Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura
Nem musa nem medusa: poder e ação na escrita
em liberdade de Agustina Bessa-Luís
Aldinida Medeiros1
A mim consideram-me uma escritora cruel! Hoje em dia
até no estrangeiro falam da minha perversidade, que sou
uma pessoa perversa! Toda a civilização é uma história
da perversidade humana, mais nada. Mas, afinal, pode-se
ser verdadeiro sem se ser perverso?
Agustina Bessa-Luís
O que chamamos de escrita em liberdade de Agustina BessaLuís é uma forma de criar que mistura irreverência, observações argutas
e ponderações pertinentes acerca de vários temas. O seu estilo, no que
diz respeito as suas marcas de composição, é o de uma mulher à frente de
seu tempo, sobremaneiras sem se prender a qualquer viés ideológico. Ela é
membro da “Academie Européenne des Sciences, des Arts et des Lettres”
(Paris), da Academia Brasileira de Letras e da Academia das Ciências de
Lisboa, tendo já sido distinguida com a Ordem de Sant’Iago da Espada
(1980), a Medalha de Honra da Cidade do Porto (1988) e o grau de “Officier
de l’Ordre des Arts et des Lettres”, atribuído pelo governo francês (1989).
Maria Agustina Ferreira Teixeira Bessa-Luís, nasceu em 15 de Outubro de
1922, na freguesia de Travanca em Vila Meã, concelho de Amarante. As
suas descendências familiares por parte de seu pai, são de origem rural,
da região de Entre Douro e Minho e por parte de sua mãe de descendência,
de uma família de Zamora, em Espanha. É Doutora Honoris Causa pela
Universidade do Porto, titulação atribuída com justiça, levando-se em conta
os seus mais de 30 títulos literários publicados. Muitos deles galardoado
com premiação em Portugal e/ou até fora do país. Desde o prémio “Delfim
Guimarães”, em 1953, até o prémio “Camões”, em 2004, foram mais de 10
obras premiadas.
1 Universidade Estadual da Paraíba. [email protected]
Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura
A vivência, até aos seus tempos de adolescência em Vila Meã,
aparecerá posteriormente na sua obra literária. Para além disso, há na
prosa de ficção de Agustina Bessa-Luís uma notória predileção por traços
históricos e biográficos. Figuras do mundo real como Camilo Castelo
Branco, Santo Antônio, Almeida Garret, Florbela Espanca são personagens
de alguns dos textos dessa autora que tem uma das mais vastas obras da
literatura portuguesa contemporânea. Seus romances vão desde a biografia
ficcional, passando pelo hibridismo de gêneros, à paródia.
Seu processo de escrita é rápido; um processo de escrita que
ela considera diferente. Na definição da própria Agustina: “[...] tenho um
processo de criação que considero desonesto. Escrevo rapidamente. Não
faço resumos, quase não tiro nada, a não ser durante as provas em que
pode haver uma ligeira emenda. Mas de modo geral, escrevo rapidamente
e com um texto muito perfeito, digamos assim. Escrevo sempre a qualquer
hora [...]” (BESSA-LUÍS in AVELLA, 2007, p. 69).
No que diz respeito ao conjunto da obra agustiniana, é possível
perceber algumas influências de autores pós-simbolistas - por exemplo, Raul
Brandão - na construção de uma linguagem na qual o intuitivo, o simbólico
e uma certa sabedoria dão um tom de ancestralidade. Agustina é senhora
de um estilo absolutamente único, paradoxal e enigmático. E quase todos
os seus romances é enorme a quantidade de referenciações e apelos ao
conhecimento de mundo do leitor. Ao iniciar a leitura de Um cão que sonha,
por exemplo, da primeira à décima página o leitor encontrará um número
enorme de coisas e exemplos citados como referências àquilo que a autora
está a descrever ou a narrar.
