismo apresenta-se como pós-feminismo revelando novas relações que são possíveis no interior deste movimento. A emergência, no Brasil, de novas formas do feminino,
próximas do que Foucault chama de artes da existência, e que
interrogam a universalização da mulher como reação ou repetição
do homem.
Palavras-chave: feminismo, subjetividade, Foucault.
ABSTRACT
The contemporariness of feminism presents itself as a post-feminism,
which reveals new relations that can be developed inside this
social movement. The emergence, in Brazil, of new forms of feminism
related to Foucault’s arts of being. This perspective queries the
universalisation of woman as a reaction or repetition of man.
Key words: feminism, subjectivity, Foucault.
296
verve
Uniformidades e anarquia
uniformidades e anarquia
edson passetti*
Crianças indo para a escola uniformizadas, é uma
imagem que atravessa lembranças e o dia-a-dia. Crianças uniformizadas entrando e saindo da escola,
aprendendo a obedecer, a formar uma identidade, compondo um rebanho. Às vezes, dentre elas, a ovelha negra, o lobo. Uniformizadas desde pequenas, crescem
até se tornarem adultas, atravessando os esportes, as
fábricas e escritórios, laboratórios, hospitais, seminários e conventos, prisões. Crianças, jovens e adultos, uniformizados aprendem a trabalhar, a buscar a
cura do corpo ou do espírito e por quem cuide de suas
almas. Educados, eles sabem respeitar os castigos e
temem as penas aos delitos cometidos. Procuram ser
obedientes e responsáveis. Aguardam pelos pastores
que zelam pela permanência da uniformidade, pelo voluntário assujeitamento ao superior de cada patamar
da hierarquia que consagra a soberania da autorida-
* Professor no Departamento de Política e no Programa de Estudos PósGraduados em Ciências Sociais e Coordenador do Nu-Sol (Núcleo de
Sociabildade Libertária) da PUC/SP.
verve, 6: 299-318, 2004
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de central. Atuam em busca de direitos e querem melhorar de vida.
Crianças indo para escolas sem uniformes, vagando pelas ruas surpreendendo num furto ou assalto,
numa brincadeira circense nas esquinas com o semáforo fechado, também estão em nossa vida diária
transitando a pé, de ônibus, trem, lotação ou automóvel. Elas estão, escaparam ou foram expulsas da escola. Aprenderam a obedecer de maneira diversa no interior de uma educação pelo castigo. Umas, por adesão ou omissão, introjetaram valores disseminados por
adultos; outras, aprenderam a obedecer por meio de
sofrimentos físicos regulares aplicados ao corpo. Para
umas o castigo corporal ou moral é um dispositivo terminal, a fronteira inevitável da eficaz educação familiar e escolar; para outras o castigo físico é a expressão do quanto se é intolerável diante da ordem. De
ambos os lados, convivemos com realizações do castigo, como pedagogias que ensinam as crianças, na família e nas escolas, a aprender a viver em sociedade,
zelando pela autoridade central. O superior deve ser
desejado e alcançado por meio do respeito às normas
e leis: é mantendo hierarquias e consolidando a autoridade central que se perpetua a saúde da sociedade, do país. A criança educada pelos valores superiores inicia e conclui sua vida perpetuando a era dos
servos voluntários!
Max Stirner1, no final da primeira metade do século XIX, mostra que a criança busca instintivamente
um objeto. Ela luta por ele, explicita sua força e, simultaneamente, restringe seu uso à aquisição do objeto. Conquistá-lo é o seu desejo e prazer. Não há julgamento sobre esta disputa. O vencedor de hoje pode
ser um derrotado num instante seguinte, em que os
mesmos corpos disputam outro objeto. Trata-se de uma
300
verve
Uniformidades e anarquia
prática que inventa o guerreiro e evita a criação do
dominador e do seu subjugado. É uma luta entre corpos como parte da vida isenta de defesa a um valor
superior. Entre crianças, a luta pelo objeto envolve a
força e o cessar da força num exercício descontínuo
que favorece o impedimento do vencedor contínuo e
da perpetuação da guerra. As regras móveis por elas
inventadas fazem com que cada uma se veja como
única, legisladora que se dispensa de representação.
Não sendo idênticas ou semelhantes rejeitam a constância da força física como elemento determinante; a
força é parte da vibração dos seus corpos. Não há criança maior ou mais forte fisicamente que conseguirá dominar as demais, pois a mobilidade das regras
favorece a inclusão ou a secessão, sem que isso traga
marcas que não sejam as da própria batalha. Apartadas dos valores superiores, na luta por um objeto, as
crianças evitam um sistema de dominação. Elas se
afirmam como guerreiras na luta e contornam as condições para emergência da servidão. Constroem a vida
como jogos de crianças, como sabemos desde Heráclito.
Os jogos de forças inventados e que decorrem da
convivência com outras crianças fazem da busca pelo
objeto desejado um percurso prazeroso, no qual muitas vezes o próprio objeto é substituído por outro. É
uma luta como jogo sem finalidade maior, sentido ou
meta que indiquem um apaziguamento dos instintos
pelo exercício de uma razão universal. Sob o comando
dos valores superiores dos adultos, a brincadeira de
guerra pela vida se transforma em guerra justa para
dominar a vida. Aos poucos, as artimanhas da razão
apartam os pequenos guerreiros para os educar como
futuros cidadãos, soldados, trabalhadores que recebem
ordens. Em lugar dos impulsos da força de cada um,
domina a soberania da palavra universal construindo
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os donos dos objetos, segundo juízos dos valores superiores consagrados pelo sistema de recompensa e punição, caracterizando o ciclo da sociabilidade autoritária, no qual somos alvo da força de um superior e ao
mesmo tempo fazemos do outro o alvo de nossa força.
É aprender a obedecer por palavras, atos e castigos
para construir o outro como Eu. Nossas identidades
devem estar fundadas em semelhanças em direção a
uma formação universal benéfica ao indivíduo e à sociedade, em sua defesa e como anteparo aos pais, aos
professores, ao Estado. Todos, sem distinção de sangue ou classe devem aprender a seguir seus superiores e mandar nos que estão abaixo, em nome do direito, da religião, da impessoalidade, do egoísmo e do altruísmo, do individualismo e do coletivismo. Forma-se,
assim, uma sociabilidade bem demarcada por uma
naturalização do mando, na educação de cada um pela
punição como parte da tradição dos costumes. É preciso perpetuar a duplicidade súdito-soberano, uma tradição na modernidade sob reforma constante. A modernidade é a era do amor ao castigo, da boa educação, da
sapiente obediência, da desesperada busca por se tornar adulto o mais rápido possível e da inevitável condição material que exige que algumas crianças se tornem adultos responsáveis em pouco tempo. Algumas
serão localizadas como perigosas, possíveis delinqüentes, com comportamentos desviantes, anti-sociais,
marcadas, separadas e decifradas em nome da boa
sociedade a ser preservada.
A educação familiar e escolar voltadas para formação humanista e de inserção futura no mercado de
trabalho moldam os valores superiores provenientes
de autoridades centralizadas fortalecendo a utopia de
adultos por meio da mobilidade social. Aos poucos, a
força inicial de cada criança vai sendo domesticada,
302
verve
Uniformidades e anarquia
em nome do consenso e do diálogo, por condutas orientadas por idéias abstratas, educando-a para a formação segundo a moderna utilidade. Trata-se de um
processo que aciona a força física ou moral do pai, da
mãe, dos parentes, preceptor, professor, clérigo ou leigo
responsável: a força do castigo educa, engrandece a
moral e baliza os devidos comportamentos. Faz concretizar o cidadão ético responsável.
No trajeto para a vida adulta, a adolescência é para
cada única criança sua experiência trágica. É o momento que exige a abdicação definitiva da luta pelo
objeto para se entregar ao culto aos valores maiores,
assumindo uma identidade de assemelhado, um soldado para a guerra justa. Os que se revoltam contra o
modelo da criança como miniaturização do adulto e
sua correlata imagem de jovem responsável, muitas
vezes são tidos como problemáticos, doentes, anormais
e mesmo precoces marginais, necessitando de tratamentos que vão do atendimento psicológico particular
à internação em instituições repressoras. A juventude, segundo Max Stirner, é um momento decisivo para
cada único, diante da imposição racional universal
dos valores pretendendo docilizar a contundente existência dos indomáveis instintos. É o instante em que
a sociedade nos exige comuns: a tragédia atinge cada
jovem em qualquer classe social. É preciso ser egoísta alerta Stirner diante deste abstrato bem coletivo
ou social defendido pelos crentes na superioridade teológica e racional que consagra a importância do Estado. A juventude sinaliza o momento esperado de cada
um diante da adesão à razão superior, sua crisma à
adesão, ao reconhecimento que o superior nos traz
paz por meio da domesticação dos inferiores instintos. Devemos estar aptos para a convivência. É a onipotência da razão diante da inevitabilidade do sexo,
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do incontrolável, do indomesticável, do inominável,
que localiza, confina, separa e expõe o anômico e o
perigoso.
De maneira sutil ou brusca a adolescência é composta de instantes que explicitam os domínios e as
resistências, o furor e a calmaria, as paixões e as durezas, os múltiplos amigos, a potência do sexo, o tesão
e a tensão razão/instinto jamais solucionada e se vê
impelida a transformar a tragédia em ideal ascético.
Devem desaparecer a criança, o jovem e o guerreiro,
para aparecer o soldado que morre pelo povo, o batalhador e responsável cidadão contemporâneo.
Neste momento acontece o alinhavo dos recortes
de cada existência. Para cada um resta uma definitiva chance num dramático ciclo em busca da felicidade. Jovens das diversas classes sociais, em especial
os miseráveis, ficam expostos a prisões e à morte precoce em nome da boa formação de adolescentes, o futuro de uma nação, do povo, da propriedade.
A população se tornou propriedade do Estado moderno que dela dispõe segundo os fluxos dos momentos, sob a forma de biopolítica. Uma lei geral se estabelece, a lei do castigo e das moderações e tolerâncias, na qual cada um deve aprender que o mundo é dos
mais fortes, dos mais preparados, dos mais inteligentes. O Estado espera o melhor de cada potencial cidadão. Por isso lhes garante direitos e ama seus devotos.
É ameaçando punir e vigiando que se previne a sociedade do perigo, educam-se os mais fracos e se cuida
humanitariamente dos desiguais. Aos que extrapolam,
a prisão, mesmo sendo um fracasso e transformada
de ideal da reeducação em depósito de corpos indesejáveis, permanece como uma eficaz imagem do limite da punição2.
304
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Uniformidades e anarquia
Diante das uniformidades e continuidades apresentadas por família, escola e leis, as autoridades superiores e suas misericordiosas sentinelas acham-se capazes de educar cada criança ou jovem em nome do
UM (deus, rei, tirano, raça, senhor, povo, proletariado), o ápice da centralidade governando os outros e
normalizando comportamentos pacificadores de instintos negativos. Crianças, jovens, índios, negros,
mulheres, velhos, operários, escriturários, foram sendo apanhados gradativamente como objeto de investigação científica, de normalizações, objeto de investimento da razão em nome da liberdade e autonomia de
cada sujeito livre que admite e engrandece sua condição de súdito.
Crianças sorridentes e coradas na janela lateral
de um automóvel; crianças atordoadas e atordoantes
numa perua escolar, crianças de olhos arregalados nos
ônibus, trem e metrô; jovens cabisbaixos bem vestidos, em bandos promovendo algaravias, jovens cabisbaixos magros, surrados, em bandos promovendo furtos e assaltos; eles são expressões inconciliáveis com
a civilidade que se pretende eterna, uniformizadora
por meio do castigo e que pode dispor da vida de quem
discorda da construção de uniforme como um bem universal.
A cultura do castigo, diante da desigualdade naturalizada e sob perspectiva de soluções sociais, perpetua sua continuidade por meio de reformas que vão do
assistencialismo à compensação, difundindo o desejo
reformista. Para suprir a falta é preciso repor, completar, acomodar, ajustar medidas, orçamentos e idéias. Modificam-se leis, certos delitos são suprimidos e
substituídos por outros a serem penalizados como se
houvesse uma ontologia do crime.
305
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Crianças e jovens devem aprender a respeitar; esta
é a lei da autoridade superior, da uniformidade a qualquer instante e sob quaisquer circunstâncias. Diante desta continuidade, atuam as descontinuidades nas
honrosas lutas inventadas pelos pequenos guerreiros
pelos seus objetos, com suas regras maleáveis de convivência, o desconhecimento do culto ao UM, a vida
na experiência livre das conservações e de suas utopias. Para as crianças inexiste a sociedade, apenas a
associação livre de pessoas únicas e guerreiras.
Não soa estranho que Max Stirner tenha respondido de imediato tanto contra o Estado moderno quanto
à sua substituição pela Sociedade como fizeram os socialistas — criticando abertamente a metafísica do
anarquista Proudhon tomado por ele como liberal social — com a noção de associação de únicos, uma associação de amigos, podemos completar, lembrando ao
lado com Nietzsche, que o amigo é o melhor inimigo:
aqui não há leis fixas, constantes, imutáveis. Abandonando a maioridade, o universalismo e a uniformidade sem culpas, Stirner reconhece, instintivamente, que diante da relação maior-menor é preferível ser
menor sem almejar maioridades 3 e pensar criança
diante dos idealismos e dos materialismos adultos
universalistas que massacram os jovens iracundos.
Todos, alguns, muitos e uns
A partir de Etienne de la Boétie, uma série de autores problematizam o soberano não só como o governo do Um. Dimensionam a condição de servidão voluntária do súdito na qual se prefere aderir ao soberano, renunciando a si mesmo. Diante da uniformidade
política fundada no exercício legítimo da autoridade
central, a revolta de alguém, contra a condição na qual
306
verve
Uniformidades e anarquia
o superior governa (rei, aristocracia ou povo) e o rebanho (de escravos ou cidadãos) se conforma, inventa
uma experiência de vida na descontinuidade. São revoltas do único contra o UM, de grupos contra o soberano, de classe contra o Estado (autoritário ou democrático), enfim, desde a modernidade, querendo um
príncipe, seguindo Maquiavel, ou um sujeito livre de
soberano, como sugeriu La Boétie no século XVI e
anarquistas no XIX, não há regime, de um rei, de alguns aristocratas ou vanguardas, de muitos cidadãos
livres no Estado, de todos os socialistas, portanto de
um, alguns, muitos e todos, que não esteja abalado
pela revolta de cada único diante da autoridade fundada na tradição, na força superior, no indivíduo, no
coletivo.
O regime de todos é sinônimo de tirania (todas as
vontades são dali dirigidas pelo exercício arbitrário de
falar em nome dos outros), de monarquia (para frente
e para atrás da adesão hobbesiana à conservação da
espécie) ou ausência de regime (a utopia socialista
por meio da tomada do Estado). Fundamentam-se na
crença numa exclusiva autoridade central que preserva ou inova, que pretende eternizar-se ou ser meio
para uma infinita condição evolutiva superior. Por
mais que se esforcem os teóricos e os governantes,
convencendo ou punindo, reeducando ou matando, fazem do regime de todos uma utopia, um consolo.
Os aristocratas, apesar da cantada decadência, seduziram muitos estudiosos e foram referências históricas às continuidades das dominações políticas,
como no evento capitalismo/burguesia. Os intérpretes universalistas buscaram no agrupamento formado pelos especiais (pela tradição, sangue, propriedade
ou razão verdadeira) justificativas para necessidades
e domínios superiores fundados em legitimidades a
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governos que oscilaram entre aristocracia e oligarquia, e na razão moderna com a soberania popular,
entre elites ou vanguardas. O governo de alguns como
o aristocrático (positivo) possui seu reverso, o oligárquico, formando governos de minorias numéricas para
minorias. Entretanto, no governo democrático em que
a autoridade emana do povo como representação de
muitos, forma-se uma maioria a ser governada por alguns, as elites.
Sabe-se pela teoria dos regimes políticos que os tipos são idealizações e que acontecem na história de
maneira mista. Eles apenas enfatizam a situação de
força que prepondera. Do anarquista Pierre-Joseph
Proudhon ao liberal Max Weber, sabemos que os estudos dos regimes são mais contundentes quando ao lado
da tipologia como instrumento de análise se atenta
para a impossibilidade de encontrar na história o tipo
ideal. Proudhon sinalizou para o descarte de qualquer
idealização ainda que inspirada na realidade, enquanto Weber lançou mão da idealização para atingir a compreensão na história na qual a inevitável relação entre autoridade e liberdade se ajusta regulamentada
pelo Estado. Proudhon também defendeu, no século anterior a Weber, que a referida relação é indissociável,
mas indicou que segundo a predominância de um dos
princípios, no caso o da liberdade sobre o da autoridade, a existência ultrapassa a inevitabilidade de Estado e da centralidade de poder, afirmando, então, uma
descontinuidade na uniformidade. De maneira que,
se para Weber a democracia parlametar é o ápice da
razão moderna, inclusive em função dos fenômenos
de massa, para Proudhon a democracia moderna é a
condição em trânsito para o regime da liberdade, da
Anarquia. Entende-se desta maneira porque os anarquistas são simpáticos à idéia de democracia e críti-
308
verve
Uniformidades e anarquia
cos à democracia representativa como seqüestro da
vontade pessoal. Compreende-se, também, que o alvo
anarquista é o liberalismo e o regime da propriedade.
Para os anarquistas, o socialismo estatal como sinônimo de comunismo é o regime de mais autoridade,
é ditatorial e efêmero. Ainda que anarquistas e socialistas estatistas seguidores de Marx estejam no mesmo âmbito do discurso igualitário e socialista, distinguem-se radicalmente. O comunismo para Proudhon é
potencialização da propriedade patriarcal e da tirania,
jamais levando à sociedade igualitária. Os anarquistas, portanto, nada têm a dizer a respeito das lutas entre
as vanguardas esclarecidas do socialismo e as eficientes elites liberais. Weber e Lenin duelaram no século
XX pela supremacia de uma sobre a outra, segundo a
defesa da propriedade capitalista ou socialista e suas
efetivas produtividades. Pouco importam as vitórias
proclamadas pelos seguidores de um ou outro lado. Elas
permaneceram efêmeras e circunstanciais. Cada vitória deu a um ou outro seu momento de glória e manteve intacta a uniformidade do governo de alguns (elite ou vanguarda), num governo de muitos (a democracia) ou de todos (socialismo).
Com La Boétie, nos primórdios modernos, e depois,
desde o século XIX, com Proudhon, os libertários apareceram para discorrer sobre a possibilidade da sociedade sem Estado. Isso não estava mais restrito ao
âmbito das idealizadas sociedades primitivas, dos
nomadismos do passado e das utopias. No momento
presente ou no futuro, segundo a vontade de pessoas
livres, pode-se falar e fazer anarquia. O paraíso, que
estava no céu e na Terra desde os liberais, e na Terra
e não mais no céu com os socialistas estatistas, deixa de ser a metáfora preferencial. O anarquismo de
Proudhon tanto quanto a reviravolta de Stirner sina-
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lizam para a vida livre sem que uma revolução determinista e providencial aconteça para fundar igualdades, sem que uma razão superior nos conduza e interprete: a vontade de igualdade sucede a qualquer
instante.
A razão moderna e científica se afirmou apoderandose da majestade teológica para se mostrar capaz de domesticar os instintos. Foi o atestado de maioridade do
homem livre diante das religiões e dos comandantes
que evitavam auscultar as pulsações dos seres vivos.
Expressou o universal terreno que liberta cada um da
servidão material ou política, instituiu a lei e a representação como maneiras de compreensão do todo (o Estado) por cada parte (o indivíduo e as instituições), colaborando para a primazia do governo das partes representadas diante da ameaça da ditadura do todo onipotente
e consciente (Estado socialista, Estado fascista e regimes ditatoriais em geral). A razão moderna não procurou suprimir arbitrariamente o universal teológico.
Mostraram isso Marx e Proudhon, enfatizando a composição direito universal e religião livre como partes
indissociáveis na defesa da propriedade privada afirmando a inevitável desigualdade e formalizando a igualdade política ou emancipação política4. O Estado tanto
quanto as religiões estavam preservados. Um como forma hierárquica de continuação da autoridade centralizada, as outras livres da tirania do domínio de uma religião soberana. A libertação das verdades propiciou, ao
chamado mundo livre, as múltiplas formas combinadas
de governos com ou sem associação com religiões. Nos
termos do século XIX, tanta vontade de verdade não conteve socialistas e anarquistas que fundaram as verdades da emancipação humana como estágio seguinte a
ser alcançado diante da emancipação política que se concretizava.
310
verve
Uniformidades e anarquia
Tanta vontade de saber fez irromper na continuidade estatal (de liberais e conservadores) ou na sua
descontinuidade como meio (dos socialistas, conquistando o Estado para levar à emancipação humana por
meio do planejamento da produção organizado cientificamente pelas vanguardas) ou fim (dos anarquistas,
abolindo simultaneamente propriedade e Estado) brilhantes conclusões como: o capitalismo é eterno porque não há uma determinista lei socialista da história ou ainda, que inevitabilidades científicas sinalizam para a sociedade igualitária. As utopias de cada
um e para todos permanecem sendo seus referidos
consolos, sem dúvida, com esplendor menos reluzente que os religiosos.
Do ponto de vista político, depois de idas e vindas, a
democracia passou a ser reconhecida como o melhor
dos regimes. No passado defendida pelos liberais, ressaltando suas imperfeições (dentre outras: o povo
transformado em massa, a ditadura da opinião pública, o desgaste da representação, as inevitáveis corrupções no Estado, as morosidades judiciárias, a escalada da violência urbana e a inevitável miséria). No
presente advogada pelos liberais, conservadores e exsocialistas ou neosocialistas, formando, agora, uma
calorosa recepção aos antigos e abomináveis reformistas sociais-democratas. E assim, com o fim do socialismo estatista, enquanto pretensão à hegemonia planetária, a democracia se transformou em via de regra no regime para todos.
Seja pela adesão dos neosocialistas, pelo reconhecimento dos anarquistas para atingir a sociedade igualitária, pelos liberais de ontem e hoje e até os conservadores, a democracia passou a ser inquestionável diante de qualquer adjetivo que acompanhe o substantivo. Se assim for, estamos diante de uma encru-
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zilhada já conhecida, um eterno retorno ao mesmo
Estado ou não-Estado, uma oposição entre absolutos?
O indivíduo moderno rompeu com o absoluto divino, sem com isso abandonar a religião. Novas religiões da razão apareceram, incluindo a da consciência
superior chefiada pelos sacerdotes cientistas da sociedade. O rompimento formal com o divino não promoveu o rompimento com o absoluto, com as religiões,
com a cultura da hierarquia. A oposição entre a razão
moderna e a teologia constitui-se num novo artifício
no interior do discurso hierarquizador. Da mesma
maneira, a oposição entre as verdades Estado e nãoEstado não ultrapassou a obviedade em opor Estado a
Sociedade. O discurso socialista (estatista ou anarquista) contrapôs Sociedade (atingida após a tomada
violenta do Estado pelo partido da revolução e sua vanguarda científica, ou pela abolição do Estado por meio
de revolução violenta ou pela federalização política e
mutualismo econômico entre as associações) a Estado, e nesta inversão forjou suas utopias. Da ajuda estatal à ajuda mútua, os socialistas tomando ou abolindo o Estado, não conseguiram pensar senão noutra
Sociedade, nova fusão entre razão individual e o coletivo, outro absoluto (onde predominou indivíduo, agora prevalece coletivo). Como críticos da metafísica que
mostravam afinidades entre Estado moderno e religião, por suas próprias vias tortas, também afirmaram outro absoluto, nova continuidade, inventaram
uma nova religião para todos fundindo cristianismo e
humanismo. É muita utopia para pouco incômodo.
Fim de século XX: diante dos egoísmos burgueses,
os altruísmos socialistas estatistas se dissiparam e
ambos se combinaram no ajuste por meio de uma justiça social escorada na filantropia privada e pública,
fazendo crer numa eternização do capitalismo, do Es-
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verve
Uniformidades e anarquia
tado, da democracia, da vontade de paz para outras
guerras, dos direitos perante a inevitável miséria e
das distribuições da renda à merenda e ao uniforme
da criança escolarizada. Colocaram-se eqüidistantes
quanto ao conceito que abarca tal situação: aos que
defendem a globalização, os que lutam por uma outra
globalização. Outra vez se dispuseram em opostos positivos e negativos, girando em torno dos mesmos elementos. Os anarquistas, por seu lado, após terem sido
decretados mortos com o final da Guerra Civil Espanhola e ressuscitados depois de 1968, voltaram aos
fluxos contemporâneos da política para colaborarem
com o desassossego.
A uniformidade de Estado convive até hoje com o
incômodo que foi sua recriação como uniformidade de
Sociedade. Querer fazer crer que isso acabou e que o
inevitável se instituiu com o capitalismo e a democracia em escala evolutiva até atingir os Estados orientais, fundados em tradicionalismos superáveis pelo
convencimento ou pela belicosidade, como se diz entre pessoas comuns: é fazer água. A democracia, paradoxalmente, é a comodidade e o incômodo do capitalismo atual. É um obstáculo aos impérios e às suas
expansões, e um artifício circunstancial vivenciado
por socialistas aguardando o momento exato para dar
o bote e realizar a verdadeira justiça social, desarticulando, progressivamente, a propriedade privada. É
uma realidade propícia para os anarquistas inventarem suas associações.
O regime socialista, o governo de todos pela representação do partido e sua vanguarda, cedeu o lugar ao
governo de muitos, a democracia, que representa a
todos e que governa por meio de alguns (as elites econômicas, sociais, políticas e militares). Nesta suposta descontinuidade o indivíduo livre e autônomo per-
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manece sendo uma utopia, um ideal para o qual nos
destinamos, o Bem que devemos almejar. Eu e você
morremos, então, felizes, com a consciência tranqüila, sabendo que no futuro outros viverão este ideal.
Disseram, no século XIX, Proudhon, Marx e
Nietzsche: a democracia será a religião do rebanho
no próximo século. Proudhon procurou libertar-se do
absoluto, das substâncias e causas, dos sobrenaturais,
das idealizações e teorias, voltando-se para análises
por meio do método serial, investindo em estudar as
séries autoritárias e libertárias, em afirmar que uma
revolução nada mais é do que reposição da autoridade
central. Marx mostrou como a democracia faz viver o
domínio burguês, a forma ideal do regime para Estado
capitalista por fazer crer na igualdade formal que legitima a desigualdade, difundindo a universalidade da
lei e do direito. Nietzsche procurou mostrar como o
cristianismo se transformou em democracia, e ponto5.