Sem se preocupar em ser ou não feminista, Bessa-Luís trata a
mulher de modo diferenciado em seus romances. Em frases como “uma
mulher é um trajeto silencioso”, ou “Só as mulheres conservam a lucidez
duma rotina que não as escravizava, porque era uma necessidade recusada
à tragédia”2, Agustina ela parece exaltar a figura feminina, para mais adiante
dizer: “A mulher é sempre consequência dum desastre de cumplicidades.”
2 As três citações neste parágrafo são do livro Aforismos, p. 101 e 102.
Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura
(BESSA-LUÍS, 1988, p. 102) . Na sua irreverência, a autora vai da exaltação à
desconstrução da imagem feminina, sem submeter-se a rótulos por dizer isto
ou aquilo sobre o mundo feminino através das personagens que constrói.
Vários de seus romances trazem trechos em que Agustina emite
pequenos conceitos acerca da História, ligando-a, muitas vezes, à questão
do caráter ficcional. Para ela, a História não é aquilo que se encontra nos
livros: “A História é uma ficção controlada. A verdade é coisa muito diferente,
e jaz encoberta debaixo dos véus da razão prática e da férrea mão da
angústia humana.” (BESSA-LUÍS, 1983, p. 201).
De sua vasta obra, da sua escrita em liberdade, tomaremos aqui
para estudo, mais especificamente as Adivinhas de Pedro e Inês (1983), o
tributo de Agustina ao casal que representa o amor português, ainda que
seja no seu peculiar modo de escrita, quando transforma um romance
biográfico numa espécie de tese sobre o assunto, criando um Pedro bígamo
e uma Inês sem nenhum traço de vítima dos fatos históricos, que em nada
nos parece a Inês da epopeia camoniana.
Narrado em primeira pessoa, percebe-se já no início do texto uma
carga de mistério. A narradora parece estar no tempo da própria Inês. É
justamente esse estilo, com um quê de enigmático, que se sobressai em
Advinhas de Pedro e Inês. Em diversos aspectos o texto de Agustina, referente
ao casal de amantes português, diferencia-se dos demais. Principalmente
no que concerne ao enredo típico de um romance, pois ela opta por uma
técnica narrativa mais inquieta, mais provocativa ao leitor, por assim dizer.
É em tom provocativo que a narradora desafia o cânone histórico:
Não sei por que se dá mais crédito à História arrumada
em arquivos, do que à literatura divulgada como arte de
poetas. Mentem estes menos do que os outros; porque a
inspiração anda mais perto da verdade do que o conceito
problemático da biografia, que é sempre cautelosa porque
julga tratar de factos que a todos unem e interessam. 3
3 BESSA-LUÍS, Agustina. Adivinhas de Pedro e Inês. Lisboa: Guimarães Editores, 1983, p. 162.
Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura
Obviamente, Agustina Bessa-Luís não é a única a se debruçar
sobre o romance histórico, muitos romancistas a este gênero têm recorrido,
pois já se faz bastante evidente que a prosa de ficção, sobretudo na
contemporaneidade, tem recorrido com frequência a esta modalidade
romanesca, notadamente a de cunho biográfico. Nesse sentido, concordamos
com Maria de Fátima Marinho, quando esta diz que o Romance Histórico
[...] nas últimas décadas conheceu uma fortuna só
comparável à dos tempos áureos do romantismo. As
razões que levaram ao aparecimento de tal surto podem
ser de diversa índole e poderão ser procuradas em
diversos níveis de análise. [...] o sentimento de uma certa
perda de identidade nacional pesa também na balança
da produção.4
O que esta autora chama de “uma certa perda de identidade nacional”
parece-nos estar relacionado com o que pensa também o romancista
João Aguiar (1999), ao afirmar, na nota prévia de Inês de Portugal, que
um romance e um filme sobre Pedro e Inês não são demais nesta época
de grande amnésia. Donde inferimos que esta “grande amnésia” da qual
fala o autor pode muito bem remeter a um descaso para com a memória
coletiva da nação. Isso porque, levando em conta que o romance histórico
vem de muito tempo antes, tendo Walter Scott como precursor do gênero,
observamos, também, que há bastante diferença entre o romance histórico
do século XVIII e o romance histórico contemporâneo, notadamente da
segunda metade do século XX em diante.