Todos, muitos e alguns... Etienne de La Boétie, com
seu escrito de jovem, O discurso da servidão voluntária, para os jovens, dizia que qualquer regime do Um é
sempre uma tirania. Onde ficaram os anarquismos?
Os anarquismos são criações de anarquistas que vivem a Anarquia, um regime de liberdade. Não há o
anarquismo como se propaga, mas anarquismos, diferentes, coexistindo, inventando a vida. Os anarquistas não são apenas agitadores de rua, bem humorados
incômodos aos homens de governo6, agentes do passado, grandes homens responsáveis pelo início do movimento operário no Brasil, os iludidos integrantes de
movimentos pré-políticos, espectros do passado... Não
tentem matá-los em nome do saber ou da prática mais
justa. Eles sempre voltam, porque nunca saíram de
circulação... Expressam a inocuidade das tiranias. Con-
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Uniformidades e anarquia
tra eles não há vacina, desinfetante, consolo ou força
física. A liberação, quando prevalece diante da libertação, sinaliza para experiências de vida e os anarquismos, livres das suas sentinelas que guardam os
escritos dos principais formuladores como livros sagrados, a qualquer momento são invenções liberadoras. Traduzindo os ensinamentos em cultos, são
agentes libertadores em nome do absoluto Sociedade
igualitária, e quer queiram ou não, inscritos na uniformidade, muitas vezes pretendendo substituir os
sacerdotes, os cientistas e os professores universitários, com suas singelas devoções. A atualidade dos
anarquismos não está no seu passado, mas na sua
interpelação no presente.
Não há um anarquismo correto ou anarquistas mais
anarquistas que outros. Diferentes, eles se associam
para inventar a vida, coexistindo, inventando éticas
dos amigos como abrigos precários. Mesmo entre os
que esperam pela Sociedade, o que distingue os anarquistas dos demais socialistas é que eles inventam
associações para a vida no presente. Podem estar em
movimentos de contestação, mas não é essa a atitude que os faz anarquistas. Nesta guerra pela existência são guerreiros que não objetivam subalternizar
os outros. Uns não pretendem ser mais verdadeiros
que outros. Formam associações, quiçá federações fundadas na ajuda mútua, em associabilidades libertárias.
A anarquista Emma Goldman, no seu Living my life,
disse que os anarquistas são aristocratas, como
Nietzsche. Não de sangue ou dinheiro, mas como o filósofo, de inovação e poesia. Aristocrata sem o ser,
experimentando ser criança, vai formando uma associação não mais de alguns, incluindo a vanguarda, mas
apenas de uns. Nem longe nem perto do mundo novo
ou da utopia, sem tempo para o tempo e sem perda de
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tempo, no espaço de agora, nestes outros espaços, nesta
urgente ágora heterotópica.
Um anarquismo atual pretende o pensar criança,
analítico, buscando objetos, força inventiva, como associação de únicos, livre do Eu me governando, atingindo a Sociedade como alvo. Não pretende ser identificado. Está vivo e único. Está dentro e fora dos anarquismos. Estamos todos vivos. Somos uns incômodos.
Jovens universitários sentados em fileiras, dia após
dia ouvindo, opinando e seguindo seus mestres. Isto
não é uma lembrança!
Notas
1
M. Stirner. El único y su propiedad. México, Juan Pablos Editor, 1976; O falso
princípio de nossa educação. São Paulo, Imaginário, 2000; “Algumas observações
provisórias a respeito do Estado fundado no amor”. São Paulo, Verve, 2002, nº
1, pp. 13-21.
“O sistema penitenciário, quer dizer, o sistema que consiste em internar
pessoas, sob uma fiscalização especial, em estabelecimentos fechados, até que
elas se emendem — isso é ao menos o que se supõe —, fracassou totalmente.
Esse sistema faz parte de um sistema mais vasto e mais complexo que é, se o
senhor quiser, o sistema punitivo: as crianças são punidas, os alunos são punidos, os operários são punidos, os soldados são punidos. Enfim, se é punido
durante toda a vida”. M. Foucault. “Prisões e revoltas nas prisões (1973)” in
M. B. Motta (org.) Estratégia, poder-saber, Ditos e escritos IV. Rio de Janeiro/São
Paulo, 2003, p. 65.
2
G. Deleuze. Para uma literatura menor. Falando de Kafka, também, Georges
Bataille (A literatura e o mal. Porto Alegre, LP&M Editores, 1989, pp. 129-148)
o vê como autor que não teme a criança diante da autoridade do pai, a autoridade eficaz: “você só pode tratar uma criança conforme sua própria natureza,
com energia, ruído e cólera...” (apud Bataille, p. 135), reconhecendo sua própria
crueldade, acrescentaria Antonin Artaud. Os comunistas, segundo Bataille,
tendem a ver Kafka como autor menor (criança) em relação ao adulto revolucionário comunista, o ápice da razão, por abandonar o leitor à sua própria conclusão. Kafka é menor como literatura que não pretende maioridade e literatura como infância reencontrada, como pretende Bataille. “Diante da necessida3
316
verve
Uniformidades e anarquia
de da ação, impõe-se a honestidade de Kafka, que não concedia direito algum”
(Bataille, idem, p. 10).
“O direito é a política: no fundo foi a burguesia que, por razões políticas e
sobre a base de seu poder político, definiu os princípios do que se chama
direito”. M. Foucault, idem, p. 142.
4
P.-J. Proudhon.O princípio federativo. São Paulo, Imaginário/Nu-Sol, 2000; K.
Marx. A questão judaica. São Paulo, Editora Moraes, s/d; F. Nietzsche. Genealogia
da moral. Lisboa, Guimarães Editores, 1992.
5
Por encontrar-nos na PUC-SP, gostaria de lembrar, brevemente, dois episódios. Cena 1: Em 1977, as forças repressoras do Estado invadiram a PUC-SP e
espancaram estudantes que se reuniam para retomar a antiga UNE – União
Nacional dos Estudantes. Cena 2: Mais tarde, estas mesmas forças, incendiaram o TUCA (fato jamais provado na justiça). Cena 3: Um ano após estes
acontecimentos, estudantes anarquistas que realizavam a autogestão na sua
associação visitam o Coronel Erasmo Dias, em seu gabinete e o presenteiam
com bandejas contendo bombas de chocolate. Cena 4: 2003, Fórum Social Mundial, PUC-RS, uma jovem do Confeiteiros sem fronteiras lança uma torta no rosto
do presidente de um partido político, sinalizando ser a pessoa parte dos Três
patetas, seriado estadunidense que mostra estapafúrdias relações vividas pelos
personagens. Cena Final: Nem o Cel. Erasmo Dias, nem o presidente do referido partido apreciaram os gestos. Ambos alegaram, nas duas datas, que vivíamos numa democracia plena.
6
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RESUMO
Não há nada mais cômodo do que o regime da uniformidade. O
incômodo como uma criança é a prática do desassossego, uma
experimentação de liberdade.
Palavras-chave: anarquistas, liberdade, incômodo.
ABSTRACT
There is nothing more accommodated than the regime of uniformity.
The annoyance, like the child, is the practice of unrest, an
experimentation of liberty.
Keywords: anarchists, freedom, annoyance.
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verve
Tecnologias de si
tecnologias de si, 19821
michel foucault
I
Quando comecei a estudar as regras, os deveres e as
proibições da sexualidade, assim como as interdições e
restrições associadas a ela, eu não estava apenas preocupado com as ações permitidas ou proibidas, mas com
os sentimentos que estavam sendo representados, os
pensamentos, os desejos experimentados, as incursões
para buscar em si qualquer sentimento oculto, qualquer
movimento da alma, qualquer desejo disfarçado sob formas ilusórias. Há uma diferença significativa entre a
interdição da sexualidade e outras formas de interdição. Diferente de outras interdições, as sexuais estão
constantemente ligadas à obrigação de dizer a verdade
sobre si.
Dois fatos podem ser contrapostos: primeiro que a
confissão desempenhou um importante papel nas instituições penais e religiosas, para todos os pecados, não
apenas para o sexo. Contudo, a tarefa de analisar o desejo sexual de alguém é sempre mais importante do que
analisar qualquer outro tipo de pecado.
verve, 6: 321-360, 2004
321
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Eu também estou ciente da segunda contestação: a
de que o comportamento sexual, mais do que qualquer
outro, foi submetido a severas regras do segredo, da decência e da modéstia, de tal modo que a sexualidade
está relacionada, de um modo singular e complexo, à
proibição verbal e à obrigação de dizer a verdade, de esconder aquilo que se faz e de decifrar quem se é.
A associação da proibição com o forte estímulo a falar
é uma característica constante da nossa cultura. O tema
da renúncia à carne estava ligado à confissão do monge
ao abade, dizendo a este tudo o que aquele tinha em
mente.
Eu concebi um projeto estranho: não o estudo da evolução do comportamento sexual, mas a projeção de uma
história do elo entre a obrigação em dizer a verdade e as
proibições sobre a sexualidade. Eu perguntei: como o
sujeito tinha sido forçado a decifrar a si mesmo em relação ao que era proibido? O que está em questão é a
relação entre ascetismo e verdade.
Max Weber formulou a questão: se alguém pretende
comportar-se racionalmente e regular a ação de outro a
partir de princípios verdadeiros, qual parte de si mesmo
ele deve renunciar? Qual é o preço ascético da razão? A
que tipo de ascetismo alguém deve se submeter? Eu formulei a questão oposta: como algumas formas de interdição demandaram certos tipos de conhecimento sobre
si? O que alguém deve saber sobre si para que esteja
disposto a renunciar a qualquer coisa?
Assim, cheguei à hermenêutica das tecnologias de
si na prática pagã e no início do cristianismo. Encontrei
algumas dificuldades neste estudo porque estas práticas não são tão conhecidas. Em primeiro lugar, o cristianismo sempre esteve mais preocupado com a história
de suas próprias crenças do que com a história das prá-
322
verve
Tecnologias de si
ticas reais. Segundo, tal hermenêutica nunca foi organizada em um corpo doutrinário como a hermenêutica
textual. Terceiro, a hermenêutica de si tem sido confundida com as tecnologias da alma — concupiscência,
pecado, e desgraça. Quarto, uma hermenêutica de si
tem sido difundida na cultura ocidental por meio de diversos canais e integrada a várias formas de atitude e
experiência, o que tornou difícil isolá-la e separá-la das
nossas próprias experiências espontâneas.
Contexto do estudo
Meu objetivo por mais de vinte anos tem sido esboçar
uma história das diferentes maneiras com que os indivíduos desenvolvem conhecimentos sobre eles mesmos em
nossa cultura: economia, biologia, psiquiatria, medicina
e penologia. A questão principal não é aceitar ingenuamente esse conhecimento, mas analisar essas denominadas ciências como “jogos de verdade” muito específicos, relacionados a técnicas particulares que os seres
humanos utilizam para entenderem a si próprios.
Como contexto, devemos entender que há quatro grupos principais de “tecnologias”, cada um deles uma matriz de razão prática: (1) tecnologias de produção, que
permitem produzir, transformar ou manipular as coisas; (2) tecnologias dos sistemas de signos, que permitem utilizar signos, sentidos, símbolos ou significação;
(3) tecnologias de poder, que determinam a conduta dos
indivíduos e os submetem a certos fins ou dominação,
objetivando o sujeito; (4) tecnologias de si, que permitem aos indivíduos efetuar, com seus próprios meios ou
com a ajuda de outros, um certo número de operações
em seus próprios corpos, almas, pensamentos, conduta
e modo de ser, de modo a transformá-los com o objetivo
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de alcançar um certo estado de felicidade, pureza, sabedoria, perfeição ou imortalidade.
Estes quatro tipos de tecnologia dificilmente operam
separadamente, apesar de cada uma delas estar associada a certa forma de dominação. Cada um implica
certos modos de treinamento e modificação dos indivíduos, não apenas no sentido óbvio de aquisição de certas habilidades, mas também de aquisição de certas
atitudes. Gostaria de mostrar tanto sua especificidade como sua interação constante. Por exemplo,
pode-se ver a relação entre a manipulação das coisas
e a dominação em O capital, de Karl Marx, em que cada
técnica de produção requer modificação na conduta individual — não apenas de habilidades, mas de atitudes.
As duas primeiras tecnologias, geralmente, são utilizadas no estudo das ciências e da lingüística. São as
últimas duas, as tecnologias de dominação e de si, que
mais me chamaram atenção. Eu tentei construir uma
história da organização do conhecimento relativo tanto à dominação quanto a si mesmo. Por exemplo, eu
estudei a loucura não em termos do critério das ciências formais, mas para demonstrar como um tipo de
gerenciamento dos indivíduos, dentro e fora de asilos,
tornou-se possível por esse estranho discurso. Esse contato entre as tecnologias de dominação sobre os outros
e as tecnologias de si, eu chamo de governamentalidade.
Talvez eu tenha insistido demasiadamente na tecnologia de dominação e poder. Estou cada vez mais interessado na interação entre si e os outros, e nas
tecnologias de dominação individual, a história de como
um indivíduo age sobre si mesmo, na tecnologia de si.
324
verve
Tecnologias de si
O desenvolvimento das tecnologias de si
Pretendo esboçar o desenvolvimento da hermenêutica
de si em dois contextos diferentes, historicamente contíguos: (1) a filosofia greco-romana nos primeiros dois
séculos d.C. do início do império romano e (2) a espiritualidade cristã e os princípios monásticos desenvolvidos
nos quarto e quinto séculos do final do Império Romano.