Assim, constatamos na escrita de Agustina uma necessidade de
recriar o passado, desmistificando-o ou retirado do domínio histórico para
trazê-lo reconfigurado aos campos da ficção. Essa é sua forma de
[...] salvar o passado do esquecimento, por uma evocação
que o reescreve para o fixar em retratos escritos que,
4 MARINHO, Maria de Fátima. O Romance histórico em Portugal. Porto: Campo das Letras,
1999, p. 147.
Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura
para além dos retratos fotográficos, seja, outras tantas
provas da História, de um modo a reconhecer a sua
transitoriedade e de afirmar como tal a sua dependência
do presente.5
Notadamente pelo exposto na citação acima é que diversos
encaminhamentos dados a Inês de Castro no romance em estudo advêm
de uma forma composicional assentada no modo como a autora trata a
História e a Memória:
[...] são também o relato da memória e sua súbita
transfiguração. Porque ela é consciente de que a
História, repositória do passado dos homens é falível [...]
a autora não deixa de, perversamente, insinuar que o
discurso histórico é produto da classe média, isto é, de
gente sem imaginação, falha de conceitos assentes na
problematização e nas atitudes comportamentais das
personalidades envolvidas.6
Em Advinhas de Pedro e Inês muitas são as definições que Agustina
Bessa-Luís faz sobre Inês de Castro. Por isso, chama-nos a atenção uma
outra possibilidade de leitura para o termo “garça”, imortalizado, como já
dissemos, por Luís de Camões. Para dar ares de legitimação a sua idéia, a
narradora vai buscar o termo na língua francesa:
Ao chamarem Inês ‘colo de garça’, não se sabe se isso foi
apenas galanteio ou se tinha também o sentido injurioso
introduzido na língua francesa em 1175. A garça é a única
ave que acasala fora do tempo da procriação; daí o seu
nome ser aplicado à prostituta. 7
5 LOPES, Silvina Rodrigues. Agustina Bessa-Luís: as hipóteses do romance. Lisboa: Asa,
1992, p. 41.
6 MARINHO, Maria de Fátima. Discurso de elogio do doutoramento honoris causa de Agustina
Bessa-Luís, proferido por Maria de Fátima Marinho. Faculdade de Letras da Universidade do
Porto, 2007, s/n.
7 BESSA-LUÍS, Agustina. Adivinhas de Pedro e Inês. Lisboa: Guimarães Editores, 1983, p. 60.
Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura
É bem possível que este procedimento na narrativa tenha como
propósito traçar um perfil frio, indicando um interesse político de Inês em
sua relação com Pedro, muito mais do que o amor aclamado por tantos
poetas. Estabelecendo a relação pelo significado de garça como ave que
acasala fora do tempo, a narradora atribui também ao codinome “Colo
de Garça” o sentido da que se deita com homens fora do casamento. E,
partindo daí, uma premeditação para ser rainha de Portugal. Nas palavras
da narradora, uma confirmação dessa hipótese em que ela vê Inês com
outro olhar: “Pensei em Inês, com um certo encanto que depressa se
esgotou e perdeu. Muito anos depois, repentinamente, ocorreu-me tudo
aquilo [...]” (BESSA-LUIS, 1983, p. 10)