Ademais, eu pretendo discutir a questão não apenas
teoricamente, mas em relação a um conjunto de práticas da antiguidade tardia. Essas práticas foram constituídas em grego como epimeleisthai sautou, “cuidar de
si”, “o cuidado de si”, “preocupar-se, cuidar de si mesmo”.
O preceito “preocupar-se consigo mesmo” era, para
os gregos, um dos mais importantes princípios das cidades, uma das principais regras para as condutas sociais
e individuais, e para a arte da vida. Esta noção está hoje
para nós obscura e enfraquecida. Quando alguém é questionado “qual é o princípio mais importante na filosofia
antiga?” A resposta imediata não é “cuidar de si”, mas o
princípio délfico gnothi sauton (“conhece-te a ti mesmo”).
Talvez a nossa tradição filosófica tenha enfatizado
em demasia o último e esquecido do primeiro. O princípio délfico não era um princípio abstrato acerca da vida;
era um conselho técnico, uma regra que deveria ser
seguida para a consulta ao oráculo. “Conhece-te a ti
mesmo” queria dizer “não se considere um deus”. Outros estudiosos sugerem que isso queria dizer “esteja
ciente do que realmente pergunta quando consultar o
oráculo”.
Nos textos gregos e romanos, a obrigação de conhecer a si mesmo esteve sempre associada ao outro princípio, o de cuidar de si. E foi este princípio que colocou a
máxima délfica em operação. Está implícito em toda
325
6
2004
cultura grega e romana e tem sido explícito desde
Alcibiades I, de Platão. Nos diálogos socráticos, em
Xenofonte, Hipócrates e na tradição neoplatônica de
Albinus em diante, o indivíduo deveria cuidar de si. O
indivíduo deveria ocupar-se de si antes que o princípio
délfico entrasse em ação. Havia uma subordinação do
segundo princípio em relação ao primeiro. Eu tenho três
ou quatro exemplos disso.
Na Apology, 29e, de Platão, Sócrates se apresenta aos
juízes como um mestre de epimeleia heautou. Vós estais
“envergonhados de preocuparem-se em obter riqueza,
reputação e honra”, ele lhes disse, mas não vos ocupais
convosco, ou seja, com “sabedoria, verdade e a perfeição da alma”. Ele, por sua vez, vela pelos cidadãos assegurando-se para que se ocupem deles mesmos.
Sócrates diz três coisas importantes a respeito desse
convite a outros para que se ocupem de si mesmos: (1)
sua missão lhe foi conferida pelos deuses, e ele não a
abandonará até seu último suspiro; (2) para essa missão, ele não exige nenhuma recompensa; ele é desinteressado; ele o faz por benevolência; (3) sua missão é útil
para a cidade — mais útil do que a vitória militar de Atenas em Olímpia — porque ao ensinar as pessoas a cuidarem de si, ele os ensina a cuidar da própria cidade.
Oito séculos depois, encontra-se a mesma noção e a
mesma frase no tratado de Gregório de Nyssa, Sobre a
Virgindade, mas com um significado totalmente diferente. Gregório não escrevia sobre o movimento no qual
um indivíduo cuida de si e da cidade, mas sobre o movimento no qual renuncia ao mundo e ao casamento, separa-se da carne e, com a virgindade do coração e do
corpo, recupera a imortalidade da qual havia sido privado. Ao comentar a parábola do dracma (Lucas 15: 8-10),
Gregório incita o indivíduo a acender o lampião e virar
326
verve
Tecnologias de si
a casa do avesso até encontrar, brilhando nas sombras,
o dracma perdido. Para recuperar a eficácia que Deus
conferiu à alma do indivíduo e que o corpo obscureceu, o
indivíduo deve cuidar de si mesmo e investigar cada
canto de sua alma (De Virg. 12).
Podemos ver que o asceticismo cristão, como a filosofia antiga, coloca-se sob o mesmo signo do cuidado de
si. A obrigação de conhecer a si mesmo é um dos elementos centrais de sua preocupação. Entre esses dois
extremos — Sócrates e Gregório — o cuidado de si não
se constituiu apenas como princípio mas como uma prática constante.
Poderia citar mais dois exemplos. O primeiro texto
epicurista que serviu como um manual da moral foi a
Carta a Meneceu (Diógenes Laërtius 10.122-38). Epicuro
escreve que nunca é muito cedo ou muito tarde para
ocupar-se da alma. Deve-se filosofar quando se é jovem
e também quando se é velho. Esta era uma tarefa que
deveria ser levada ao longo de toda a vida. Ensinamentos
sobre a vida cotidiana eram organizados em torno do
cuidado de si para ajudar cada membro do grupo com o
trabalho mútuo da salvação.
Outro exemplo vem de um texto alexandrino, Sobre a
Vida Contemplativa, de Philon de Alexandria. Ele descreve
um obscuro e enigmático grupo na periferia da cultura
helênica e hebraica chamado Therapeutae, marcado por
sua religiosidade. Esta era uma comunidade austera,
devota à leitura, à meditação terapêutica, à reza individual e coletiva e a encontros para um banquete espiritual (agapê, “celebração”). Essas práticas derivaram da tarefa principal, o cuidado de si (De Vita Cont. 36).
Este é o ponto de partida para possíveis análises do
cuidado de si em culturas antigas. Eu gostaria de analisar a relação entre cuidado e conhecimento de si, rela-
327
6
2004
ção encontrada nas tradições greco-romana e cristã entre
o cuidado de si e do muito conhecido princípio “conhece-te a ti mesmo”. Assim como há muitas formas de
cuidado, há diferentes formas de si.
Resumo
Há diversas razões do porquê o “conhece-te a ti mesmo” obscureceu o “cuida de si mesmo”. Primeiro, houve
uma profunda transformação nos princípios morais na
sociedade ocidental. Nós acreditamos ser difícil basear
moralidade rigorosa e princípios austeros no preceito
de que devemos cuidar de nós mesmos mais do que qualquer outra coisa no mundo. Estamos mais inclinados a
entender o cuidado de si como imoralidade, como uma
forma de escapar de todas as regras possíveis. Herdamos a tradição da moralidade cristã que faz da renúncia
de si condição para a salvação. Conhecer a si mesmo
era paradoxalmente o caminho para a renúncia de si.
Nós também herdamos uma tradição secular que
respeita o direito externo como base para a moralidade.
Como o respeito de si poderia então ser a base para a
moralidade? Somos os herdeiros de uma moralidade
social que busca regras para comportamentos aceitáveis em relação aos outros. Desde o século XVI, críticas
à moralidade estabelecida têm sido feitas em nome da
importância de reconhecer e conhecer a si mesmo. Portanto, é difícil ver o cuidado de si como compatível com
moralidade. “Conhece-te a ti mesmo” obscureceu o “cuida
de si mesmo” porque nossa moralidade, a moralidade do
ascetismo, insiste que o si é o que deve ser rejeitado.
A segunda razão é que, em filosofia teórica que vai
de Descartes a Husserl, o conhecimento de si (o sujeito
pensante) assume uma importância crescente como o
primeiro passo na teoria do conhecimento.
328
verve
Tecnologias de si
Em suma: houve uma inversão de hierarquia entre
os dois princípios da antiguidade, “cuida de si mesmo” e
“conhece-te a ti mesmo”. Na cultura greco-romana o
conhecimento de si surgiu como conseqüência do cuidado de si. No mundo moderno, o conhecimento de si
constitui o princípio fundamental.
II
A primeira elaboração filosófica da preocupação com
o cuidado de si que eu gostaria de mencionar é encontrada em Alcibiades I, de Platão. A data desse escrito é
incerta e talvez seja um diálogo platônico apócrifo. A
minha intenção não é estudar datas, mas apontar a principal característica do cuidado de si, que está no centro
do diálogo.
Os neoplatônicos no terceiro ou quarto século d.C.
demonstram a relevância atribuída a esse diálogo e a
importância que assumiu na tradição clássica. Eles pretendiam organizar os diálogos de Platão como pedagogia
e como a matriz do conhecimento enciclopédico. Eles
consideravam Alcibiades o primeiro diálogo de Platão, o
primeiro a ser lido, a ser estudado. Chamava-se arché.
No segundo século, Albinus afirmou que todo jovem homem dotado que quisesse se distanciar da política e praticar a virtude deveria estudar Alcibiades. Este fornecia
o ponto de partida e um programa para toda a filosofia
platônica. “Cuida de si” foi seu primeiro princípio. Eu
gostaria de analisar o cuidado de si em Alcibiades I em
relação a três aspectos.
1. Como essa questão é introduzida neste diálogo?
Quais as razões que levam Alcibiades e Sócrates à noção do cuidado de si?
329
6
2004
Alcibiades está prestes a ingressar em sua vida pública e política. Ele deseja falar ao povo e ser o todo-poderoso na cidade. Ele não está satisfeito com seu status
atual, com seus privilégios de nascimento e de herança. Ele deseja adquirir poder pessoal sobre todos os outros, dentro e fora da cidade. Nesse ponto de intersecção
e transformação, Sócrates intervém e declara seu amor
por Alcibiades. Alcibiades já não pode ser o amado, mas
deve se tornar o amante. Ele precisa tornar-se ativo no
jogo político e no jogo do amor. Assim, há uma relação
dialética entre o discurso político e o erótico. Alcibiades
realiza sua transição de uma maneira específica tanto
na política como no amor.
A ambivalência é evidente no vocabulário político e
erótico de Alcibiades. Em sua adolescência, Alcibiades
era desejado e tinha muitos admiradores; porém, agora
que sua barba estava crescendo, seus amantes desapareceram. Antes, ele os havia rejeitado no auge de sua
beleza pois queria ser dominante, não dominado. Na sua
juventude, ele não queria ser dominado, mas agora deseja dominar os outros. Esse é o momento em que surge Sócrates, que é bem sucedido onde os outros falharam: ele fará Alcibiades submeter-se, mas em um outro sentido. Eles fazem um pacto — Alcibiades irá
submeter-se ao seu amante, Sócrates, não no sentido
físico, mas espiritual. A intersecção entre a ambição
política e amor filosófico é o “cuidado de si”.
2. Nessa relação, por que Alcibiades deveria preocupar-se consigo mesmo, e por que Sócrates preocupa-se
com a preocupação de Alcibiades? Sócrates indaga
Alcibiades sobre sua capacidade pessoal e sobre a natureza de sua ambição. Ele saberia o significado das regras jurídicas, da justiça ou da concórdia? Alcibiades
claramente não sabe coisa alguma. Sócrates o convida
a comparar sua educação à dos reis da Pérsia e Esparta,
330
verve
Tecnologias de si
seus rivais. Os príncipes espartanos e persas têm professores de sabedoria, justiça, temperança e coragem.
Em comparação, a educação de Alcibiades é como a de
um escravo velho e ignorante. Ele não conhece essas
coisas e, assim, não pode dedicar-se ao saber. Porém,
afirma Sócrates, não é tarde demais. Para ajudá-lo a
ganhar vantagem — para adquirir technê — Alcibiades
deve se concentrar, cuidar de si mesmo. Mas Alcibiades
não sabe no que deve concentrar-se. O que é esse conhecimento que busca? Ele está constrangido e confuso. Sócrates o convoca a ter coragem.
No 127d de Alcibiades encontramos a primeira ocorrência da frase epimeleisthai sautou. O cuidado de si refere-se sempre a um estado político e erótico ativo.
Epimeleisthai expressa algo muito mais sério do que o
simples fato de prestar atenção. Envolve diversas coisas: preocupar-se com suas posses e sua saúde. É sempre uma atividade real, e não uma simples atitude. Esta
expressão é utilizada em relação à atividade de um fazendeiro cuidando de seus campos, de seu gado, de sua
casa, ou em relação ao trabalho de um rei em cuidar de
sua cidade e seus cidadãos. Ou, ainda, ao culto aos ancestrais ou aos deuses, ou a um termo médico que traduza o fato de cuidar. É muito significativo que o cuidado de si em Alcibiades I seja relacionado diretamente à
pedagogia deficiente, que diz respeito à ambição política e a um momento específico da vida.
3. O restante do texto é dedicado a uma análise dessa noção de epimeleisthai, “preocupar-se com si mesmo”.
O texto está dividido em duas questões: O que é este si
que se deve cuidar, e em que consiste este cuidado?
Primeiro, o que é o si (129b)? Este é um pronome
reflexivo que possui dois significados. Auto significa “o
mesmo”, mas também conduz à noção de identidade.
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6
2004
Este segundo significado altera a questão “o que é o si”
para “qual é o fundamento no qual poderei encontrar
minha identidade?”
Alcibiades tenta encontrar o si em um movimento
dialético. Quando se cuida do corpo, não se cuida de si.
O si não é vestimenta, ferramenta ou posses. Ele deve
ser encontrado no princípio que utiliza esses instrumentos, não um princípio do corpo, mas da alma. É necessário se preocupar com a alma — essa é a principal prática do cuidado de si. Este é o cuidado da prática e não o
cuidado da alma como substância.
A segunda questão é: como devemos cuidar desse
principio da prática da alma? Em que consiste esse cuidado? É necessário saber em que consiste a alma. A
alma não pode conhecer a si mesma, a não ser ao olhar
para si em um elemento similar, um espelho. Assim,
ela deve contemplar o elemento divino. É nesta contemplação divina que a alma poderá descobrir regras que
sirvam de base para o comportamento justo e para a
ação política. O esforço da alma em se conhecer é o princípio no qual a ação política justa pode se fundar, e
Alcibiades será um bom político na medida em que contemple sua alma no elemento divino.
A discussão freqüentemente gravita em torno e é formulada nos termos do princípio délfico “conhece-te a ti
mesmo”. Cuidar de si consiste em conhecer-se a si
mesmo. O conhecimento de si torna-se o objeto da busca do cuidado de si. Ocupar-se de si e as práticas políticas estão vinculados. O diálogo se encerra quando
Alcibiades compreende que deve cuidar de si por meio
do exame de sua alma.
Este texto inicial elucida o pano de fundo histórico do
preceito do cuidado de si e estabelece quatro problemas
fundamentais que perduram ao longo da antiguidade,
332
verve
Tecnologias de si
apesar das soluções frequentemente apresentadas diferirem daquelas contidas em Alcibiades, de Platão.
Primeiro, há o problema da relação entre ocupar-se
de si e a prática política. Nos últimos períodos helênico
e imperial, a questão é apresentada de maneira alternativa: quando é o melhor momento para afastar-se da
prática política e voltar-se aos cuidados de si?
Segundo, há o problema da relação entre ocupar-se
de si e a pedagogia. Para Sócrates, o cuidado de si é o
dever de um jovem, porém mais adiante no período
helênico, o cuidado de si é visto como dever permanente por toda a vida.
Terceiro, há o problema da relação entre ocupar-se
de si e o conhecimento de si. Platão priorizou o princípio
délfico “conhece-te a ti mesmo”. A posição privilegiada
do “conhece-te a ti mesmo” é uma característica de todos os platônicos. Depois, nos períodos helênico e grecoromano, essa questão sofre uma inversão. A ênfase não
estava mais no conhecimento de si, mas no cuidado de
si. A este último, lhe foi atribuída proeminência como
uma questão filosófica.
Quarto, há o problema da relação entre ocupar-se de
si e o amor filosófico, ou a relação para com o mestre.
Nos períodos helênico e imperial, a noção socrática
do “cuidado de si” tornou-se um tema filosófico comum
e universal. O “cuidado de si” foi aceito por Epicuro e
seus seguidores, pelos cínicos, e por alguns estóicos
como Sêneca, Rufus e Galen. Os pitagóricos atentaram
à noção de uma vida comunitária ordenada. O tema do
cuidado de si não era um conselho abstrato, mas uma
prática difundida, uma rede de obrigações e serviços
para a alma. Segundo Epicuro, os epicuristas acreditavam que nunca era tarde para ocupar-se de si. Os estóicos diziam que se deve assistir a si mesmo, “retirar-se
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2004
para dentro de si e lá permanecer”. Luciano parodiou
essa noção. Esta era uma prática largamente difundida
que gerou competição entre os retóricos e aqueles que
se voltaram contra si, particularmente sobre a questão
do papel do mestre.
Havia charlatões, certamente. Mas alguns indivíduos acreditaram. Era de entendimento comum que era
bom ser reflexivo, ao menos um pouco. Plínio aconselhava um amigo a reservar alguns momentos ao dia,
várias semanas ou meses, para um retiro dentro de si.
Este era um lazer ativo —estudar, ler, preparar-se para
o infortúnio ou a morte. Era uma meditação e uma preparação.
A escrita era também importante na cultura do cuidado de si. Uma das principais características do cuidado era tomar notas de si para que fossem relidas, escrever tratados e cartas a amigos para ajudá-los e cultivar
cadernos com a finalidade de reativar para si as verdades necessárias. As cartas de Sêneca são um exemplo
dessa prática de si.
Na vida política tradicional, a cultura oral era profundamente dominante e, portanto, a retórica era fundamental. Porém, o desenvolvimento de estruturas administrativas e a burocracia do período imperial aumentaram a quantidade e o papel da escrita na esfera política.
Nos escritos de Platão, diálogos cedem espaço ao pseudodiálogo literário. Mas com o advento da era helênica, a
escrita prevalece e a dialética real transfere-se para a
correspondência. O cuidado de si torna-se constantemente ligado à prática da escrita. O si é algo para se
escrever a respeito, um tema ou objeto (sujeito) da prática da escrita. Esta não é uma característica moderna,
nascida da Reforma ou do romantismo; é uma das mais
antigas tradições ocidentais. A escrita já era bem esta-
334
verve
Tecnologias de si
belecida e profundamente enraizada quando Agostinho
iniciou suas Confissões.
O novo cuidado de si envolvia uma nova experiência
de si. A nova forma de experiência de si será vista nos
séculos I e II quando a introspecção torna-se cada vez
mais detalhada. Uma relação desenvolvida entre a escrita e a vigilância. Prestava-se atenção às nuances da
vida, ao estado de ânimo, e da leitura, e, assim sendo, a
experiência de si foi intensificada e ampliada pelo ato
de escrever. Um vasto campo de experiências se abre,
onde antes não existia.
É possível comparar Cícero aos posteriores Sêneca
ou Marco Aurélio. Vemos, por exemplo, a preocupação
meticulosa de Sêneca e Marco Aurélio com os detalhes
da vida cotidiana, com o movimento do espírito, com a
auto-análise. Todos os aspectos do período imperial estão presentes nas cartas de Marco Aurélio de 144-45
d.C. a Fronto:
Saudações, meu mais querido dos mestres.
Nós estamos bem. Eu dormi relativamente tarde
devido ao meu leve resfriado, que agora parece ter
diminuído. Assim, das 5 da manhã às 9, passei parte
do tempo lendo Agricultura, de Cato, e a outra parte,
graças aos céus, escrevendo coisas mais agradáveis
do que ontem. Então, depois de rezar, eu aliviei minha garganta, não vou dizer que pelo gargarejo —
apesar da palavra gargarisso ser encontrada, acredito eu, em Novius, dentre outros lugares — mas pela
ingestão de mel com água até a goela e cuspindo novamente. Após cuidar de minha garganta, fui até meu
pai para acompanhá-lo em um sacrifício. Então, fomos ao refeitório. O que você acha que eu comi? Um
pedaço de pão, apesar de ter visto outros devorando
feijões, cebolas, e arenques cheios de ovas. Depois
335
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disso, trabalhamos duro na colheita de uvas, fazendo
um bom exercício, estávamos felizes e, como diria o
poeta “ainda deixando alguns cachos pendurados como
sobras da colheita”. Depois das 6 voltamos para casa.
Fiz algum trabalho, mas sem propósito algum. Depois, tive uma demorada conversa com minha mãe,
sentada na cama. Minha conversa foi assim: “o que
você acha que meu Fronto está fazendo agora?” Então
ela: “e o que você acha que minha Gratia está fazendo? Então eu: “e o que você acha que o nosso passarinho, nossa pequena Gratia, está fazendo?” Enquanto
falávamos dessa forma e disputávamos quem de nós
amava mais o outro, o sino tocou, uma intimação de
que meu pai havia ido para o seu banho. Então, jantamos depois de tomarmos banho na sala de extração de
óleo; não quero dizer tomar banho dentro da sala de
extração de óleo, mas quando tomamos banho, jantamos lá, e desfrutamos do som dos pica-paus brincando
uns com os outros. Depois de voltar, antes de me virar
e cair no sono, faço minha lição e dou a meu querido
mestre um relatório das atividades do dia; e se eu
pudesse sentir mais saudade, eu não hesitaria em
enfraquecer um pouco mais. Adeus, meu Fronto, onde
quer que esteja, meu querido, meu amor, meu deleite. Como estão as coisas entre nós? Eu o amo e você
está longe.
Esta carta apresenta uma descrição da vida cotidiana. Todos os detalhes do cuidado de si estão presentes,
todas as coisas sem importância que ele fez. Cícero conta
apenas coisas importantes, mas na carta de Marco Aurélio esses detalhes são importantes, pois eles são o
próprio indivíduo — o que ele pensou, o que ele sentiu.
336
verve
Tecnologias de si
A relação entre o corpo e a alma é também interessante. Para os estóicos, o corpo não era tão importante,
mas Marco Aurélio fala por si, de sua saúde, do que comeu, de sua dor de garganta. Isso é muito característico da ambigüidade sobre o corpo e este cultivo de si.
Teoricamente, a cultura é orientada pela alma, mas
todas as preocupações com o corpo assumem uma grande importância. Em Plínio e Sêneca, há grande hipocondria. Eles se recolhem a uma casa no campo. Eles
desenvolvem atividades intelectuais, mas também atividades rurais. Eles comem e participam de atividades
dos camponeses. A importância do retiro rural contida
nessa carta é a de que a natureza ajuda o indivíduo a
colocá-lo em contato consigo.
Há também uma relação amorosa entre Aurélio e
Fronto, relação entre um homem de 24 anos e outro de
40. Ars erotica é um tema de discussão. O amor homossexual era importante nesse período e estendeu-se no
monasticismo cristão.
Finalmente, nas últimas linhas, há uma alusão ao
exame de consciência no final do dia. Aurélio vai dormir e olha em seu caderno para ver o que irá fazer e em
que medida correspondia ao que havia feito. A carta é
uma transcrição desse exame de consciência. Valoriza
aquilo que foi feito, não o que foi pensado. Esta é a diferença entre a prática nos períodos helênico e imperial
e a posterior prática monástica. Em Sêneca, também,
há apenas ações intencionais, não pensamentos. Há,
de fato, uma antecipação da confissão cristã.
Esse gênero de cartas revela uma face distinta da
filosofia da época. O exame de consciência se inicia com
a escrita dessa carta. A escrita de diários surge, posteriormente, na era cristã e concentra-se na noção de
combate da alma.
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6
2004
III
Em minha discussão de Alcibiades, de Platão, destaquei três temas principais: primeiro, a relação entre o
cuidado de si e o cuidado com a vida política; segundo, a
relação entre o cuidado de si e a educação deficiente; e
terceiro, a relação entre o cuidado de si e o conhecimento de si. Embora tenhamos visto em Alcibiades a
estreita relação entre “cuidar de si mesmo” e “conhecer a si mesmo”, o cuidado de si foi eventualmente absorvido pelo conhecimento de si.
Podemos ver esses três temas em Platão, também
no período helênico, e quatro ou cinco séculos depois
em Sêneca, Plutarco, Epíteto e outros. Se os problemas
são os mesmos, as soluções e temas são diferentes e,
em alguns casos, opostos ao significado platônico.
Primeiro, preocupar-se com si mesmo nos períodos
helênico e romano não é exclusivamente uma preparação para a vida política. O cuidado de si tornou-se um
principio universal. Deve-se deixar a política para melhor cuidar-se de si.
Segundo, o cuidado de si não é apenas obrigatório
aos jovens preocupados com sua educação; é um modo
de vida para todos ao longo de suas vidas.
Terceiro, mesmo que o auto-conhecimento desempenhe um papel importante no cuidado de si, este envolve também outras relações.
Gostaria de discutir brevemente os primeiros dois
pontos: a universalidade do cuidado de si independente
da vida política, e o cuidado de si ao longo da vida.
1. O modelo pedagógico de Platão foi substituído por
um modelo médico. O cuidado de si não é um outro tipo
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verve
Tecnologias de si
de pedagogia; este deve se tornar um cuidado médico
permanente. O cuidado médico permanente é uma das
principais características do cuidado de si. O indivíduo
deve se tornar o médico de si.
2. Já que devemos nos cuidar ao longo da vida, o objetivo não é mais preparar-se para a vida adulta, ou para
uma outra vida, mas preparar-se para uma realização
plena da vida. Esta realização só está completa no momento imediatamente anterior à morte. Essa noção de
uma alegre aproximação da morte — da velhice como
plenitude — é uma inversão dos valores tradicionais
gregos de juventude.
3. Por último, há as diversas práticas que surgiram a
partir do cuidado de si e a relação do auto-conhecimento com estas práticas.
Em Alcibiades I, a alma tinha uma relação espelhada
com ela mesma, que se refere ao conceito de memória
e justifica o diálogo como um método para descobrir a
verdade na alma. Porém, do tempo de Platão à era
helênica, a relação entre o cuidado de si e o conhecimento de si se alterou. Podemos notar duas perspectivas.
Nos movimentos filosóficos do estoicismo no período
imperial há uma concepção diferente de verdade e memória, e um outro método de exame de si. Primeiro,
vemos o desaparecimento do diálogo e a importância
crescente de uma nova relação pedagógica — um novo
jogo pedagógico em que o mestre/professor fala e não
faz perguntas e o discípulo não responde, mas ouve e
fica em silêncio. A cultura do silêncio torna-se cada vez
mais importante. Na cultura pitagórica, discípulos ficavam em silêncio por cinco anos devido a uma regra pedagógica. Eles não faziam perguntas ou falavam durante as lições, mas desenvolveram a arte da escuta. Essa
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era a condição indispensável para conquistar a verdade. Nesta tradição instaurada no período imperial, vemos o início da cultura do silêncio e da arte da escuta,
ocupar o lugar do cultivo do diálogo, como em Platão.
Para aprender a arte da escuta, devemos ler o tratado de Plutarco sobre a arte de escutar a conferências
(Peri tou akouein). No início do tratado, Plutarco afirma
que, após o período escolar, devemos aprender a ouvir o
logos ao longo de nossa vida adulta. A arte da escuta é
crucial para distinguir a verdade da dissimulação e a
verdade retórica da mentira no discurso dos retóricos.
O ato de ouvir está ligado ao fato do discípulo não estar
sob o controle dos mestres, mas ele deve ouvir o logos.