Agustina vai associar à beleza de Inês a forma cortês como Pedro
a ama. Além disso, em diversos aspectos o texto de Agustina, referente ao
casal de amantes português, diferencia-se dos demais. De acordo com sua
cosmovisão,
É preciso entender o seu amor por Inês como um produto
do amor cortês. O facto de ela ser tão bela como pobre
(mísera e mesquinha é como lhe chama a crónica, não
sem certa dose de desdém) deve acrescentar à fascinação
o espírito do servo de amor. […] É certo que o choque
de culturas gera as misérias do século. O século XIV viu
triunfar o espírito cavalheiresco, mas por entre sangrentas
searas de virtudes como ideal – a virtude viril e militar. 8
Desse modo, a autora retira de Inês aquele fascínio místico que
lhe dão outros romancistas, atribuindo o amor de Pedro ao modo cortês de
amor. Por esta visão do contexto histórico, a narração indica que o modo
cruel de Pedro tem grande dose das “searas de virtudes viril e militar”,
conforme percebemos pelo fragmento citado anteriormente. São aspectos
como esse, de modificar o que vem da tradição, numa outra perspectiva
histórica, que nos remetem a essa ficção agustiniana como uma marca de
8 BESSA-LUÍS, Agustina. Adivinhas de Pedro e Inês. Lisboa: Guimarães Editores, 1983, p. 62.
Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura
força. Ou seja, marcas que são próprias de Agustina e que serão também
percebidas – pelo leitor atento – em outros romances seus. Esses traços
podem ser tomados pelas características advindas de uma impulsão lírica
do discurso, de uma linguagem nua, de uma expressividade singular, num
jogo de narração que anuncia o mistério sem o desvendar. No asseverar de
Maria de Fátima Marinho (2007), a autora
[…] tem consciência da sua importância num universo
narrativo que se nos apresenta mais interpretativo do
que expositivo. […] A palavra, construtora da verdade
desejada, é também máscara. Agustina é bem consciente
desse seu trabalho de esclarecimento-encobrimento, da
sua tarefa de desvendar o íntimo das personagens.9
Daí a interveniência constante da narradora, na forma narrativa,
configurar um aspecto que a autora utiliza para dar a sua tese o aspecto
de verdade. Por isso mesmo, é que as Adivinhas, cuja tese a ser provada
pela narradora é a bigamia de Pedro, se constitui um texto de liberdade
sobre o tema, de revisão da história sem comprová-la, deixando ao sabor do
narratário a tarefa de desvendar ou não o que ali se lhe sugere.
A própria Agustina chega a declarar que as Adivinhas é a reabertura
de um processo. Esse procedimento, bem como outros ao longo da narrativa,
diferencia este romance do que até então se havia escrito em termos de
romance histórico, principalmente naquilo que concerne ao enredo típico
de um romance, porque a todo instante ela opta por uma técnica narrativa
inquieta, de provocação ao leitor, por assim dizer. No entendimento de
alguns estudiosos, o texto tem mais de investigação que de romanesco:
No sentido que o título indica, Agustina procura – mais
do que contar – descobrir um fio lógico que permita
esclarecer os muitos pontos obscuros do episódio. A
sua interpretação muito pessoal dos documentos, não
9 MARINHO, Maria de Fátima. Discurso de elogio do doutoramento honoris causa de Agustina
Bessa-Luís, proferido por Maria de Fátima Marinho. Faculdade de Letras da Universidade do
Porto, 2007, s/n.
Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura
identificados, é por vezes pouco consistente e leva a
algumas contradições. Trata-se de uma obra que, para
além do mérito literário, tem para nós a importância de
testemunhar a permanência do assunto como tema vivo
e atraente. 10
Nessa modulação enunciativa, a narradora acaba reavaliando
mais do que dados históricos, pois reavalia também a própria noção de
verdade. A onisciência da terceira pessoa é substituída pela reflexão,
numa reelaboração dos conteúdos históricos do passado. Por isso é que a
narradora das adivinhas procura acentuar, em Inês, o perfil de intrigas – ora
sutilmente, ora explicitamente.
Em outros romances, sobremaneira os do período do Romantismo,
soma-se à descrição da beleza inesiana sempre um perfil frágil e por vezes
também sofrido por não viver um amor legitimado, que cristalizou a imagem
de Inês durante muitos séculos. Todavia, a Inês de Agustina é aquela que
tanto ama Pedro, como também serve às causas políticas do Senhor de
Albuquerque, onde foi criada e para quem deve lealdade mais que a D.