Ele deve ficar em silêncio durante uma conferência e
pensar sobre ela depois. Essa é a arte da escuta da voz
do mestre e da voz da razão dentro de si.
O conselho pode parecer banal, mas penso ser importante. Em seu tratado Sobre a Vida Contemplativa,
Philon de Alexandria descreve banquetes do silêncio e
não banquetes devassos, com vinho, rapazes, bacanal e
diálogo. Há, em vez disso, um professor que apresenta
um monólogo sobre a interpretação da bíblia e uma indicação precisa sobre como as pessoas devem escutar
(De Vita Cont. 77). Por exemplo, eles devem assumir sempre a mesma postura ao escutar. A morfologia dessa
noção é um tema interessante no monasticismo e, posteriormente, na pedagogia.
Em Platão, os temas da contemplação de si e cuidado
de si estão relacionados dialeticamente por meio do diálogo. No período imperial temos os temas, de um lado,
da obrigação de escutar a verdade e, de outro, da obrigação de olhar e escutar a si mesmo pela verdade interior. A diferença entre as duas eras é um dos grandes
sinais do desaparecimento da estrutura dialética.
340
verve
Tecnologias de si
O que era o exame de consciência nesta cultura, e
como alguém olha para si mesmo? Para os pitagóricos,
o exame de consciência estava relacionado à purificação. Assim como dormir estava relacionado à morte como
uma forma de encontro com os deuses, era preciso se
purificar antes de dormir. A lembrança dos mortos era
um exercício para a memória. Mas no período helênico
e no início do período imperial, pode-se observar esta
prática adquirindo novos valores e significação. Há diversos textos relevantes: De Ira e De Tranquilitate, de
Sêneca, e o início do quarto livro de Marco Aurélio, Pensamentos.
De Ira (livro 3) de Sêneca, contém alguns traços da
tradição antiga. Ele descreve um exame de consciência, recomendado pelos epicuristas, cuja prática teve
origem na tradição pitagórica. O objetivo era a purificação da consciência utilizando um instrumento mnemônico. Faça o bem, faça um bom exame de si, e terá um
bom sono seguido de bons sonhos, que é o contato com
os deuses.
Sêneca utiliza uma linguagem jurídica e tudo indica
que o si é ao mesmo tempo o juiz e o acusado. Sêneca é
o juiz, que processa o si, tornando o exame uma forma
de julgamento. Mas ao olhar de perto, este se difere de
um tribunal. Sêneca utiliza termos relacionados à prática administrativa, não jurídica, como quando um contador olha os livros ou quando um mestre de obras examina um edifício. O auto-exame está sendo avaliado.
Falhas são simplesmente boas intenções que não se
realizaram. A regra é um meio para se fazer algo corretamente, sem julgar aquilo que ocorreu no passado. Posteriormente, a confissão cristã buscará as más intenções.
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A visão administrativa de sua vida, muito mais que
o modelo jurídico, é o que importa. Sêneca não é um
juiz incumbido de punir, mas um administrador que
avalia situações. Ele é um administrador permanente
de si mesmo, não um juiz de seu passado. Ele vê que
tudo foi feito corretamente de acordo com as regras, mas
não com a lei. Não são suas falhas reais, mas a sua
falta de sucesso que o reaproxima de si. Seus erros são
de caráter estratégico, não moral. Ele deseja realizar
um ajuste entre aquilo que gostaria de ter feito e aquilo
que fez, reativar as normas de conduta, não escavar sua
culpa. Na confissão cristã, o penitente é obrigado a memorizar as leis, mas o faz com o objetivo de descobrir
seus pecados.
Para Sêneca, esta não é uma questão de descobrir a
verdade sobre um assunto, mas de se lembrar da verdade, de recuperar uma verdade que havia sido esquecida. Segundo, o sujeito não se esquece de si, de sua natureza, de sua origem, ou de sua afinidade sobrenatural, mas das normas de conduta, do que ele deveria ter
feito. Terceiro, a recapitulação dos erros cometidos no
dia é a medida da diferença entre aquilo que foi feito e
aquilo que deveria ter sido feito. Quarto, o sujeito não é
a base de operação para o processo de decifração, mas é
o ponto onde as normas de conduta se aglutinam na
memória. O sujeito constitui a intersecção entre as
ações que devem ser reguladas e regras para aquilo que
deve ser feito. Isso é muito diferente da concepção platônica e cristã de consciência.
Os estóicos espiritualizaram a noção de anachoresis,
a retirada de um exército, o esconder de um escravo
fugido de seu mestre, ou a retirada em direção ao campo, longe das cidades, como na retirada de Marco Aurélio. Uma retirada para o campo torna-se um retiro espiritual para dentro de si. Esta é uma atitude genérica e
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Tecnologias de si
ao mesmo tempo uma ação diária precisa; um indivíduo retira-se para dentro de si para descobrir — mas
não para descobrir falhas ou sentimentos profundos,
apenas para lembrar regras de ação, as principais leis
do comportamento. É uma fórmula mnemotécnica.
IV
Eu falei de três técnicas estóicas de si: cartas a amigos e a revelação de si; exame de si e da consciência,
incluindo uma revisão do que foi feito, daquilo que deveria ter sido feito, e uma comparação entre as duas.
Agora, eu gostaria de tratar da terceira técnica estóica,
askêsis, não uma revelação do si secreto, mas uma lembrança.
Para Platão, o indivíduo deve descobrir a verdade que
se encontra dentro dele. Para os estóicos, a verdade não
está dentro do indivíduo, mas no logoi, os ensinamentos
dos professores. O indivíduo memoriza aquilo que ouviu, convertendo as afirmações que ouve em normas de
conduta. A subjetivação da verdade é o objetivo dessas
técnicas. Durante o período imperial, o indivíduo não
podia assimilar princípios éticos sem um quadro teórico como a ciência, como, por exemplo, em De Rerum
Naturae, de Lucrécio. Há questões estruturais subjacentes à prática do exame de si toda noite. Eu gostaria
de sublinhar o fato de que no estoicismo não é a decifração de si, nem os meios de revelar um segredo, que
importam; é a memória daquilo que fez e daquilo que
teve que fazer.
Na cristandade, asceticismo sempre se refere a certa renúncia de si e da realidade, pois na maior parte do
tempo o si é parte de uma realidade da qual se deve
renunciar para obter acesso a um outro nível de reali-
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2004
dade. Esse movimento para alcançar a renúncia de si é
o que distingue o asceticismo cristão.
Na tradição filosófica dominada pelo estoicismo,
askêsis significa, não a renúncia, mas a progressiva
consideração de si, ou o domínio de si, obtido não por
meio da renúncia da realidade, mas pela aquisição e
assimilação da verdade. Esta tem como seu objetivo final, não a preparação para outra realidade, mas o acesso à realidade desse mundo. A palavra grega para designar isso é paraskeuazô (“preparar-se”). A askêsis é um
conjunto de práticas pela qual o indivíduo pode adquirir,
assimilar e transformar a verdade em um permanente
princípio de ação. Aletheia torna-se ethos. Este é um processo de tornar-se mais subjetivo.
Quais são as principais características da askêsis?
Elas incluem exercícios nos quais o sujeito se coloca
em uma situação na qual ele pode verificar se pode confrontar os acontecimentos e utilizar os discursos com
os quais está munido. Esse é um caso de testar a preparação. Essa verdade está assimilada o bastante para se
tornar ética, para que possamos nos comportar como se
deve quando um acontecimento se apresenta?
Os gregos caracterizavam os dois pólos desse exercício pelos termos meletê e gymnasia. Meletê significa “meditação”, de acordo com a tradução do latim, meditatio.
Ela tem a mesma raiz de epimeleisthai. É um termo relativamente vago, um termo técnico emprestado da retórica. Meletê é o trabalho realizado com o objetivo de
preparar um discurso ou uma improvisação, refletindo
sobre termos e argumentos úteis. Foi necessário antecipar a situação real por meio do diálogo no pensamento. A meditação filosófica é um tipo de meditação que é
composta pela memorização de respostas e reativação
dessas memórias, colocando o indivíduo em uma situa-
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verve
Tecnologias de si
ção em que ele imagine como reagiria. O indivíduo julga as razões que deveria utilizar em um exercício imaginário (“Vamos supor...”) com a intenção de testar uma
ação ou acontecimento (por exemplo, “Como eu reagiria?”). Imaginar a articulação de possíveis acontecimentos para testar sua reação — isso é meditação.
O mais famoso exercício de meditação é o premeditatio
mallorum, praticado pelos estóicos. É uma experiência
ética, imaginária. Sua aparência é uma certa visão sombria e pessimista do futuro. Esta pode ser comparada ao
que Husserl afirma em relação à redução eidética.
Os estóicos desenvolveram três reduções eidéticas
da adversidade futura. Primeiro, não é uma questão de
imaginar o futuro provável, mas de imaginar o pior cenário possível, mesmo que haja poucas chances de se
confirmar — o pior como certeza, como atualização do
que pode acontecer, não como um cálculo de probabilidade. Segundo, o indivíduo não deve vislumbrar as coisas em sua potencialidade de acontecimento em um
futuro distante, mas como algo que já está em curso de
se realizar. Por exemplo, não imaginar que um indivíduo pode ser exilado, mas imaginar que este já está exilado, sujeito à tortura e que está morrendo. Terceiro, o
objetivo não é experimentar um sofrimento mudo, mas
se convencer de que esses males não são reais. A redução de tudo que é possível, de todas as durações e infortúnios, não revela algo negativo, mas aquilo que devemos aceitar. Consiste em ter simultaneamente o acontecimento futuro e presente. Os epicuristas eram hostis
a tal idéia, pois a consideravam inútil. Eles acreditavam que era melhor relembrar e memorizar prazeres
passados com o objetivo de obter prazer de acontecimentos presentes.
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No lado oposto está gymnasia (“treinamento”). Se, por
um lado, meditatio é uma experiência imaginária que
treina o pensamento, gymnasia é o treinamento em uma
situação real, mesmo que induzido artificialmente. Há
uma longa tradição por trás disso: abstinência sexual,
privação física e outros rituais de purificação.
Estas práticas de abstinência têm outros significados além da purificação ou o testemunho de forças demoníacas, como em Pitágoras e Sócrates. Na cultura
estóica, sua função é estabelecer e testar a independência do indivíduo em relação ao mundo exterior. Por
exemplo, em De Genio Socratis, de Plutarco, o indivíduo
se entrega a práticas esportivas intensas. Ou, ainda,
submete-se à tentação colocando-se diante de apetitosos pratos para, então, os recusar. O indivíduo, em seguida, chama seus escravos, dá-lhes os pratos e come a
refeição que havia sido preparada para eles. Outro exemplo é a décima oitava carta de Sêneca a Lucílio, na qual
este se prepara para um grande banquete por meio de
atos de mortificação da carne para convencer a si mesmo de que a pobreza não é um mal e de que ele pode
resistir a ela.
Entre esses extremos de treinar no pensamento e
treinar na realidade, meletê e gymnasia, há uma série
de possibilidades intermediárias. Epíteto nos fornece o
melhor exemplo do meio termo. Ele pretende cuidar eternamente das representações, técnica que encontra seu
ápice em Freud. Há duas importantes metáforas de seu
ponto de vista: o vigia noturno, que não permite a entrada na cidade de ninguém que não se identifique (devemos ser “vigias” sobre o fluxo do pensamento); e o cambista, que verifica a autenticidade do dinheiro, examina, pesa e averigua. Nós devemos ser cambistas de
nossas próprias representações de pensamento, testan-
346
verve
Tecnologias de si
do-os atentamente, certificando-os, seu metal, seu peso,
sua figura.
A mesma metáfora do cambista é encontrada nos
estóicos e na literatura cristã antiga, porém com diferentes significados. Quando Epíteto afirma que alguém
deve ser um cambista, ele quer dizer que assim que
uma idéia vir à mente, este deve pensar nas regras que
devem ser utilizadas para avaliá-la. Para João Cassiano,
ser um cambista e analisar seus pensamentos possuem significados totalmente diferentes: o indivíduo deve
tentar descobrir se, na raiz do movimento que lhe trás
as representações, há ou não luxúria e desejo — se seu
pensamento inocente possui origens malignas, se há
algo intensamente sedutor que está subjacente, talvez
encoberto, a moeda de seu pensamento.
Há dois grupos de exercícios em Epíteto: o sofístico e
o ético. O primeiro, são exercícios trazidos da escola:
jogos de pergunta e resposta. Este deve ser um jogo ético, ou seja, deve ensinar uma lição moral. O segundo,
são exercícios ambulantes. O indivíduo sai para passear e testa suas reações a esse passeio. O propósito de
ambos os exercícios é o controle das representações, não
a descoberta da verdade. São lembretes sobre a obediência às regras diante da adversidade. Os testes de
Epíteto e Cassiano descrevem detalhadamente uma
máquina pré-freudiana de censura. Para Epíteto, o controle das representações não significa a descoberta, mas
a recordação de princípios de ação e, portanto, a verificação, por meio do auto-exame, da capacidade dos indivíduos em governarem suas próprias vidas. É uma forma de auto-exame permanente. O indivíduo deve ser
seu próprio censor. A meditação sobre a morte é o ápice
de todos esses exercícios.
347
6
2004
Além das cartas, do exame, e da askêsis, nós devemos evocar uma quarta técnica do exame de si: a interpretação dos sonhos. Esta técnica teria um destino importante no século XIX, mas ocupou uma posição relativamente marginal na antiguidade. Os filósofos possuíam
uma atitude ambivalente diante da interpretação dos
sonhos. A maioria dos estóicos era crítica e cética a respeito de tal interpretação. Mas ainda há sua prática popular e generalizada. Houve especialistas capazes de
interpretar os sonhos, incluindo Pitágoras e alguns estóicos, além de alguns especialistas que escreveram livros para ensinar as pessoas a interpretar seus próprios sonhos. Havia uma enorme quantidade de escritos
sobre como fazê-lo, mas o único manual sobre os sonhos que permaneceu foi A interpretação dos sonhos, de
Artemidoro (segundo século d.C.). A interpretação dos
sonhos era importante, pois na antiguidade o significado dos sonhos era um presságio dos acontecimentos futuros.
Eu citaria outros dois documentos sobre a importância da interpretação dos sonhos para a vida cotidiana. O
primeiro é de Synesius de Cyrene, no quarto século d.C.,
que era um homem muito conhecido e dedicado. Apesar de não ser cristão, pediu para tornar-se bispo. Seus
comentários sobre os sonhos são interessantes, ainda
que a adivinhação pública fosse proibida para que o imperador fosse poupado de más notícias. Portanto, o indivíduo deveria interpretar seus próprios sonhos; deveria
ser um intérprete de si. Para isso, ele deveria lembrarse não apenas de seus sonhos, mas dos acontecimentos anteriores e posteriores. Ele deveria registrar os
acontecimentos diariamente, tanto da vida diurna,
quanto da vida noturna.
Os Discursos Sagrados, de Aelius Aristides, escritos
no segundo século, registra seus sonhos e explica como
348
verve
Tecnologias de si
ele os interpreta. Acreditava que na interpretação dos
sonhos nós recebíamos conselhos dos deuses sobre remédios para as doenças. Com esse trabalho, nós estamos
na encruzilhada de dois tipos de discurso. A matriz dos
Discursos Sagrados não é a escrita das atividades diárias de um indivíduo, mas a dedicação ritualística de preces aos deuses que o curaram.
V
Eu pretendo examinar a estrutura de uma das principais técnicas de si no início do cristianismo e em que
esta consistia como jogo de verdade. Para isso, necessito analisar a transição da cultura pagã para a cristã, na
qual é possível observar continuidades e descontinuidades precisas e bem definidas.
O cristianismo pertence ao campo das religiões de
salvação. É uma dessas religiões que tem como objetivo
conduzir o indivíduo de uma realidade à outra, da morte
à vida, do tempo à eternidade. Para alcançar isso, o cristianismo impôs um conjunto de condições e regras de
comportamento para certa transformação de si.
O cristianismo não é apenas uma religião da salvação, é uma religião confessional. Ela impõe severas obrigações de verdade, dogma e cânone, mais do que o fazem as religiões pagãs. Obrigações de verdade em creditar nisto ou naquilo foram, e ainda são, muito numerosas. O dever de aceitar um conjunto de obrigações, de
assumir certos livros como verdades absolutas, de aceitar decisões autoritárias em matéria de verdade, de não
apenas acreditar em algo, mas demonstrar o credo, e de
aceitar a autoridade institucional, são todas características do cristianismo.
349
6
2004
O cristianismo exige outra forma de obrigação para
com a verdade, diferente da fé. Cada indivíduo tem o
dever de saber quem ele é, ou seja, de tentar descobrir o
que acontece em seu interior, de assumir seus defeitos, reconhecer as tentações, localizar os desejos, e todos são obrigados a revelar esses segredos, seja a Deus
ou a outros membros da comunidade; e, portanto, de
prestar testemunho, público ou privado, contra si mesmo. As obrigações de verdade da fé e o si estão ligados
um ao outro. Esse vínculo permite uma purificação da
alma que seria impossível sem o conhecimento de si.
As coisas são diferentes nas tradições católica e protestante, mas as principais características de ambas
são um conjunto de obrigações de verdade em relação à
fé, aos livros, ao dogma, e um outro em relação à verdade, ao coração e à alma. O acesso à verdade não pode
ser concebido sem a pureza da alma. Esta é a conseqüência do conhecimento de si e uma condição para entender o texto; Agostinho diz: Quis facit veritatem (fazer a
verdade dentro de si, obter acesso à luz).
Eu gostaria de analisar as maneiras pelas quais a
igreja, em seu intuito de obter acesso à luz, concebeu a
iluminação como revelação de si. O sacramento da penitência e a confissão dos pecados são inovações consideravelmente tardias. Os cristãos dos primeiros séculos possuíam maneiras diferentes de descobrir e decifrar a verdade sobre eles mesmos. Uma das duas principais formas dessas revelações pode ser caracterizada
pela palavra exomologêsis, ou “reconhecimento do fato”.
Mesmo os padres latinos utilizavam essa expressão em
grego sem tradução precisa. Para os cristãos, isso significava reconhecer publicamente a verdade de sua fé
ou reconhecer publicamente que eles eram cristãos.
350
verve
Tecnologias de si
A palavra possuía ainda um significado de penitência. Quando um pecador busca a penitência, ele deve
solicitá-la ao bispo. No início do cristianismo, a penitência não era um ato ou um ritual, mas um status
imposto sobre um indivíduo que houvesse cometido graves pecados.
Exomologêsis era um ritual de reconhecimento de um
indivíduo como pecador e penitente, o qual possui diversas características. Primeiro, o indivíduo era penitente
por um período de três a dez anos, e essa condição o
afetaria para o resto de sua vida. Havia a prática do jejum e também regras sobre vestimenta e proibições
sobre o sexo. O indivíduo era marcado de tal forma que
ele não podia viver da mesma forma que outros. Mesmo
após sua reconciliação, ele era sujeito a diversas proibições. Por exemplo, ele não poderia se casar nem tornar-se padre.
Nesta condição encontra-se a obrigação da exomologêsis. O pecador busca sua penitência. Vai ao bispo e
pede que lhe imponha o status de penitente. Ele precisa
explicar porque quer esse status e quais são os seus
erros. Isso não é uma confissão, mas uma condição do
status. Mais tarde, no período medieval, exomologêsis
passou a ser um ritual que ocorria no término do período de penitência, imediatamente anterior à reconciliação. Essa cerimônia colocou o pecador entre os outros
cristãos. Sobre essa cerimônia de reconciliação,
Tertuliano afirma que, maltrapilho, vestindo uma camisa feita de pêlos e coberta de cinzas, o pecador erguese humildemente diante da igreja. Depois, ele atira-se
ao chão e beija os joelhos de seus irmãos (On repetance
9-12). Exomologêsis não é um comportamento verbal, mas
o reconhecimento dramático do status de penitente de
um indivíduo. Muito tempo depois, em Epístolas,
Jerônimo descreve a penitência de Fabiola, uma senho-
351
6
2004
ra romana. Durante esses dias, Fabiola estava no mesmo nível dos penitentes. Pessoas se lamentavam junto
a ela, adicionando dramaticidade à sua punição pública.
O reconhecimento também designa todo o processo
que o penitente experimenta nesse status ao longo dos
anos. Ele é o elemento agregador de comportamentos
penitenciais manifestos, de autopunição, bem como da
revelação de si. Os atos pelo qual o indivíduo pune a si
mesmo são indistingüíveis daqueles em que ele revela
a si mesmo. A autopunição e a expressão voluntária de
si estão coladas. Esse vínculo é evidente em diversos
escritos. Cipriano, por exemplo, versa sobre exibições
da vergonha e da modéstia. A penitência não é nominal, mas dramática.
Comprovar o sofrimento, demonstrar vergonha, humildade e modéstia — essas são as principais características da punição. A penitência no início do cristianismo é um modo de vida que transparece a todo momento a obrigação da revelação de si. Ela deve ser
representada visivelmente e acompanhada por outros
que reconhecem o ritual. Essa condição permaneceu
até os séculos XV e XVI.
Tertuliano utiliza o termo publicatio sui para caracterizar exomologêsis. Publicatio sui refere-se ao auto-exame diário de Sêneca, que era, entretanto, totalmente
privado. Para Sêneca, exomologêsis ou publicatio sui não
implicam uma análise verbal de fatos e pensamentos; é
apenas uma expressão somática e simbólica. Aquilo que
era privado para os estóicos, era público para os cristãos.
Quais eram suas funções? Primeiro, era uma forma
de livrar-se dos pecados e recuperar a pureza adquirida
no batismo. Segundo, tinha também o intuito de mos-
352
verve
Tecnologias de si
trar o pecador como ele é. Este é o paradoxo no coração
da exomologêsis; ela livra dos pecados e revela o pecador. A principal parte do ato de penitência não era dizer
a verdade sobre o pecado, mas revelar a verdadeira essência pecadora contida no pecador. Não era uma maneira do pecador explicar seus pecados, mas sim uma
forma de apresentá-lo como pecador.
Por que essa exposição deveria apagar os pecados? A
exposição é o coração da exomologêsis. No cristianismo
dos primeiros séculos, autores cristãos haviam recorrido a três modelos para explicar a relação paradoxal entre
livrar-se dos pecados e revelar-se.
O primeiro é o modelo médico: o indivíduo deve revelar suas feridas para que possa se curar. Outro modelo, menos freqüente, era o julgamento a partir do
modelo do tribunal. O indivíduo sempre cede ao juiz
confessando seus erros. O pecador age como o advogado do diabo, tal como faria o diabo no Juízo Final.
O modelo mais importante utilizado para explicar
exomologêsis foi o modelo da morte, da tortura, do martírio. As teorias e práticas sobre a penitência foram elaboradas em torno do problema do homem que prefere
morrer a comprometer ou abandonar sua fé. A forma
pela qual o mártir encara a morte é o modelo para o
penitente. Para o decaído ser reintegrado à igreja, ele
precisa se expor voluntariamente a um martírio ritual.
A penitência é o resultado da mudança, da ruptura consigo, do passado, do mundo. É uma forma de demonstrar
que se é capaz de renunciar à vida e a si mesmo, para
demonstrar que se é capaz de encarar e aceitar a morte. A penitência de um pecado não tem como alvo o estabelecimento de uma identidade, mas serve para marcar a recusa de si, a ruptura consigo mesmo: ego non
sum, ego. Essa fórmula está no coração do publicatio sui.
353
6
2004
Representa uma ruptura do indivíduo com a sua identidade passada. Estes gestos ostensivos têm a função de
revelar a verdade sobre o estado de ser do pecador. A revelação de si é ao mesmo tempo a autodestruição.
A diferença entre as tradições estóica e cristã é que
na tradição estóica o exame de si, o julgamento e a disciplina mostram o caminho para o conhecimento de si
por meio da sobreposição da verdade sobre si através da
memória, ou seja, por meio da memorização das regras.
Na exomologêsis, o penitente sobrepõe a verdade sobre
si por meio da ruptura violenta e da dissociação. É importante enfatizar que essa exomologêsis não é verbal. É
simbólica, ritual e teatral.
VI
Durante o quarto século encontramos uma tecnologia
muito diferente para a revelação de si, exagoreusis,
muito menos famosa do que a exomologêsis, porém mais
importante. Esta é remanescente de exercícios verbais
em relação ao professor/mestre das escolas filosóficas
pagãs. Nós podemos observar a transferência de diversas tecnologias estóicas de si para técnicas espirituais
cristãs.
Pelo menos um exemplo do exame de si, proposto por
João Crisóstomo, era exatamente a mesma forma e a
mesma característica administrativa que a descrita por
Sêneca em De ira. De manhã, devemos contabilizar nossos gastos e, à noite, devemos nos interrogar acerca da
prestação de contas sobre nossa conduta, a fim de determinar o que nos é vantajoso e o que nos é prejudicial, com rezas em vez de palavras indiscretas. Este é exatamente o exame de si como concebido por Sêneca. É
também importante notar que esse exame de si é raro
na literatura cristã.
354
verve
Tecnologias de si
A prática elaborada e bem desenvolvida do exame de
si no cristianismo monástico é diferente do exame de
si de Sêneca, e muito diferente de Crisóstomo e da
exomologêsis. Essa nova prática deve ser entendida a
partir do ponto de vista de dois princípios da espiritualidade cristã: o da obediência e o da contemplação.
Em Sêneca, a relação do discípulo com o mestre era
importante, porém instrumental e profissional. Esta era
fundada na capacidade do mestre em conduzir o discípulo a uma vida feliz e autônoma, por meio de bons conselhos. A relação se encerraria quando o discípulo alcançasse essa vida.
Devido a uma extensa série de razões, a obediência
possui características muito diferentes na vida monástica. Esta difere da relação greco-romana diante do mestre no sentido em que a obediência não é baseada apenas na necessidade de aprimoramento de si, mas deve
contemplar todos os aspectos da vida monástica. Não há
qualquer elemento na vida de um monge que escape a
essa relação total e permanente de obediência ao mestre. Cassiano repete um antigo princípio da tradição oriental: “tudo aquilo que um monge faz sem a permissão
de seu mestre constitui um roubo”. Neste caso, obediência é o total controle do comportamento pelo mestre,
não um estado autônomo definitivo. Este é um sacrifício de si, um sacrifício da vontade do sujeito. Esta é a
nova tecnologia de si.
O monge precisa da permissão de seu diretor para
tudo, até mesmo para morrer. Tudo aquilo que faz sem
permissão é furto. Não há um movimento sequer no qual
o monge é autônomo. Mesmo quando se torna diretor,
ele deve preservar o espírito da obediência. Ele deve
preservá-lo como um sacrifício permanente do controle
355
6
2004
total do comportamento pelo mestre. O si deve constituir-se como tal por meio da obediência.