Afonso IV: por isso a narradora afirma que Inês: “[...] é o seu sinete, o seu
correio, a sua luva; ela obedece-lhe como a sombra no corpo que a projecta”
(BESSA-LUÍS, 1983, p. 17). E se assim foi criada, é pertinente traçar essa
Castro como altiva e imperiosa, pois muitos dos que se preocuparam em
historiografar quaisquer aspectos de Inês de Castro não a fizeram anjo,
como assim o fez a literatura. Por isso é que Agustina afirma:
Inês enfrentava Deus, traindo um vínculo sagrado.
Heloísa, essa tentara um clérigo, o que a confissão podia
corrigir e sanar; mas Inês nunca mais podia alterar aquele
acto falseado, corrompido, no investimento moral que ele
significava. Por isso D. Pedro lhe quis maior bem […].11
10 SOUSA, Maria Leonor Machado de. Inês de Castro: um tema português na Europa. 2. ed.
Lisboa: ACD, 2004, p. 401.
11
BESSA-LUÍS, Agustina. Adivinhas de Pedro e Inês. Lisboa: Guimarães Editores, 1983, p. 65.
Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura
Essa afirmação diz respeito ao fato de Inês não ter pronunciado de
boa vontade as palavras do batismo do filho de Pedro e Constança, fato que
é de conhecimento histórico de todos. Esse compadrio entre Inês e Pedro
seria uma forma de pôr fim ao relacionamento entre ambos e poderá ter
sido articulado por D. Afonso. Depois disso, morre a criança e Inês é enviada
para uma espécie de exílio em Albuquerque. Mas um fato interessante nessa
parte do romance é a comparação com Heloísa, o que vem a comprovar nossa
associação do amor de Pedro e Inês aos outros casais. Essa associação já
foi mencionada em capítulos anteriores, e a semelhança entre Heloísa e
Inês nos reafirma a condição do mito do amor para além da morte.
É, pois, a partir dessas descrições sobre Inês – e também sobre
Pedro, o que nos motiva ao quinto capítulo desse estudo – que, desde o
começo do enredo, a narradora vai tecendo sua tese de bigamia, para a qual
utiliza-se tanto de mencionar documentos, conforme vimos na afirmação
de Maria Leonor Machado, anteriormente, como também de diálogos com
personagens históricos. Sobre esse aspecto da narrativa, Maria de Fátima
Marinho assevera que:
A intromissão consciente da narradora na diegese vai
ao ponto de entrar em diálogo com personagens
do
passado (D. Branca, primeira mulher de D. Pedro e por
ele repudiada; o monge branco que teria assistido aos
últimos momentos do rei; o Dr. João das Regras), a fim
de conseguir justificar teorias que quase considera como
certezas. […] Por estes exemplos vemos a facilidade com
que a narradora transforma em certeza certas hipóteses,
levando o leitor incauto (e não só) a acreditar piamente
nesta nova versão da História consagrada. 12
Contudo, o que sobressai é que, com todos estes artifícios
narrativos, ainda assim, a narradora vai mostrando a hipótese da bigamia
paulatinamente, descrevendo cenas de encontros entre ela e Pedro, em
12 MARINHO, Maria de Fátima. O Romance histórico em Portugal. Porto: Campo das Letras,
1999, p. 178.
Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura
tempos bem anteriores ao do casamento dele com Constança, como no
fragmento do terceiro capítulo, intitulado Ninho de garças:
Assim viu Inês o infante, algum dia, quando ela tinha
quinze anos e ele idade aproximada. Encontrou-a depois
muitas vezes, sentada ao lado de sua prima, Teresa
Albuquerque, a bordar paramentos; uma outra dama,
que conhecia a corte de França, canta chansons de toile;
pesa um tédio, entre doméstico e galante nessas horas
de visitas […].13
Agustina trava um diálogo ao mesmo tempo de concordância e
discordância – sempre com a liberdade que lhe permite a ficção – em relação
à crônica de Fernão Lopes, para poder chegar à sua hipótese do casamento
de Pedro com Inês ter-se realizado quando este acompanhava sua irmã,
Maria, a Castela. Daí, na voz da narradora, as justificativas para que não
se lembrassem nem ele nem as testemunhas da data do casamento. A
justificativa de ser em Bragança é pela ocasião da viagem, mas há ainda o
acréscimo da coincidência do casamento de Pedro de Castela com Joana
de Castro, irmã de Inês. Assim, a par da sempre presente intertextualidade
que cerca o universo das obras inesianas, o enredo das Adivinhas de Pedro
e Inês (1983) anda, assim, como diz Brás Cubas, como um ébrio: guina para
a direita e para a esquerda. Ora Agustina põe uma impertinente narradora
a contestar Fernão Lopes, ora põe-na tanto a citá-lo como também ao Livro
de Chancelaria de Afonso IV, o livro de Frei Manuel dos Santos, Descrição
do Real Mosteiro de Alcobaça14, bem como as crônicas de Rui de Pina,
Acenheiro, dentre outros importantes escritos que se referem ao período
histórico de Pedro e Inês. De modo que o leitor recebe grande quantidade de
informações da História, misturadas à ficção.
Em dez capítulos é sempre assim que a narrativa é conduzida, de
modo que são muitas as informações, entre as quais o leitor deve descobrir
13 BESSA-LUÍS, Agustina. Adivinhas de Pedro e Inês. Lisboa: Guimarães Editores, 1983, p. 57.
14 Os textos históricos referidos neste parágrafo não foram consultados por nós. Referimonos aqui apenas ao fato da autora utilizá-los no romance.
Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura
quais as verdadeiras, apresentadas apenas para dar o tom da veracidade
ao que diz a narradora. Ao leitor fica o direito de ler a História por esse novo
ângulo, no qual a literatura é o fio condutor. O que bem justifica o romance
histórico contemporâneo.
Na sua autenticidade, a autora vai da exaltação à desconstrução
da imagem feminina, sem submeter-se a rótulos por dizer isto ou aquilo
sobre o mundo feminino através das personagens que constrói. São assim
os pontos de vista de Agustina Bessa-Luís: incomuns e fortes, como assim
parece ser também sua forma de elaborar personagens. Parece-nos, pelas
suas próprias palavras e pelo conjunto de sua obra, que, acima de tudo,
na escritora e na mulher o que se sobressai é um sentimento de intensa
liberdade, que alça sua condição criativa acima de tudo e de todos. Na
definição da própria Agustina sobre sua obra ela afirma: “[…] que, sendo
imperfeita, é realizada em liberdade de espírito. Liberdade que procede do
domínio sobre si mesmo. As coisas belas não são muito claras, e a liberdade
é uma delas.” (BESSA-LUÍS, 2007, s/n).
Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura
Bibliografia
AVELLA, Aniello Angelo (Org.). Um concerto em tom de conversa: Agustina Bessa-
Luís, Manoel de Oliveira. - Belo Horizonte: UFMG, 2007.
BESSA-LUÍS, Agustina. Adivinhas de Pedro e Inês. Lisboa: Guimarães Editores, 1983
____. Aforismos. Lisboa: Guimarães Editores, 1988.
____. Gratie agenda post laudationem, Discurso da escritora em seu Doutoramento
Honoris Causa. Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2007.
____. Um cão que sonha. Lisboa: Guimarães Editores, 1997.
LOPES, Silvina Rodrigues. Agustina Bessa-Luís: as hipóteses do romance. Lisboa:
Asa, 1992. (Coleção Perspectivas Atuais)
MARINHO, Maria de Fátima. O Romance histórico em Portugal. Porto: Campo das
Letras, 1999.
____. Discurso de elogio do doutoramento honoris causa de Agustina Bessa-Luís,
proferido por Maria de Fátima Marinho. Faculdade de Letras da Universidade do
Porto, 2007.
SOUSA, Maria Leonor Machado de. Inês de Castro: um tema português na Europa.
2. ed. Lisboa: ACD, 2004.
Download

Nem musa Nem medusa: poder e ação Na escrita em