A segunda característica da vida monástica é que a
contemplação é considerada o bem supremo. É obrigação do monge orientar seus pensamentos continuamente para o ponto que é Deus e de se assegurar de que seu
coração é puro o bastante para que possa ver Deus. O
objetivo é a contemplação permanente de Deus.
A tecnologia de si, desenvolvida a partir da obediência e contemplação nos monastérios, apresenta algumas características peculiares. Cassiano apresenta uma
exposição razoavelmente clara dessa tecnologia de si,
um princípio do exame de si que ele emprestou das tradições monásticas síria e egípcia.
Essa tecnologia de origem oriental do exame de si,
dominada pela obediência e pela contemplação, preocupa-se muito mais com o pensamento do que com a ação.
Sêneca havia colocado ênfase na ação. Com Cassiano,
o objeto não são as ações passadas do dia, mas os pensamentos presentes. Já que o monge deve voltar seu pensamento continuamente a Deus, ele deve explorar minuciosamente o curso desse pensamento. Esta exploração, portanto, tem como objeto a discriminação permanente entre os pensamentos que conduzem e aqueles
que não conduzem a Deus. Essa preocupação contínua
com o presente é diferente da memorização, de Sêneca,
dos fatos e suas correspondências com as regras. Os
gregos referem-se a esta situação com a palavra pejorativa: logismoi (“cogitações, raciocínio, pensamento calculista”).
Há uma etimologia de logismoi em Cassiano, mas eu
não sei se é válida: co-agitationes. O espírito é plukinetos
“movendo-se perpetuamente” (Primeira conferência de
Abade Serenus 4). Para Cassiano, a mobilidade perpétua
356
verve
Tecnologias de si
do espírito é sua fraqueza. Distrai o indivíduo de sua
contemplação de Deus (Primeira conferência de Abade
Nesterus 13).
A exploração da consciência consiste em tentar
imobilizá-la, em eliminar os movimentos do espírito que
desviam o indivíduo de Deus. Isso significa que devemos examinar cada pensamento que se apresenta à
consciência para verificar a relação entre ação e pensamento, verdade e realidade, para ver se há algo nesse
pensamento que irá mover nosso espírito, provocar nosso desejo, desviar nosso espírito de Deus. A exploração é
baseada na idéia de uma concupiscência secreta.
Há três tipos principais de exame de si: primeiro, o
exame de si em relação a pensamentos em correspondência com a realidade (Descartes); segundo, o exame
de si em relação à forma pela qual nosso pensamento
relaciona-se com regras (Sêneca); terceiro, o exame de
si com respeito à relação entre pensamentos ocultos e
uma impureza interna. Neste momento inicia-se a
hermenêutica cristã de si, com sua decodificação dos
pensamentos interiores. Isto implica que há algo escondido dentro de nós e que estamos sempre em uma
auto-ilusão que oculta os segredos.
Cassiano diz que para realizar essa busca devemos
cuidar de nós mesmos e atestarmos nosso pensamento
diretamente. Para isso, apresenta três analogias. Primeiro, a analogia do moinho (Primeira Conferência do
Abade Moisés 18). Pensamentos são como grãos, e a consciência é o celeiro. O nosso papel, assim como o do moleiro, é de separar os grãos ruins daqueles que podem
ser utilizados na produção de boa farinha e bons pães
para nossa salvação.
A segunda é a militar (Primeira Conferência do Abade
Serenus 5). Cassiano estabelece uma analogia com o
357
6
2004
oficial que ordena ao bom soldado marchar para a direita, e ao mal soldado marchar para a esquerda. Nós devemos agir como o oficial que separa os soldados em duas
fileiras, a boa e a má.
A terceira apresenta a analogia do cambista (Primeira Conferência do Abade Moisés 20-22). A consciência é o
cambista de si. Ele deve examinar as moedas, sua figura, seu metal, sua procedência. Deve pesá-las para verificar se foram mal utilizadas. Como há a imagem do
imperador na moeda, a imagem de Deus deve ficar em
nossos pensamentos. Devemos verificar, então, a qualidade do pensamento: será real essa figura de Deus?
Qual o seu grau de pureza? Não estará misturado com o
desejo e a concupiscência? Assim, encontramos a mesma imagem vista em Sêneca, porém com um significado diferente.
O nosso papel é ser um cambista permanente de nós
mesmos, então como é possível fazer tal discriminação
e reconhecer se um pensamento é bom? Como essa “discriminação” pode ser feita efetivamente? Há apenas um
único caminho: confessar todos os nossos pensamentos
ao nosso diretor, obedecer ao nosso mestre em todas as
circunstâncias, e engajarmo-nos na constante verbalização de nossos pensamentos. Em Cassiano, o exame
de si está subordinado à obediência e à constante verbalização dos pensamentos, o que é diferente do estoicismo. Ao dizer a si mesmo, não apenas seus pensamentos, mas também os menores movimentos de consciência, suas intenções, o monge situa-se em uma relação hermenêutica em relação, não apenas ao mestre, mas a ele mesmo. Essa verbalização é o critério ou
a moeda do pensamento.
Por que a confissão é capaz de assumir essa função
hermenêutica? Como podemos ser os hermeneutas de
358
verve
Tecnologias de si
nós mesmos ao relatar e transcrever todos os nossos
pensamentos? A confissão concede ao mestre um conhecimento, graças a sua grande experiência e sabedoria, que lhe permite transmitir sábios conselhos.
Mesmo se o mestre, em seu papel como um poder
discriminatório, não diz nada, o fato do pensamento ter
sido exprimido fará com que este tenha um efeito
discriminatório.
Cassiano relata o exemplo do monge que roubou o
pão. Num primeiro momento, ele não consegue confessar seu ato. A diferença entre bons e maus pensamentos é que estes não podem ser expressos sem dificuldades, já que o mal é oculto e negado. O fato dos maus
pensamentos não poderem ser expressos sem dificuldades e constrangimentos, pode fazer com que não se
estabeleça a diferença cosmológica entre a luz e a escuridão, entre a verbalização e o pecado, entre o segredo e o silêncio, entre Deus e o mal. O monge, então,
prostra-se e confessa. Apenas a confissão verbal o livra
do demônio. A expressão verbal é o momento crucial (Segunda Conferência do Abade Moisés II). A confissão é uma
marca da verdade. Essa idéia da verbalização permanente é apenas um ideal. Nunca é completamente. O
preço da verbalização permanente foi transformar em
pecado tudo aquilo que não pode ser expresso.
Como conclusão, no cristianismo dos primeiros séculos, há duas formas de revelação de si, de demonstração da verdade sobre si. A primeira é a exomologêsis, ou
a expressão dramática da situação do penitente como
pecador, que torna pública sua condição de pecador. A
segunda é aquela denominada na literatura espiritual
exagoreusis. Esta é uma verbalização analítica e contínua do pensamento, conduzida em relação à obediência
total a outra pessoa. Essa relação é corporificada na renúncia da vontade própria e na própria renúncia de si.
359
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2004
Há uma grande diferença entre exomologêsis e
exagoreusis; no entanto é preciso destacar o fato de que
há um importante elemento em comum: não se pode
revelar sem a renúncia. Exomologêsis tinha como modelo o martírio; o pecador tinha que se matar por meio
do auto-flagelo ascético. Seja por meio do martírio ou
por obediência a um mestre, a revelação de si é a renúncia a si mesmo. Na exagoreusis, de outro lado, o indivíduo mostra que, pela verbalização permanente do
pensamento e pela constante obediência ao mestre,
renuncia a sua vontade e a si mesmo. Esta prática estende-se do início do cristianismo até o século XVII. O
surgimento da penitência no século XIII é um passo
importante em sua ascensão.
O tema da renúncia de si é muito importante. Ao
longo do cristianismo, há uma correlação entre a revelação de si, dramática ou verbal, e a renúncia de si.
Minha hipótese ao observar essas duas técnicas é a de
que a verbalização torna-se a mais importante.
Desde o século XVIII até o presente, as técnicas de
verbalização foram reinseridas em diferentes contextos pelas denominadas ciências humanas com o objetivo de utilizá-las sem a renúncia de si, mas para constituir, positivamente, um novo sujeito. Utilizar essas técnicas sem renunciar a si mesmo constitui uma ruptura
decisiva.
Tradução do inglês por Andre Degenszajn.
Notas
Michel Foucault. “Technologies of the self ” in Luther H. Martin et al (orgs.).
Technologies of the self – a seminar with Michel Foucault. Amherst, University of
Massachusetts Press, 1988. 176 pp.
1
360
6
2004
362
verve
NU-SOL
Publicações do Núcleo de Sociabilidade Libertária, do Programa de
Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP.
hypomnemata
Boletim eletrônico mensal, 1999-2004
vídeos
Libertárias, 1999
Foucault-Ficô, 2000
Um incômodo, 2003
CD-ROM
Um incômodo, 2003 (artigos e intervenções artísticas do Simpósio Um
incômodo)
Coleção Escritos Anarquistas, 1999-2003
1. a anarquia Errico Malatesta
2. diálogo imaginário entre marx e bakunin Maurice Cranston
3. a guerra civil espanhola nos documentos anarquistas C.N.T.
4. municipalismo libertário Murray Bookchin
5. reflexões sobre a anarquia Maurice Joyeux
6. a pedagogia libertária Edmond-Marc Lipiansky
7. a bibliografia libertária — um século de anarquismo em língua portuguesa Adelaide Gonçalves & Jorge E. Silva
8. o estado e seu papel histórico Piotr Kropotkin
9. deus e o estado Mikhail Bakunin
10. a anarquia: sua filosofia, seu ideal Piotr Kropotkin
11. escritos revolucionários Errico Malatesta
12. anarquismo e anticlericalismo Eduardo Valladares
13. do anarquismo Nicolas Walter
14. os anarquistas e as eleições Bakunin, Kropotkin, Malatesta, Mirbeau,
363
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2004
Grave, Vidal, Zo D’Axa, Bellegarrigue, Cubero
15. surrealismo e anarquismo Joyeux, Ferrua, Péret, Doumayrou, Breton,
Schuster, Kyrou, Legrand
16. nestor makhno e a revolução social na ucrânia Makhno, Skirda,
Berkman
17. arte e anarquismo Ferrua, Ragon, Manfredonia, Berthet, Valenti
18. análise do estado — o estado como paradigma do poder Eduardo
Colombo
19. o essencial proudhon Francisco Trindade
20. escritos contra marx Mikhail Bakunin
21. apelo à liberdade do movimento libertário Jean-Marc Raynaud
22. a instrução integral Mikhail Bakunin
23. o bairro, o consumo, a cidade... espaços libertários Bookchin, Boino,
Enckell
24. max stirner e o anarquismo individualista Armand, Barrué, Freitag
25. o racionalismo combatente: francisco ferrer y guardia Ramón Safón
26. a revolução mexicana Flores Magón
27. anarquismo, obrigação social e dever de obediência Eduardo Colombo
Livros
Edson Passetti (org.). Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro,
Editora Revan/Nu-Sol, 2004.
Edson Passetti (org.). Kafka-Foucault, sem medos. São Paulo, Ateliê
Editorial, 2004.
Mikhail Bakunin. Estatismo e anarquia. São Paulo, Ed. Imaginário/Ícone
Editora/Nu-Sol, 2003.
Pierre-Joseph Proudhon. Do Princípio Federativo. São Paulo, Ed.
Imaginário/Nu-sol, 2001.
364
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Publicações Libertárias em Língua Portuguesa
verve
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Ex: Max Stirner. O falso princípio de nossa educação. São Paulo,
Imaginário, 2001, p. 74.
II) Para artigos ou capítulos de livros:
Nome do autor. “Título” in Título da obra. Cidade, Editora, ano,
página.
366
verve
Ex: Michel de Montaigne. “Da educação das crianças” in Ensaios, vol. I. São Paulo, Nova Cultural, Coleção Os pensadores,
p.76.
III) Para citações posteriores:
a) primeira repetição: Idem, p. número da página.
b) segunda e demais repetições: Ibidem, p. número da página.
c) para citação recorrente e não seqüencial: Nome do autor,
ano, op. cit., p. número da página.
IV) Para resenhas
As resenhas devem identificar o livro resenhado, logo após o
título, da seguinte maneira:
Nome do autor. Título da Obra. Cidade, Editora, ano, número
de páginas.
Ex: Pierre-Joseph Proudhon. Do Princípio Federativo. São Paulo, Ed. Imaginário, 2001, 134 pp.
V) Para obras traduzidas
Nome do autor. Título da Obra. Cidade, Editora, ano, número
de páginas. Tradução de [nome do tradutor].
Ex: Michel Foucault. As palavras e as coisas. São Paulo, Martins
Fontes, 2000. Tradução de Salma T. Muchail.
As colaborações devem ser encaminhadas por meio eletrônico
para o endereço [email protected] salvos em extensão rtf. Na impossibilidade do envio eletrônico, pede-se que a colaboração em disquete
seja encaminhada pelo correio para:
Revista Verve
Núcleo de Sociabilidade Libertária (Nu-Sol), Programa de Estudos
Pós-graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Rua Ministro
Godói, 969, 4o andar, sala 4E-18, Perdizes, CEP 05015-001,
São Paulo/SP.
Informações e programação das atividades
do Nu-sol no endereço:
www.nu-sol.org
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Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis