QUARTA REGIÃO
QUARTA REGIÃO
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 1-504, 2004
Ficha Técnica
Direção:
Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria
Assessoria:
Isabel Cristina Lima Selau
Chefia de Gabinete e Coordenação:
Eliane Maria Salgado Assumpção
Análise e Indexação:
Eliana Raffaelli
Marta Freitas Heemann
Revisão, Formatação e Layout:
Gaspar Paines Filho
Maria Aparecida C. de Barros Berthold
Maria de Fátima de Goes Lanziotti
Rodrigo Meine
Os textos publicados nesta revista são revisados pela Escola da Magistratura
do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
Revista do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. – Vol. 1, n. 1
(jan./mar. 1990). – Porto Alegre: O Tribunal, 1990 – v. – Trimestral.
ISSN 0103-6599
1. Direito – Periódicos. 2. Direito – Jurisprudência. 1. Brasil.
Tribunal Regional Federal 4ª Região.
CDU 34(051)
34(094.9)
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL
4ª Região
Rua Otávio Francisco Caruso da Rocha, 300
CEP 90.010-395 - Porto Alegre - RS
PABX: 0 XX 51-3213-3000
e-mail: [email protected]
Tiragem: 750 exemplares
QUARTA REGIÃO
MARIA LÚCIA LUZ LEIRIA
Desa. Federal Diretora da Escola da Magistratura
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL
4ª Região
JURISDIÇÃO
Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná
COMPOSIÇÃO
Em setembro de 2004
PLENÁRIO
Des. Federal Vladimir Passos de Freitas - Presidente
Desa. Federal Marga Inge Barth Tessler - Vice-Presidente
Des. Federal Vilson Darós - Corregedor-Geral
Des. Federal Nylson Paim de Abreu
Desa. Federal Silvia Maria Gonçalves Goraieb
Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria - Diretora da Escola da Magistratura
Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro
Des. Federal José Luiz Borges Germano da Silva
Des. Federal João Surreaux Chagas - Vice-Corregedor-Geral
Des. Federal Amaury Chaves de Athayde
Desa. Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère - Conselheira da Escola da
Magistratura
Des. Federal Edgard Antônio Lippmann Júnior
Des. Federal Valdemar Capeletti
Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon - Conselheiro da Escola da
Magistratura
Des. Federal Tadaaqui Hirose
Des. Federal Dirceu de Almeida Soares
Des. Federal Wellington Mendes de Almeida
Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz
Des. Federal Luiz Fernando Wowk Penteado
Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz
Des. Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira
Des. Federal Néfi Cordeiro
Des. Federal Victor Luiz dos Santos Laus
Des. Federal João Batista Pinto Silveira
Des. Federal Celso Kipper
Des. Federal Álvaro Eduardo Junqueira
Des. Federal Otávio Roberto Pamplona
PRIMEIRA SEÇÃO
Desa. Federal Marga Inge Barth Tessler - Presidente
Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria
Des. Federal João Surreaux Chagas
Des. Federal Dirceu de Almeida Soares
Des. Federal Wellington Mendes de Almeida
Des. Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira
Des. Federal Álvaro Eduardo Junqueira
SEGUNDA SEÇÃO
Desa. Federal Marga Inge Barth Tessler - Presidente
Desa. Federal Silvia Maria Gonçalves Goraieb
Des. Federal Amaury Chaves de Athayde
Des. Federal Edgard Antônio Lippmann Júnior
Des. Federal Valdemar Capeletti
Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon
Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz
TERCEIRA SEÇÃO
Desa. Federal Marga Inge Barth Tessler - Presidente
Des. Federal Nylson Paim de Abreu
Des. Federal Néfi Cordeiro
Des. Federal Victor Luiz dos Santos Laus
Des. Federal João Batista Pinto Silveira
Des. Federal Celso Kipper
Des. Federal Otávio Roberto Pamplona
QUARTA SEÇÃO
Desa. Federal Marga Inge Barth Tessler - Presidente
Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro
Des. Federal José Luiz Borges Germano da Silva
Desa. Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère
Des. Federal Tadaaqui Hirose
Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz
Des. Federal Luiz Fernando Wowk Penteado
PRIMEIRA TURMA
Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria - Presidente
Des. Federal Wellington Mendes de Almeida
Des. Federal Álvaro Eduardo Junqueira (convocado)
SEGUNDA TURMA
Des. Federal João Surreaux Chagas - Presidente
Des. Federal Dirceu de Almeida Soares
Des. Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira
TERCEIRA TURMA
Desa. Federal Silvia Maria Gonçalves Goraieb - Presidente
Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon
Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz
QUARTA TURMA
Des. Federal Amaury Chaves de Athayde - Presidente
Des. Federal Edgard Antônio Lippmann Júnior
Des. Federal Valdemar Capeletti
QUINTA TURMA
Des. Federal Néfi Cordeiro - Presidente
Des. Federal Celso Kipper
Des. Federal Otávio Roberto Pamplona
SEXTA TURMA
Des. Federal Nylson Paim de Abreu - Presidente
Des. Federal Victor Luiz dos Santos Laus
Des. Federal João Batista Pinto Silveira
SÉTIMA TURMA
Des. Federal José Luiz Borges Germano da Silva - Presidente
Desa. Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère
Des. Federal Tadaaqui Hirose
OITAVA TURMA
SUMÁRIO
DOUTRINA ....................................................................................... 13
Princípio do juiz natural
Nylson Paim de Abreu............................................................. 15
O exercício do poder de polícia e o prazo prescritivo para a
aplicação da sanção administrativa depois da Lei nº 9.873/99
Marga Barth Tessler................................................................ 35
Questões polêmicas quanto aos impostos e contribuições
incidentes na tributação do comércio internacional
Maria Lúcia Luz Leiria........................................................... 57
O contempt of court no novo processo civil
Paulo Afonso Brum Vaz........................................................... 69
Crime de corrupção passiva: análise do art. 317 do Código Penal
Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz.................................. 99
ACÓRDÃOS.................................................................................... 109
Direito Administrativo e Direito Civil................................... 111
Direito Penal e Direito Processual Penal............................... 205
Direito Previdenciário............................................................ 331
Direito Processual Civil......................................................... 357
Direito Tributário................................................................... 383
ARGÜIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE........................... 453
ÍNDICE NUMÉRICO....................................................................... 467
ÍNDICE ANALÍTICO...................................................................... 471
ÍNDICE LEGISLATIVO.................................................................. 497
12
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004
DOUTRINA
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13
14
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004
Princípio do juiz natural
Nylson Paim de Abreu*
Sumário: 1. Introdução; 2. Princípio do juiz natural à luz da doutrina;
3. Princípio do juiz natural na jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal; 4. Princípio do juiz natural no direito constitucional brasileiro
positivo; 5. Juiz natural e a formação do litisconsórcio; 6. Princípio
do juiz natural e os “mutirões” de julgamentos nos Tribunais; 7. Juiz
natural e foro especializado em razão da matéria ou por prerrogativa
de função; 8. Conclusão; 9. Bibliografia.
1. Introdução
Antes mesmo do início da Idade Média os cidadãos já esboçavam o
desejo da institucionalização de um juiz natural, o que veio a acontecer
mais tarde em França, consoante o escólio de Rui Portanova:
“A primeira referência legal à expressão ‘juiz natural’ é do artigo 17 do título II da
Lei Francesa de 24.08.1790. Também aos franceses se deve a prioridade da primeira
referência constitucional no texto fundamental de 1791.
Contudo, a Magna Carta Inglesa de 1215, mesmo com a distribuição da justiça ainda
pelos proprietários de terra e a incipiente justiça estatal, já previa sanções a condes e
barões (art. 21) e homens livres (art. 39) após ‘julgamento legítimo de seus pares e
pela lei da terra’. No mesmo diploma encontra-se: ‘nenhuma multa será lançada senão
pelo juramento de homens honestos da vizinhança.’ (art. 39).”1
* Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
1
PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 4.ed. – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 63.
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15
Com efeito, o princípio do juiz natural, amalgamado nos princípios
da legitimidade, da imparcialidade e da igualdade, constitui apanágio
da justiça, anseio maior de toda sociedade civilizada. Nesse sentido, é
oportuna a lição sempre lúcida da Profa. Ada Pellegrini Grinover:
“mais do que direito subjetivo da parte e para além do conteúdo individualista dos
direitos processuais, o princípio do juiz natural é garantia da própria jurisdição, seu
elemento essencial, sua qualificação substancial. Sem o juiz natural, não há função
jurisdicional possível”.2
Segundo a doutrina processual autorizada, o primeiro requisito do juiz
natural é a sua legitimidade, ou seja, órgão estatal investido de jurisdição
conforme os ditames legais e constitucionais.
Como decorrência lógica daquele princípio, o órgão jurisdicional há
de ser imparcial, de molde a que sua decisão seja imune a interferências
externas. Por isso, o juiz deve subordinar-se única e exclusivamente à
Constituição e às leis, sendo que, quanto a estas, poderá deixá-las de
aplicar se reconhecê-las inconstitucionais, valendo-se do exercício do
controle difuso.
A respeito do aludido princípio, o Colendo Superior Tribunal de
Justiça, por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 230009-RJ,
Relator Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, assentou:
“A imparcialidade do magistrado, um dos pilares do princípio do juiz natural, que
reclama juiz legalmente investido na função, competente e imparcial, se inclui dentre os
pressupostos de validade da relação processual, que se reflete na ausência de impedimento, nos termos do art. 134 do Código de Processo Civil.” (DJU, ed. 27.03.2000, p. 113)
Por conseguinte, o órgão julgador somente pode ser constituído nos
termos estabelecidos na Constituição e mediante lei específica para
tanto. Logo, seria impensável a sua criação por meio de resoluções ou
provimentos baixados por Tribunais, salvo quando autorizados por lei.
2. Princípio do juiz natural à luz da doutrina
Conforme já referido ao início, a idéia do juiz natural tem sua origem
na Magna Carta de 1215, a qual previa “julgamento legítimo de seus
pares e pela lei da terra”. Mais tarde, segundo a Profa. Ada Grinover, “na
2
O princípio do juiz natural e sua dupla garantia. Revista de Processo, v. 29, jan./mar-1983, p. 11.
16
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Petition of Rigths e no Bill of Rights o princípio do juiz natural realmente
assume a dimensão atual, de proibição de juízos ex post facto.”3
Porém, consoante anota aquela festejada autora, foi a Lei Francesa,
de 24.08.1790, que estabeleceu: “A ordem constitucional das jurisdições
não pode ser perturbada, nem os jurisdicionados subtraídos de seus juízes
naturais, por meio de qualquer comissão, nem mediante outras atribuições ou evocações, salvo nos casos determinados pela lei”.4
Dissertando a respeito do conteúdo do juiz natural, o festejado catedrático da Faculdade de Direito de Montevidéu, Eduardo J. Couture,
escreveu:
“Tratando de ordenar, em um sistema de idéias, os princípios basilares, radicais,
aqueles em torno de que se agrupa toda experiência acerca da função e da incumbência
do juiz, eu me permiti reduzi-los a três ordens necessárias: - a de independência, a de
autoridade e a de responsabilidade.
A de independência, para que suas decisões não sejam uma conseqüência da fome
ou do medo; a de autoridade, para que suas decisões não sejam simples conselhos,
divagações acadêmicas, que o Poder Executivo possa desatender segundo seu capricho; e a de responsabilidade, para que a sentença não seja um ímpeto da ambição, do
orgulho ou da soberbia, e sim da consciência vigilante do homem frente ao seu próprio
destino.”5
O professor Athos Gusmão Carneiro, na sua prestigiada monografia
sobre jurisdição e competência, embora faça referência à ordem constitucional pretérita, elucida a matéria nas seguintes letras:
“A atividade jurisdicional é ‘indeclinável’, e somente pode ser exercida, caso a
caso, pelo ‘juiz natural’. Taxativamente proibidos que são, pela Lei Maior (art. 153,
§ 15), os ‘foros privilegiados’ e os ‘Tribunais de exceção’, a jurisdição somente pode
ser exercida por pessoa legalmente investida no poder de julgar, como integrante de
algum dos órgãos do Poder Judiciário, previstos no art. 112 da Constituição: Supremo
Tribunal Federal, Tribunal Federal de Recursos e juízes federais, Tribunais e juízes da
Justiça Militar Federal e Estadual, Tribunais e juízes do Trabalho, Tribunais e juízes
eleitorais, Tribunais e juízes estaduais.”6
Em seu clássico Manual de Direito Processual Civil, o saudoso Prof.
GRINOVER, Ada Pellegrini, op cit., p. 13.
4
GRINOVER, Ada Pellegrini, op. cit., p. 15.
5
Introdução ao estudo do direito processual civil. 3.ed. Rio de Janeiro : José Konfino Editor, s/d, p. 88.
6
Jurisdição e competência: exposição didática: área do direito processual civil. 2 ed. rev. e ampl. – São
Paulo: Saraiva, 1983, p. 10-11.
3
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004
17
José Frederico Marques anotou:
“A jurisdição pode ser exercida apenas por órgão previsto na Constituição da República: é o princípio do juiz natural ou juiz constitucional. Considera-se investido de
funções jurisdicionais, tão-só, o juiz ou tribunal que se enquadrar em órgão judiciário
previsto de modo expresso ou implícito, em norma jurídico-constitucional.
Há previsão expressa quando a Constituição exaure a enumeração genérica dos
órgãos a que está afeta determinada atividade jurisdicional. Há previsão implícita,
ou condicionada, quando a Constituição deixa à lei ordinária a criação e estrutura de
determinados órgãos.”7
O Prof. Nelson Nery Júnior, em sua conhecida obra sobre o princípio
do juiz natural, ensina:
“Assim como o poder do Estado é um só (as atividades legislativa, executiva e
judiciária são formas e parcelas do exercício desse poder), a jurisdição também o é. E
para a facilitação do exercício dessa parcela de poder é que existem as denominadas
justiças especializadas. Portanto, a proibição da existência de tribunais de exceção, ad
hoc, não abrange as justiças especializadas, que são atribuição e divisão da atividade
jurisdicional do Estado entre vários órgãos do Poder Judiciário.”8
Outrossim, alude o referido autor: “Juízo especial, permitido pela
Constituição e não violador do princípio do juiz natural, é aquele previsto
antecedentemente, abstrato e geral, para julgar matéria específica prevista
na Lei.”9
Em outro tópico assinala: “É, por assim dizer, antes de caracterizar-se
como privilégio, uma garantia assegurada à independência e imparcialidade da justiça, destinada a proteger o interesse público geral.”10
Aduz também:
“Da mesma forma, os foros constituídos por intermédio de convenção das partes
(foros de eleição), se contratados dentro dos limites da lei, isto é, versando apenas
matéria de competência relativa, não ofendem o princípio do juiz natural. Isto porque
a competência relativa, que já está previamente estabelecida na lei processual, pode
ser objeto de prorrogação por acordo das partes ou por inércia do réu que deixar de
argüir exceção de incompetência. O sistema processual civil disciplinou esse tipo de
São Paulo: Saraiva, 1976, v.1, p. 74
NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 7.ed. Rev. E atual. com as
Leis 10.352/2001 e 10.358/2001 – São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 68.
9
NERY JÚNIOR, Nelson, op. cit., p. 68.
10
NERY JÚNIOR, Nelson, op. cit., p. 68.
7
8
18
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004
competência, relativa, como sendo de interesse disponível das partes, não sendo, pois,
preceito de ordem pública.
É importante salientar que o princípio do juiz natural, como mandamento constitucional, aplica-se, no processo civil, somente às hipóteses de competência absoluta, já
que preceito de ordem pública. Assim, não se pode admitir a existência de mais de um
juiz natural, como corretamente decidiu a Corte constitucional italiana. A competência
cumulativa ou alternativa somente é compatível com os critérios privatísticos de sua
fixação, isto é, em se tratando de competência relativa.”11
Entrementes, adverte o ilustre processualista nominado:
“Não é raro ver-se na administração pública ofensa ao princípio constitucional do
julgador natural com a formação de comissões sindicantes ou processantes constituídas
ex post facto, caracterizando indiscutivelmente juízo de exceção. Essas comissões,
nomeadas depois da ocorrência do fato, tanto podem ter sido formadas para proteger
o sindicado ou processado como para prejudicá-lo, pois a autoridade nomeante pôde
escolher o acusador e/ou julgador administrativo já tendo conhecimento do fato e/ou
de quem foi o seu autor.”12
Também afirma o ilustre mestre paulista:
“Esses membros da comissão é que instruirão a sindicância ou processo, interrogando o réu, ouvindo testemunhas, deferindo provas e, ao final, elaborarão o relatório
sugerindo a aplicação da pena administrativa. Têm de ser pré-constituídos, competentes
e imparciais.”13
Sublinha, ainda: “Essa pré-constituição não empece a administração da
justiça, como adverte setor da doutrina, sendo absolutamente necessária
para a garantia da imparcialidade do juiz no julgamento da causa que lhe
é afeta.”14
Por fim, conclui as suas observações aduzindo:
“O princípio do juiz natural aplica-se indistintamente ao processo civil, ao penal e
ao administrativo. A cláusula constitucional brasileira, ‘ninguém será processado nem
sentenciado senão pela autoridade competente’ (art. 5º, LIII, CF) não distingue o tipo
de processo que é abrangido pela garantia. A Constituição Imperial de 1824 dispunha
expressamente que a garantia da inexistência de foros privilegiados valia para as ‘causas
cíveis e crimes’ (art. 179, § 17). As constituições que se lhe seguiram não repetiram o
termo ‘causas cíveis’, mas a doutrina sempre entendeu válido o princípio para o procesNERY JÚNIOR, Nelson, op. cit.,
NERY JÚNIOR, Nelson, op. cit.,
13
NERY JÚNIOR, Nelson, op. cit.,
14
NERY JÚNIOR, Nelson, op. cit.,
15
NERY JÚNIOR, Nelson, op. cit.,
11
12
p. 68-9.
p. 70.
p. 70.
p. 71.
p. 72-3.
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004
19
so civil. Em alguns sistemas, como o constitucional português, o juiz natural é garantia
expressa do processo penal (art. 32, 7º, da Constituição da República portuguesa).”15
A propósito do juiz natural, o ilustre magistrado Rui Portanova, em
obra densa sobre a matéria, preleciona:
“O conceito de juiz natural vem se ampliando. Não se pode mais pensar apenas na
hipótese de proibição de tribunais de exceção. Ada Pellegrini Grinover (1990, p. 23),
citando doutrina nacional e estrangeira, mostra que há um segundo aspecto do juiz
natural: o juiz constitucional. Trata-se do efeito que ‘vincula a garantia a uma ordem
taxativa, e constitucional, de competências’. O princípio do juiz natural exige não só
uma disciplina legal da via judicial, da competência funcional, material e territorial
do tribunal, mas também uma regra sobre qual dos órgãos judicantes (Câmara, Turma,
Senado) e qual juiz, em cada um desses órgãos individualmente considerado, deve
exercer a sua atividade (Schwab, 1987, p. 125).
O princípio é amplamente acolhido pelo mundo afora. Ademais, a Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948 prevê em seu art. 10: ‘todo homem tem
direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal
independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de
qualquer acusação criminal contra ele’.
No direito brasileiro, exceto no período do Estado Novo, sempre houve previsão
legal a respeito do princípio do juiz natural.
Tal acolhimento tem-se dado na dúplice faceta da proibição a tribunais extraordinários ex post facto (proibição de comissão) e proibição de transferência de uma causa
para outro tribunal (proibição de avocação).
Assim, juiz natural é aquele juiz integrante do Poder Judiciário, regularmente
cercado das garantias próprias conferidas àqueles que exercem esse Poder, e, por isso
mesmo, independentes e imparciais (Santos Filho, 1990, p. 137).”16
Salienta, ainda, o referido autor:
“Não há confundir juízos e tribunais ‘de exceção’ com juízos e tribunais ‘especiais’
ou ‘especializados’ no processo e julgamento de determinados litígios, segundo sua
natureza. É da tradição do direito brasileiro a permissão ao poder de atribuição, ou
seja, no Brasil não afronta o princípio do juiz natural a criação constitucional de juízos
especiais desde que preconstituídos. Costuma-se justificar juízo e foro privilegiados
como imposição estrutural e organizacional que viabiliza a distribuição, divisão e especialização de tarefas com vista a um melhor atendimento ao Poder Judiciário deste
ou daquele tipo de processo (Andrade Filho, 1983, p. 14). Contudo, tem-se proibido
o foro especializado em razão de privilégios pessoais.”17
16
17
PORTANOVA, Rui, op. cit., p. 64.
PORTANOVA, Rui, op. cit., p. 65.
20
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Vale mencionar, ademais, as oportunas observações do ilustre magistrado gaúcho referentemente às situações anômalas em que o juiz natural
fora e continua sendo afastado do processo decisório, verbis:
“Ao longo da história legislativa brasileira, têm-se constatado exemplos de violações
ao princípio do juiz natural.
Da legislação já revogada vale referir, de início, a discutida decisão da Corte Suprema brasileira sobre a constitucionalidade do Tribunal de Segurança de 1935. Por
igual, o art. 84 do Decreto-Lei 898/69 era afrontoso ao juiz natural, uma vez que previa
julgadores nomeados para julgamento de casos concretos. Eram hipóteses de crime
contra a segurança nacional punidos com prisão perpétua e pena de morte. O julgamento se dava por Tribunal formado de ministros militares e membros do Conselho de
Justiça. Por fim, também disposições processuais autorizando início de ação penal pela
autoridade policial em casos de contravenção (art. 531 do CPP) e homicídio e lesões
culposas (Lei 4.611/65) e infrações ao Código de Caça (Leis 4.771/65 e 5.197/67) são
violações ao princípio do juiz natural.
Há, ainda, alguma legislação de discutida vigência e/ou constitucionalidade com dispositivos afrontosos ao juiz natural. São os casos das execuções extrajudiciais previstas
no Decreto-Lei 70/66 e na Lei 5.741/71 (referente ao Sistema Financeiro da Habitação)
e aquela prevista no Decreto-Lei 911/60 (referente a bens alienados fiduciariamente).”18
Importantes e elucidativas também são as anotações de Luís Antônio
Longo sobre o princípio do juiz natural: “Nesse contexto, deverá o processo cumprir sua dupla finalidade, como já muito bem percebeu Galeno
Lacerda: obter a solução da lide e restabelecer a paz social.”19
Refere, ainda, a lição de Luiz Flávio Gomes: “A ele acham-se conectados outros importantes princípios, como a) o da igualdade, b) o da
imparcialidade, c) o da anterioridade e o d) da legalidade.”20
Acrescenta, em outro passo:
“Assim, a imparcialidade de função e a igualdade não meramente formal das partes,
mas, sobretudo, substancial, configuram-se nos pontos de partida para a incidência da
garantia do Juiz Natural, ou Constitucional, consolidando-se assim, tal princípio, como
manifestação de um Estado Democrático de Direito.
Partindo-se da idéia de Galeno Lacerda de que o processo nasce com o objetivo de
PORTANOVA, Rui, op. cit., p. 68.
LONGO, Luís Antônio. As garantias do cidadão no processo civil: relações entre constituição e processo
/ Adriane Donadel ... [et. al]; org. Sérgio Gilberto Porto. – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 33.
20
LONGO, Luís Antônio, op. cit., p. 37.
18
19
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004
21
resolver a lide e obter a paz social, pode-se afirmar que, do ponto de vista individual, o
princípio preponderante é o da igualdade. Contudo, sob o prisma coletivo, no sentido
de o processo funcionar como efetivo instrumento de pacificação social, o princípio
que consolida o juiz natural é o da imparcialidade.”21
Valendo-se da doutrina italiana, salienta o aludido articulista:
“Luigi Luchini, em obra escrita no início do século, assegurava que para a jurisdição
ser considerada legítima deve ser: a) legal, no sentido de que não se poderá derrogar
a organização judiciária senão por força de uma lei; b) positiva e indeclinável, afirmando que ninguém pode se subtrair à jurisdição exceto nos casos previstos em lei;
c) inalterável, no sentido que uma vez que firmada pela lei, não possa modificar-se o
juiz natural.”22
Em outro tópico, assevera o mencionado autor:
“O terceiro conteúdo dessa garantia diz respeito ao plano da imparcialidade. Aliás,
a própria legislação processual, por intermédio das exceções, objetiva resguardar tal
princípio por meio de mecanismos destinados a resolver questões que visem a evitar a
prestação de atividade jurisdicional por juiz impedido ou suspeito.”23
Salienta, ainda:
“Como quinto e último tem-se a garantia de ordem taxativa de competência, que
assegura a pré-constituição dos órgãos e agentes excluindo qualquer alternativa deferida
à discricionariedade de quem quer que seja. Eventual modificação de competência deve
estar prevista em leis anteriores ao fato.”24
Em outro parágrafo, diz o aludido autor:
“Dessa maneira, vê-se que o juiz natural consiste em um dos elementos
indispensáveis para a consumação do devido processo legal. Aliás, oportuna a
lição de Vigoritti ao afirmar que: ‘a igualdade e contraditório das partes perante
o juiz; pré-constituição por lei do juiz natural; sujeição do juiz somente à lei;
proibição de juízos extraordinários ou especiais e, finalmente, a independência
e imparcialidade dos órgãos jurisdicionais, consistem nos principais elementos
do due process of law.”25
Em tópico seguinte, afirma:
“Portanto, conforme acima demonstrado, a gênese da garantia do juiz natural
LONGO, Luís Antônio, op. cit., p. 38.
LONGO, Luís Antônio, op. cit., p. 39.
23
LONGO, Luís Antônio, op. cit., p. 40-41.
24
LONGO, Luís Antônio, op. cit., p. 41.
25
LONGO, Luís Antônio, op. cit., p. 41.
21
22
22
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004
encontra-se atrelada à própria existência do estado democrático de direito e do livre
exercício da jurisdição, abstraindo-se de sua origem qualquer conteúdo capaz de violar
direitos naturais inerentes a todos os cidadãos. Bem como qualquer idéia centralizadora e
ilimitada do exercício dos poderes do estado sobre os jurisdicionados; tudo isso centrado
e voltado à vontade geral. A ausência do juiz natural é sinônimo de violento retrocesso
sociopolítico, inviabilizando o exercício do poder estatal, especialmente a jurisdição.”26
Aduz, por fim:
“A autonomia do juiz em relação aos demais poderes passou por lenta e gradual
evolução, até chegarmos à pacífica conclusão da absoluta necessidade de que seja dada
ao juiz a autonomia em relação aos demais poderes. Autonomia essa que, hodiernamente, se constata não dizer respeito somente ao exercício da jurisdição, mas constitui-se
sinônimo de garantia a todos os jurisdicionados.”27
Juliano Spagnolo, na mesma obra coletiva organizada pelo Professor
Sérgio Gilberto Porto, preleciona:
“Quanto aos pressupostos da garantia, conforme preceitua o constitucionalista
José Joaquim Gomes Canotilho, são atribuídos os seguintes: da existência de prévia
individualização através de leis gerais; da neutralidade e da independência do juiz; da
fixação de competência e da observância de determinações do procedimento referentes
à divisão funcional interna (distribuição de processos).” 28
Por derradeiro, é oportuno destacar as palavras do Professor Rui
Portanova:
“O princípio do juiz natural é verdadeira garantia a ser invocada contra toda e
qualquer forma de autoritarismo que queira se justificar através do Poder Judiciário. A
invocação do juiz natural, com seu extenso conteúdo democrático, consagra conquistas
da humanidade, ao longo de sua história, contra um Judiciário subserviente a comandos
ditatoriais que o afrontam.
Com base no juiz natural, poderá o operador jurídico pleitear contra invenções
legislativas. No mesmo passo, o princípio do juiz natural constitucional é fundamento
para afastar toda sorte de influência estranha no Poder Judiciário (tribunais de ocasião, escolhas ou substituições de juízes) tão ao gosto de ditadores que conquistam
o Executivo.
Numa tentativa de resumo, poderíamos dizer que, sendo um princípio que obriga
previsões legais claras e expressas para o futuro e não previsões incompletas e/ou para
LONGO, Luís Antônio, op. cit., p. 44.
LONGO, Luís Antônio, op. cit., p. 50.
28
SPAGNOLO, Juliano. As garantias do cidadão no processo civil: relações entre constituição e processo
/ Adriane Donadel ... [et. al]; org. Sérgio Gilberto Porto. – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 155.
26
27
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004
23
passado, trata-se de um dos princípios que dá sustentação política à independência do
Poder Judiciário e que informa todos os outros princípios ligados à jurisdição.”29
Como se vê, o princípio do juiz natural é defendido pela unanimidade
da doutrina e encontra albergue em todas as legislações dos países democráticos.
3. Princípio do juiz natural na jurisprudência
do Supremo Tribunal Federal
O princípio do juiz natural tem sido objeto de análise em diversas
oportunidades pela Colenda Suprema Corte, como se pode observar das
ementas de seus acórdãos a seguir transcritas:
“EMENTA: HABEAS CORPUS – No caso, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça
é que se tem como coator neste habeas corpus, razão por que é de ser este conhecido.
– Improcedência da alegação de ofensa ao princípio do juiz natural. – Em se tratando
de incompetência ratione loci, os atos ordinatórios e probatórios praticados pelo juiz
incompetente não são anuláveis, mas apenas irregulares. Irregularidades que, no caso,
não cerceou a defesa dos ora pacientes, nem lhes trouxe prejuízo. Habeas corpus conhecido, mas indeferido. (HC 76394 / PA. Relator Min. Moreira Alves. DJU, 25.06.99, p. 3)
EMENTA: HABEAS CORPUS – PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL E PROCESSO
PENAL DEMOCRÁTICO – A consagração constitucional do princípio do juiz natural
(CF, art. 5º, LIII) tem o condão de reafirmar o compromisso do Estado brasileiro com a
construção das bases jurídicas necessárias à formulação do processo penal democrático.
O princípio da naturalidade do juízo representa uma das matrizes político-ideológicas
que conformam a própria atividade legislativa do Estado, condicionado, ainda o desempenho, em juízo, das funções estatais de caráter penal-persecutório. A lei não pode
frustrar a garantia derivada do postulado do juiz natural. Assiste, a qualquer pessoa,
quando eventualmente submetida a juízo penal, o direito de ser processada perante
magistrado imparcial e independente, cuja competência é predeterminada, em abstrato, pelo próprio ordenamento constitucional. (HC 73801/MG. Relator: Min. Celso de
Mello. DJU, 27.06.97, p.30226)
EMENTA: HABEAS CORPUS – Inexiste, no caso, ofensa ao princípio do juiz
natural, porquanto o ora paciente foi processado e julgado pelo Tribunal de Justiça do
Estado de Goiás, por crime praticado durante o exercício do mandato de Prefeito Municipal de Aracu-GO. Observou-se, portanto, o disposto no art 29, X, da Constituição
Federal. – Por outro lado, anteriormente à Lei 8.658, de 26 de maio de 1993, competia
ao relator receber ou rejeitar a denúncia nas ações penais da competência originária
dos Tribunais de Justiça (art. 557, parágrafo único, a, do Código de Processo Penal).
Inexistência de nulidade a propósito, porquanto, no caso, a denúncia foi recebida, pelo
29
PORTANOVA, Rui, op. cit., p. 68-69.
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relator antes da referida Lei 8.658/93. Habeas corpus indeferido. (HC 73021/GO.
Relator Min. Moreira Alves. DJU, 01.12.95, p. 41685)
EMENTA: IV. STF: competência originária: CF, art. 102, I, n: inteligência: caso
em que não há, em princípio, razões para afirmar-lhe a incidência. 4. No mandado de
segurança em que juiz de determinado Tribunal pleiteia ser declarado eleito para um
dos cargos de sua direção, em detrimento do litisconsorte – cuja eleição para o mesmo
posto pretende nula –, o interesse direto na causa a ambos se adstringe. 5. Com relação
aos demais membros do Tribunal, o fato de haverem participado com seus votos da
formação dos atos administrativos questionados não lhes acarreta, por si só, nem interesse direto ou indireto na solução do mandado de segurança, nem impedimento para
julgá-lo. 6. Do princípio do juiz natural, não cabe inferir a presunção de parcialidade
dos magistrados que hajam votado na eleição discutida, para a decisão jurisdicional
acerca de sua legitimidade jurídica: de bem pouco valeria a isenção juramentada dos
juízes, se o fato de haver sufragado um ou outro candidato, em determinada eleição,
tolhesse a cada um dos eleitores a imparcialidade para julgar – à luz dos princípios e
não da preferência eleitoral – da validade do pleito. (AO 813 AgR/CE. Agravo Regimental na ação originária. Relator Min. Sepúlveda Pertence. DJU, 31.08.01, p. 37)
EMENTA: SOMENTE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, EM SUA CONDIÇÃO DE JUIZ NATURAL DOS MEMBROS DO CONGRESSO NACIONAL, PODE
RECEBER DENÚNCIAS CONTRA ESTES FORMULADAS. – A decisão emanada de
qualquer outro Tribunal Judiciário, que implique recebimento de denúncia formulada
contra membro do Congresso Nacional, reveste-se de nulidade, pois, no sistema jurídico
brasileiro, somente o Supremo Tribunal Federal dispõe dessa especial competência,
considerada a sua qualificação constitucional como juiz natural de Deputados Federais
e Senadores da República, nas hipóteses de ilícitos comuns. (Inq 1544 QO/PI. Relator
Min. Celso de Mello. DJU, 14.12.01)
EMENTA: HABEAS CORPUS - NULIDADE - PRESSUPOSTO DA DECLARAÇÃO - PREJUÍZO. A declaração da nulidade pressupõe que do ato impugnado tenha
surgido prejuízo para a acusação ou para a defesa – artigos 563 e 566 do Código de
Processo Penal. Isto não se verifica quando a pecha é articulada pela defesa tendo em
conta atuação do Juízo que resultou na absolvição do réu, conclusão robustecida pela
circunstância de, ao contrário do alegado, não estar em questão o princípio do juiz natural, no que a colocação da Vara em regime de exceção, passando a atuar certo magistrado, ocorreu cerca de sete meses antes da representação que deu origem a ação penal
pública condicionada. (HC 69791/SC. Relator Min. Marco Aurélio. DJU, 23.04.93)
EMENTA: HABEAS CORPUS - Qualquer tentativa de submeter os réus civis
a procedimentos penais-persecutórios instaurados perante órgãos da Justiça Militar
estadual representa, no contexto de nosso sistema jurídico, clara violação ao princípio
constitucional do juiz natural (CF, art. 5º, LIII). (HC 70604/SP. Relator Min. Celso de
Mello. DJU, 01.07.94)
EMENTA: HABEAS CORPUS - 2. Alegada inobservância do princípio do juiz
natural. 3. Substituição regular de Desembargador por Juiz do Tribunal de Alçada
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004
25
local. 4. Vinculação ao feito do convocado, na condição de relator, por ter aposto o
visto no processo. 5. Habeas corpus indeferido. (HC 80841/PR. Relator Min. Néri da
Silveira. DJU, 14.09.01)
EMENTA: Penal. Processual Penal. Habeas Corpus. Interrogatório: Delegação
específica. Ofensa ao princípio do juiz natural. Inocorrência. C.F., art. 5º, LIII. Lei
8.038/90, art. 9º, I. – A delegação pelo ministro relator da competência para realização de atos de instrução criminal a um juiz ou desembargador específico não ofende
o princípio do juiz natural. Habeas corpus indeferido. (HC 82111/RJ. Relator Min.
Carlos Velloso. DJU, 11.10.2002)
EMENTA: HABEAS CORPUS – É irrecusável, em nosso sistema de direito constitucional positivo – considerado o princípio do juiz natural – que ninguém poderá ser
privado de sua liberdade senão mediante julgamento pela autoridade judicial competente. Nenhuma pessoa, em conseqüência, poderá ser subtraída ao seu juiz natural. A
nova Constituição do Brasil, ao proclamar as liberdades públicas – que representam
limitações expressivas aos poderes do Estado – consagrou, agora de modo explícito, o
postulado fundamental do juiz natural. O art. 5º, LIII, da Carta Política prescreve que
“ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. (HC
79865/RS. Relator Min. Celso de Mello. DJU, 06.04.01)
EMENTA: OFICIAL DA POLÍCIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO,
CONDENADO PELO CRIME DO ART. 303 DO CÓDIGO PENAL MILITAR.
CONSTRANGIMENTO ILEGAL QUE CONSISTIRIA EM AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO NA DOSAGEM DA PENA E EM OFENSA AO PRINCÍPIO DO
JUIZ NATURAL, POR NÃO HAVER PARTICIPADO DO SEU JULGAMENTO
JUIZ-AUDITOR. A existência de Auditoria Militar sem que houvesse sido criado o
cargo de Juiz-Auditor constitui situação de fato institucional equivalente à vacância
que, conquanto suprível por meio de Juiz de Direito Substituto, urge seja regularizada, mediante iniciativa legislativa do Tribunal de Justiça. Nulidade inexistente.
Fundamentação suficiente para fixação da pena no dobro do mínimo legal. Habeas
corpus indeferido. (HC 75861/RJ. Relator Min. Ilmar Galvão. DJU, 12.12.97)
EMENTA: O preceito consubstanciado no art. 29, X, da Carta Política não confere,
por si só, ao Prefeito Municipal o direito de ser julgado pelo Plenário do Tribunal de
Justiça – ou pelo respectivo Órgão Especial, onde houver – nas ações penais originárias contra ele ajuizadas, podendo o Estado-membro, nos limites de sua competência
normativa, indicar no âmbito dessa Corte, o órgão fracionário (Câmara, Turma, Seção,
v.g.) investido de atribuição para processar e julgar as referidas causas penais. (HC
72465/SP. Relator Min. Celso de Mello. DJU, 24.11.95)
EMENTA: A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou orientação no
sentido de que a submissão de Prefeitos Municipais e de ex-Prefeitos Municipais
(estes, na hipótese de infração cometida ao tempo em que exerceram a Chefia do
Poder Executivo local) à competência de órgãos fracionários do Tribunal de Justiça
(Câmaras ou Turmas), nas ações penais originárias, não importa em transgressão
ao postulado do juiz natural, eis que, em tal situação, a jurisdição penal é exercida
originariamente pelo próprio órgão investido, ope constitutionis, do poder de julgar
26
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004
aqueles agentes públicos. – O preceito consubstanciado no art. 29, X, da Carta Política
não confere, por si só, ao Prefeito Municipal, o direito de ser julgado pelo Plenário
do Tribunal de Justiça – ou pelo respectivo Órgão Especial, onde houver – nas ações
penais originárias contra ele ajuizadas, podendo o Estado-membro, nos limites de sua
competência normativa, indicar, no âmbito dessa Corte Judiciária, o órgão fracionário
(Câmara, Turma, Seção, v.g.) investido de atribuição para processar e julgar as referidas
causas penais. (HC 73917/MG. Relator Min. Celso de Mello. DJU, 05.12.97)
EMENTA: CRIMINAL. JUSTIÇA FEDERAL. PRINCÍPIOS DO PROMOTOR
E DO JUIZ NATURAL E DA AMPLA DEFESA. Impossibilidade de apreciação do
alegado cerceamento de defesa, porquanto, ainda que houvesse ocorrido – o que não
restou demonstrado – teria resultado de inobservância a normas processuais de natureza
infraconstitucional, que, a teor da jurisprudência do STF, não rende ensejo ao recurso
extraordinário. Denúncia e sentença elaboradas por quem fora previamente legitimado a
atuar no feito, mediante designação de natureza genérica, fundada em critérios abstratos
e predeterminados, previstos em lei, hipótese em que não se pode ter por configurada
ofensa ao princípio consagrado no art. 5º, LIII, da Constituição. Recurso não conhecido.
(RE 255639/SC. Relator Min. Ilmar Galvão. DJU, 18.05.01)
EMENTA: Habeas Corpus. 2. Alegação de ofensa ao princípio do juiz natural e
incompetência do juízo para recebimento de denúncia. 3. Magistrado que, embora
promovido, prosseguiu no exercício de sua jurisdição, até assumir na nova comarca.
Inexistência de ilegalidade. 4. Habeas corpus indeferido. (HC 81036/SP. Relator Min.
Néri da Silveira. DJU, 06.09.01)
EMENTA: A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no
sentido de que se revela compatível com o preceito inscrito no art. 29, X, da
Constituição a norma local que designa, no âmbito do Tribunal de Justiça, o órgão colegiado investido de competência penal originária para processar e julgar
Prefeitos Municipais. Compete ao Tribunal de Justiça, mediante exercício do
poder de regulação normativa interna que lhe foi outorgado pela Carta Política, a
prerrogativa de dispor, em sede regimental, sobre as atribuições e o funcionamento
dos respectivos órgãos jurisdicionais (CF, art. 96, I, a). Precedentes. RECURSO
EXTRAORDINÁRIO – JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE – COMPETÊNCIA DO
VICE-PRESIDENTE DO TRIBUNAL A QUO. – A jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal já reconheceu que o ato de controle preliminar pertinente à admissibilidade
do recurso extraordinário também insere-se na esfera de competência monocrática do
Vice-Presidente do Tribunal inferior. A expressão ‘Presidente do Tribunal’ reveste-se
de sentido amplo, abrangendo todos os magistrados que, na condição de Presidente ou
de Vice-Presidente, compõem a estrutura orgânica incumbida da administração superior
de qualquer Tribunal. (AI 177313/MG. Relator Min. Celso de Mello. DJU, 17.05.96)
EMENTA: O RESPEITO AO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL – QUE SE IMPÕE
À OBSERVÂNCIA DOS ÓRGÃOS DO PODER JUDICIÁRIO – TRADUZ INDISPONÍVEL GARANTIA CONSTITUCIONAL OUTORGADA A QUALQUER ACUSADO, EM SEDE PENAL. – O Supremo Tribunal Federal qualifica-se como juiz natural
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27
dos membros do Congresso Nacional (RTJ 137/570 – RTJ 151/402), quaisquer que
sejam as infrações penais a eles imputadas (RTJ 33/590), mesmo que se cuide de simples
ilícitos contravencionais (RTJ 91/423) ou se trate de crimes sujeitos à competência dos
ramos especializados da Justiça da União (RTJ 63/1 – RTJ 166/785-786). Precedentes.
SOMENTE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, EM SUA CONDIÇÃO DE JUIZ
NATURAL DOS MEMBROS DO CONGRESSO NACIONAL, PODE RECEBER
DENÚNCIAS CONTRA ESTES FORMULADAS. – A decisão emanada de qualquer
outro Tribunal Judiciário, que implique recebimento de denúncia formulada contra
membro do Congresso Nacional, configura hipótese caracterizadora de usurpação da
competência penal originária desta Suprema Corte, revestindo-se, em conseqüência,
de nulidade, pois, no sistema jurídico brasileiro, somente o Supremo Tribunal Federal
dispõe dessa competência, considerada a sua qualificação constitucional como juiz natural de Deputados Federais e Senadores da República, nas hipóteses de ilícitos penais
comuns. (Rcl 1861/MA. Relator Min. Celso de Mello. DJU, 21.06.02)
EMENTA: HABEAS CORPUS – ALEGAÇÃO DE VÍCIO NA COMPOSIÇÃO DO
ÓRGÃO JULGADOR – INOCORRÊNCIA – LEI COMPLEMENTAR Nº 646/90 DO
ESTADO DE SÃO PAULO – CONSTITUCIONALIDADE DESSE ATO LEGISLATIVO LOCAL – LEGITIMIDADE DO QUADRO DE JUIZ DE DIREITO SUBSTITUTO EM SEGUNDO GRAU – RESPEITO AO POSTULADO DO JUIZ NATURAL
– PEDIDO INDEFERIDO. O sistema de substituição externa nos Tribunais Judiciários
constitui, no plano de nosso direito positivo, matéria sujeita ao domínio temático da
lei. Subordina-se, em conseqüência, ao princípio da reserva legal absoluta, cuja incidência afasta, por completo, a possibilidade de tratamento meramente regimental da
questão. Esse tema – cuja sedes materiae só pode ser a instância normativa da lei – não
comporta, e nem admite, em conseqüência, que se proceda, mediante simples norma
de extração regimental, a disciplina das convocações para substituição nos Tribunais
de Justiça estaduais. – O Estado de São Paulo adotou um sistema de substituição em
segunda instância que se ajusta, com plena fidelidade, ao modelo normativo consagrado
pela Carta Federal. Esse sistema, instituído mediante lei local (Lei Complementar nº
646/90), obedece a mandamento consubstanciado na Carta Política estadual que, além
de prever a criação de cargos de Juiz de Direito Substituto em Segundo Grau, dispõe
que a respectiva designação, sempre feita pelo Tribunal de Justiça, destinar-se-á, dentre
outras funções específicas, a viabilizar a substituição de membros dos Tribunais paulistas. – O procedimento de substituição dos Desembargadores no Tribunal de Justiça
do Estado de São Paulo, mediante convocação de Juízes de Direito efetuada com
fundamento na Lei Complementar estadual nº 646/90, evidencia-se compatível com
os postulados constitucionais inscritos no art. 96, II, b e d, da Carta Federal, e revela-se plenamente convivente com o princípio fundamental do juiz natural. Com isso,
resta descaracterizada a alegação de nulidade do julgamento efetuado pelo Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo, com a participação de Juiz de Direito Substituto em
Segundo Grau, por evidente inocorrência do vício de composição do órgão julgador.”
(HC 69601/SP. Relator Min. Celso de Mello. DJU, 18.12.92)
4. Princípio do juiz natural no direito constitucional
28
brasileiro
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positivo
No Direito Constitucional positivo, à exceção da Carta Política outorgada de 1937, todas as constituições brasileiras contemplaram o princípio
do juiz natural nos termos seguintes:
a) Constituição Imperial de 25.03.1824:
“Art. 179 – A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros,
que tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade, é garantida pela
Constituição do Império, pela seguinte maneira:
XI Ninguém será sentenciado senão pela autoridade competente, por virtude de lei
anterior, e na forma por ela prescrita.
XVII À exceção das causas que por sua natureza pertencem a juízos particulares,
na conformidade das leis, não haverá foro privilegiado, nem comissões especiais nas
causas cíveis e crimes.”
b) Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de
24.02.1891:
“Art. 72 – A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no país
a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à
propriedade, nos termos seguintes:
§ 15. Ninguém será sentenciado senão pela autoridade competente, em virtude de
lei anterior e na forma por ela regulada.
§ 23. À exceção das causas que, por sua natureza, pertencem a juízos especiais,
não haverá foro privilegiado.”
c) Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de
16.07.34:
“Art. 113 – A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no país
a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança
individual e à propriedade, nos termos seguintes:
25 Não haverá foro privilegiado nem tribunais de exceção; admite-se, porém, juízos
especiais em razão da natureza das causas.
26 Ninguém será processado, nem sentenciado senão pela autoridade competente,
em virtude de lei anterior ao fato, e na forma por ela prescrita.”
d) Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18.09.46:
“Art. 141 – A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança
individual e à propriedade, nos termos seguintes:
§ 26 Não haverá foro privilegiado nem juízes e tribunais de exceção.
§ 27 Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente
e na forma de lei anterior.”
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004
29
e) Constituição do Brasil, de 24.01.67:
“Art. 150 – A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e
à propriedade, nos termos seguintes:
§ 15 – A lei assegurará aos acusados ampla defesa, com os recursos a ela inerentes.
Não haverá foro privilegiado nem tribunais de exceção.”
f) Emenda Constitucional nº 1, de 17.10.69:
“ Art. 153 – A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e
à propriedade, nos termos seguintes:
§ 15 – A lei assegurará aos acusados ampla defesa, com os recursos a ela inerentes.
Não haverá foro privilegiado nem tribunais de exceção.” g) Constituição da República Federativa do Brasil, de 05.10.88:
“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida,
à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXXVII – não haverá juízo ou tribunal de exceção;
LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;”
5. Juiz natural e a formação do litisconsórcio
Na formação do litisconsórcio facultativo posterior à distribuição da
demanda, pode ocorrer importante questão processual atinente ao juiz
natural. Isso acontece quando proferida decisão liminar favorável à
parte autora. Nesta hipótese, o pedido de ingresso de terceiro no feito,
como litisconsorte, após a concessão de medida cautelar, oportunizaria
a escolha do juízo ao seu talante, burlando aquele princípio. Sobre tal
circunstância, oportuno é o escólio do ilustre professor Sérgio Gilberto
Porto:
“Posto isso e tendo a exata compreensão daquilo que representa o litisconsórcio
facultativo-ulterior (seja unitário ou não), uma vez concedida liminar em determinado feito,
a partir deste momento – embora não fosse originalmente, em face do sistema adotado –
obrigatória torna-se a recusa na formação de qualquer litisconsórcio, pena de violação
do juízo natural, muito embora presentes qualquer das hipóteses do art. 46 do CPC.”30
Seguindo a mesma trilha são as observações de Juliano Spagnolo,
anteriormente citado:
Litisconsórcio: noções e recusabilidade por violação do juízo natural. Revista AJURIS, v. 60, mar.1994,
p. 41.
30
30
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004
“Ocorria que poderiam ser distribuídas a diversos juízos ações versando sobre o
mesmo objeto, propostas por autores distintos, todas com pedido de liminar. Quando
a primeira delas tivesse a sua liminar deferida, os demais autores desistiam de suas
ações e reiteravam o pedido em litisconsórcio com o autor que obteve a concessão
de sua liminar. Assim, havia a possibilidade, totalmente inconstitucional, da parte
‘aproveitar-se’ da liminar já concedida, uma vez que o magistrado poderia acolher o
pedido e estendê-lo ao litisconsorte.”31
Com efeito, tal comportamento deve ser sancionado com a aplicação
da pena de litigância de má-fé.
6. Princípio do juiz natural e os “mutirões” de julgamentos
Tribunais
nos
Preocupados com a efetividade da prestação jurisdicional, muitos
Tribunais têm criado mutirões para proferir julgamento em processos
pendentes de solução e armazenados nos escaninhos de gabinetes de
seus magistrados.
Conquanto seja louvável, essa iniciativa deve respeitar o princípio
do juiz natural, mediante autorização legislativa específica. Assim
como os Tribunais somente podem ser criados por lei, a convocação de
magistrados de primeiro grau para prestar-lhes auxílio, nos chamados
mutirões, também deverá observar o mesmo procedimento, isto é, por
meio de lei. (Art. 96, II, da CF)
A propósito dessa matéria, a Lei nº 9.788, de 19.02. 99, autorizou
aos Tribunais Regionais Federais a convocação de juízes federais para
prestar-lhes auxílio, verbis:
“Art. 4º. Os Tribunais Regionais Federais poderão, em caráter excepcional e quando
o acúmulo de serviço o exigir, convocar Juízes Federais ou Juízes Federais Substitutos,
em número equivalente ao de juízes de cada Tribunal, para auxiliar em Segundo Grau,
nos termos de resolução a ser editada pelo Conselho da Justiça Federal”.
Conseqüentemente, não podem os Tribunais, por meio de simples
resoluções administrativas, sem autorização legislativa, mesmo quando
aprovadas pelo seu órgão máximo, convocar magistrados de primeiro
grau para atuar em mutirões de julgamentos de processos de sua competência, pena malferimento do princípio do juiz natural, expressamente
31
SPAGNOLO, Juliano, op. cit., p. 160.
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004
31
consagrado na Constituição da República (Art. 5º, LIII).
Essa, aliás, é a posição firmada pelo Colendo Supremo Tribunal Federal, como se pode ver na ementa expressa nos seguintes termos:
“EMENTA: - O sistema de substituição externa nos Tribunais Judiciários constitui, no plano de nosso direito positivo, matéria sujeita ao domínio temático da lei.
Subordina-se, em conseqüência, ao princípio da reserva legal absoluta, cuja incidência
afasta, por completo, a possibilidade de tratamento meramente regimental da questão. Esse tema – cuja sedes materiae só pode ser a instância normativa da lei – não
comporta, e nem admite, em conseqüência, que se proceda, mediante simples norma
de extração regimental, à disciplina das convocações para substituição nos Tribunais de
Justiça Estaduais. Precedente do STF. Essa orientação, firmada pelo Pleno do Supremo
Tribunal Federal, prestigia o postulado do juiz natural, cuja proclamação deriva de
expressa referência contida na Lei Fundamental da República (art. 5º, LIII). O princípio
da naturalidade do Juízo – que traduz significativa conquista do processo penal liberal,
essencialmente fundado em bases democráticas – atua como fator de limitação dos
poderes persecutórios do Estado e representa importante garantia de imparcialidade
dos juízes e tribunais.” (HC 696015/SP. Relator Min. Celso de Mello. DJ, 18.12.92)
Assim, diante de tais premissas, os julgamentos de processos acumulados nos Tribunais, por meio da convocação de juízes de primeiro
grau, hão de satisfazer a exigência constitucional do juiz natural, pena
de nulidade.
Outrossim, os “mutirões” nos juízos de primeiro grau, com a redistribuição de processos entre juízes de mesma hierarquia, não ofendem o
princípio do juiz natural, consoante já decidiu o Colendo Superior Tribunal de Justiça, no Habeas Corpus nº 10.341-SP, Relator Min. Gilson
Dipp, verbis: “É descabida a alegação de violação ao Princípio do Juiz
Natural pela redistribuição de processo, se a mesma foi realizada em
razão do acúmulo de processos na vara de origem e feita a outra com a
mesma competência material.” (DJU, ed. 22.11. 99)
7. Juiz natural e foro especializado em razão da matéria ou
por prerrogativa de função
Sobre o foro especial, o Professor Rui Portanova ensina:
“A legislação brasileira, tradicionalmente, vem instituindo justiças especializadas como Federal, do Trabalho, Eleitoral e Militar.
Permite-se, ainda, a intervenção do Poder Legislativo em casos específicos previamente contemplados na Constituição, tanto para processar e julgar (como no caso de
impeachment) como para fazer depender de licença ação contra parlamentar.
Encontra-se na doutrina brasileira dissenso sobre se alguns fatos estariam ou não
32
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004
englobados na vasta gama de garantias abrangidas pelo princípio constitucional que
impede tribunais de exceção.
Por exemplo, quando a Constituição cria tribunais especializados ou modifica
competência antes atribuída à justiça ordinária, ressurgem discussões. Ada Pellegrini
Grinover (1983, p. 23) faz distinção: não viola o juiz natural ‘meras modificações da
competência entre os diversos órgãos da justiça comum’. Contudo, seria afrontoso ao
princípio modificar a competência de casos pendentes iniciados na justiça comum em
favor da justiça especializada criada pela Constituição. Nessa hipótese, o novo órgão
judiciário só atenderia casos futuros. Com apoio em doutrina estrangeira, justifica a
posição entendendo que o princípio do juiz natural limita a esfera do cânone (tempus
regit actum) segundo o qual a lei do processo consiste nas normas vigentes no momento
em que se procede.”32
De fato, a discussão tem pertinência e oportunidade em face da edição
da Lei nº 10.628, de 24 de dezembro de 2002, que alterou a redação do
art. 84 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de
Processo Penal), a qual ficou expressa nos seguintes termos:
“Art. 84. A competência pela prerrogativa de função é do Supremo Tribunal Federal,
do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, relativamente às pessoas que devam responder
perante eles por crimes comuns e de responsabilidade.
§ 1º A competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados
após a cessação do exercício da função pública.
§ 2º A ação de improbidade, de que trata a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992,
será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o
funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício
de função pública, observado o disposto no § 1º.”
Em decorrência dessa alteração legislativa, todas as demandas referentes a casos de improbidade administrativa passaram para a competência dos tribunais, conforme a posição hierárquica da autoridade
responsável pela infração, o que não ocorria anteriormente à edição
da Lei nº 10.628/2002, circunstância que tem ensejado exacerbadas
críticas da doutrina autorizada.
8. Conclusão
De todo o exposto, vê-se que todos os povos civilizados acolheram
32
PORTANOVA, Rui, op. cit., p. 67.
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004
33
o princípio do juiz natural em suas leis maiores. Assim, é válido afirmar
que o princípio do juiz natural é inafastável a uma prestação jurisdicional
independente e imparcial, sob a égide do devido processo legal.
Conseqüentemente, todos os operadores do direito – magistrados,
membros do ministério público e advogados – têm o dever indeclinável
de zelar pelo respeito ao princípio do juiz natural, como instrumento
fundamental para a realização da Justiça e aperfeiçoamento da democracia, que é o bem maior da humanidade, em consonância com a evolução
das ciências jurídicas e do direito constitucional positivo das sociedades
organizadas, ou bem ordenadas, nas palavras de John Rawls.
9. Bibliografia
CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e competência: exposição didática. 2.ed. rev. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 1983.
COUTURE, Eduardo J. Introdução ao estudo do direito processual civil.
3.ed. Rio de Janeiro: José Konfino, s/d. GRINOVER, Ada Pellegrini. O princípio do juiz natural e sua dupla
garantia. Revista de Processo, v. 29, jan-mar-1983.
LONGO, Luís Antônio. As garantias do cidadão no processo civil: relações entre constituição e processo. Adriane Donadel ... [et. al]; org.
Sérgio Gilberto Porto. – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. São
Paulo: Saraiva, 1976.
NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição
Federal. 7.ed. rev. e atual. com as Leis 10.352/2001 e 10.358/2001
– São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 4.ed. – Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2001.
PORTO, Sérgio Gilberto. Litisconsórcio: noções e recusabilidade da formação por violação do juízo natural. Revista AJURIS, v. 60, mar-1994.
SPAGNOLO, Juliano. As garantias do cidadão no processo civil: relações entre constituição e processo. Adriane Donadel ... [et al]; org.
Sérgio Gilberto Porto. – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
34
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004
O exercício do poder de polícia e o prazo prescritivo
para a aplicação da sanção administrativa
depois da Lei nº 9.873/991 2
*Marga Barth Tessler
Sumário. Introdução. 1 - A segurança jurídica e a prescritibilidade das
pretensões, segundo a doutrina. 2 - A jurisprudência e a prescrição
da pena administrativa. 2.1 - Aplicando a prescrição qüinqüenal.
2.2 - Aplicando a prescrição do Código Civil. 3 - O ato convocatório
do indiciado. 3.1 - O ato inequívoco. 4 - O processo administrativo
e o devido processo legal. 4.1 - Fixação de prazo em Circular. 4.2
- O devido processo legal e o indeferimento de provas no processo
administrativo. 4.3 - O devido processo legal e a atuação conjunta
do Bacen/Receita/Decex nos processos administrativos cambiais.
Referências Bibliográficas.
Introdução
O termo “prescrição administrativa” designa, de um lado, a perda
do prazo para recorrer de decisão administrativa, ou a perda do prazo
para que a Administração reveja seus atos, ou a perda do prazo para a
aplicação de penalidades administrativas.
* Desembargadora Federal do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
1
Texto-base para o encontro promovido pelo Banco Central do Brasil, Brasília, maio de 2004. A Desa.
Federal Marga Tessler foi Procuradora do BACEN de 1976 a fevereiro de 1988.
2
A Lei 9.873/99 convalidou a Medida provisória 1.859-16, de 24.09.99. Pergunta-se, a Medida Provisória
seria veículo adequado para estabelecer “segurança das relações jurídicas”? A relevância jurídica e a urgência
passam ao largo da Mensagem 471/98.
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35
A Lei 9.873, de 23 de novembro de 1999,3 estabeleceu, no artigo 1º,
o prazo de prescrição de cinco anos para a Administração Pública, no
exercício do poder de polícia, instaurar o processo administrativo com
o objetivo de apurar infração à legislação em vigor, contados da data da
prática do ato, ou no caso de infração permanente ou continuada, do dia
em que tiver cessado. No § 1º da Lei, que comentamos, está disposto
que a prescrição incide no procedimento administrativo paralisado por
mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho.4 Estabelece a
lei o arquivamento de ofício dos autos mediante requerimento da parte
interessada, advertindo que tal se dá sem prejuízo da apuração da responsabilidade funcional decorrente da paralisação,5 se for o caso. O § 2º
dispõe que, se o fato objeto da ação punitiva da Administração também
constituir crime, a prescrição reger-se-á pelo prazo previsto na lei penal.
Chamo atenção para a existência do § 5º do artigo 37 da Constituição
Federal de 1988, “ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento”.
Tais ações não se submetem aos prazos de prescrição em comento.
Segundo o artigo 2º da prefalada Lei 9.873/99, constituem causas de
interrupção da prescrição I) a citação do indiciado ou acusado, inclusive, pela via editalícia; II) por qualquer “ato inequívoco”6 que importe
apuração do fato; III) pela decisão condenatória recorrível. A prescrição
(art. 3º) é suspensa durante a vigência dos compromissos de cessação
ou de desempenho, previstos respectivamente nos artigos 53 e 58 da
Lei 8.884/947– (Cade); do termo de compromisso de que trata o § 5º do
A Lei 9.873/99 foi editada em observância ao previsto no artigo 37, § 5º, da Constituição Federal de 1988:
A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que
causem prejuízo ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento.
4
Sugestão de pesquisa: Em que casos já se deu o “arquivamento de ofício”.
5
Lei 4.717/65, artigo 21, Ação Popular, prazo prescricional para a propositura da Ação Popular: 05 anos.
Lei 8.429/92 Lei de Improbidade Administrativa tem a prescrição regulada pelo artigo 23 (até 05 anos após
o término do mandato ou no prazo da falta disciplinar).
6
Enciclopédia Saraiva de Direito, 1987. – Ato Inequívoco: é o ato jurídico praticado de modo claro e que
se mostra perfeitamente indicativo do desejo efetivo do agente. Não está sujeito à impugnação por ser certo
o seu objeto e pela insofismável manifestação de vontade nele expressa. Distinção Pontiana – Ato jurídico/
fato jurídico.
7
Art. 53. Em qualquer fase do processo administrativo poderá ser celebrado, pelo Cade ou pela SDE ad
referendum do Cade, compromisso de cessação de prática sob investigação, que não importará confissão
quanto à matéria de fato, nem reconhecimento de ilicitude da conduta analisada.
Dec. 20.910/32 – 05 anos prescrição fazendária;
Lei 1.533/51, artigo 18 – o direito de requerer mandado de segurança – 120 dias da ciência do ato;
Lei 4.717/65, artigo 21 – 05 anos para prescrever;
3
36
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artigo 11 da Lei 6.385/76 – (valores mobiliários), com a redação dada
pela Lei 9.457/97.8
Note-se que o disposto na lei sob comento, no que se refere ao âmbito de aplicação, não se aplica às infrações de natureza funcional9 e aos
processos e procedimentos de natureza tributária10 segundo o disposto
no artigo 5º da Lei 9.873/99, excluídos também os poderes de polícia
estadual e municipal.
O artigo 4º, que tem suscitado polêmica, por ser retroativo, estabelece que “Ressalvadas as hipóteses de interrupção previstas no artigo 2º,
para as infrações ocorridas há mais de três anos, contados do dia 1º de
julho de 1998, a prescrição operará em dois anos, a partir dessa data”.
Na questão em referência, a Mensagem 471/98 pouco contribui para
esclarecer as razões do discrimen temporal, por outro lado, o artigo 4º,
segundo parte da doutrina, deve ser lido como não aplicável aos casos
já prescritos antes da edição da lei em comento.
Eis uma breve síntese dos principais dispositivos constantes da lei,
objeto do nosso estudo.
1 A segurança jurídica e a prescritibilidade das pretensões,11
segundo a doutrina
A Lei em comento envolve o debate sobre o princípio da segurança
jurídica12 e o princípio da prescritibilidade das pretensões.13 A consaLei 7.347/85 – Ação Civil Pública – interesses difusos ou coletivos – não há menção de prazo;
Lei 8.429/92 – Lei de Improbidade – até 05 anos do término do mandato.
Art. 58. O Plenário do Cade definirá compromissos de desempenho para os interessados que submetam
atos a exame na forma do art. 54, de modo a assegurar o cumprimento das condições estabelecidas no § 1º
do referido artigo.
8
Lei 6.385/76 dispõe sobre o Mercado de Valores Mobiliários, artigo 11 trata da imposição aos infratores
das penas de advertência, multa, suspensão, inabilitação, etc.
9
Às infrações de natureza funcional se aplica a Lei 8.112/90, art. 142, § 1º, Lei 9.784/99, artigo 54.
10
Às infrações de natureza tributária se aplica o artigo 174 do CTN, Dec. 70.235, de 06 de março de 1972.
11
O Código Civil de 2002 com relação ao prazo prescricional, nas hipóteses da reparação civil inovou
surpreendentemente pois reduziu os prazos, em especial no artigo 206, § 3º, inciso V: prescreve em três
anos a pretensão de reparação cível. O prazo do Código revogado era de 20 anos. Foi drástica a redução
e desconsiderou o Código do Consumidor, art. 27, 05 anos.
12
Preâmbulo da Constituição Federal de 1988 e artigo 5º, XXXVI, o direito adquirido o ato jurídico perfeito,
a coisa julgada. Couto e Silva, Almiro, RDA 204/21.
A segurança e a certeza são paradigmas do século passado, a questão está em movimento, precisamos hoje
conviver com a incerteza.
13
Art. 5º, LLVII, letra b, da Constituição Federal de 1988.
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37
gração do princípio da prescritibilidade repousa sobre o postulado da
segurança jurídica. É reconhecido em lição exemplar por Pontes de Miranda,14 referindo que a prescrição atinge a todas as pretensões e ações,
quer sejam direitos pessoais, reais, privados ou públicos. É a regra geral.
O excepcional é a imprescritibilidade, e a Constituição admite duas hipóteses, o crime de racismo e o de terrorismo, grupos armados civis ou
militares, (artigo 5º, XLII, XLIV, da CF/88). Conclui-se que a prescrição
é o princípio informador do sistema jurídico pátrio na matéria.
Hely Lopes Meirelles,15 emérito administrativista pátrio, inicialmente defendia a imprescritibilidade da pena administrativa, como vemos
em artigo mais distante no tempo de sua clássica obra, passou após a
considerá-la aplicável16 abandonando a teoria do “direito estrito” e da
imprescritibilidade passando a admitir o uso da analogia pois o princípio
é a prescritibilidade.
Odete Medauer17 salienta que o Direito “trabalha” a passagem do
tempo com critérios próprios e, já antes do advento da lei em comento,
leciona que “hoje vigora no ordenamento pátrio o princípio da prescritibilidade da pretensão punitiva da Administração.”
Cretella Júnior18 assevera que é insustentável a tese da imprescritibilidade da sanção administrativa, “a prescrição penal e a prescrição administrativa” são espécies de figura categorial “prescrição” que reponta
em vários ramos do direito, definindo-se genericamente como “a perda
do direito de punir em decorrência do tempo”. Ilícito, pena e prescrição
são institutos conexos, peculiares aos diferentes ramos do direito que
tratam da aplicação da pena. “No direito administrativo a prescrição é
MIRANDA, Pontes. Tratado de Direito Privado, v. 6, § 666, p. 127.
Ainda nos comentários ao CPC, Tomo III, pág. 513, “a regra jurídica que regula a prescrição é a regra
jurídica de direito material [...]”.
Para verificar as origens do instituto da prescrição, ver OST, François. O Tempo do Direito. Lisboa: Instituto
Piaget, 1999, p. 178. “Como é que, no exercício de sua missão, o Juiz articulará a inevitável retroatividade
das suas intervenções e o desejo legítimo de segurança jurídica?”
15
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 1996/589, p. 413. Prescrição da Pena Administrativa. In: Estudos e Pareceres de Direito Público, v. IX, 1986. 380-381.
16
MEIRELLES, Hely Lopes. Prescrição da Pena Administrativa. RT, 544/1984.
17
MEDAUER, Odete. Prescrição, Administração Pública. RT 642, abr. 1989, p. 82 et seq.
Ação Civil Pública – interesses transindividuais, interesses das gerações futuras, aspecto intergeracional,
às ações com estes objetivos não se aplica o prazo prescricional de 5 anos da Ação Popular e do Código
do Consumidor.
18
CRETELLA JÚNIOR, J. Revista Forense, v. 275, red. 1981, p. 5, prescrição da falta administrativa.
14
38
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fixada em dispositivo expresso constante do Estatuto a que se submete
o funcionário público [...]”. O autor critica o critério estatutário por fixar
a prescrição a partir da ciência do fato pela autoridade administrativa, já
que levaria “à tese abusiva da imprescritibilidade”.
Nelson Eisirik19 comenta especificamente a persecução administrativa
decorrente do poder de polícia, referindo que a possibilidade de sanção
não pode ser dotada do predicado de perenidade.
Sídio Rosa de Mesquita Júnior,20 nos albores da lei em comento,
referindo-se aos processos regidos pela Lei 8.884/94,21 diz que “o prazo
prescricional não foi extinto, ele é mantido para o caso de lentidão, ou
seja, quando a Administração pratica atos que impulsionam o processo,
mas não profere nenhum despacho decisório durante o período de cinco
anos”. Percebe influência da Lei 8.112/90 (artigo 142 que prevê 5 anos
para prescrição da infração disciplinar do servidor público).
Maria Sylvia Zanella Di Pietro22 adota a posição última de Hely Lopes Meirelles, fazendo a analogia com a prescrição do Decreto 20.910,23
EISIRIK, Nelson. Reforma das S.A. Lei do Mercado de Capitais, Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p.189.
MESQUITA JÚNIOR, Sídio Rosa de. A prescrição da Lei 8.884/94 com redação dada pela MP 1.708/98
(Lei 9.873/99). Procurador do Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE. Disponível em:
<http//www.ambito-juridico.com.br/ajde0025htm>. Acesso: em 23 abr. 2004.
21
Lei 8.884/94 – Lei do CADE.
22
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo Brasileiro. 12.ed. São Paulo: Atlas, 2000. 674
p., p. 487.
23
Dec-Lei 4.597, de 19 de agosto de 1942 – regula o Dec. 20.910/32, artigo 3º somente pode ser interrompida
uma vez e recomeça a correr pela metade do prazo.
24
BARROSO, Luis Roberto. A prescrição Administrativa no Direito Brasileiro, antes e depois da Lei
9.873/99. Revista Diálogo Jurídico. n. 4, jul. 2000. Disponível em: <http//www.direitopublico.com.br>.
Acesso em: 25 abr. 2004.
24
REsp nº 514885, SJT, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux. Possivelmente trata-se do caso que utilizou o parecer
do Prof. Barroso, o acórdão fundou-se na falta de prova pericial.
“RECURSO ESPECIAL – PROCESSO CIVIL E ADMINISTRATIVO – SONEGAÇÃO DE COBERTURA
CAMBIAL – ACÓRDÃO FUNDADO EM MATÉRIA FÁTICO – PROBATÓRIA – REEXAME – IMPOSSIBILIDADE – SÚMULA 07/STJ. 1. Revela-se evidente que o acolhimento das razões do BACEN, no
sentido de que a multa aplicada às empresas ora recorridas restou legítima e legal, demandaria o reexame
dos procedimentos administrativos que redundaram nas autuações para se aferir ou afastar a ocorrência
de sonegação de cobertura cambial. 2. Conseqüentemente, a análise do procedimento administrativo que
resultou na aplicação de multa por sonegação de cobertura cambial demanda o reexame de provas, o que
é vedado em face do óbice imposto pela Súmula 07 do Superior Tribunal de Justiça, de seguinte teor: ‘A
pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial.’ 3. Fundando-se o acórdão recorrido
na ilegitimidade e ilegalidade da sanção imposta pelo BACEN pela ausência de prova pericial a atestar que
o valor declarado nas guias de exportação era fraudulento, insindicável sua modificação pelo STJ (Súmula
07) 4. Concluindo o aresto recorrido que ‘não pode o BACEN, com base nos dados fornecidos por aquele
órgão, mediante mera comparação dos produtos exportados com outros produtos semelhantes, sem a realização de prova pericial que observe os requisitos da cientificidade, afirmar que o valor declarado nas guias de
exportação era fraudulento, configurando sonegação de cobertura cambial’ ressoa inequívoca a apreciação
19
20
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39
no prazo de 05 anos, no silêncio da lei, ocorre a prescrição contra a
pretensão punitiva da Administração.
Luis Roberto Barroso,24 24 em parecer envolvendo uma consulta em
matéria cambial (artigo 23 da Lei 4.131/6225), afasta a tese da aplicabilidade de prescrição vintenária do Código Civil, defendida pelo
BACEN, entende inconstitucional o artigo 4º da Lei em comento que
seria lei meramente declaratória a respeito do prazo de cinco anos, pois
“veio apenas declarar em caráter geral, o que já era a regra no direito
administrativo brasileiro”. Sobre a lei declaratória lembra da lição de
Plácido e Silva. Entende ser irrelevante não houvesse lei específica fixando o prazo de cinco anos, a prescrição já teria (no caso que examina
in concreto) ocorrido .
Dessa conclusão, diz que o artigo 4º da Lei 9.873/99 institui discriminação arbitrária violando destarte o artigo 5º, caput, da Constituição
Federal de 1988, observando, ainda, violação ao princípio da isonomia.26
Renato Sobrosa Cordeiro,27 em artigo que estudou a prescrição administrativa também antes da edição da lei em comento, reconhecia
que a prescrição é a regra no nosso sistema, e na identificação da regra
aplicável à lacuna que se verificava na legislação bancária, entende não
seja apropriado fazer a analogia com as infrações disciplinares, prefere
buscar paradigma nas normas fundadas no Poder de Polícia.28 Socorredo caso sub judice ao ângulo probatório, interditada a cognição ao E. STJ por expressa disposição da Súmula nº 07. 5. Deveras, consta do decisum atacado que a ‘parte autora justificou a aparente discrepância ao
argumento de que, diante da crescente recessão e da inadimplência no mercado interno, viu-se obrigada a
exportar mesmo a preços baixos justamente em função das regras do mercado, bem como que tinha matéria-prima em estoque e se tratava de sapatos simples.’ 6. Recurso especial não conhecido”.
25
Lei 4.131/62, Lei do Mercado de Capitais, não dispôs especificamente sobre prescrição.
26
Sobre o conflito de leis no tempo e a retroatividade, verificar a clássica polêmica entre Gabba (subjetivista)
e Roubier (objetivista) Limongi, França. A irretroatividade das leis e o Direito Adquirido. 5ª Ed. Saraiva,
1998. As alterações legislativas não podem prejudicar o direito das pessoas, entretanto, a lei poderá retroagir
se estiver expressa e não ferir direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. O direito adquirido é
o direito que tem origem em fato apto a produzi-lo em vista da lei em vigor. REsp 1.451/DF, Rel. Ministro
Moreira Alves, Ação Direta 493/DF, Pleno, Rel. Min. Moreira Alves.
27
CORDEIRO, Renato Sobrosa. Prescrição Administrativa. Rev. Direito Administrativo. n. 207, p. 105-120,
jan.-mar. 1997.
TRF-4ª Região, MS 2000.71.00.002907-9/RS-UFRGSX Zilah Milano e outros, a Portaria 474/87, alterava
situação funcional configurada há 12 anos.
28
Poder de Polícia em sentido amplo significa o poder estatal de criar limitações no interesse geral à liberdade
e à propriedade dos administrados.
40
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-se então da Lei 8.884/94, Lei do CADE, artigo 28. Com razão, pois
tanto o CADE quanto o BACEN são responsáveis pelo cumprimento dos
preceitos insculpidos nos artigos 170 e seguintes da ordem econômica,
tutelando além de interesses pessoais, interesses coletivos da maior importância, atuando no exercício do poder de polícia no campo econômico.
Caio Tácito, em março de 1995, em parecer encomendado por estabelecimento bancário, concluiu pela “ausência de responsabilidade
bancária por fraudes cambiais” (RDA 20/296), utilizando a regra do suprimento analógico para fixar a data do início do prazo com a “denúncia
formalizada pelo Banco Bamerindus S.A., pela Carta de 29 de agosto
de 1989 ao Bacen”.
José Luiz Bulhões Pedreira, em parecer de 1996, encomendado pela
Febraban, também pontificou sobre a fraude cambial, artigo 23 da Lei
4.131/62, e a imputação de responsabilidade às instituições financeiras
pela falsificação de documentos, pela falta de identificação do cliente, e
a declaração de falsa identidade no formulário do contrato assinado pelo
cliente e visado pelo Banco. No caso que examinou, o banco vendedor
do câmbio sequer possuía cartão de autógrafos dos representantes do
cliente, ou cadastro do cliente, e aceitou o pagamento mediante cheque
administrativo, descumprindo o Comunicado DECAN 192/80.
Marcelo Madureira Prates,29 em trabalho sobre a matéria, ao examinar
didaticamente a lei 9.873/99, destaca que foram criadas duas regras e
ficou uma omissão.
No que respeita ao período entre 1º.07.95 e 03.06.98, refere ter ocorrido um “limbo normativo”. Não se aplicam as regras prescricionais
às atividades administrativas não punitivas como àquelas de “retorno
das condutas à legalidade”. A regra geral estabelecida é a prescrição no
prazo de 05 anos para a Administração apurar a infração. Nos processos
instaurados se ficarem paralisados por mais de três anos consuma-se a
prescrição. No caso de um mesmo fato constituir também crime, a prescrição rege-se pelo previsto na lei penal, 30 mas a lei penal só se aplica
ao prazo, no mais são as regras do direito administrativo. Com referência
PRATES, Marcelo Madureira, Procurador do Banco Central do Brasil, Brasília. Subprocurador Chefe,
Jornada de Estudos Jurídicos, 24 de maio de 2004.
30
Artigo 109, III, do Código Penal.
29
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41
ao § 4º, é regra excepcional, vocacionada a solucionar as questões fáticas relacionadas com o reconhecimento normativo da prescrição, sendo
razoável no caso a sua aplicação retroativa de forma excepcional. Para
o citado doutrinador não parece essencial, para o efeito de interromper
a prescrição, a ciência do suposto infrator, o conhecimento só se daria
com a citação/notificação, obrigatoriamente.
Concluindo, a doutrina, embora se alinhe com a tese da prescritibilidade da pena administrativa, não é unânime no que respeita à busca da
analogia, antes da lei em comento. Após sua edição, diverge quanto a
sua melhor interpretação.
2 A jurisprudência e a prescrição da pena administrativa
A jurisprudência, de longa data, acolhe a tese da prescrição da pena
administrativa. Sempre citado nos estudos, a propósito, o voto do Ministro
Moreira Alves no RE 80.913, julgado em 1977, (RTJ 84/193), na mesma
linha, o voto no RE 80.913, Rel. Ministro Cunha Peixoto. (RTJ 84/193)
Note-se que são precedentes que aplicam o Dec. 20.910/32, e decidem demandas envolvendo pretensões deduzidas por pensionistas ou
servidores. Para dar conta da inexorabilidade do prazo qüinqüenal, o
Judiciário construiu a teoria da “prescrição do fundo do direito”.31 Em
se tratando de prestações sucessivas, prescrevem as parcelas anteriores
ao qüinqüídio e não o fundo do direito (artigos 1º e 3º do Dec. 20.910).
RE 102.071 RTJ117/1326, RE 99.544, RTJ 117/1326 e 1327 constituem
precedentes.
De início, a prescrição introduzida pelo Dec. 20.910/32 podia ser
invocada apenas pelos entes públicos e constituía a regra em favor
de todas as fazendas. A hipótese foi prestigiada pela Súmula 107 do
Tribunal Federal de Recursos: “A ação de cobrança de crédito previdenciário contra a Fazenda Pública está sujeita à prescrição qüinqüenal
estabelecida no Dec. 20.910/32”.
No RE 92.897-1-SP (RDA 142/88 e RE 96798, RDA 153/119), vemos
refinados exemplos de aplicação da prescrição na aludida hipótese.
A jurisprudência, contudo, acompanhando a doutrina, passou como
vimos a rechaçar a hipótese de deixar a Administração sem limites
31
Dec-Lei 4.597/42, regulamenta a aplicação do Dec. 20.910/32.
42
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004
temporais para punir os servidores e demais hipóteses de ilícito administrativo, são exemplos o julgado do Supremo Tribunal Federal no
MS 20.069, Rel. Min. Moreira Alves, in RDA 135/78, “Em matéria de
prescrição em nosso sistema jurídico inclusive no terreno do direito
disciplinar, não há que se falar em jus singolare, uma vez que a regra é
a da prescritibilidade”.
No extinto Tribunal Federal de Recursos, o Rel. Ministro Washington
Bolívar, na Remessa ex officio 88.333, RDA 156/169, “O poder de punir
disciplinarmente os inscritos no quadro da Ordem dos Advogados do
Brasil não é perpétuo, extingue-se com o decurso do tempo... É evidente
que repugna ao direito a imprescritibilidade da pena disciplinar”.
No que respeita à prescrição em questões que refogem ao controle
administrativo disciplinar, mais especificamente, questões que se enquadram no exercício do Poder de Polícia da Administração, recolhemos, na
jurisprudência, precedentes que equiparam a temática ao direito tributário,
são exemplos:
2.1 Aplicando a prescrição qüinqüenal
No TRF-4ªRegião, na AC nº 182465, Rel. convocado Antônio Albino
Ramos de Oliveira, 4ª Turma, DJU 20.01.2001, com a seguinte ementa:
“Penalidade administrativa imposta pelo BACEN no exercício do poder de polícia.
Prescrição. Inaplicabilidade das normas de direito penal – multa meramente administrativa que reverte aos cofres públicos. Aplicação extensiva da prescrição qüinqüenal
do CTN. Só se aplicam, por simetria as regras de prescrição penal a infrações administrativas quando estas também construírem infrações penais.”
No sentido de fazer analogia com o Direito Penal, no TRF-4ª Região, AC 315799, 3ª Turma, Rel. convocada Taís Schilling Ferraz, DJ
06.06.2002:
“Multa Administrativa, exportação, valor inferior preço de mercado. Aplicação
multa. Prova documental. Fraude. Câmbio. Inaplicabilidade. Prescrição qüinqüenal.
Código Tributário Nacional - CTN. Inexistência natureza tributária. Aplicação igualdade. Prazo. Prescrição. Crime. Evasão de divisas. Motivo infração administrativa.
Caracterização crime em tese.”
Ainda do TRF-4ª Região, AC 402531, 3ª Turma, DJ 17.04.2002, Rel.
convocada Taís Schilling Ferraz, afastando a prescrição civilista:
“Execução Fiscal. Superintendência Nacional de Abastecimento – SUNAB. Multa.
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004
43
Infração administrativa. Prescrição. Incidência prescrição qüinqüenal. Cobrança multa.
Origem poder de polícia. Inaplicabilidade Prescrição Direito Patrimonial. Relação
Débito. Sanção administrativa.”
2.2 Aplicando a prescrição do Código Civil
Do TRF-4ª Região, AC 277251, 4ª Turma, DJ 10.01.2001, Rel. convocado Alcides Vetorazzi:
“Administrativo. Comércio exterior. Evasão de divisas. Multa. Dec. 23.258/33,
artigo 3º. Prescrição. Inocorrência. Ilegitimidade passiva. Indemonstrada. Interpretação
não elidida. Multa mantida. Prescreve em vinte anos o direito de o BACEN cobrar
multa administrativa por infração cambial, art. 177 do Código Civil.”
Percebe-se que a jurisprudência, linhas gerais, reconhece a prescrição, a divergência fica por conta da regra aplicável para a solução, em
se tratando de multa em decorrência do exercício do poder de polícia.
Com efeito, pela leitura de Mensagem 471 de 1998, que encaminhou
o texto legal que comentamos, resta claro que foi editado para “promover a estabilidade das relações jurídicas” apoiado na jurisprudência
e na doutrina nacionais, que já reconhecia a incidência da prescrição
qüinqüenal sobre atos nulos da Administração, aplicando inicialmente
por analogia o Dec. 20.910/32. Sobre o parâmetro a ser utilizado sempre
houve divergência. Não há consenso na jurisprudência, pode-se dizer que
predomina a tese da prescrição qüinqüenal, por analogia com o direito
tributário ou disciplinar.
3 O ato convocatório do indiciado
A Lei 9.873/99 diz que a “citação”32 do indiciado ou acusado, inclusive por meio de edital, constitui causa interruptiva da prescrição. O que
se deve levar em consideração é que no processo administrativo não há
“citação”, e sim notificação ou comunicação formalizada ao acusado.
(artigo 26 da Lei 9.784/99)
Houve mero equívoco na designação do ato convocatório ao indiciado,
o que evidentemente não prejudica a regra estabelecida, tratando-se de
providência fundamental do dever de submeter o interessado ao “devido
processo legal”, veja-se o disposto no artigo 26 da Lei 9.784/99, que aqui
32
33
Art. 2º da Lei 9.873/99.
Fato administrativo (há que se verificar na doutrina a distinção entre ato e fato administrativo).
44
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004
se aplica.
3.1 O ato inequívoco
O item II do artigo 2º prevê com idêntico efeito, “qualquer ato inequívoco que importe apuração do fato”.
Ato inequívoco é ato que não deixa dúvida. Mesquita Júnior, no texto
já citado, entende que “difícil é a interpretação do art. 2º, inciso II”, pois
depende de prévio critério para saber o que é ato inequívoco, “existem
atos que visam unicamente à organização processual, ou implementação
de uma decisão tomada em data anterior”33 daí entende o autor difícil
uma solução.
Nelson Eisirik sustenta que “o único ato inequívoco de apuração do
ilícito é a notificação do indiciado de instauração do inquérito administrativo”.
Com a vênia dos doutos ensinamentos, não é assim. A solução deve
ser sistemática e passar pelo exame dos princípios34 que regem a conduta
administrativa. O artigo 37 da Constituição Federal de 1988 elenca como
princípios a legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Não pode ser esquecida a Lei 9.784/99, que regula as “normas
básicas” sobre o processo administrativo.
Considerando, pois, os princípios da publicidade, da legalidade e da
eficiência, mais ainda o subprincípio do formalismo moderado, e os subprincípios da oficialidade e da busca da verdade material, todos informadores
da atividade sancionatória da administração pública em qualquer área de
atuação (BACEN, CADE, IBAMA, ANVISA, etc.), pode-se afirmar que:
1) “Ato inequívoco de apuração dos fatos” deve ser sempre avaliado em
concreto; 2) Em tese, pode-se avançar e dizer que é qualquer ato de ofício
(princípio da oficialidade) que seja comunicado ao interessado ou indiciaFREITAS, Juarez. A Interpretação Sistemática do Direito. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 80. “A
interpretação sistemática deve ser entendida como uma operação que consiste em atribuir, topicamente,
a melhor significação, dentre várias possíveis, aos princípios, às normas estritas (ou regras) e aos valores
jurídicos, hierarquizando-os num todo aberto, fixando-lhes o alcance e superando antinomias em sentido
amplo, tendo em vista bem solucionar os casos sob apreciação”.
35
Artigo 66 da Lei 9.784/99.
36
Artigo 2º, IX, da Lei 9.784/99.
37
TRF-4ª Região, AC 2000.71.00.002907-9/RS, TRF-4ª Região, AMS 2000.71.0002908-0/RS, em
12.08.2002, 2ª Seção, examinou o artigo 54, Lei 9.784/99, em relação aos servidores públicos que perceberam
por longa data, até o Parecer AGU 203, “Exercício da pretensão de anular pelo Parecer AGU 203/99, não
são ato inequívoco e não interrompem a prescrição”.
34
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004
45
do (princípio da publicidade)35 por via epistolar ou outra (edital ou até
mensagem eletrônica dependendo das práticas usuais da operação do
mercado, ou próprias da atividade princípio do formalismo moderado)36
que solicita informação, explicação, providências, documentos, exibição
de pessoa, coisa, amostra, produto (princípio da verdade material em
relação ao objeto da incidência do poder de polícia), pois é inequívoco
que a autoridade está apurando os fatos. O “ato inequívoco” pode ocorrer
mesmo antes da instauração do processo administrativo. Dão-se, para
a tomada de decisão prévia, averiguatórias, sendo aplicável o artigo 29
da Lei 9.784/99.
Note-se que fica afastado o mero monitoramento de atividades que
não é comunicado ao interessado, ficam afastadas diligências internas
do serviço público,37 oitiva de denunciantes ou informantes ao órgão,
denúncias anônimas, etc.
Afastam-se tais atos para os efeitos interruptivos da prescrição, pois
não prestigiam os princípios do devido processo legal e do contraditório,
já que o possivelmente atingido pelo ato investigativo ainda não tomou
conhecimento do mesmo.
Não se quer dizer que não pode ser feita investigação reservada, só
que não tem o condão de interromper a prescrição.38 A sistemática de a
presidência do órgão de recursos administrativos,39 à vista do acúmulo
de processos, “prorrogar o prazo de prescrição por mais um ano” não
tem força para interromper o prazo prescricional na nova sistemática.
(artigo 49 da Lei 9.784/99)
Por outro lado, não há como entender que só possa ser a própria
“notificação do indiciado da instauração do inquérito”, posição de Eizirik, também não é por certo qualquer manifestação do órgão público,
posição de algumas autoridades. A comunicação de que tal ou qual operação ou contrato ou situação está sob exame, conferência, verificação
das autoridades é “ato inequívoco” que importa apuração de eventual
irregularidade. Assim, por exemplo (mencionado por Mesquita Júnior
A prática denominada no jargão profissional de “pescaria” não interrompe a prescrição e consiste em
solicitar hoje um documento, no mês seguinte outro, e mais adiante outro... sobre assuntos diversos.
39
Res. 1065.
40
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Sociedade, Estado e Administração Pública. Rio de Janeiro:
Topbooks, 1996.
38
46
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004
no texto referido), a determinação da autoridade para que se “expeçam
ofícios ao interessado” não é ato inequívoco, mas a expedição do ofício
efetivamente, a convocação do interessado para prestar esclarecimentos
ou tomar conhecimento, mesmo sem a prévia instauração do processo
administrativo já serve ao propósito de demonstrar que a autoridade
administrativa está investigando ou conferindo situações. A abertura
do processo administrativo é outro momento e poderá não ocorrer se a
autoridade, após exame dos elementos colhidos, se convencer da regularidade das operações ou situações sob exame.
A prescrição então poderá ser interrompida a cada “ato inequívoco
de apuração dos fatos”, pois, como já disse, tudo depende do caso
concreto. Há casos que demandam pesquisa de intrincadas operações
ou movimentações financeiras, em diversas praças e até no exterior,
evidente que a legislação precisou dar abertura para abrigar também
tais hipóteses, em um mundo com situações cada vez mais complexas
na sociedade pluralista.40 O dispositivo que tanta controvérsia instaurou
merece ser examinado à luz da lição de Zagrebelsky41 no sentido de que
estamos abandonando o conceito liberal de legalidade e nos aproximando
do conceito constitucional de legalidade, onde a predeterminação legislativa da tarefa do intérprete está fatalmente destinada a retroceder.42 A lei
é plástica e dúctil e cada caso deve ser moldado em concreto pelo intérprete, atento às finalidades do sistema em que está agindo. O intérprete
é o concretizador do sentido da lei no caso concreto. A lei em comento
precisa ser interpretada com atenção aos dispositivos da Lei 9.784/99,
lei do processo administrativo no âmbito da Administração Federal. A
Lei 9.784/99 acolheu a lição de Celso Antônio,43 percorrendo as fases
do procedimento a) fase de iniciativa ou propulsória; b) fase instrutória;
c) fase dispositiva; d) fase controladora; e) fase de comunicação, sendo
ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. 3.ed. Madrid: Trotta, 1999. p. 34 et seq. La Ley, la administración, los cidadanos. (Professor de Direito Constitucional na Universidade de Turin).
42
ZAGREBELSKY, Gustavo. En la actualidade, ya no vale como antes la distinción entre la protesión
de los particulares y de la Administración frente e la ley. Hoy seria problemático proponer de nuevo com
caracter general la doble regla que constituía el sentido del principio de legalidad, libertad del particular en
línea de principio, poder limitado del Estado sin línea de principio. Esta regla está ya erosionada en ambas
direciones, en direción con los particulares y con la Administración.
43
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2000.
p. 430-431.
41
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004
47
certo que, pelo artigo 38 da referida lei, o indiciado, ainda na fase instrutória, deve ter ciência da movimentação propulsória, sendo nesta fase,
ao dar-se ciência ao interessado, o momento da interrupção do curso da
prescrição. O ato inequívoco, pois, é o ato que solicita ou comunica ao
interessado que sua situação será ou está sendo examinada.
Prosseguindo no exame da lei em referência, os casos de suspensão
da prescrição referem-se a hipóteses em que o interessado firma compromissos de ajuste de conduta, situações previstas na Lei do CADE e na
Lei 6.385/76, penalidades impostas por infração a atividades relacionadas
ao mercado de valores mobiliários. A suspensão do curso da prescrição
é inerente à hipótese.
4 O processo administrativo e o devido processo legal
Não é preciso dizer que o BACEN atua em área absolutamente sensível
e relevante. Em quase todas as atuações, a prudência, cautela e o sigilo
são parâmetros impostergáveis. O sigilo, contudo, não é absoluto e não
se impõe ao próprio interessado. No processo administrativo por infração
a normas cambiais, por decorrência do artigo 5º, LV, da Constituição
Federal de 1988, aos litigantes e aos acusados em geral são assegurados
o contraditório e a ampla defesa com os meios e recurso a ela inerentes. 44
O processo administrativo foi muito prestigiado pela Lei 9.784/99, não
existe mais o “procedimento administrativo, há processo”.
Acrescento que a fundamentação das decisões administrativas e a
sua razoabilidade são decisivas para a sua validade. Não importa que o
princípio da motivação não esteja previsto no artigo 37 da Constituição
Federal de 1988, ele está no artigo 93, X, da Constituição Federal de
1988 e, se o Judiciário precisa motivar, o Executivo também precisa
fazê-lo, a exigência consta do artigo 1º, VII, da Lei 9.784/99. Motivar
é explicitar as razões, é dizer mais do que apenas mencionar o artigo tal
ou qual, mas dizer que o fato se enquadra no artigo tal pela seguinte
razão: dizendo brevemente a razão ou mencionando sucintamente o fato.
A questão é pacífica na aplicação de multas de trânsito veicular. REsp 556904, Rel. Min. Luiz Fux, DJ
19.12.2003; REsp 516443, 1ª Turma. Rel. Min. José Delgado, DJ 13.10.2003 (exempli­ficativamente).
No caso de existir a sistemática da formulação de dossiê, ou “pasta” antes do processo administrativo, o
conteúdo deve ser levado ao processo.
44
48
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004
O devido processo legal exige mais do que a motivação legal, nesse
sentido, AC 256921, 4ª Turma, DJ 09.08.2000, Rel. Zuudi Sakakihara.
O devido processo legal não se afeiçoa, por exemplo, às “cobranças
diretas” de multas, situação que comumente é realizada pela autoridade
administrativa. Não estou me referindo a cobranças, “débitos em conta”, modalidade freqüentemente contratada nos empréstimos bancários,
mas à cobrança de multas aplicadas por infrações cambiárias ou outras
infrações em geral. Deve ser aberto prévio processo administrativo com
ciência ao acusado e oportunidade de manifestação para a cobrança administrativa, se infrutífera, a solução é a execução fiscal inscrevendo-se
previamente o débito. No artigo 45 da Lei 9.784/99, há uma exceção à
prévia manifestação do interessado, ocorre quando há “caso de risco iminente”. A prévia intimação é a regra, mas em caso de “risco iminente” a
autoridade agirá sem comunicação prévia.
É a orientação da jurisprudência: TRF-4ª Região,AMS 2002.70.00.0607896/PR, 3ª Turma, DJ 26.11.2003, Rel. Thompson Flores Lenz. Ementa:
“Administrativo. Contratação de câmbio. Determinação do BACEN,
Lei 4.595/64. Aplicação de Multa, MP 1.734/99. Necessidade de prévio
processo administrativo. Sujeição ao executivo fiscal”.
Na mesma linha, TRF-4ª Região, Ag 2001.04.01.040785-0, 3ª Turma,
Rel. Maria de Fátima Labarrère, DJ 30.01.2002. Ementa: “Agravo de
Instrumento. Multa. Operações de Câmbio. Débito em conta: Não pode
o Banco Central do Brasil cobrar multa de forma sumária...”.
Ainda TRF-4ª Região, Agravo nº 63670, 3ª Turma, DJ 14.02.2001,
Marga Barth Tessler, Ementa: “Processual Civil. Operação de Câmbio.
Multa aplicada pelo Banco Central do Brasil. Débito em conta para cobrança. Abuso de Direito, quanto à forma de cobrança”.
TRF-4ª Região, AMS 66122, 3ª Turma, DJ 06.09.2000, Rel. Marga
Barth Tessler. Ementa: “Administrativo. Contratação de Câmbio. Determinação do BACEN. Lei 4.595/64. Aplicação de multa MP 1.734/99.
Necessidade de prévio processo administrativo. Sujeição ao Executivo
fiscal”.45
O Egrégio Superior Tribunal de Justiça já se manifestou no exato sentiAinda no TRF-4ª Região, AC 400062348, 4ª Turma, Aquisição de dólares sob falsa alegação. Prescrição
afastada, suspensão do processo Administrativo.
45
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004
49
do, REsp 379595, 2ª Turma, Rel. Ministra Eliana Calmon, DJ 12.05.2003.
Ementa: “Administrativo. Banco Central do Brasil. Contratação de Câmbio. Aplicação de multa, Lei 4.595/64 e MP 1.734/99, Circulares 2753/97
e 2747/97. Desconto direto de conta bancária. Ilegalidade”. No mesmo
sentido, o AMS 01193268, 4ª Turma, STJ, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ
08.10.98, “nulidade do ato de apropriação de recursos depositados por
instituição bancária, aplicação de penalidades”.
4.1 Fixação de prazo em Circular
No que se refere à fixação de prazo “de até 360 dias”, feito pela Circular 2747/97, a jurisprudência tem decisões que prestigiam a possibilidade do aludido comando ser fixado por Circular, mas há precedentes
que entendem que a fixação do prazo atenta contra os princípios do livre
exercício da atividade econômica e da ampla defesa, no último sentido
encontra-se o precedente do TRF-1ª Região, AMS 01000838545, 6ª
Turma, Rel. Paes Ribeiro, DJ 06.02.2002. Prestigiando a possibilidade de Circular fixar prazo e vendo que está abrigada no exercício do
poder de polícia, o precedente do TRF-1ª Região, AMS 1381461, Rel.
Airton de Carvalho, DJ 12.03.99 e do TRF-4ª Região, AMS 3ª Turma,
DJ 26.11.2003, Rel. Thompson Flores Lenz. Pessoalmente alinho-me
com o último precedente, pois46 o Poder Público, a autoridade cambial,
está agindo ao abrigo da Constituição Federal, artigo 21, VIII, da Constituição Federal de 1988, sendo que a política cambial, a administração
das reservas, não pode ficar submetida ao demorado processo legislativo,
liberta-se da legalidade estrita, a legalidade “liberal”.47
4.2 O devido processo legal e o indeferimento de provas
no processo administrativo
Na questão da produção de provas, o indiciado tem direito à sua produção.
O Egrégio Superior Tribunal de Justiça sempre prestigiou manifestações na área do Comércio Exterior
veiculadas por Resoluções ou outros comandos infralegais, por exemplo, as proibições para importação de
pneus usados, automóveis usados, etc.
47
Consulte-se a propósito Zagrebelsky: a predeterminação legislativa da tarefa do intérprete... .
Folha de São Paulo, 20.05.2004, “vai a 10% alíquota para trazer sardinha”, atuação da Comex.
48
Exemplificativamente proc. nº 1999.04.01.0917930/RS, AC 256921, AC 96.0004254-3, AC
2002.04.01.637-0/RS.
46
50
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004
Deve ser usado o postulado da razoabilidade pela autoridade cambiária. Não é também toda e qualquer prova que é de ser admitida. Consulte-se o artigo 38 da Lei 9.784/99 que dá respaldo, no § 2º, para recusar a
produção de provas impertinentes, desnecessárias ou protelatórias.
As provas inúteis ou impertinentes podem e devem ser indeferidas
motivadamente. A autoridade deve justificar as razões que a levam a
indeferir o solicitado. Cito o precedente AC 315799, TRF-4ª Região, DJ
06.00.2002, Rel. Taís Schilling Ferraz.
4.3 O devido processo legal e a atuação conjunta do BACEN/
RECEITA/DECEX nos processos administrativos cambiais
As questões envolvendo processos administrativos cambiais constituem ricos precedentes para discutir sobre o devido processo legal nos
processos administrativos instaurados por infração às regras do Decreto 23.258/33, artigo 3º, Lei 9.817/99, Lei 7.492/86, infrações lesivas
ao mercado de câmbio (exportação de mercadorias com preço formal
inferior ao preço real, sonegações de coberturas, ou aumento de preço
de mercadorias importadas, coberturas indevidas). É freqüente que os
indiciados recorram do Judiciário invocando cerceamento de defesa e
nulidade dos processos administrativos. Observo que tem sido aceita a
alegação de nulidade,48 contudo entendo s.m.j. que há equívoco em alguns posicionamentos que acolhem alegações de cerceamento de defesa
por supostas irregularidades na condução dos processos pelo BACEN.49
Em alguns casos, dá-se a atuação conjunta de dois ou mais órgãos,50
A propósito da atuação do Judiciário, a eventual liminar concedida para sustar processo administrativo é
causa interruptiva da prescrição.
50
Lei 5.025, 10 de junho de 1966, dispôs sobre o intercâmbio comercial com o exterior, cria o Conselho
Nacional de Comércio Exterior e dá outras providências, artigo 63, capítulo VI, artigo 66, fraudes, preços,
pesos, medidas, qualidade, classificação... .
51
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 12.ed. São Paulo: Atlas, 2000. p. 101.
Lei 5.025, artigo 44 – é a autoridade aduaneira que por ocasião do embarque faz a fiscalização material.
52
O grande problema que ocorreu verificou-se por ocasião da extinção da Cacex no Governo Collor e criação
do Decex que originou uma lacuna na legislação baixada que não previa prazo para defesa. Na ocasião,
o ágio no mercado paralelo era muito grande, o que consistia um apelo irresistível às práticas incorretas.
Diversas modalidades de irregularidades ocorriam, com fraude documental, de produto, tipo, qualidade, etc...
Há casos que a abertura do “container” já identificava a incorreção, por exemplo, constar botas de couro,
mas tratar-se de chinelos, não há necessidade de perícia para tão singela verificação.
49
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004
51
a Receita (autoridade fiscal e aduaneira), o DECEX (regula o comércio exterior), órgão vinculado ao Ministério da Fazenda, e o BACEN,
autarquia com a mesma filiação (autoridade cambial), todos com objetivos e finalidades comuns. Contudo, o BACEN só cuida do financeiro/
cambial, o BACEN é autoridade cambial. Considerando os princípios
da continuidade do serviço público51 e da colaboração, que tem aplicação especialmente no exercício da função pública decorrente do poder
de polícia, não podem ser separados os procedimentos efetuados pela
Receita, aduana e comércio exterior dos levados a efeito pelo BACEN.
Na Receita Federal, pela autoridade aduaneira são examinadas as guias
de exportação, colhidas amostras dos produtos, tudo com a presença do
exportador ou seu preposto, são efetuadas as análises ou não,52 tendo o
exportador a oportunidade de se manifestar, produzir defesa, apresentar
elementos que fundamentem a precificação constante da guia de exportação, podendo até retificá-la. É no âmbito do DECEX ou SISCOMEX
que a operação é desclassificada, considerada irregular, violadora da
legislação protetiva dos interesses cambiais brasileiros na proteção de
nossas divisas. O exportador ficava inerte, silente, não aproveitando as
oportunidades abertas. Remetido o expediente ao BACEN, para efeito
da irregularidade cambial, o interessado é novamente chamado para ciência e nova defesa. Com a vênia de quem pensa em contrário, não seria
apropriado o BACEN questionar a atuação do DECEX/SISCOMEX, a
presunção de legitimidade dos atos das autoridades públicas impede tal
postura.
Não cabe ao BACEN realizar investigação ou aduzir fundamentação
adicional à já produzida pela Receita, invadindo a esfera de competência da autoridade fazendária. O fundamento fático material repousa
na Receita que realizou a fiscalização, nas amostras dos produtos e
dos paradigmas ou tabelas, mostruários enfim, os elementos materiais
TRF-4ª Região, Agr. 3900, 3ª Turma, DJ 05.01.2000.
TRF-1ª Região, AMS 01000163843, DJ 20.11.2003.
O Supremo Tribunal Federal, interpretando a Lei 3.244/57, em caso de importação de automóveis com fraude
cambial prestigiou a multa de 100% do respectivo valor de mercado. Rec. Ext. 54109, rel. Min. Hermes
Lima, RDA nº 77/285, Ag. MS 21.295, Min. Candido Lobo, RDA vol. 77/286.
55
TRF-1ª Região, AMS 01000331465, DJ 13.11.2003. TRF-1ª Região, AMS 01000838545, DJ 06.02.2002.
56
TRF-1ª Região, AMS 01000172771, DJ 02.04.2003.
53
54
52
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comparativos que foram utilizados. Assim, não cabe ao BACEN fazer
descrição técnica dos produtos ou outra qualquer consideração adicional. É lógico que a empresa indiciada, em sua defesa, junto ao DECEX,
fará a prova pertinente. Não resta na sistemática que resumidamente foi
retratada ofensa ao artigo 3º, III, da Lei 9.784/99 “formular alegações e
apresentar documentos antes da decisão, os quais serão objeto de consideração pelo órgão competente”, cada autoridade atua em sua área de
competência. (artigo 13, III, Lei 9.784/99)
No peculiar processo administrativo, a fase instrutória fundamental
feriu-se junto ao DECEX, ou antes na Aduana, não havendo obrigatoriedade de se fazer uma segunda instrução probatória, mas apenas a de
aplicação da multa cambial. O problema que se enfrenta é o valor elevado
que atingem as multas.53 Há precedentes que não aplicam a multa aos
contratos anteriores.54
Ainda na questão da multa diária, foi considerada ofensiva ao artigo 170 da Constituição Federal de 1988.55 Em sentido contrário,56
entendendo cabíveis e não afrontosas aos princípios constitucionais. As
multas elevadas têm a finalidade de desistimular a prática da evasão de
divisas e, se não fossem elevadas, possivelmente não teriam o caráter
preventivo pretendido. Elas têm um escopo didático. Não se afasta,
contudo, considerações em torno da razoabilidade das multas e de saber
TRF-1ª Região, AMS 01381461, DJ 12.03.99.
TRF-1ª Região, REO 01059060, DJ 10.05.93.
59
TRF-3ªRegião, AMS 226822, Rel. Consuelo Yoshida, DJ 23.05.2003.
60
Poder de Polícia do Bacen.
61
Poder de Polícia do Decex, Siscomex, Receita Federal.
62
TRF-5ªRegião, EDAC 257081, Rel. Castro Meira, DJ 04.04.2003.
63
TRF-5ªRegião, AC 13287, DJ 20.11.92.
64
“Mercado de Câmbio” é o sistema formado por agentes econômicos inter-relacionados como figurantes em
trocas de moeda estrangeira por moeda nacional. Esses agentes são as empresas que vendem ou compram
moedas estrangeiras, as empresas que se dedicam à exploração do comércio dessas moedas e as empresas
de corretagem na atividade de aproximar comerciantes, vendedores e compradores. Figuram na condição
de vendedores os exportadores de bens e serviços e outros que recebem receitas ou remessas originárias do
exterior e os que possuem moeda em espécie (manual) ou recursos no exterior... São compradores os importadores de bens e serviços e os que adquirem moeda manual (por exemplo viajantes/turistas) ou promovem
transferências financeiras para o exterior. No mercado em referência a atividade consiste em comprar moeda
dos vendedores e revendê-las aos compradores com a finalidade de auferir lucro. É da União a competência
para administrar as reservas cambiais, artigo 21, VIII, e de legislar sobre a política cambial, art. 22, VII,
da Constituição Federal de 1988. Em vigor a Lei 4.595/64, e a legislação requerer a participação de banco
autorizado a operar em câmbio em todo e qualquer contrato. O artigo 23 da Lei 4.131/62 estabelece que o
banco e a corretora respondem pela identidade do cliente e correta classificação das informações, artigo 57
da Lei 4.595/64.
57
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se são “necessárias ao atendimento do interesse público” (art. 2º, VI, Lei
9.784/99). As multas têm o escopo de desestimular as práticas ilícitas.
Ante fundada suspeita de remessa irregular de divisas ao exterior,
é lícita, não configurando ofensa a direito líquido e certo, a exigência
do BACEN de prévia autorização para a contratação de operação de
câmbio.57 A guia póstuma configura mera irregularidade administrativa
não sendo suficiente para caracterizar fraude cambial,58 o precedente
afastou o crime, não a infração cambial.
Precedente exemplar dá a exata dimensão da atuação do BACEN,59
dizendo que os contratos de câmbio fundados em importações e exportações caracterizam-se por dois negócios jurídicos: o contrato de câmbio60 e a operação comercial subjacente.61 As operações cambiais são
autônomas das relações que lhe deram causa, sendo independentes os
negócios pactuados. A política cambial é questão de ordem pública, pois
visa ao controle da economia, à preservação das reservas cambiais e ao
equilíbrio da balança de pagamentos. O BACEN é o órgão encarregado
da fiscalização, detendo o monopólio das normas cambiais. O poder de
polícia do BACEN, ao instituir multas para o controle cambial, tem por
fundamento, dentre outros, evitar fraudes.
Confirmando a legalidade da multa, por infrações administrativas
cambiais,62 mas mitigando-lhe o valor com aplicação do Decreto-Lei
37/66, artigo 169.63 O precedente reduziu a multa administrativa.
Ainda sobre o contrato de câmbio, é contrato que, apesar de expressão
privilegiada da autonomia privada, manifestação do “poder negocial”, não
pode mais o contrato de câmbio ser perspectivado64 apenas no campo negocial, pois tem uma função social que instrumentaliza a circulação da
riqueza na sociedade, é a ótica da “cláusula da função social do contrato”
que não pode servir de veículo para sangrar as divisas nacionais ou iludir
o pagamento de impostos, a cláusula da função social é uma condicionante
ao princípio da liberdade contratual.65
Concluindo, esperando ter com o presente estudo contribuído no
REALE, Miguel, O projeto de Código Civil.
MARTINS COSTA, Judith. Diretrizes Teóricas do novo Código Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002.
244 p.
65
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debate dos temas suscitados pela Lei 9.873/99, deixo bem demarcado
que tudo dependerá do caso concreto a decidir e da devida justificação e
fundamentação dos atos praticados, pois o primeiro intérprete da lei em
comento é a autoridade pública responsável por sua melhor aplicação.
Referências Bibliográficas
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2000.
BARROSO, Luis Roberto. A prescrição Administrativa no Direito Brasileiro, antes e depois da Lei 9.873/99. Revista Diálogo Jurídico. n.
4, jul. 2000. Disponível em: <http//www.direitopublico.com.br>.
Acesso em: 25 abr. 2004.
CORDEIRO, Renato Sobrosa. Prescrição Administrativa. Rev. Direito
Administrativo. n. 207, p. 105-120, jan.-mar. 1997.
CRETELLA JÚNIOR, J. Revista Forense, v. 275, red. 1981, p. 5, prescrição da falta administrativa.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo Brasileiro.
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Questões polêmicas quanto aos impostos e
contribuições incidentes na tributação do comércio
internacional
Maria Lúcia Luz Leiria*
A obra em homenagem ao prof. Alcides Jorge Costa – Direito Tributário, coordenada por Luís Eduardo Schoueri (São Paulo: Quartier Latin,
2004, em dois volumes), aqui também homenageado, traz síntese densa
de conteúdo de vários doutrinadores tributaristas.
Recordo o trabalho do professor Heleno Taveira Torres, que me trouxe
à lembrança meus tempos de Academia, onde, efetivamente, a cadeira que
cursei foi de Ciência das Finanças. Vejo, então, que as alterações curriculares e as discussões sobre a autonomia de ramos do direito caminharam
comigo. Comungo da idéia de que, efetivamente, o Direito Tributário, para
fins didáticos, é autônomo, autonomia essa que decorre de seus princípios
específicos e de sua interpretação diferenciada, mas que está, por óbvio,
ligado umbilicalmente ao Direito Constitucional, por força do que entendo
por ordem jurídica positiva.
Buscando uma adequação ao que faço diariamente com a amplidão
do tema deste painel – “Questões polêmicas quanto aos impostos e contribuições incidentes na tributação do comércio internacional” – e por
entender que, sempre que se buscam soluções doutrinárias ou judiciais
para lides postas, se está a enfrentar polêmicas. Não existe apenas uma
* Desembargadora Federal do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
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ideologia, uma doutrina, uma exegese autêntica, e sim, graças a Deus,
um pluralismo de posturas que só faz crescer e aprimorarem-se os conhecimentos, ampliando-se, por via de conseqüência, as ditas soluções
às questões que, no dia-a-dia, ao depois podem não ser mais as soluções
justas ou quiçá soluções. Porque faz parte da própria humanidade esse
passar, esses caminhos, esse enfrentar o presente que já não é mais e
ainda não é futuro.
Assim, resolvi pinçar algumas discussões que, para mim, vêm sendo as
mais debatidas pela Fazenda Nacional e pelos contribuintes dos impostos
de importação e exportação, ou da tributação no comércio internacional,
sem me atrever a adentrar nas profundezas das doutrinas de meus ilustres
mestres que compõem a mesa neste painel.
Quando penso imposto de importação, vêm-me as lições de Rubens
Gomes de Sousa:
“Os direitos aduaneiros são, portanto, tributos sôbre o consumo, dentro da definição
e classificação que já tentámos. É preciso, entretanto, fazer algumas ressalvas, a primeira das quais concerne aos impostos de exportação. Tais impostos podem ser, com
efeito, tributos diretos ou indirétos, confórme as condições do mercado interna­cional
impeçam ou permitam a sua translação. Na primeira hipótese, isto é, se o exportador
tem de suportá-los, serão tributos sôbre a produção, e não sôbre o consumo, por quanto éste, em qualquer hipótese, ocorrerá fóra do país. No segundo caso, isto é, sendo
possível a sua translação, teremos realmente um tributo indireto, mas cujos efeitos se
vão fazer sentir sôbre o importador estrangeiro, fóra, portanto, do campo econômico
do sistema tributário do país.
A segunda ressalva que compete fazer quanto aos tributos aduaneiros refere-se aos
direitos que sejam cobrados sôbre a importação de materiais básicos e matérias primas.
Sendo discutível a possibilidade de repercussão de tais tributos, parece mais acertado
considerá-los também como impostos sôbre a produção, porquanto serão suportados
em definitivo pelos importadores fabricantes dos produtos em cuja manufatura entrem
os produtos taxados.
Finalmente, uma última ressalva concernente às tarifas protecionistas. A finalidade
primordial de tais impostos não é tributária, porquanto não se tem em vista alimentar o
tesouro, mas, antes pelo contrário, reduzir ou eventualmente fazer cessar a importação
de determinados artigos, e por conseguinte suprir a renda proveniente da sua tributação. Por outro lado, o objetivo perseguido pela criação de uma tarifa protecionista
não é, pelo menos normalmente, o combate puro e simples ao produto estrangeiro,
mas o favorecimento do produto similar nacional. O fator preponderante no estudo
das tarifas protecionistas é, portanto, o custo de produção no mercado interno. Os
impostos aduaneiros protecionistas ocupam, assim, uma posição intermediária entre
58
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os tributos sôbre a produção e os tributos sôbre o consumo, porquanto participam das
características de uns e de outros.”
O que, na realidade, se demonstra que cada vez mais é este tributo
uma espécie de imposto de consumo ou, pelo menos, um terceiro gênero
entre tributos sobre a produção e tributos sobre consumo.
Sem adentrar em todos os aspectos doutrinários, fixo-me somente
em algumas decisões atuais que enfrentei, bem como do STF e do STJ,
e que demonstram a função extrafiscal deste imposto. Função essa que,
embora não tenha nascido com o imposto, passou a tornar-se instrumento da política econômica e monetária do país. Veja-se, por exemplo, o
manejo das alíquotas. Em sendo competência privativa da União para
legislar sobre comércio exterior (art. 22, VIII, CF), sendo sua fiscalização atribuição do Ministério da Fazenda (art. 237, CF) é, portanto, no
campo da política econômica e monetária que transitam as decisões a
respeito de tal tributo.
Vamos a alguns exemplos:
A imunidade de que desfrutam livros, jornais, periódicos e papel destinado para impressão, prevista no art. 150, inciso VI, da Constituição
Federal, vem sendo reconhecida para impressão de apostilas escolares
(REOMS nº 98.04.08444-9/PR, relatado por mim) e, inclusive, mais
recentemente também para a película importada que dá maior resistência
às capas de livros, que se integra ao produto final (RE 392221/SP, Rel.
Min. Carlos Velloso, julg. 18.05.2004, Informativo 348) e até mesmo para
álbum de figurinhas, “visto que os mesmos visam estimular o público
infantil a se familiarizar com os meios de comunicação impressos, o que
atende a finalidade do benefício instituído pela norma constitucional de
facilitar o acesso à cultura, à informação e à educação”. (RE 221239/SP,
Rel. Min. Ellen Gracie, julg 25.05.2004, Informativo 349)
No tocante à imunidade, prevista no inciso I do § 2º do art. 149 da
Constituição, introduzida pela EC nº 33/2001, segundo a qual as contribuições sociais não incidirão “sobre as receitas decorrentes de exportação”, a 1ª Turma do TRF 4ª Região tem entendido que não é aplicável à
contribuição social sobre o lucro líquido, porque o fato gerador desta não
é a receita proveniente de exportação. (AMS nº 2003.70.09.007341-1/
PR, relatado por mim, julg. 05.05.2004)
Em outro mandado de segurança, em que se discutia o reconhecimento
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59
do direito de devolução ao exterior de mercadoria importada pela empresa, a 1ª Turma do TRF 4ª Região entendeu que a administração fazendária
tem o poder-dever de fiscalizar toda mercadoria submetida à importação
ou à exportação, inclusive no regime de entreposto aduaneiro, sobretudo
em hipóteses como as daqueles autos, “em que após retida a mercadoria
para fins de fiscalização e apurada a discrepância entre a qualidade das
mercadorias e os valores apontados pelo fisco, a importadora desiste
de levar adiante a internação das mercadorias ao argumento de que já
não haveria mais mercado para as mesmas, sendo que estas ostentavam
etiquetas com a razão social e CNPJ de empresa brasileira”. (AMS nº
2001.71.01.002297-9/RS, relatado por mim, julg. 08.10.2003)
Relativamente à alteração de alíquotas do imposto de importação, o
STF, no RE 225.602-CE (Rel. Min. Carlos Velloso, julg. 25.11.98, Informativo 133), já refutou o argumento no sentido de que atos normativos
que importem aumento do imposto não têm aplicação a situações jurídicas
de importação já consolidadas, tendo em vista que a CF somente veda
a cobrança de tributos em relação a fatos geradores ocorridos antes do
início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado (art. 150,
III, a), sendo que, no caso, o decreto que alterou as alíquotas é anterior
ao fato gerador do imposto de importação, que é a entrada da mercadoria
no território nacional. (CTN, art. 19, e DL 37/66, art. 23)
Da mesma forma, o STJ (EDREsp 313117/PE, Rel. Min. Denise
Arruda, DJ 10.05.2004, p. 167) entendeu que, “nos termos do art. 23
do Decreto-Lei nº 37, de 18 de novembro de 1966, na importação de
mercadoria despachada para consumo, o fato gerador do imposto de importação consuma-se na data do registro da declaração de importação”.
Apreciando a questão da imunidade prevista no art. 155, § 3º, da Constituição, o STF firmou entendimento de que “o legislador constituinte
federal optou por fixar, nesse caso específico, a imunidade tributária restrita às operações em si mesmas, consideradas a produção, a importação,
a distribuição ou o consumo de combustíveis, sem estendê-la a outras
operações realizadas pela empresa produtora. Decisão que concluísse de
forma diversa incidiria em ampliação indevida, vedada pelos princípios
que norteiam a hermenêutica constitu­cional”. (RE 216286/PR, Rel. Min.
Maurício Corrêa, Informativo 233)
Na AC nº 2001.70.00.031586-8/PR, em que se discutia a imunidade
60
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de imposto de importação, prevista no art. 150, § 3º, III, da Constituição
Federal, sobre mercadorias destinadas à exportação, que foram subtraídas,
a 1ª Turma do TRF 4ª Região entendeu que “não se trata de imunidade
posta sob condição, mas sim de condição para a imunidade. A Constituição Federal dispôs que faz jus à imunidade de IPI o produto destinado
à exportação. Para tanto, o mínimo que se exige é que o produto tenha
realmente sido exportado, sem o que não há que se falar em imunidade
de tributo. Ocorre o fato gerador do IPI com a saída da mercadoria do
estabelecimento indus­trial. Não demonstrada a saída da mercadoria do
território nacional, não se configura a hipótese constitucional para a
imunidade, que dispensaria o recolhimento devido” .
O STJ, no REsp 390176/PA (Rel. Min. Franciulli Neto, DJ
05.05.2004, p. 147), entendeu que “o artigo 37 do Decreto-Lei nº
1.544/76, com a redação dada pela Lei nº 8.387/91, permite a saída
de bens importados que ingressaram na Zona Franca de Manaus para
outros pontos do território nacional, desde que efetuado o pagamento
dos impostos exigíveis sobre importações do exterior. In casu, portanto,
a saída da Zona Franca de Manaus de mercadorias anteriormente importadas por empresa lá sediada, para outra parte do território nacional,
exige o pagamento do Imposto de Importação e do IPI.”
Da mesma forma, o STJ (REsp 202958/RJ, Rel. Min. Franciulli Neto,
DJ 22.03.2004, p. 263), apreciando a questão de revisão do lançamento
por conta de erro quanto à identificação física da mercadoria, entendeu
que o “art. 149 do CTN autoriza a revisão do lançamento, dentre outras
hipóteses, ‘quando se comprove falsidade, erro ou omissão quanto a
qualquer elemento definido na legislação tributária como sendo de declaração obrigatória’, ou seja, quando há erro de direito. Se a autoridade
fiscal teve acesso à mercadoria importada, examinando sua qualidade,
quantidade, marca, modelo e outros atributos, ratificando os termos da
declaração de importação preenchida pelo contribuinte, não lhe cabe
ulterior impugnação do imposto pago por eventual equívoco na classificação do bem.”
O Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu que “a incidência do
ICMS na importação de mercadoria tem como fato gerador operação de
natureza mercantil ou assemelhada, sendo inexigível o imposto quando
se tratar de bem importado por pessoa física”. (RE nº 203.075/DF, relator
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004
61
Ministro Maurício Corrêa, DJ de 29.10. 99)
No que diz respeito à apreensão de mercadoria importada, que foi
adquirida no mercado interno, já ficou assentado que “a aquisição, no
mercado interno, de mercadoria importada, mediante nota fiscal, gera a
presunção de boa-fé do adquirente, cabendo ao Fisco a prova em contrário”. (AGA 487282/RS, Rel. Min. Luiz Fux, DJ 19.12.2003, p. 331)
Em vista dessas decisões, não há como negar que a tributação do
comércio exterior está em linha direta com o manejo da manutenção
de uma salutar economia no país. Ou seja: aqui não é a arrecadação a
ordem primeira, o fundamento e fim da tributação, mas sim a proteção,
o objetivo, as diretrizes do comando político-econômico, campo maior
da função extrafiscal destes impostos.
Sem qualquer outra pretensão a não ser trazer ao debate e por não
ter, ainda, qualquer processo sobre o assunto, atrevo-me a lançar um
provisório entendimento a respeito da CIDE, criada pela EC nº 33 - art.
149, § 2º, II, da Constituição Federal, já objeto de diversos comentários
de tributaristas ilustres no sentido de que...1
“A falta de indicação do aspecto material do fato gerador das contribuições torna
imperiosa que tributo instituído a esse título atenda claramente aos requisitos pró­prios
da figura e que vêm sendo indicados pela doutrina e acolhidos pela jurisprudência. A
contribuição distingue-se dos impostos por ser de sua essência o atendimento a uma
determinada finalidade, ou melhor, a uma finalidade constitucionalmente prevista. O
art. 149 da Constituição Federal, ao estabelecer que à União compete impor as contribuições ‘como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas’, fim é a atuação nas
respectivas áreas, ou seja, de interesse das respectivas áreas. Portanto, há, antes de
mais nada, de verificar-se na própria Constituição quais são as normas que permitem a
intervenção do Estado no domínio econômico. Isto porque só como veículo para atingir
aquelas finalidades é que se pode instituir contribuições.”
E mais:2
“A EC 33/2001, por sua vez, veio admitir a intervenção no âmbito de atividade
objeto de monopólio da União, ao prever a instituição de contribuição interventiva
sobre importação de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados e álcool
combustível, nos parágrafos acrescentados ao art. 149, e no § 4º acrescentado ao art.
177 da CF. (...)
MARTINS, Ives Gandra da Silva, coord. Contribuições de intervenção no domínio econômico. São Paulo:
Revista dos Tribunais/Centro de Extensão Universitária, 2002. p. 65.
2
Idem, p. 113-118.
1
62
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Assim, o conceito de domínio econômico assume hoje um espectro mais amplo,
abrangente não apenas do setor cuja exploração cabe ao particular, mas também das
atividades sob monopólio estatal exercidas mediante contratação de empresas privadas
e das previstas nos incisos XI e XII do art. 21 da CF, objeto de concessão permissão e
autorização – vale dizer, de atividades que não se inserem no campo dos serviços públicos essenciais, assim entendidos aqueles prestados pelo Estado ou por seus agentes,
em decorrência de sua soberania, sob regime de direito público, remunerados por taxa
ou por impostos. (...)
Aponta a doutrina, efetivamente, com base na Lei Maior, três formas de intervenção
do Estado na ordem econômica: a) por meio de poder de polícia, como agente normativo e regulador da atividade econômica, exercendo a fiscalização e o planejamento
indicativo, para o setor privado, e determinante, para o setor público (art. 174 da CF); b)
fomentando a iniciativa privada, mediante a outorga de incentivos e favores fiscais (art.
174 da CF); c) atuando, ele próprio, empresarialmente no setor, mediante a criação de
entes da administração indireta, nos casos excepcionais previstos no art. 172 da CF. (...)
No campo das atividades previstas nos incisos XI e XII do art. 21 da CF, cuja exploração se dá mediante concessão, permissão ou autorização, a intervenção assume outro
perfil, tendo em vista tratar-se de setor público em que o planejamento é determinante.
Tal planejamento, de rigor, há de refletir-se nas cláusulas do contrato administrativo
firmado com o particular. Tendo em vista que referidas cláusulas devem dimensionar o
valor da tarifa e demais elementos que compõem a remuneração do contratado de forma
proporcional, tanto a sua expectativa de lucro quanto aos investimentos necessários a
assegurar serviço adequado ao universo dos usuários – só nos parece possível cogitar
de ‘intervenção’ de contribuição para viabilizá-la no caso de situação excepcional e
transitória, capaz de pôr em risco a suficiência do serviço ou a sua continuidade, cujo
enfrentamento só seja possível por essa via, e desde que respeitado o equilíbrio econômico e financeiro da avença. (...)
A previsão causa perplexidade, quer pelo fato de caracterizar ‘intervenção’ da União
em área que compete a ela própria explorar diretamente sob regime de monopólio, quer
pelos ares de definitividade que ostenta o tributo cuja instituição foi autorizada.
Trata-se, entretanto, de instrumento de imposição do planejamento oficial, em
relação ao particular contratado pelo Estado para realizar atividades monopolizadas,
e de instrumento de intervenção regulatória, para o segmento de comercialização dos
combustíveis envolvidos, com a finalidade de superar a notória carência de recursos
– inclusive subsidiando serviços afins, como é o caso do transporte desses produtos
– verificada em setor de extrema relevância para o desenvolvimento nacional. Daí,
certamente, a inclusão na lei maior de disposições próprias de legislação infraconstitucional, o que permite vislumbrar a exação enunciada, como uma verdadeira exceção.”
3
Idem, p. 161-163 e 368-376.
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004
63
Em outra passagem:3
“(...) as duas agências que estão previstas na Constituição são a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) e a ANP (Agência Nacional de Petróleo) (...) ora, não tendo
as demais agências previsão constitucional, implica que a delegação está sendo feita
pela lei instituidora da agência. Por esta razão, a função normativa que exercem não
pode ser maior do que a exercida por qualquer outro órgão administrativo ou entidade
da administração indireta, ou seja, não podem regular matéria não disciplinada em
lei, porque os regulamentos autônomos não têm fundamento constitucional em nosso
direito, nem podem regulamentar leis, porque essa competência é privativa do Chefe do
Executivo e, se pudesse ser delegada, essa delegação teria que ser feita pela autoridade
que detém o poder regulamentar e não pelo legislador.” (p. 161-162)
“A União pode instituir contribuições de intervenção no domínio econômico, em
casos excepcionais de descompasso da economia, atribuindo às agências reguladoras
a capacidade de arrecadação desses recursos, desde que presentes os requisitos constitucionais necessários à instituição deste tributo. Os limites para sua criação estão
no próprio texto constitucional ao autorizar ‘órgãos reguladores’ para exploração de
determinados serviços considerados essenciais na forma dos arts. 21, XI e 177, § 2º,
I, da CF”. (p. 163)
“Tais contribuições poderão adotar, conforme o caso e as circunstâncias concretas,
hipóteses de incidência de taxas ou de impostos, mono ou plurifásicos, não havendo
senão a possibilidade de que a lei as defina incidentes uma única vez. As possibilidades aqui apontadas não afastam o exame da validade das exações concretas, por seus
pressupostos de imposição. Apenas se deseja ressaltar que o dispositivo constitucional
sob comento não exige sejam os tributos a que se refere monofásicos, únicos. (...)
Também ao falar-se de efetiva intervenção no domínio econômico, como requisito
necessário, à legitimação, está-se falando de uma interferência no mercado, isto é, numa
atuação efetiva que tende a alterar uma distorção trazida pelas regras do mercado. Tais
distorções são conhecidas do direito comercial e do direito econômico, aí incluídas as
práticas monopolísticas e demais abusos da liberdade de mercado. Não haverá, portanto,
legítima contribuição quando instituída pela busca de fins diferentes dos reguladores
da economia. Assim, não seria legítima, por exemplo, contribuição para financiar a
formação de companhia estatal para competir no mercado.
Quanto à existência de limites à criação de agências com poder regulatório, acredito
que efetivamente existam tais limites. (...)
‘A Lei nº 10.336’... (...) A vinculação do produto da arrecadação e sua finalidade
própria estão coerentemente definidas com a Constituição e se inserem claramente
num contexto ambientalista. A referibilidade existe entre a categoria dos contribuintes
(produtor, formulador e importador de gasolina, diesel, lubrificantes etc) e o setor econômico (petrolífero), mas parece ser quebrada ao restringir-se a incidência da Cide às
operações de importação de tais produtos e sua comercialização no mercado interno.
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Ao aplicar-se somente aos produtos importados, torna-se questionável a contribuição
criada, pois a intervenção estaria ocorrendo de forma diferenciada no setor que é único.
A constitucionalidade de tal restrição à categoria dos importados parece-me duvidosa,
pois denunciadora de uma atuação do Estado em apenas parte de um setor econômico
e não em toda aquela área escolhida pela lei.”
Não posso deixar, neste momento e a partir dessas citações, de trazer
lições do Prof. Roberto Ferraz, que faz o desafio de trazer para dentro
da validação de qualquer tributo a efetiva destinação da arrecadação, a
fim de que o contribuinte possa identificar a sua constitucionalidade. É
o que se vê das seguintes passagens:4
“A necessária participação popular no orçamento, diretamente ou através de representantes, especialmente na definição de prioridades e de despesa, e não apenas na
elaboração de leis que definem as hipóteses de exigibilidade dos tributos, é hoje matéria
básica atinente à própria tributação, pois lhe define a legitimidade e validade. (...)
Parece-me, portanto, que a definição do destino da aplicação dos recursos obtidos
com a arrecadação tem uma importância superior, não apenas em grau, mas em natureza,
às definições de competência tributária.
Baseando-me nessas características, não tenho dúvidas em afirmar que a indicação
de destino do produto da arrecadação feita na Constituição, supera a simples ‘técnica
de validação finalística’ (...)
O motivo é claro: indicada constitucionalmente a destinação, fica legitimado o cidadão
a exigir-lhe o cumprimento bem como a opor-se ao pagamento, caso os valores arrecadados não alcancem efetivamente o destino prescrito. Não se trata mais de matéria afeta
exclusivamente ao legislativo e ao executivo, mas também ao judiciário. (...)
E o mais importante: caso os tributos não sejam destinados a essas finalidades, ou
cobrados em proporção a tais necessidades, caberá ao contribuinte opor-se ao pagamento por meio de ação. (...)
Pressuposto de incidência tributária é o conjunto de condições estabelecidas expressa ou implicitamente pela Constituição para a imposição de tributos, tanto no tocante
à cobrança, isto é, condições estabelecendo hipóteses de incidência, base de cálculo,
contribuintes, e demais elementos de exigência válida, incluídos isonomia, legalidade,
irretroatividade, capacidade contributiva e progressividade, conforme o caso, bem como,
no tocante às contribuições estabelecidas constitucionalmente quanto à destinação do
produto da arrecadação, que igualmente integram o elenco de requisitos para validade
da exação, para todas as espécies tributárias.”
Pergunta-se, então, a partir dessas reflexões, se as Agências RegulaFERRAZ, Roberto. Da hipótese ao pressuposto de incidência- em busca do tributo justo. IN: SCHOUERI,
Luís Eduardo, coord. Direito Tributário. Homenagem a Alcides Jorge Costa. São Paulo: Quartier Latin,
2004. p. 191-235. Volume I.
4
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doras, passando a ser as destinatárias deste tributo, poderão destiná-lo a
outras áreas, como ocorre com a alteração da Lei no 10.336, pelas Leis
nos 10.636 e 10.866?
Entendo que finalidade e destinação são diversos conceitos, e, que,
se a destinação não macular os princípios da ordem econômica insertos
na Constituição Federal ou os direitos e garantias individuais, limites da
imposição de qualquer CIDE, não vejo tal contribuição, neste exame, fora
de qualquer caso concreto, como contrário aos princípios da Carta Constitucional, mormente porque, mesmo que o petróleo não importado esteja
fora da sua incidência, não está ferido o princípio da isonomia, porque o
discrímen utilizado está conforme o objetivo da exação, uma vez que o
petróleo importado é situação fática distinta daquela do petróleo nacional,
não há, pois, igualdade de situações. Aqui, claramente trata-se de função
parafiscal desta contribuição.
Tratando-se, pois, de Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico – CIDE, incidente sobre a importação de petróleo e seus derivados,
necessário verificar se estão presentes os pressupostos de imposição,
elementos para criação válida desta contribuição, que são:
a) efetiva intervenção da União, nos limites estabelecidos pela ordem
econômica e direitos fundamentais;
b) referibilidade da contribuição a contribuinte de determinado domínio econômico;
c) vinculação da arrecadação à atuação da União na área econômica
específica dentro dos limites de sua atuação;
d) transitoriedade, esta, no meu entendimento, aquela transitoriedade
que caracteriza a contribuição no sentido de alcançar uma determinada
finalidade.
Verificados esses elementos, está constitucional e legalmente instituída
a exação. Estes elementos foram vislumbrados em decisões que dizem
respeito à taxa de licenciamento ambiental. Ali, a transitoriedade fica, a
meu sentir, na perenidade “da precaução” que se deve ter e manter com
o meio ambiente, única forma de permanecer com vida neste planeta.
Presentes os demais requisitos autorizadores:
a) a intervenção está configurada pela atuação estatal, exercida por
autarquia legalmente constituída – IBAMA – em benefício do indivíduo,
pela possibilidade de as empresas afetarem o meio ambiente;
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b) a referibilidade está presente, envolvendo a empresa que opere na
atividade legalmente prevista e potencialmente poluidora;
c) a vinculação está dada pela própria situação de valor variável de
acordo com o tamanho da empresa, potencial de poluição e grau de utilização de recursos naturais de suas atividades.
Portanto, constitucional e com natureza de CIDE a denominada taxa
de licenciamento ambiental.
Agora, assente que a “vinculação” da arrecadação ou a finalidade da
exação e não a destinação como entendida por alguns, no sentido de,
se o produto transite pelos cofres da União para, ao depois, dirigir-se à
efetivação do objetivo da tributação, será que o financiamento do programa de infra-estrutura de transporte está vinculado também ao campo
econômico regido para a instituição desta “CIDE – combustíveis”?
Acredito que sim, porque, em raciocínio simplista, não há transporte sem
combustível, qualquer que seja, e pode ou não ser derivado de petróleo,
etc. Portanto, creio, numa análise preliminar, presentes os já citados
elementos que são pressupostos ou requisitos da imposição:
a) o campo pode ser objeto de intervenção da União;
b) há a referibilidade com o contribuinte;
c) a vinculação está presente com as finalidades do produto arrecadado;
d) a transitoriedade está assente na necessidade dos programas atingidos pelo § 1º do art. 1º da Lei nº 10.336/2001.
Neste sentido, o STF, em 19.12.2003, deu interpretação conforme a
Constituição, no sentido de que a abertura de crédito suplementar deve
ser destinada às três finalidades enumeradas no art. 177, § 4º, II, a, b e
c, da Constituição (a- pagamento de subsídios a preços ou transporte de
álcool combustível, gás natural e derivados ou derivados de petróleo;
b- financiamento de projetos ambientais relacionados com a indústria do
petróleo e do gás; c- financiamento de programas de infra-estrutura de
transportes) (ADI 2925/DF, rel. p/ acórdão Marco Aurélio, Informativo
334). E, em novembro do ano passado, já assentara a desnecessidade de
que a vinculação direta do contribuinte ou a possibilidade de que ele se
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O contempt of court no novo processo civil
Paulo Afonso Brum Vaz*
Sumário: 1. Introdução. 2. Alcance objetivo do comando abstrato
(preceito). 3. Alcance subjetivo do comando abstrato. 4. O contempt
of court e a Assistência Judiciária Gratuita. 5. A sanção pecuniária.
6. Incidência, exigibilidade e exeqüibilidade da sanção pecuniária.
7. O contempt of court e a prisão civil. 8. O contempt of court e as
repercussões na esfera penal. 9. Defesas e recursos do sujeito passivo
da multa.10. Considerações finais.
1. Introdução
As aspirações sociais acerca do processo civil apontam para a necessidade de maior efetividade da tutela jurisdicional. Sob o ponto de vista
da efetividade subjetiva, ainda que não se possa considerar concretizado
o ideal de total democratização do acesso à justiça – muito ainda se
tem por fazer para a sua completude –, tivemos avanços consideráveis,
sobretudo com a criação dos Juizados Especiais, que constituem, por
assim dizer, justiça gratuita, acessível e rápida a todas as camadas sociais; sob o ponto de vista da efetividade técnica, observamos sensíveis
adaptações, especialmente com a universalização da tutela antecipada
e o reconhecimento das tutelas mandamentais e executivas lato sensu;
sob o enfoque da efetividade qualitativa, a consagração legal das tutelas
inibitórias específicas, assegurando a satisfação de direitos violados in
* Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
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natura, ao invés da prestação substitutiva, constitui indubitável avanço
rumo à efetividade da tutela jurisdicional; finalmente, considerado o
aspecto objetivo da efetividade, podemos afirmar que a resposta do
legislador reformista, ao ampliar as medidas coercitivas tendentes ao
concreto cumprimento das decisões judiciais, antecipatórias ou finais,
constitui um avanço importante.
Tendo como desígnio a maior efetividade da prestação jurisdicional,
assistimos, recentemente, à edição das Leis nos 10.352, de 26.12.2001,
10.358, de 27.12.2001, e 10.444, de 07.05.02, promovendo substanciais
reformas no CPC. Umas, com o visível escopo de explicitar e otimizar
dispositivos e institutos que haviam sido objeto de modificações anteriormente efetuadas (1994), como foi o caso da nova disciplina legal da
antecipação da tutela, da audiência preliminar, da prova pericial, da tutela
específica do art. 461 do CPC, da liquidação de sentença, do recurso de
agravo de instrumento; outras, implementando inovações que se pode
chamar de “típica nova onda reformista”, tais como, por exemplo, a nova
sistemática da prova testemunhal e do reexame necessário, a vitalização
da execução provisória, a mitigação do sistema do duplo grau de jurisdição (art. 515, § 3º), a limitação das hipóteses de embargos infringentes e
a introdução do contempt of court, temática esta última que pretendemos
desenvolver no presente exercício.
A Lei nº 10.358, de 27 de dezembro de 2001, deu nova redação ao
art. 14 do CPC, que passou a ter o seguinte teor:
“Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo: (...) V – cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não
criar embaraços à efetividade dos provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou
final. Parágrafo único. Ressalvados os advogados que se sujeitam exclusivamente aos
estatutos da OAB, a violação do disposto no inciso V deste artigo constitui ato atentatório ao exercício da jurisdição, podendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais,
civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa em montante a ser fixado de
acordo com a gravidade da conduta e não superior a 20% (vinte por cento) do valor da
causa; não sendo paga no prazo estabelecido, contado do trânsito em julgado da decisão
final da causa, a multa será inscrita sempre como dívida ativa da União ou do Estado”.
Este dispositivo legal, de extrema importância para a efetivação das
decisões judiciais (especialmente as interlocutórias concessivas de tutela antecipada e as sentenças mandamentais ou executivas lato sensu),
ao tempo em que empresta reconhecimento legal aos provimentos de
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natureza mandamental, introduz, no sistema processual civil brasileiro,
o instituto do contempt of court, já conhecido no direito estrangeiro,
nomeadamente nos países da common law.
Contempt of court quer dizer “desrespeito à Corte”, “desacato à Corte”
ou “atentado à Corte”. Trata-se de instituto revelado no direito romano
e consagrado, principalmente, no direito anglo-saxão. Na sua essência,
funciona como permissão ao juiz, em decorrência do poder de coerção
(coertio) contido na jurisdição, de ordenar a prisão das partes ou de seus
advogados, diante da prática de atos considerados atentatórios à respeitabilidade, à autoridade e à dignidade do Poder Judiciário, impondo, por
assim dizer, limites de ética e decência no curso do processo e cumprindo
o dever de zelar pela efetividade de suas determinações.
Não obstante o rigor técnico exija que se diferencie entre as condutas
dos partícipes do processo, que constituem o contempt of court no sentido
estrito da expressão, e as medidas coercitivas que podem ser adotadas pelo
juiz (contempt sanctions) com base no contempt power, neste singelo
exercício utilizaremos a expressão contempt of court em sentido amplo,
para designar o conjunto de normas que disciplinam tanto as condutas
dos partícipes do processo como o poder judicial de coibir tais condutas
e as respectivas medidas coercitivas que lhes podem ser infligidas.1
A importância do novo instituto é realçada pela professora Ada P.
Grinover:
“A origem do contempt of court está associada à idéia de que é inerente à própria
existência do Poder Judiciário a existência de meios capazes de tornar eficazes as
decisões emanadas. É inconcebível que o Poder Judiciário, destinado à solução de
litígios, não tenha o condão de fazer valer os seus julgados. Nenhuma utilidade teriam
as decisões, sem o cumprimento ou efetividade. Negar instrumentos de força ao Poder
Judiciário é o mesmo que negar sua existência”.2
E acrescenta a renomada professora:
“A administração vencida em juízo é a primeira a opor-se injustificadamente aos
Consulte-se, a propósito, o excelente artigo do Professor Marcelo Guerra, nominado Contempt of court:
efetividade da jurisdição federal e meios de coerção no Código de Processo Civil e prisão por dívida –
Tradição no sistema anglo-saxão e aplicabilidade no direito brasileiro. (apud Execução Contra a Fazenda
Pública, Série Cadernos do CEJ, Conselho da Justiça Federal, nº 23, p. 312 usque 333)
2
Ética, Abuso do Processo e Resistência às Ordens Judiciárias: O Contempt of Court. Revista de Processo,
nº 102, p. 222.
1
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mandamentos jurisdicionais, sendo exemplo crucial dessa situação o não-pagamento
de dívidas judiciais, alimentares ou não, com a espera interminável dos credores na fila
dos chamados ‘precatórios’, ordens de pagamento do Tribunal do Estado”.3
O processo civil moderno é informado por princípios éticos. A relação
jurídico-processual triangular que se estabelece entre as partes e o juiz,
além de reger-se por normas jurídicas, exige também a atenção a certos
preceitos de conduta ética e moral. Por isso dizer-se que o processo de
há muito deixou de ser visto como um instrumento simplesmente técnico
da prestação jurisdicional, para assumir a feição de instrumento ético
voltado a pacificar com justiça. A nova redação do caput do art. 14 do
CPC, estendendo os deveres de colaboração, lealdade e ética a todos os
partícipes do processo e dispondo sobre a sanção pecuniária pelo descumprimento ou embaraço à efetivação de decisão judicial, aperfeiçoa o
arcabouço normativo tendente a tornar o processo um instrumento ético
de solução dos conflitos de interesses.4
2. Alcance objetivo do comando abstrato (preceito)
Cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetividade dos provimentos judiciais, de natureza antecipatória
ou final, representa, para todos os partícipes do processo, um dever. Não
se trata de faculdade, nem de ônus. O dever descumprido constitui um
ilícito e acarreta a sanção consubstanciada no pagamento de multa pecuniária. Diferentemente das multas previstas na legislação processual civil
(arts. 18, 461, § 4º, 538, § único, 557, § 2º), cujo valor fixado reverte-se
em favor da parte contrária, as multas decorrentes do contempt of court,
porque se trata de conduta de desprestígio ao Poder Judiciário, revertem-se em favor do Estado.
Vale uma palavra sobre o alcance da expressão “provimentos mandamentais”. Em nosso Manual da Tutela Antecipada, explicamos:
“Mandamentais são as ações cuja eficácia preponderante corresponde ao mandado
Ibidem, p. 224.
A introdução do contempt of court era reclamada no âmbito do Poder Judiciário: “PROCESSO CIVIL. (...)
CONTEMPT OF COURT. RECURSO DESACOLHIDO. (...). IV - A protelação do cumprimento de decisões
manifestamente razoáveis e bem-lançadas estão a justificar a introdução, em nosso ordenamento jurídico, de
instrumentos mais eficazes, a exemplo do contempt of court da Common Law”. (STJ, REsp n° 235978, Processo nº 199900974344/SP, 4a Turma, DJU 11.12.2000, p. 209, Relator Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira)
3
4
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de cumprimento que está compreendido na decisão que se almeja. O objetivo da ação
mandamental é, pois, uma ordem do juízo para que alguém, direta ou indiretamente,
com imediatidade, faça ou deixe de fazer alguma coisa. Pode-se citar como exemplo
o Mandado de Segurança, cuja sentença impõe um comportamento omissivo ou comissivo por parte da autoridade coatora, ou a ação de retificação de um registro, onde
se busca, primordialmente, que o juiz ordene ao oficial do registro público a retificação, ou os embargos de terceiros, sede onde o comando sentencial constitui ordem de
imediata desconstrição do bem penhorado. Ainda, as ações cautelares, que resultam
também em ordens de ação ou abstenção por parte do réu, a fim de resguardar de risco
o direito do autor”.5
Ao que pensamos, quando aludiu ao descumprimento de decisões
mandamentais como suscetível de ensejar a aplicação da multa do parágrafo único do art. 14, não pretendeu o legislador reformista limitar
as hipóteses de incidência da sanção pecuniária ao descumprimento de
decisões mandamentais típicas. Também outras decisões que, embora não
tenham carga eficacial mandamental preponderante, conquanto providas
desta eficácia, ensejarão a aplicação da sanção em comento. Por exemplo,
toda a gama de ações inibitórias que demandem atuação do réu para a
efetivação da tutela jurisdicional, e, inclusive, as ações declarativas e
constitutivas, em que, “preceitado”, obriga-se o réu a ajustar seu comportamento (omissivo ou comissivo) aos termos da decisão.
“As ações executivas lato sensu têm como traço característico a executoriedade
inserida no mesmo processo de conhecimento, dispensando a execução ex intervallo.
A força executória está inserida no próprio processo de conhecimento. O juiz, julgando
procedente a pretensão vertida na demanda, emite comando para que o réu, desde logo
e independentemente de qualquer outra providência por parte do autor, se submeta à
decisão, entregando a este o bem da vida objeto da lide. Todas as defesas serão deduzidas
pelo réu na fase de conhecimento, não sendo admitidos, dessarte, embargos à execução.
Constitui exemplo de demanda executiva lato sensu a ação de despejo, onde o juiz,
reconhecendo a infração contratual, ao acolher a pretensão, dá por extinto o contrato
e determina a desocupação do imóvel. A alteração no mundo dos fatos é decorrência
da capacidade executória compreendida na própria sentença e independe de qualquer
outro comportamento por parte do autor. De igual conformação, a ação de reintegração
de posse. Da decisão sobre a ilegitimidade da posse do demandado decorre a imediata
reintegração na posse do demandante, em ato que independe da ação daquele, pois é
praticado de ofício pelo juízo. A sentença, neste caso, não estabelece uma obrigação
a ser cumprida pelo réu, isto porque se trata de direito real (em sentido amplo), e não
5
Manual da Tutela Antecipada. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p.37.
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obrigacional, dispensando a prestação por parte do demandado.
Uma análise comparativa entre as sentenças mandamentais e executivas lato sensu
permite verificar que ambas se efetivam no mesmo processo em que prolatadas, dispensando o processo executivo ex intervallo. Entretanto, diferenciam-se na medida em
que as mandamentais contêm comando para o réu, o que não ocorre nas executivas
lato sensu, que não veiculam ordem propriamente ao réu, mas sim uma cominação
sancionatória que se concretiza independentemente da participação deste, vale dizer,
um comando sub-rogatório que substitui a conduta do réu”.6
Não foi sem sentido que o legislador, além de ter feito referência a
cumprir com exatidão os provimentos mandamentais, acrescentou: e
não criar embaraços à efetividade dos provimentos judiciais, dando,
sem dúvida, uma abrangência tal às condutas ilegais que talvez nem
fosse conveniente ao intérprete vislumbrar limitações. Os provimentos
mandamentais são cumpridos pelo réu. A expressão mandamental assim
deve ser lida. Criar embaraços à efetividade dos provimentos judiciais é
comando dirigido a quem, não sendo o responsável direto pelo cumprimento da ordem, que se fará por intermédio de terceiro, cria obstáculos à
sua efetivação. É o caso de algumas decisões de natureza executiva lato
sensu, em que a ordem deve ser efetivada sem a interferência direta do
réu. Na ação de despejo e na reintegração de posse, por exemplo, se o
despejado ou despojado da posse, de qualquer forma, impede o cumprimento da medida (do mandado de despejo ou de reintegração na posse),
pode ser compelido por meio da multa em questão. Assim também aquele
que obsta o cumprimento de ordem judicial a ser cumprida por oficial
de justiça. Quem coloque cadeados e dificulte a entrada do oficial de
justiça nas dependências de sua empresa, impedindo que este proceda,
por exemplo, a uma interdição judicial, estará também criando embaraço
à efetividade do provimento judicial, ficando, portanto, sujeito à multa.
Provimentos judiciais finais são as sentenças ou acórdãos. Provimentos
judiciais antecipatórios7 são as antecipações de tutela, também chamadas, em sentido amplo, liminares. Inserem-se, também, as liminares de
Idem, p. 37-38.
Pode-se dizer que a tutela antecipada é uma proteção jurídica diferenciada, caracterizada pela urgência
ou pelo direito evidente, que, com base em cognição sumária ou, excepcionalmente, exauriente, satisfaz
antecipadamente, no mundo fático, a pretensão vertida pelo postulante, concedendo-lhe uma utilidade ou
atribuição que somente poderia alcançar depois da sentença executável provisória ou definitivamente.
6
7
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natureza cautelar, ou seja, aquelas que não representam antecipação dos
efeitos da tutela de mérito, constituindo apenas medidas assecurativas da
eficácia probatória ou executiva de futura sentença de mérito, e também
as de natureza satisfativa, tais como a liminar de alimentos provisionais8
e a liminar cautelar da ação civil pública.9
As antecipações de tutela, sejam elas genéricas (art. 273) ou específicas (§ 3º do art. 461), ensejam, em caso de descumprimento, a
cominação de astreintes, tal como autoriza o § 3° do art. 273, que, expressamente, prevê a incidência das medidas coercitivas previstas nos
§§ 4º e 5° do art. 461 do CPC. Acreditamos ser possível a incidência das
chamadas astreintes cumulativamente com a sanção pecuniária decorrente do contempt of court, porquanto, não obstante ostentem a mesma
natureza (pressão psicológica), têm diversos beneficiários e, sobretudo,
diferenciam-se em termos de motivação. No contempt of court, a multa
tem a função imediata de punir o menoscabo à função jurisdicional (desrespeito à Corte), e apenas mediatamente dirige-se a punir o prejuízo à
efetividade da prestação jurisdicional. As astreintes, ao contrário, estão
imediatamente vinculadas à efetividade da prestação jurisdicional e
apenas mediatamente dirigidas a coibir o ato atentatório à dignidade da
justiça. Dessarte, uma mesma conduta de que resulte o descumprimento
de decisão mandamental de fazer ou não fazer poderá ensejar a dupla
incidência de multa: a do art. 14, parágrafo único (contempt of court),
em proveito do Estado, e a prevista no art. 461, § 4°, em favor da parte
que tenha sido prejudicada pelo descumprimento da ordem. Concedida,
por exemplo, uma antecipação de tutela determinando que o credor de
Existem, basicamente, duas disposições legais tratando de liminares antecipatórias para a prestação de
alimentos. No Código de Processo Civil, Livro III, do Processo Cautelar, arts. 852 a 854, está disciplinada
concessão liminar de alimentos provisionais. O art. 852 dispõe que é lícito pedir alimentos provisionais,
(II) nas ações de alimentos, desde o despacho da petição inicial. O art. 4º da Lei 5.478/68, que disciplina a
ação de alimentos, assim dispõe: “Ao despachar o pedido, o juiz fixará desde logo alimentos provisórios a
serem pagos pelo devedor, salvo se o credor declarar que deles não necessita”.
9
A medida cautelar a que alude o art. 4º da Lei nº 7.347/85, que disciplina a ação civil pública, constitui
autêntica antecipação de tutela, consoante tem assentado a doutrina especializada, pois que possui natureza
satisfativa da pretensão meritória veiculada na ação. Neste sentido, o escólio de Sérgio Ferraz, quando
sustenta que a ação cautelar na ação civil pública é mais ampla e mais profunda, revestindo-se, inclusive,
de feição satisfativa, sem que reste infirmado o arcabouço peculiar deste tipo de ação (Ação Civil Pública.
3.ed., São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1994, p. 116).
8
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75
um título de crédito se abstenha de levá-lo a protesto, o descumprimento
desta ordem de abstenção poderá ensejar a dupla penalidade (astreintes
e decorrente do contempt of court).
3. Alcance subjetivo do comando abstrato
Diz o texto do caput do art. 14 do CPC que são deveres das partes e
de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo cumprir
com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à
efetividade dos provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final
(inciso V). Partes são as pessoas físicas ou jurídicas, as universalidades,
a massa falida e as sociedades desprovidas de personalidade jurídica
(sociedades de fato), que figuram nos pólos ativo e passivo da lide (autor
e réu). Embora não se possa qualificar de partes aqueles partícipes do
processo (ou figurantes da relação processual) que não são integrantes
do litígio, os chamados terceiros10 (ou partes secundárias), resta evidente
que estes estão também abrangidos pela regra do art. 14. Afinal, o dever
de lealdade processual, segundo o texto legal, abrange todos aqueles que
de qualquer forma participam do processo, mesmo que não se enquadrem
no conceito formal (estrito) de parte.
Poderá a multa prevista no parágrafo único do art. 14 ser infligida à
pessoa física ou jurídica que deixa de dar cumprimento à ordem; também
ao empregado ou agente público que, agindo deliberadamente ou apenas
com culpa, tenha dado causa à desatenção da ordem judicial, mesmo
que não figure ele como parte no processo. A participação no processo
não precisa ser direta (na condição de parte ou terceiro interveniente) e
se configura na medida em que a ordem seja dirigida a pessoa estranha
à relação processual, mas que, por seu vínculo jurídico com a parte ou
terceiro interveniente, encontra-se obrigado a cumpri-la. As pessoas
jurídicas, porque são entes abstratos, encontram-se corporificadas pela
atuação de seus presentantes. O empregado ou agente público que,
encarregado de praticar determinado ato ou de abster-se de praticá-lo,
desatende à ordem judicial, sem justificativa legítima, poderá responder
Terceiro é todo aquele que não compõe a relação processual na condição de autor ou réu, mas que está,
de qualquer forma, vinculado ao objeto da relação jurídica conflituosa ou de outra relação que possa ser
afetada pela decisão judicial, o que o autoriza a ingressar no processo, voluntariamente ou por provocação.
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pessoalmente pelo pagamento da multa em questão. É certo que muitas
vezes o terceiro não dispõe de poderes ou atribuições para a prática do
ato. Outras vezes, especialmente no âmbito da Administração Pública, a
complexidade do ato ou da estrutura administrativa não permite a identificação do agente público responsável pelo cumprimento da decisão.
Nestas hipóteses, o ônus de comprovar a impossibilidade ou a ausência
de atribuições incumbirá a quem alega.
Hugo de Brito Machado entende que a multa deve ser aplicada diretamente a quem corporifica a pessoa jurídica e não a esta:
“O raciocínio que conduz à conclusão de que a multa é aplicável à parte (pessoa
jurídica) e não a quem a corporifica (pessoa natural) diretamente e assim é responsável
pelo descumprimento da decisão não é sequer um raciocínio lógico. Mas, ainda que
o fosse, não poderia prevalecer pois, como afirma Perelman com inteira propriedade,
‘seja qual for a técnica utilizada em direito, este não pode desinteressar-se da reação
das consciências diante da iniqüidade do resultado ao qual o raciocínio conduziria. Pelo
contrário, os esforços dos juristas, em todos os níveis e em toda a história do direito,
procurou conciliar as técnicas do raciocínio jurídico com a justiça ou, ao menos, com
aceitabilidade social da decisão. Essa preocupação basta para salientar a insuficiência,
no direito, de um raciocínio puramente formal que se contentaria em controlar a correção das inferências, sem fazer um juízo sobre o valor da conclusão’. Quando a parte
seja a Fazenda Pública, a interpretação segundo a qual a multa seria aplicável à parte
e não a quem a corporifica mostra-se ainda mais inaceitável, pois na generalidade dos
casos implicaria anular a própria norma instituidora da sanção. Realmente, tendo-se a
Fazenda Pública colocada como devedora e simultaneamente credora da multa, restaria
inteiramente anulada a norma em questão. Como assevera, com inteira propriedade,
Leonardo José Carneiro da Cunha, a multa de que se cuida constitui crédito do Estado
‘porque o descumprimento dos deveres contidos no inciso V do art. 14 do CPC é tido
como ato atentatório à dignidade da jurisdição, ofendendo, em última análise, a presteza
da prestação jurisdicional, cujo atendimento compete ao Estado preservar. Havendo
ato atentatório à dignidade da jurisdição, o credor da multa é o próprio Estado, a quem
compete tutelar e defender o interesse público primário, que é o interesse de toda a
coletividade.’ Não é razoável, pois, sustentar-se, que sendo o Estado responsável pela
prestação jurisdicional, cuja presteza lhe cabe preservar, tutelando e defendendo o
interesse público primário, possa, ele próprio, cometer um ato atentatório à dignidade
da jurisdição. Quem comete esse ato na verdade é o servidor público que não está
realmente preparado para o desempenho de suas atribuições em um Estado de Direito.
A este, portanto, cabe suportar a sanção correspondente”.11
11
Descumprimento de ordem judicial. Revista da AJUFE, nº 70, p. 215/216.
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A tese de Hugo de Brito Machado tem perfeita adaptabilidade às
multas que devam ser pagas pela União à própria União (desprestígio
ao Poder Judiciário Federal) ou à multa que deva ser paga pelo Estado-Membro a ele próprio, em caso de ato atentatório contra a dignidade
da justiça cometido na Justiça Estadual. Não se aplica, porém, quando
demandadas entidades da Administração Indireta, que têm personalidade
jurídica própria e autonomia orçamentária e financeira. Este é o caso, por
exemplo, do INSS. O certo – e nisso estou integralmente de acordo com
o mestre cearense – é que se deve buscar preferencialmente a responsabilização do agente público e apenas subsidiariamente a do ente público
a que esteja vinculado e corporificando, porquanto a responsabilização
da Fazenda Pública corresponde à oneração da sociedade, que, em última análise, é também vítima da conduta recriminada, sendo, portanto,
duplamente penalizada.
É indubitável, pois, que a responsabilidade da pessoa jurídica de direito público não poderá ser excluída pela responsabilização do servidor
público que tenha a atribuição legal de dar o cumprimento ao comando
judicial mandamental. Sobretudo porque, muitas vezes, no emaranhado
que constitui a estrutura administrativa dos órgãos e entidades públicas,
não é fácil identificar-se o agente público responsável pela ação ou
omissão que caracterizam a desatenção e o deliberado descumprimento
da providência objeto da ordem judicial. Outras tantas vezes o agente
público relapso não dispõe de condições financeiras para o pagamento
Não é comum, lamentavelmente, a responsabilização de agentes públicos por prejuízos que a Administração Pública comumente é compelida a indenizar, quando há disposição constitucional (art. 37, § 6º) que,
a nosso ver, não confere poder discricionário à Administração, mas, sim, o dever de buscar o ressarcimento
do servidor desidioso.
13
“DIREITO PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. EXECUÇÃO DE OBRIGAÇÃO
DE FAZER. CONTEMPT OF COURT E FAZENDA PÚBLICA. 1. A decisão que em sede de mandado de
segurança impõe obrigação de fazer é essencialmente mandamental, sendo subsidiariamente substituída
por perdas e danos, no caso de real impossibilidade de cumprimento, diante da interpretação analógica do
art. 461 do CPC. 2. O contempt of court civil do direito anglo-saxão, como meio de coerção psicológica do
devedor, decorre da concepção de que a autoridade do Poder Judiciário é intrínseca à sua própria existência.
3. Provido o agravo para que o juiz adote todos os meios capazes de dar efetividade à jurisdição, registrando
que a aplicação de astreintes à Fazenda Pública é ineficaz como meio de coerção psicológica, já que sujeitas
ao regime do precatório. 4. Nas causas envolvendo o erário público, a coerção somente será eficaz se incidir
sobre o agente que detiver responsabilidade direta pelo cumprimento da ordem, reiterada e imotivadamente
desrespeitada”. (TRF da 2a Região, 2a Turma, Agravo de Instrumento nº 97.02.29066-0/RJ, DJU 21.08.2001,
Relator Juiz Ricardo Perlingeiro)
12
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da multa.
Devemos lembrar, por oportuno, que a Administração, na medida
em que compelida a pagar a multa por desprestígio ao Poder Judiciário,
adquire o direito regressivo em relação ao agente público que deu causa
ao evento punido, cumprindo-lhe comprovar a sua culpa.12
É certo, no entanto, e neste aspecto a jurisprudência também é cônsona,13 que a sanção aplicada ao agente público que corporifica a entidade
pública é muito mais eficaz no desiderato de dissuadir reiterações.
É lamentável que os advogados tenham sido excluídos do alcance
da multa do contempt of court, parecendo-nos de duvidosa constitucionalidade a regra de isenção prevista no preceptivo legal antes citado.
Primeiro, porque o Estatuto da OAB não contempla o dever previsto no
inciso V do art. 14 do CPC. Qual dos deveres do advogado poderá ser
violado com o embaraço ao cumprimento de provimento mandamental
(inclusive a tutela antecipada)? De toda sorte, qualquer penalidade que
possa ser aplicada ao advogado, com base no Estatuto da Ordem, não
teria cunho patrimonial, mas meramente disciplinar, perdendo bastante
em eficácia dissuasória. Ademais, a afetação de todos os demais partícipes do processo, inclusive o juiz e os auxiliares da justiça, submetidos
também a regimes jurídicos de responsabilização próprios, não autorizaria
a exclusão dos advogados.
É certo que os advogados, no processo, não agem em nome próprio,
e sim em nome das partes a quem representam. Cumprem, portanto,
mandato. Mas esta circunstância não lhes retira a responsabilidade direta
pelos próprios atos. No processo, temos atos das partes, inclusive os
praticados pelo advogado em nome destas, e atos dos advogados que não
se compreendem na relação de mandato. Se a parte se oculta para não
ser intimada para cumprir a decisão mandamental, não pode o advogado
ser responsabilizado. Mas se o advogado, por exemplo, orienta a parte a
descumprir a ordem judicial ou cria embaraços ao cumprimento por esta
da referida ordem, obviamente que tal atitude lhe deve ser diretamente
imputada.
Dizer que o advogado não está submetido hierarquicamente ao juiz,
o que é totalmente correto, não afasta também a possibilidade de ser-lhe
aplicada a multa. O juiz, no processo judicial, não coíbe abusos e aplica
multas em razão de eventual posição hierárquica superior em relação aos
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demais partícipes do processo, mas sim porque detém o que se convencionou chamar de poderes decisórios e éticos, que representam muito
mais deveres de garantir a efetividade das decisões judiciais. Não se pode
confundir os poderes deontológicos do órgão de classe, aos quais estão
vinculados todos os advogados, com os poderes decisórios e éticos do
juiz, que devem ser acatados por todos os que do processo participem.
Discutiu-se se os Procuradores das entidades e órgãos que se compreendem no conceito de Fazenda Nacional, aí incluídos os Procuradores
do INSS, os Procuradores da Fazenda, os Procuradores dos Estados, os
Advogados da União e os Defensores Públicos, por exemplo, estariam
excepcionados da multa decorrente do contempt of court.
O § 1º do art. 3º da Lei n° 8.906, de 7 de julho de 1994 (EOAB),
dispõe que:
“Exercem atividade de advocacia, sujeitando-se ao regime desta Lei, além do
regime próprio a que se subordinem, os integrantes da Advocacia-Geral da União, da
Procuradoria da Fazenda Nacional, da Defensoria Pública e das Procuradorias e das
Consultorias Jurídicas dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas
entidades da administração indireta e fundacional”.
Dois aspectos nos fizeram sustentar que os Procuradores de entidades públicas não estavam abrangidos pela exclusão da sanção
prevista no parágrafo único do art. 14 do CPC. O primeiro era de
ordem gramatical. O referido preceptivo legal está assim grafado:
“Ressalvados os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB (grifamos), a violação do disposto no inciso V deste artigo
constitui ato atentatório ao exercício da jurisdição (...)”. A ausência de
vírgula depois de “advogados” deixa claro que apenas os advogados
que se submetam exclusivamente aos estatutos da OAB é que estão
excepcionados. Com efeito, os procuradores públicos não se submetem
exclusivamente aos estatutos da OAB, mas sim a este estatuto e também
aos regimes jurídicos próprios de suas carreiras. O segundo motivo era
de ordem teleológica. A alteração legislativa cogitada tem como escopo
evidente proporcionar maior efetividade à prestação jurisdicional, criando
mecanismos voltados para coibir a prática de atos que constituam óbice
à concretização dos comandos judiciais. Neste contexto, não se poderia
validamente deixar de implicar também os procuradores públicos, que,
partícipes do processo, não raro são responsáveis diretos pelo descum80
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primento de ordens judiciais, impondo, sob o pretexto de bem defender a
entidade ou o órgão público que representam, embaraços de toda ordem,
em recrimináveis atitudes de desprestígio ao Poder Judiciário.
O correto seria, dissemos, a implicação tanto de advogados como
de procuradores públicos. Com isso, estaria preservado o princípio
isonômico. Advertimos, dessarte, que a exclusão apenas dos advogados – tal como se infere da interpretação do texto legal – consistiria
flagrante violação do citado princípio, ensejando a inconstitucionalidade do dispositivo legal, o que, certamente, haveria de ser sustentado
junto ao STF pelos procuradores públicos.14
Nossa previsão confirmou-se: foi exatamente isto que ocorreu. A
ANAPE – Associação Nacional de Procuradores de Estado – propôs, no
Supremo Tribunal Federal, a ADIn n° 2.652-6/600, argüindo a inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 14, por violação ao princípio
isonômico e por conferir aos juízes poderes de punição que somente a
OAB detém. O STF, pondo fim à discussão, em sessão de 08 de maio de
2003, por unanimidade, com base no voto do relator, Ministro Maurício
Corrêa, julgou procedente a ADIn, dando ao texto do parágrafo único
do art. 14 do CPC interpretação “conforme”, sem redução de texto, para
que a exclusão alcance também os procuradores públicos.
Remanesce, de qualquer sorte, a possibilidade de advogados e procuradores públicos responderem pecuniariamente por litigância de má-fé
nas demais hipóteses legais, com base nos arts. 14, 17 e 18 do CPC. O
STJ, por sua 2a Turma, entendeu que é possível a aplicação de multa por
litigância de má-fé, com base nos arts. 14, II, 17, VII, e 18, caput, do
CPC, a ser suportada pelo advogado que interpõe recurso com propósito
meramente protelatório. Consulte-se a ementa do julgado:
“PROCESSO CIVIL – EMBARGOS DE EMBARGOS DE DECLARAÇÃO –
LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ – RECURSO PROTELATÓRIO – CONDENAÇÃO DO
PROCURADOR AO PAGAMENTO DE MULTA – 1. Inexistência de omissão, mas
inconformismo da parte com o julgamento do Recurso Especial. 2. Embargos de declaração interpostos com propósito meramente protelatório, buscando retardar o desfecho
da demanda. 3. Aplicação de multa de 1% (um por cento), além de indenização de 3%
(três por cento), ambos incidentes sobre do valor atualizado da causa, a ser suportada
14
Tutela Antecipada na Seguridade Social. São Paulo: LTR, 2003, p. 150.
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pelo advogado subscritor do recurso, nos termos do art. 14, II c/c 17, VII e 18, caput, do
CPC, pois é dever das partes e dos seus procuradores proceder com lealdade e boa-fé.
4. Embargos de declaração rejeitados, com imposição de multa e indenização”. (STJ,
EEREsp 435824/DF, 2ª Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, DJU 17.03.2003)
4. O contempt of court e a Assistência Judiciária Gratuita
A parte que reside em juízo sob os auspícios da assistência judiciária
gratuita, porque se declara impossibilitada de custear as despesas do
processo sem prejuízo do sustento próprio ou de sua família, nos termos
do art. 4° da Lei nº 1.050/51, fica dispensada do pagamento de custas,
honorários periciais e advocatícios. Quanto aos honorários advocatícios,
é cônsona a jurisprudência no sentido de que a condenação é devida,
restando a execução da verba condicionada à alteração da situação
econômica do condenado, incumbindo ao exeqüente o ônus da prova.
Indaga-se se o beneficiário da assistência judiciária gratuita estaria
imune aos efeitos da multa do contempt of court. Evidentemente que a
resposta é negativa. Não se poderia conceber a atribuição de uma espécie
de imunidade para que o beneficiário da assistência judiciária gratuita pudesse descumprir decisões judiciais sem sofrer as conseqüências de seus
atos. Assim, deve a multa ser-lhe aplicada, restando a execução também
condicionada à alteração de sua situação econômica. A jurisprudência
reconhece, no caso, a incidência da multa por litigância de má-fé:
“ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA – GRATUITA – ALCANCE – COMINAÇÃO
POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ – POSSIBILIDADE – Não alcançando os benefícios da assistência judiciária gratuita, a indenização por litigância de má-fé, cabível
a imputação das sanções pecuniárias previstas pelo art. 18 do CPC, de aplicação
subsidiária, uma vez que quem atua em juízo deve arcar com um mínimo de responsabilidade, não podendo, no exercício de seu direito de ação, prejudicar a terceiros”.
(TRT 15ª Região, Proc. 8768/03 (12150/03), 1ª Turma, Rel. Juiz Luiz Antonio Lazarim,
DOESP 16.05.2003, p. 9)
5. A sanção pecuniária
A multa cominada aos partícipes do processo, por descumprimento de
decisão judicial mandamental, final ou antecipatória, ou por embaraço à
efetividade de decisão judicial, não tem caráter compensatório, porquanto não visa a indenizar o prejuízo da parte prejudicada pelas condutas
recriminadas, mas sim a punir o desrespeito contra a autoridade do Poder Judiciário, tanto que o seu valor é vertido aos cofres públicos. Sua
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natureza é, portanto, de verdadeira “pressão psicológica”, de instigação
ao cumprimento das ordens judiciais.
Importante referir, consoante dispõe o citado artigo, que a multa
decorrente do contempt of court não inibe a aplicação de outras sanções
criminais, civis e processuais. O descumprimento de ordem judicial constitui crime (prevaricação e desobediência: arts. 329 e 330 do Código Penal,
respectivamente). Quem tenha sido prejudicado pelo descumprimento da
ordem judicial poderá pleitear reparação dos danos materiais ou morais,
nos termos do art. 927 do Código Civil.15 Resta examinar, pois, qual o
alcance da expressão sanção processual. Sanção é conseqüência do
descumprimento de um dever legal, já o dissemos. Quem não se desincumbe de um ônus, como o de contestar, não sofre sanção, mas perde
a faculdade de se contrapor aos fatos articulados pelo autor, sofrendo
apenas um prejuízo processual. Sanções processuais são decorrência,
portanto, do descumprimento de deveres ou obrigações atribuídas nas
normas processuais aos partícipes do processo. As sanções processuais
de natureza pecuniária são as multas, previstas nos arts. 18 (litigância
de má-fé), 287 e 461, § 4° (descumprimento das obrigações de fazer,
não fazer e entregar coisa), 538, parágrafo único (embargos declaratórios protelatórios), 557, § 2° (agravo de instrumento inadmissível ou
infundado), e 601 (ato atentatório à dignidade da justiça praticado pelo
executado). Ao lado destas, temos as sanções processuais restritivas de
liberdade (prisão civil do devedor de alimentos e do depositário infiel,
conforme os arts. 733, § 1°, 902, § 2°, e 904 do CPC, respectivamente).
Os deveres processuais estão previstos nos incisos I a V do art. 14. No
art. 17, vamos encontrar as hipóteses caracterizadoras da litigância de
má-fé, que podem ensejar a aplicação de sanção processual pecuniária
(multa), nos termos do art. 18. O descumprimento de ordem judicial, ao
menos diretamente, não implica aplicação da sanção processual pecuniária prevista no art. 18, por litigância de má-fé. Dessarte, não há falar
em duplicidade de sanções por idêntica conduta. O descumprimento das
obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa (arts. 287, 461 e 461-A),
“Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.
“Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar
dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
15
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83
determinadas em sede de antecipação de tutela ou na sentença, autoriza
a aplicação de sanção processual pecuniária (astreintes). Poderá uma
única conduta de descumprimento da ordem judicial ensejar a incidência
de multa com base no art. 14 do CPC, em favor do Estado, e também a
multa prevista no art. 461, § 4º, do CPC, para o caso de obrigação de fazer,
não fazer ou entregar coisa, a reverter-se em favor da parte prejudicada
pela conduta, sem que se caracterize bis in idem vedado, porquanto se
trata de sanções processuais cuja cumulação é decorrência de expressa
disposição de lei. Por idêntico motivo, a incidência da multa prevista
no art. 601 do CPC, aplicável no processo de execução, para o caso de
resistência às ordens judiciais (art. 600, inciso III), não inibe a aplicação
da sanção pecuniária prevista no parágrafo único do art. 14 do CPC.
Consoante entendimento jurisprudencial dominante, é possível a
cumulação das sanções pecuniárias por litigância de má-fé e recurso
protelatório. Consulte-se o precedente do TRT da 3a Região:
“EMBARGOS DE DECLARAÇÃO – RECURSO MANIFESTAMENTE
PROTELATÓRIO – LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ – MULTAS CUMULADAS COM
INDENIZAÇÃO – Arts. 17, VI, VII, 18 e 538 do Código de Processo Civil – A
interposição de recurso meramente protelatório caracteriza litigância de má-fé, nos
termos dos incisos VI e VII do art. 17 do CPC, e em se tratando de embargos de
declaração, cumula-se a essa punição a multa prevista no art. 538 do CPC. Punições
que se cumulam por terem natureza diversa”. (TRT 3ª Região, ED 472/03, 4ª Turma,
Rel. Juiz Lucas Vanucci Lins, DJMG 22.02.2003)
Quanto ao valor da multa, a limitação a 20% (vinte por cento) do
valor da causa poderá, nos casos em que este valor é inexpressivo, tornar
inócua a sanção pecuniária. O correto seria o não-estabelecimento de
qualquer limite, de forma que ao juiz fosse lícito, sopesada a situação
particularizada do caso e consideradas, especialmente, as conseqüências
do descumprimento, aplicar multa de valor desvinculado do que foi atribuído à causa. Sem dúvida, multas de valor ínfimo não funcionam, bem
como pressão psicológica para o cumprimento de decisões judiciais. Devemos lembrar, por outro lado, que o valor atribuído à causa, conquanto
tenha inúmeras repercussões no processo (fixação da competência, base
de cálculo para honorários advocatícios, custas e outras multas), nada
obstante o devesse, nem sempre reflete o conteúdo econômico da demanda, especialmente nas ações constitutivas, declaratórias, mandamentais
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e executivas, prevalecendo o aviltamento com a finalidade de reduzir o
valor das custas processuais.
O parágrafo único do art. 14 do CPC, ao conferir poder judicial de
aplicação de multa, em razão do cometimento das condutas previstas no
seu incisoV, não faz referência a dia-multa, dando a entender que o valor
da multa, que está limitado a 20% do valor da causa, será estabelecido
em montante fixo. De fato, em outra situação, no art. 461, § 4º, o legislador aludiu a multa diária. Da mesma forma, na nova redação do § 5º
do art. 461, possibilitou o legislador a aplicação de multa por tempo de
atraso, deixando margem ao juiz para fixar a periodicidade em que a
multa se renovaria, podendo ser diária, mensal ou observar outro critério
que o magistrado entenda adequado. Parece-nos, dessarte, que a multa
do parágrafo único do art. 14 do CPC, à míngua de previsão legal para
fixação por tempo de atraso no cumprimento da decisão ou de embaraço
à efetividade do provimento judicial, deve ser estipulada em valor fixo.
A multa fixada poderá ter o seu valor revisto pelo juiz, em decisão
fundamentada, caso se revele inadequada, por insuficiência ou excessividade. Embora o art. 14 do CPC não contemple regra permissiva da
revisão do valor da multa, tal como vamos encontrar do art. 461, parece-nos induvidosa a possibilidade de aplicação analógica daquele preceptivo
legal à multa decorrente do contempt of court, obedecido sempre o limite
imposto pelo legislador (20% sobre o valor da causa).
6. Incidência, exigibilidade e exeqüibilidade da sanção pecuniária
A multa não elidida, não sendo paga no prazo fixado pelo juiz, depois
do trânsito em julgado da decisão, passa a ser exigível. Não se deve, pois,
confundir a incidência da multa, que ocorre com o decurso do prazo
Neste sentido, o precedente da 5a Turma do TRF da 4a Região: “AGRAVO DE INSTRUMENTO. MULTA. COBRANÇA CONDICIONADA AO TRÂNSITO EM JULGADO DA SENTENÇA. É perfeitamente
possível a fixação de multa diária para o caso de descumprimento da decisão, seja interlocutória (tutela
antecipada) ou definitiva. Ocorrendo o descumprimento e escoado o prazo fixado, de imediato incide a
multa. A sua cobrança, todavia, somente poderá ser feita após o trânsito em julgado da sentença, sendo que
isto não retira o caráter de coerção da multa, pois este reside exatamente na possibilidade de cobrança. Neste
sentido, encontram-se as seguintes disposições: artigo 12, § 2º, da Lei da Ação Civil Pública e artigo 213,
§ 3º, do ECA. Também, agora por último, o parágrafo único do art. 14 do CPC, que instituiu o contempt
of court”. (Agravo de Instrumento nº 2002.04.01.0046819-RS, DJU de 29.05.2002, p. 570, Relator Des.
Federal Paulo Afonso Brum Vaz)
16
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85
estabelecido pelo juiz para o cumprimento do comando judicial, com
a exigibilidade, que ocorre depois do trânsito em julgado da sentença,
mesmo quando descumprida decisão antecipatória (interlocutória). O
condicionamento da exigibilidade da multa ao trânsito em julgado decorre
da necessidade de se obter a certeza do dever de cumprir a decisão.16 Do
contrário, poder-se-ia punir a parte pelo descumprimento de uma decisão
que culminou por não ser confirmada. A inexigibilidade da multa, enquanto
não transita em julgado a sentença, embora seja corolário necessário da segurança jurídica, retira-lhe, em parte, eficácia dissuasória. Se estivéssemos
diante de multa que pudesse ser fixada por tempo de atraso (multa-diária,
v.g.), a incidência imediata faria com que o valor se exacerbasse no
interregno de tempo que decorre até o trânsito em julgado, correndo
este prazo por conta do recalcitrante. Assim, somente a certeza de um
provimento final favorável justificaria o não-cumprimento. Sendo fixo o
valor da multa, sem dúvida, o caráter inibitório tende a sofrer redução.
Impõe consignar que nem sempre um desfecho de mérito favorável
em derradeira instância será sinônimo de isenção de multa aplicada no
curso do processo. O tribunal poderá manter a multa, embora assegurando
vitória àquele que a ela deva se submeter, entendendo, por exemplo, que
o embaraço à efetividade de determinada decisão judicial interlocutória
mandamental foi injustificado, não restando o cumprimento desta decisão
prejudicado, no todo ou em parte, pela solução final favorável.
Alude o comentado preceptivo legal a trânsito em julgado da decisão
final da causa, como sendo o marco inicial para a contagem do prazo
fixado para a exigibilidade da multa. Tratando-se de ação cautelar, deve-se
considerar o trânsito em julgado da sentença que a decide ou o trânsito
em julgado da sentença que decide a ação principal? A ação cautelar,
embora possua autonomia procedimental, estrutural e funcional, é instrumental em relação à ação principal. Não constitui, por assim dizer,
um fim em si mesma, senão que uma garantia de eficácia probatória ou
executiva da tutela alcançada na ação principal. Há, entre a ação cautelar
e a principal, uma relação de íntima interdependência – é o que a doutrina
Carnelutti referia-se ao processo cautelar como o processo não definitivo, provisório ou cautelar: aquele
que não basta a si mesmo, porquanto serve a garantir o êxito de um outro processo (Istituzioni del processo
civile italiano. Roma: Ed. del Foro Italiano, 1956, v. I, p. 45-6).
17
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convencionou chamar de referibilidade.17 Assim que a improcedência da
ação principal afeta e torna insubsistente a tutela cautelar. Dessarte, ao
nosso pensar, a cobrança da multa, a que alude o parágrafo único do art.
14 do CPC, em regra, deve aguardar o trânsito em julgado da sentença
do processo principal.
A multa será inscrita, sempre, como dívida ativa da União ou do
Estado. A expressão sempre, parece-nos, tem sentido duplo: 1. tornar
obrigatória a inscrição em dívida ativa, de forma que à Administração
não é lícito deixar de fazê-lo, quando, por exemplo, a seu critério, o
valor da multa revelar-se ínfimo, tornando antieconômica a inscrição.
A obrigatoriedade de inscrição da multa em dívida ativa, entretanto,
não constitui imposição quanto à execução do débito correspondente;
2. estabelecer que somente poderá ser cobrada, pela Fazenda Estadual
ou Nacional, depois de inscrita em dívida ativa. Esta inscrição é que lhe
atribui a exeqüibilidade.
Pode-se dizer, em síntese, que a multa incide com descumprimento
da ordem no prazo fixado, torna-se exigível com o trânsito em julgado
da sentença e pode ser executada depois de lançada em dívida ativa.
O cumprimento da decisão judicial, quando ocorrer dentro do prazo
fixado pelo juiz, obsta a sua incidência, mas se ocorrer a destempo não,
a menos que o juiz releve o atraso. Aqui, diferentemente da multa fixada
por tempo de atraso (multa cujo valor se renova e se acumula em razão
da periodicidade: dia, mês etc.), inexistindo a superposição de valores
em função do tempo de atraso, não há falar em cessação da incidência da
multa apenas pelo cumprimento da decisão judicial. Para que não incida a
multa é preciso que o cumprimento, repito, se dê no prazo fixado pelo juiz.
Soa adequado não ter o legislador conferido poder ao próprio juiz para,
de ofício, dar início à execução, a exemplo do que ocorre na Justiça do
Trabalho, que hoje dispõe de competência para executar as contribuições
sociais decorrentes de seus julgados (art. 114, § 3º, da CF, EC nº 20/98).
Esta regra, concessa venia, torna o juiz trabalhista um agente auxiliar de
arrecadação, atuando na apuração do débito, na certificação e na execução, de forma a misturar as atividades administrativas e jurisdicionais.
O juiz, depois do trânsito em julgado da sentença final, deverá encaminhar as peças respectivas dos autos às Procuradorias das Fazendas
Estadual ou Federal conforme se trate de processo que tramite na Justiça
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004
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do Estado ou na Justiça Federal. Estando o juiz estadual no exercício de
competência delegada federal (art. 109, § 3°, da CF), a multa, de igual
sorte, reverte-se ao Estado, porquanto o descumprimento da decisão
judicial afeta o prestígio da Justiça do Estado.
A multa inscrita pelo Estado ou pela União passa a ser dívida ativa,
extraindo-se Certidão de Dívida Ativa (CDA), título executivo que autoriza a propositura da execução, que será processada com base no rito
da Lei 6.830/80, a conhecida Lei de Execuções Fiscais, que também
permite a execução de dívidas não-tributárias.
7. O contempt of court e a prisão civil
A nova redação do art. 14 do CPC, no seu parágrafo único, não contemplou expressa autorização para o juiz determinar a prisão civil daquele
que descumpre decisões legítimas do Poder Judiciário. Sabemos que o
contempt of court do direito anglo-americano alicerça-se em duas medidas coercitivas principais: a prisão civil e a multa pecuniária. Indaga-se,
dessarte, se o sistema brasileiro permitiria ao juiz, diante da ausência
de expressa autorização legal, decretar a prisão civil. Depois de muita
reflexão sobre o assunto, chegamos à conclusão de que não é possível a
decretação da prisão civil por descumprimento de decisão judicial. Estes
os fundamentos de nossa posição.
Não há no citado art. 14, nem no art. 461 do CPC, expressa previsão
de prisão civil como medida coertiva tendente ao cumprimento de decisão
judicial. Neste último, existe menção a requisição de força policial, o
que, nem de longe, constitui autorização para a prisão civil. Não passa
de medida de apoio à efetivação das demais cogitadas pelo § 5º do art.
461 do CPC (busca e apreensão, interdição etc.).
Sabe-se que é da essência do contempt of court do direito anglo-americano o poder atribuído ao juiz de determinar a prisão de quem,
descumprindo a ordem judicial, se conduz com menoscabo à função
jurisdicional. O contempt of court civil, tal como é conhecido no direito
anglo-americano, é voltado para o cumprimento das decisões judiciais e
não para a punição (que é traço característico do contempt of court penal).
Não obstante, poderá ensejar, ao lado da medida coercitiva pecuniária
(multa), medida coercitiva restritiva de liberdade (prisão). Esta prisão,
porque perdura enquanto persistir o descumprimento da obrigação (ou,
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se não cumprida, pelo prazo máximo fixado na decisão), não apresenta
conotação punitiva, mas sim de pressão tendente a obter o cumprimento
da ordem judicial.
O sistema do contempt of court civil que foi adotado no Brasil, a
partir da nova redação do art. 14 do CPC, não contempla a possibilidade
de prisão civil, ao contrário do sistema anglo-americano. Foi concebido
com limitação, concebendo poder judicial para aplicação, somente, de
sanção pecuniária. (parágrafo único)
Todos sabemos que é imanente às funções jurisdicionais o poder de
coerção (coertio), dispensando expressa previsão legal para a adoção
de medidas coercitivas tendentes a garantir a efetividade e a eficácia
das decisões judiciais. Pode-se dizer, de outra forma, que é intrínseco
ao próprio sistema processual, que tem, no que tange à efetividade das
decisões judiciais, suas bases fincadas no art. 461 do CPC, o poder de
o juiz adotar medidas adequadas ao cumprimento de suas decisões,
quando não se revelem eficazes aquelas previstas na lei. Há, por assim
dizer, uma espécie de poder judicial coercitivo residual. O juiz não está,
pois, limitado ao elenco de medidas coercitivas e substitutivas previstas
nos §§ 4º e 5º do art. 461 do CPC, cujo renque não é numerus clausus,
inclusive no que tange às obrigações que não sejam de fazer, não fazer
e dar (ou seja: quanto às de pagar quantia certa).
O referido poder residual de determinar medidas coercitivas tendentes
ao cumprimento de decisões judiciais encontra, entretanto, limitação, no
que concerne à prisão civil, nas disposições constitucionais que tutelam
a liberdade. A Constituição Federal de 1988 alberga um conjunto de
normas protetivas da liberdade, destacando-se os seguintes preceitos:
“Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”
(art. 5º, inciso LIV).
“Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada
da autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime
propriamente militar, definidos em lei” (art. 5º, inciso LXI).
Na perspectiva do due process of law, pode-se afirmar que somente
poderá haver prisão civil se precedente a autorização legal. A possibilidade de prisão em flagrante delito diz respeito a crime e, portanto, não
cuida de prisão civil. A autorização constitucional de prisão por ordem
escrita de juiz competente também diz respeito a delito, nos casos em
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que não exista o flagrante (prisão preventiva ou temporária).
É certo que a Constituição autoriza a prisão civil (Art. 5°, LXVII: “Não
haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário
infiel”). Não temos, todavia, disposição legal que confira autorização ao
juiz para decretar a prisão civil (por descumprimento de ordem judicial)
fora dos casos de depositário infiel e devedor de alimentos. O referido
preceptivo constitucional, se interpretado a contrario sensu, confere autorização constitucional para o legislador ordinário dispor sobre a prisão
civil nos casos em que a Constituição não veda.
Assim, o legislador ordinário poderia, sem violar dispositivo constitucional, autorizar a prisão civil, dispondo, por exemplo, no parágrafo
único do art. 14 do CPC, que, além da multa, poderá o juiz determinar
a prisão civil daquele que descumpre ou cria embaraço à efetividade de
decisão judicial. Optou por não fazê-lo, permitindo apenas a aplicação
de sanção pecuniária e abrindo mão de uma medida coercitiva – a prisão
civil – que é indubitavelmente mais eficaz.
Destarte, toda a discussão sobre se é legítima a prisão civil determinada
em razão do descumprimento de ordem judicial de obrigação de pagar
quantia, possibilidade que tem sido negada pela doutrina em razão do
alcance que se atribui à vedação constitucional, que, de resto, está afinada
com a posição firmada pelo Brasil em Tratados Internacionais (Pacto
de San Jose da Costa Rica), parece-nos irrelevante, porquanto não há
previsão do legislador ordinário para a prisão civil por descumprimento
de ordem judicial.
8. O contempt of court e as repercussões na esfera penal
Em boa hora o legislador reformista, ao disciplinar o instituto do
contempt of court, ressalvou a possibilidade de incidirem cumulativamente as sanções penais, processuais e civis pertinentes. A ressalva
é importantíssima porque parte da doutrina e da jurisprudência tem
como certa a atipicidade da conduta de desobediência à ordem judicial
quando a lei cominar ao mesmo fato penalidade civil ou administrativa,
sem ressalvar a possibilidade de incidência cumulativa. Neste sentido,
colaciono precedente do STJ:
“PENAL. CRIME DE DESOBEDIÊNCIA. DETERMINAÇÃO JUDICIAL ASSEGURADA POR SANÇÃO DE NATUREZA CIVIL. ATIPICIDADE DA CONDUTA.
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As determinações cujo cumprimento for assegurado por sanções de natureza civil,
processual civil ou administrativa, retiram a tipicidade do delito de desobediência, salvo
se houve ressalva expressa da lei quanto à possibilidade de aplicação cumulativa do
art. 330 do CP. Ordem concedida para cassar a decisão que determinou a constrição do
paciente, sob o entendimento de configuração do delito de desobediência”. (5a Turma,
HC n° 16.940/DF, Min. Jorge Scartezzini, j. 25.06.2002)
Celso Delmanto, por todos, assim ensina: “As determinações cujo
cumprimento for assegurado por sanções de natureza civil ou processual civil tal quanto às administrativas, retiram tipicidade do delito de
desobediência (TACRIMSP, RT 713/350)”. (Código Penal Comentado,
5.ed., Rio: Renovar, 2000, p. 586)
É certo que não se faz necessária a expressa ressalva de incidência
cumulativa do art. 330 do CP, como diz a ementa do precedente antes
citado, bastando a ressalva da aplicação cumulativa de sanções penais,
tal como fez o parágrafo único do art. 14 do CPC, ao dispor que, sem
prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, poderá o
juiz aplicar multa ao responsável.
O descumprimento de ordem judicial, em princípio, caracteriza o
delito de prevaricação (art. 329 do CP), se a conduta for praticada por
funcionário público no exercício da função, ou crime de desobediência
(art. 330 do CP), quando se trate de crime de particular contra a Administração. A grande discussão que se trava diz respeito à possibilidade de
ser decretada a prisão em flagrante daquele que descumpre decisão mandamental final ou antecipatória da tutela, qualquer que seja a sua espécie
(genérica ou específica). A primeira questão que se põe, quanto à prisão
em flagrante, é se pode ser ela decretada por juiz cível. A jurisprudência,
quase que de forma uníssona, tem entendido que somente o juízo criminal
Acerca da possibilidade da prisão em flagrante pelo cometimento do crime de desobediência em razão do
descumprimento de ordem judicial, podemos elencar as opiniões favoráveis de Joel Dias Figueira Júnior
(Comentários à novíssima reforma do CPC, Rio de Janeiro: Forense, 2002, pp. 75/90), Luiz Guilherme
Marinoni (Novas Linhas do Processo Civil, São Paulo: Malheiros, 1996, pp. 87/88) e Sérgio Cruz Arenhart (A
tutela inibitória da intimidade, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, pp. 206/213). Consulte-se o escólio
de Joel Dias Figueira Júnior (Comentários à novíssima reforma do CPC, Rio de Janeiro: Forense, 2002, p.
87): “Parecem-nos ilógicos os entendimentos que rechaçam a possibilidade de prisão por descumprimento
de ordem judicial oriunda de juiz cível ou trabalhista, porquanto não se pode imaginar que, ‘qualquer um do
povo’ possa prender em flagrante delito algum transgressor, enquanto assim, igualmente, não o possa fazer
o magistrado, por intermédio de sua longa manus, que é o oficial de justiça, imbuído do ofício jurisdicional
e constitucional. Se assim não for, inversamente, haverá de presenciar impávido a desobediência, a chicana,
o atentado ao exercício legítimo da jurisdição, em incrédulo ostracismo sócio-político, contentando-se com
18
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91
é que pode decretar a prisão em flagrante (STJ, HC nº 4031, 5a Turma,
j. 18.12. 95, Min. José Dantas; TRF4, HC 97.04.12030-3­/97, 2a Turma,
DJU 16.07. 97, p. 54.723, Rel. Des. Federal Tania Escobar; e TJRR, HC
013/02, T. Crim., DPJ 21.03.2002, p. 03, Des. Carlos Henrique)
Dessarte, ao juiz do cível incumbe apenas determinar a extração de
cópias das peças dos autos e remessa para o Ministério Público, a fim de
que tome as providências cabíveis, nos termos do art. 28 do CPP. Neste
sentido, é a posição do Colendo Superior Tribunal de Justiça:
“Desobediência a ordem judicial. Ofício ao Ministério Público. Contempt of court.
Não constitui ato ilegal a decisão do Juiz que, diante da indevida recusa para incluir em
folha de pagamento a pensão mensal de indenização por ato ilícito, deferida em sentença
com trânsito em julgado, determina a expedição de ofício ao Ministério Público, com
informações, para as providências cabíveis contra o representante legal da ré. Recurso
ordinário improvido”. (Superior Tribunal de Justiça, Recurso Ordinário em Mandado
de Segurança nº 1997.00.86776-5/MG, 4a Turma, DJU 14.06.99, p. 191, RSTJ, Vol.
122, p. 292, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar)
A introdução do contempt of court em nosso sistema legal não altera
esta perspectiva de atuação do juízo cível, consoante têm apregoado
autores de renome.18 Dizer que a Constituição autoriza a qualquer um do
povo a prender em flagrante delito e que, portanto, não se poderia afastar
do juiz cível esta prerrogativa, é olvidar a trepidante distinção que existe
entre prender e decretar a prisão. Ocorre que, no primeiro caso, uma vez
efetuada a prisão, deverá esta ser comunicada ao juiz competente (art.
5º, inciso LXI, da CF), que é, sem dúvida, o juiz a quem compete o julgamento da ação penal pelo crime cometido. Se decretada a prisão por
a vetusta, porém risível, remessa de peças materializadoras da infração ao Ministério Público, a fim de que
apure, em melodioso processo criminal, a responsabilidade do malsinado recalcitrante, o que terminará por
findar como tantas outras quimeras jurídicas”. (op. cit. p. 87 usque 88)
19
Segundo o escólio de Weber Martins Batista, “o estado natural do acusado, e, com mais razão, do indiciado, é em liberdade. Assim, as restrições a esse estado estão limitadas pela mais rigorosa necessidade; a
medida dessa necessidade, a seu turno, não fica entregue ao livre exame do juiz; ao contrário, está sujeita
a pressupostos previstos em lei; por último, essa previsão legal deve conter-se dentro dos limites impostos,
explícita ou implicitamente, pela Constituição. Desse modo, quando a prisão provisória não é absolutamente
necessária como garantia do processo ou da sociedade, e quando, por outro lado, não for suficiente para esse
fim colocar ou deixar o réu em liberdade sem qualquer vínculo, recorre-se à liberdade provisória”. (apud
Liberdade Provisória, Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 37)
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juiz competente, não se faz necessária qualquer comunicação. Dessarte,
o enfoque, afastada a primeira hipótese, deve ser outro: caberia a manutenção da prisão em flagrante, pelo juiz criminal competente, daquele
que é acusado do crime de desobediência ou prevaricação?
Pensamos que, não obstante em tese isto até seja possível, na prática,
revela-se remotíssima tal possibilidade. Primeiro, porque, nos termos
do art. 69, parágrafo único, da Lei nº 9.099/95, assumindo o autor do
fato o compromisso de comparecer ao juizado, não se imporá prisão em
flagrante, nem se exigirá fiança. Ainda que assim não fosse, seria o caso
de se verificar se não caberia fiança ou liberdade provisória independentemente de fiança. Se negativo, teria que estar presente uma das hipóteses
que autorizam a prisão preventiva (art. 312 do CPP), considerando-se,
inclusive, que o quantitativo de penas para os delitos em questão ensejará
a substituição de eventual pena privativa de liberdade por restritiva de
direito, o que torna ainda mais distante a possibilidade de manutenção
de segregação provisória.
Desta forma e na linha remansosa da doutrina19 e da jurisprudência,
sobretudo dos precedentes do Supremo Tribunal Federal no sentido de
restringir ao máximo os casos de prisão cautelar, privilegiando, sempre
que possível, em homenagem ao princípio constitucional da inocência,
“PRISÃO PREVENTIVA. EXCEPCIONALIDADE. Em virtude do princípio constitucional da não-culpabilidade, a custódia acauteladora há de ser tomada como exceção. Cumpre interpretar os preceitos
que a regem de forma estrita, reservando-a a situações em que a liberdade do acusado coloque em risco os
cidadãos. (...)”. (STF, HC nº 83.534-1/SP, DJU 27.02.2004, p. 27, Rel. Min. Marco Aurélio)
21
“PENAL E PROCESSUAL – PREVARICAÇÃO – DENÚNCIA – DOLO ESPECÍFICO – Descrição e
demonstração. Ausência. Inépcia. Defesa. Cerceamento. O delito prevaricação exige, para sua configuração,
dolo específico, consistente no intuito de satisfazer interesse ou sentimento pessoal (art. 319, última parte,
CP). A denúncia conterá a exposição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias (art. 41 do CPP). A
ausência de descrição de qualquer elementar do tipo penal mutila a acusação, cerceia o exercício do direito
de defesa e torna inepta a denúncia. Precedentes do STJ e do STF. Ordem concedida, para anular a decisão
que recebeu a denúncia, impondo o trancamento da ação penal e a revogação do afastamento do paciente
do cargo de prefeito municipal de Jaicós, imposto pela câmara criminal.” (STJ – HC 30792/PI – Rel. Min.
Paulo Medina – DJU 15.12.2003 – p. 408)
22
Temos a hipótese de descumprimento de ordem judicial cometido por Prefeito, consoante prevê o art.
1º, XIV, do Decreto-Lei nº 201/67: “deixar de cumprir ordem judicial, sem dar o motivo da recusa ou da
impossibilidade, por escrito, à autoridade competente”.
– A recusa de cumprimento a decisões do Poder Judiciário, enquanto crime de responsabilidade, tal como
prevê a Constituição Federal, no art. 85, inciso VII, e a Lei nº 1.079/50, constitui delito próprio, que é
praticado pelo Presidente da República e seus Ministros de Estado e pelos Governadores e seus secretários.
20
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o direito do acusado responder ao processo em liberdade,20 pensamos
que seria um esforço inútil e injustificável a decretação da prisão daquele
que recalcitra no descumprimento de decisões judiciais.
Não fossem suficientes essas dificuldades, temos ainda, para o aperfeiçoamento do delito de prevaricação, a quase intransponível necessidade de estar presente o elemento subjetivo do tipo (dolo específico),
a exigir que a conduta do agente se dê para a satisfação de interesse ou
sentimento pessoal, vale dizer, para a configuração do delito é preciso
que haja prova de ter o agente público se omitido por afeição ou ódio e
não por simples erro, dúvida ou outro motivo (negligência, comodismo,
preguiça ou indolência) que caracterize apenas a falta disciplinar.21
Sobre o crime de desobediência, o fato de ter como sujeito ativo o
particular, por si só, já constitui um problema de elevada grandeza, porquanto praticamente impede sua ocorrência nos processos que tramitam
na Justiça Federal, onde o descumprimento de decisões judiciais, na
maioria dos casos, é praticado por agentes públicos.22
Resta apenas a sugestão, para a comissão de reforma do Código Penal,
levando em consideração o grave problema da ausência de instrumentos
de natureza penal para a efetivação de decisões judiciais, de introdução
de um tipo penal que possa incriminar tanto particulares como agentes
públicos e que não exija a presença do dolo específico, sendo apenado
com pena mínima superior a dois anos, e multa de valor elevado.
9. Defesas e recursos do sujeito passivo da multa
Para que possa a multa ser aplicada, faz-se mister que: a) haja a prévia
e regular intimação para o cumprimento da medida; b) exista prova inequívoca do descumprimento da decisão mandamental, cujo cumprimento
era possível; e c) se oportunize o direito de defesa e de comprovação – do
cumprimento ou da impossibilidade de fazê-lo – por parte daquele que
tenha o dever legal de cumprir ou proporcionar o cumprimento da ordem.
Quem tem o dever de cumprir a decisão judicial poderá alegar que o
prazo fixado é demasiadamente exíguo, que a ordem era materialmente
insuscetível de ser atendida, ou que, por não ser precisa e clara, exigia
A imprecisão, dubiedade ou dúvida quanto ao alcance da ordem judicial enseja a interposição de embargos
declaratórios, para que o juiz possa explicitar o conteúdo e o alcance de sua decisão, restando suspenso o
cumprimento, enquanto não decidido o apelo aclaratório.
23
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o cumprimento maiores esclarecimentos, incumbindo-lhe o ônus de
comprovar tais alegativas.23 O caso fortuito, a força maior e o fato de
terceiro podem constituir impedimentos justificados ao cumprimento da
decisão judicial. Assim, por exemplo, uma greve que paralise as atividades de uma empresa ou mesmo de uma entidade pública poderá escusar
o descumprimento de ordens judiciais enquanto perdurar. Lembramos a
greve que paralisou as atividades dos setores administrativos do INSS,
que ficou materialmente impedido de cumprir inúmeras determinações
judiciais. Pareceu-nos aperfeiçoada uma excludente da multa. A jurisprudência, embora não seja uníssona quanto à exclusão da multa nesta
hipótese, registra precedentes neste sentido: “A greve, sendo motivo de
força maior, permite a prorrogação dos prazos fixados para cumprimento de ordem judicial, não sendo cabível multa no período de duração
do movimento paredista. Precedentes”. (TRF da 4a Região, 5a Turma,
Agravo de Instrumento nº 2002.04.01.035719-9/RS, Rel. Des. Federal
Paulo Afonso Brum Vaz)
A multa fixada à parte ou ao terceiro em decisão interlocutória deve
ser atacada por meio de agravo de instrumento, podendo o agravante
postular o efeito suspensivo, nos termos do art. 527 do CPC. Aqui devemos lembrar que execução da multa está condicionada ao trânsito em
julgado da decisão, circunstância que recomenda o agravo retido, para ser
apreciado conjuntamente com o subseqüente recurso de maior alcance.
Parece-nos pertinente anotar que, por esta mesma razão, que afasta o
periculum in mora, poderá o relator do agravo de instrumento, fazendo
uso da faculdade que lhe confere o art. 527, II, do CPC, convertê-lo em
agravo retido, remetendo os respectivos autos ao juiz da causa. Caso
fixada a multa em sentença, incumbe ao afetado apresentar seu inconformismo por meio de apelação. Indaga-se se sujeito passivo da multa
fixada em decisão interlocutória poderá impugná-la apenas na apelação
contra a sentença que lhe tenha sido desfavorável. Entendemos que sim.
O condicionamento da execução da multa ao trânsito em julgado da
sentença final afasta a preclusão, permitindo que o interessado, mesmo
não tendo interposto o agravo, possa discutir a matéria na apelação.
Obviamente, a ausência de recurso ou a decisão desfavorável ao recorrente quanto à incidência da multa não impede o manejo dos embargos
do devedor quando citado para a execução fiscal, restando apenas vedaR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004
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da, ao que nos parece, a discussão acerca de ser ou não devida a multa.
Assim, a possibilidade de o executado alegar, no prazo dos embargos,
“toda a matéria útil à defesa” (art. 16, § 2º, da LEF), sofre restrição no
concernente ao mérito da multa, matéria que, por não ter sido impugnada
no momento oportuno, ou porque, impugnada, não foi a impugnação
acolhida, fica abrigada pela preclusão. Esta se dará inclusive no tocante
às questões que, podendo ser deduzidas, não o foram. Se o executado
não impugnou o valor fixado para o dia-multa, por exemplo, não poderá
fazê-lo nos embargos, mas poderá alegar que não é parte legítima para
responder pela dívida ou que o valor total da multa foi equivocadamente
calculado.
Aqui, parece-nos pertinente observar que se trata de execução mista, ou
seja, fundada em título judicial (decisão judicial que impõe e fixa o valor
da multa) e título extrajudicial (Certidão de Dívida Ativa), que consolida a
multa e autoriza a sua cobrança judicial. Esta constatação tem importância
quando se examina a incidência da nova regra do parágrafo único do art.
741 do CPC:
“Para efeito do disposto no inciso II deste artigo, considera-se também inexigível
o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo
Supremo Tribunal Federal ou em aplicação ou interpretação tidas por incompatíveis
com a Constituição Federal”.
Este dispositivo legal, que cuida da relativização da coisa julgada
inconstitucional, autoriza, na execução fundada em sentença, a retirada
da eficácia do título executivo fundado em disposição legal declarada
inconstitucional ou constitucional, em sede de controle concentrado da
constitucionalidade, pelo Supremo Tribunal Federal. Abstraídas as questões polêmicas que o tema suscita, cujo exame refoge ao presente escrito,
parece-nos que é lícito ao executado invocar a referida disposição legal
para forrar-se à obrigação que lhe é exigida, tomando por base a decisão
do STF que tenha reconhecido, conforme o caso, a constitucionalidade ou
“Habeas corpus. Prisão civil. Dívida alimentar. Alimentos provisórios. I. - É cabível a prisão civil de devedor
de pensão alimentícia quando a cobrança se refere às três últimas parcelas em atraso, anteriores à citação e
as que lhe são subseqüentes. II - A alegação de que a paciente não dispõe de condições financeiras para arcar
com o pagamento da pensão requerida envolve matéria referente à prova, não sendo possível o seu reexame
na via estreita do habeas corpus. III. - Ordem denegada. IV - Agravo regimental prejudicado”. (STJ, Habeas
Corpus nº 2002.01.10731-3/RS, 3a Turma, DJU 10.03.2003, p. 182, Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro)
24
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a inconstitucionalidade do ato normativo que tenha servido de fundamento
para a sentença do processo em que lhe foi aplicada a multa. Desconstituída
a eficácia preclusiva da coisa julgada, não subsiste a multa, a menos que
o fundamento de sua aplicação tenha sido outro.
No caso da prisão civil, caberá a impetração de habeas corpus, instrumento processual destinado à tutela dos direitos inerentes à liberdade
de ir e vir, ou o agravo de instrumento, este último quando a questão,
pelo exame aprofundado de provas que demande, não recomenda a via
angusta do habeas corpus. O STJ, reiteradamente, tem decidido que não
cabe o exame de provas em sede de habeas corpus contra prisão civil,24
o que enseja, nos casos em que a matéria não seja exclusivamente de
direito, a interposição do agravo de instrumento, recurso que também é
admitido por aquela Colenda Corte.
É certo, no entanto, que a impetração de mandado de segurança não
é admitida. Neste sentido, o precedente do Tribunal Regional Federal
da 1a Região:
“PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA IMPETRADO PARA
O FIM DE RESGUADAR DIREITO DE LOCOMOÇÃO. IMPROPRIEDADE DA
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004
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Crime de corrupção passiva: análise do art. 317 do
Código Penal
Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz *
No delito de corrupção passiva, previsto no art. 317 do CPB, a ação
que a lei incrimina consiste em solicitar (pedir) ou receber (aceitar) vantagem indevida em razão da função, ou aceitar promessa de tal vantagem,
porém a ação deve, necessariamente, relacionar-se com o exercício da
função pública que o agente exerce ou que virá exercer (se ainda não
a tiver assumido), já que é próprio da corrupção que a vantagem seja
solicitada, recebida ou aceita em troca de um ato de ofício.
Assim, nesse delito, o funcionário público mercadeja com a sua função, sendo que o ato a que visa a corrupção praticada não deve, necessariamente, constituir uma violação do dever de ofício, já que haverá o
crime mesmo se a vantagem é solicitada ou recebida para a prática de ato
regular e legal (corrupção imprópria). É imprescindível, todavia, que o
ato seja da competência do agente ou estar relacionado com o exercício
de sua função, pois, caso contrário, o crime a identificar-se será outro.
(Esse o magistério do Dr. Rui Stoco, in Código Penal e sua Interpretação
Jurisprudencial, Revista dos Tribunais, 7ª edição, 2001, v. 2, p. 3867)
Nesse sentido, julgado do antigo Tribunal de Justiça do Distrito Federal, em que foi relator o então Desembargador Nelson Hungria, verbis:
“(...). Não se pode identificar no caso vertente, como fez a sentença recorrida, o
* Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004
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crime de corrupção, passiva ou ativa, que pressupõe um ato de ofício em torno do
qual se realiza a transação. É necessário que haja a aceitação por parte do funcionário
público, ou o oferecimento a este, de vantagem indevida para a prática (ou omissão ou
retardamento) de ato pertinente à função específica do subornado ou peitado.” (Apelação Criminal nº 7.884, rel. Desembargador Nelson Hungria, in Revista de Direito
Administrativo, v. 13, jul./set. de 1948, p. 182)
No mesmo sentido, ainda, outros julgados, verbis:
“A corrupção passiva exige para a sua configuração a prática de atos de ofício,
dando ensejo ao recebimento de vantagem indevida. E por ato de ofício, consoante
uniforme jurisprudência, se entende somente aquele pertinente à função específica do
funcionário.” (TJSP, Ap. Crim. - Rel. Des. Cantidiano de Almeida, in RT 390/100)
“Se o funcionário público executa outros atos, não inerentes à sua função ou ao
próprio ofício, mesmo quan­do a sua qualidade facilite tal cumprimento ou execução,
falha definitivamente um dos extremos legais constitutivos do crime de corrupção
passiva.” (TJSP, Ap. Crim. - Rel. Des. Gonçalves Santana, in RT 381/52).
“Para a configuração do delito do art. 317 do Código Penal, é pressuposto indispensável que o ato praticado seja legal e atinente ao ofício do funcionário.” (TJSP - Rev.
Crim. - Rel. Des. Arruda Sampaio, in RT 374/164)
Da mesma forma, pronuncia-se Francesco Carrara, verbis:
“Certo è però che l’atto deve spettare allo speciale ufficio che si esercita
dall’ufficiale a cui fu dato l’indebito lucro. Se un magistrato che non giudica in un
affare prenda una mercede per raccomandare lo affare stesso ad un suo collega che vi
giudica, a procurarne lo scioglimento favorevole, egli senza dubbio farà cosa altamente
vituperosa; potrà nei debiti termini soggiacere all’accusa di vendita di fumo; ma non
potrà applicarglisi il titolo di baratteria, tranne quando egli sia agente secreto del suo
collega.” (In Programma del Corso di Diritto Criminale, 10ª ed., Casa Editrice Libraria
Fratelli Cammelli, Firenze, 1924, v. 5, p. 129, § 2.553)
Em trabalho publicado no Digesto Italiano, conclui, a respeito, o
jurista Luigi d’Antonio, verbis:
“20. Il secondo estremo del reato è l’atto d’ufficio, in cui s’incarna la corruzione.
L’atto dev’essere di quelli che entrano nella cerchia delle attribuzioni del pubblico
ufficiale, che sono sottoposti alla sua attività come parte integrante dell’ufficio a lui
affidato.
(...)
Il pubblico ufficiale nel compiere atti estranei al suo ministero non può mai esser
notato del reato di corruzione, sebbene entri in rapporti d’interessi coi privati, come, a
cagion d’esempio, se per rimunerazione­data o promessa si fosse determinato a sollecitare
un atto presso qualche altro ufficiale pubblico. In questo­caso si potrà parlare di atti che
100
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004
mettono a repentaglio­la dignità dell’ufficio, ma non già di atti che costituiscono abuso
dell’ufficio, perocchè l’abuso presuppone l’uso. Per gli atti estranei all’ufficio non esiste
­la violazione dei doveri del pubblico ufficiale e non rimane lesa la fiducia in lui riposta.”
(‘Corruzione di Pubblico Ufficiale’, in Il Digesto Italiano, Unione Tipografico-Editrice,
Torino, 1898-1900 v. VIII, parte terza, pp. 987/988)
A doutrina antes transcrita restou consagrada pelo Eg. Supremo Tribunal Federal em memorável julgado, publicado na RTJ 162/3, quando
do julgamento da Ação Penal nº 307-DF, verbis:
“Ação criminal. Código Penal. Corrupção passiva (art. 317, caput), corrupção
ativa de testemunha (art. 343), coação no curso do processo (art. 344), supressão de
documento (art. 305) e falsidade ideológica (art. 299). Preliminares: inadmissibilidade
de provas consideradas obtidas por meio ilícito e incompetência do Supremo Tribunal
Federal para os crimes do art. 299, à ausência de conexão com o de corrupção passiva,
que determinou a instauração do processo perante essa Corte, posto que atribuído,
entre outros, a presidente da república.
1. Crimes de corrupção passiva (art. 317, caput) atribuídos, em concurso de pessoas,
ao primeiro, ao segundo e ao terceiro acusados, e que, segundo a denúncia, estariam
configurados em três episódios distintos: solicitação, de parte do primeiro acusado, por
intermédio do segundo, de ajuda, em dinheiro, para a campanha eleitoral de candidato
a Deputado Federal; gestões desenvolvidas pelo primeiro acusado, por intermédio do
Secretário-Geral da Presidência da República, junto à direção de empresas estatais, com
vistas à aprovação de proposta de financiamento de interesse de terceiros; e nomeação
do Secretário Nacional dos Transportes em troca de vultosa quantia que teria sido paga
por empreiteira de cuja diretoria participava o nomeado, ao segundo acusado, parte da
qual teria sido repassada ao primeiro.
1.1. Inadmissibilidade, como prova, de laudos de degravação de conversa telefônica
e de registros contidos na memória de microcomputador, obtidos por meios ilícitos
(art. 5º, LVI, da Constituição Federal); no primeiro caso, por se tratar de gravação realizada por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro, havendo a degravação
sido feita com inobservância do princípio do contraditório, e utilizada com violação
à privacidade alheia (art. 5°, X, da CF); e, no segundo caso, por estar-se diante de
microcomputador que, além de ter sido apreendido com violação de domicílio, teve
a memória nele contida sido degravada ao arrepio da garantia da inviolabilidade da
intimidade das pessoas (art. 5°, X e XI, da CF).
1.2. Improcedência da acusação. Relativamente ao primeiro episódio, em virtude não
apenas da inexistência de prova de que a alegada ajuda eleitoral decorreu de solicitação
que tenha sido feita direta ou indiretamente, pelo primeiro acusado, mas também por
não haver sido apontado ato de ofício configurador de transação ou comércio com o
cargo então por ele exercido. No que concerne ao segundo, pelo duplo motivo de não
haver qualquer referência, na denúncia, acerca de vantagem solicitada ou recebida pelo
primeiro acusado, ou a ele prometida, e de não ter sido sequer apontado ato de ofício
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prometido ou praticado pelo primeiro acusado; e, quanto ao último, por encontrar-se
elidida, nos autos, a presunção de que os créditos bancários e pagamentos efetuados
pelo segundo acusado em favor do primeiro, decorreram de vantagem ilícita paga
pela empreiteira pela nomeação de seu ex-diretor, ante a plausibilidade da explicação
dada pelos acusados de que, ao revés, tais transferências foram custeadas pelos saldos
de recursos arrecadados para a campanha eleitoral de 1989, cuja existência restou
demonstrada por meio de exame pericial.
2. Crimes dos arts. 343, 344 e 305 atribuídos, em concurso de pessoas, ao segundo,
ao terceiro e ao quarto acusados.
2.1. Improcedência da denúncia referentemente ao crime do art. 343, posto não
haver resultado demonstrado haverem os acusados dado, oferecido ou prometido,
qualquer vantagem às testemunhas apontadas, nem, tampouco, que lhes houvessem
eles sequer induzido à prestação de falso testemunho; ao do art. 344, face à ausência
de prova de uso de violência ou de grave ameaça contra as ditas testemunhas, por
qualquer dos acusados; e, no que tange ao do art. 305, não apenas por falta de prova da
destruição de documentos (recibos de pagamento de aluguel de veículo), mas também
da própria existência destes, aliada à circunstância de não serem eles indisponíveis.
3. Crimes de falsificação ideológica (art. 299) de faturas e notas fiscais, atribuídos
ao segundo acusado.
3.1. Improcedência da denúncia, nesse ponto, ante a ausência de prova, seja da
materialidade, seja da autoria dos delitos.
4. Crimes de falsificação ideológica (art. 299) consistentes na abertura de contas
correntes bancárias e movimentação de cheques em nomes fictícios, nas praças de
Brasília e de São Paulo, atribuídos, em concurso de pessoas, ao segundo, à sexta, à
sétima, ao oitavo e ao nono acusados.
4.1. Inconsistência da tese de haver-se esfumado, com a rejeição da denúncia pelo
crime de quadrilha, a razão pela qual os ditos crimes, por efeito de conexão, foram
incluídos na denúncia e, em conseqüência, atraídos para a competência do STF.
Liame que, ao revés, está revelado por diversas circunstâncias, avultando a de haverem as mencionadas contas sido utilizadas como meio de viabilizar a transferência,
para o primeiro acusado, das vantagens consideradas indevidas, com ocultação de sua
origem.
4.2. Autoria comprovada, inclusive por comissão, do segundo acusado, como mentor, e da sétima acusada, como executora, relativamente à falsificação, ocorrida em
Brasília e em São Paulo, das contas bancárias e dos cheques enumerados na denúncia;
comprovação, por meio de perícia técnica, realizada em juízo, de que o oitavo acusado
foi o autor do crime, relativamente à emissão de dois cheques (nos 773.710 e 773.704) e
ao endosso de mais quatro (nos 072.170, 072.171, 072.172 e 072.173), do Banco Rural,
todos apontados na denúncia; e de que o quinto acusado também o foi, relativamente
à abertura das contas correntes nos 01.6173-0 e 01.6187, no Banco Rural.
4.3. Descabimento da pretendida descaracterização dos ilícitos, ao fundamento
de ausência de prejuízo, ante a evidência de haverem sido praticados com o ma-
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nifesto propósito de escamotear a verdade sobre fatos juridicamente relevantes (a
existência, a origem e a destinação do dinheiro depositado nas contas abertas em
nomes fictícios).
4.4. Desarrazoada, por igual, a alegação de que a sétima acusada agiu à falta de
conhecimento potencial quanto à ilicitude dos atos praticados e sob sujeição de poder hierárquico. Primeiramente, por haver, ela própria, revelado o conhecimento da
ilicitude de sua conduta, com o que afastou a ocorrência de erro de proibição, que se
caracteriza pela absoluta inconsciência do injusto. E, em segundo lugar, diante da falta
de comprovação de que as instruções recebidas de seu empregador, relativamente às
contas fictícias que abriu e movimentou, vieram acompanhadas de ameaça de qualquer
natureza; do caráter manifesta e reconhecidamente ilegal dessas instruções; e do fato
de não se estar diante de relação hierárquica de direito administrativo, circunstâncias
que afastam a segunda excluente.
4.5. Denúncia declarada improcedente, relativamente: a) ao nono acusado, por
insuficiência da prova de haver falsificado os cheques nos 419.567 e 696.811, do Banco
Rural; b) à sexta acusada, à ausência de prova de haver sido ela autora da falsificação
do cheque n° 443.414, do Banco Rural e da abertura da conta de depósito n° 01.61012, e por insuficiência de prova de ter falsificado os cheques nos 412.672, 412.674 e
412.679, do Banco Rural; e c) ao quinto acusado, por insuficiência de prova, no que
tange à imputação de haver aberto a conta n° 01.6101-2, do Banco Rural e contra ela
movimentado cheques.
4.6. Reconhecimento da continuidade delitiva tão-somente no concernente às falsificações verificadas na mesma praça. Orientação assentada no STF.
4.7. Reconhecimento da primariedade e dos bons antecedentes, relativamente a
todos os acusados.”
Esse entendimento foi reafirmado pela Suprema Corte no Inquérito
nº 785-DF, in RTJ 176/50, verbis:
“Crime de corrupção passiva. Art. 317 do Código Penal.
A denúncia é uma exposição narrativa do crime, na medida em que deve revelar o
fato com todas as suas circunstâncias.
Orientação assentada pelo Supremo Tribunal Federal no sentido de que o crime
sob enfoque não está integralmente descrito se não há na denúncia a indicação de nexo
de causalidade entre a conduta do funcionário e a realização de ato funcional de sua
competência.
Caso em que a aludida peça se ressente de omissão quanto a essa elementar do tipo
penal excogitado.
Acusação rejeitada.”
Em seu voto, disse o eminente Ministro Celso de Mello, verbis:
“Entendo, Sr. Presidente, na linha do voto que proferi no julgamento da Ação Penal
307-DF, que o ato de ofício constitui requisito indispensável à plena configuração típica
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do crime de corrupção passiva, tal como vem este delito definido no art. 317, caput,
do Código Penal. A essencialidade do ato de ofício torna-o elemento imprescindível
ao exame da subsunção de determinado comportamento ao preceito de incriminação
constante da norma penal referida.
Sem que o agente, executando qualquer das ações realizadoras do tipo penal constante do art. 317, caput, do Código Penal, venha a adotar comportamento funcional
necessariamente vinculado à prática ou à abstenção de qualquer ato de seu ofício – ou
sem que ao menos atue na perspectiva de um ato enquadrável no conjunto de suas
atribuições legais –, não se poderá ausente a indispensável referência a determinado
ato de ofício atribuir-lhe a prática do delito de corrupção passiva.
Para a integral realização da estrutura típica constante do art. 317, caput, do Código Penal – e ante a indispensabilidade que assume esse pressuposto essencial do
preceito primário incriminador consubstanciado na norma penal em causa – é de rigor
a existência de uma relação da conduta do agente (que solicita, ou que recebe, ou que
aceita a promessa de vantagem indevida) com a prática, que até pode não ocorrer, de
um ato determinado de seu ofício.
Torna-se imprescindível reconhecer, portanto, para o específico efeito da configuração jurídica do delito de corrupção passiva tipificado no art. 317, caput, do Código
Penal, a necessária existência de uma relação entre o fato imputado ao servidor público
e um determinado ato de ofício pertencente à esfera de atribuições do intraneus.
Não custa insistir, desse modo, e tendo presente a objetividade jurídica da infração
delituosa definida no art. 317, caput, do Código Penal, que constitui elemento indispensável – em face do caráter necessário de que se reveste esse requisito típico – a
existência de um vínculo que associe o fato atribuído ao agente estatal (solicitação,
recebimento ou aceitação de promessa de vantagem indevida com, ao menos, a perspectiva da prática (ou abstenção) de um ato de ofício vinculado ao âmbito das funções
inerentes ao cargo desse mesmo servidor público.
Basta, assim, e para efeito de integral realização do tipo penal, que a conduta do
agente – quando não venha este a concretizar, desde logo, a prática (ou abstenção)
de um ato de seu próprio ofício – tenha sido motivada pela perspectiva da efetivação
ulterior de um determinado ato funcional.
Sem a necessária referência ou vinculação do comportamento material do servidor
público a um ato de ofício – ato este que deve obrigatoriamente incluir-se no complexo
de suas atribuições funcionais (RT 390/100 - RT 526/356 - RT 538/324) –, revela-se
inviável qualquer cogitação jurídica em torno da caracterização típica do crime de
corrupção passiva definido no caput do art. 317 do Código Penal.
Daí o magistério de nossa melhor doutrina penal (Magalhães Noronha, Direito Penal, vol. 4/244, item n° 1.320, 17ª ed., 1986, Saraiva), que salienta, na análise do tema,
que o comércio da função pública, caracterizador do gravíssimo delito de corrupção
passiva, reclama, dentre os diversos elementos que tipificam essa modalidade delituosa,
um requisito de ordem objetiva consistente em ‘haver relação entre o ato executado
ou a executar e a coisa ou utilidade’ oferecida, entregue ou meramente prometida ao
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servidor público faltoso.
Sem a consideração de um ato de ofício e sem que se possa vincular à conduta do
agente, como referência subordinante de sua atuação, uma prática ou omissão funcional, ou, ainda, a promessa de sua ocorrência, torna-se penalmente irrelevante, como
conseqüência necessariamente derivada da ausência de tipicidade, o comportamento
atribuído ao servidor público.
Revela-se essencial, portanto, no caso em exame, sob pena de absoluta descaracterização típica da conduta objetivada na denúncia, a precisa identificação de um ato de
ofício que, incluível na esfera de atribuições do cargo de Ministro de Estado exercido
pela ora denunciada, teria sido por esta, direta ou indiretamente, prometido ou oferecido
como resposta à indevida vantagem alegadamente solicitada, recebida ou esperada.
Definitivo, sob esse aspecto, é o magistério doutrinário de Heleno Cláudio Fragoso
(Lições de Direito Penal, vol. II/438, 1980, Forense), para quem o delito de corrupção
passiva, tal como tipificado no caput do art. 317 do Código Penal, ‘está na perspectiva
de um ato de ofício, que à acusação cabe apontar na denúncia e demonstrar no curso
do processo’.
Desse modo, assiste inteira razão a Julio Fabbrini Mirabete cujo magistério salienta
a imprescindibilidade da relação entre a conduta do agente e um ato funcional específico inscrito no complexo das atribuições legais inerentes ao cargo público (Manual
de Direito Penal, vol. 3/313-314, 9ª ed., 1995, Atlas), verbis:
‘É indispensável para a caracterização do ilícito em estudo que a prática do ato tenha
relação com a função do sujeito ativo (ratione oficii). O ato ou abstenção a que se refere
a corrupção deve ser da competência do funcionário, isto é, deve estar compreendido nas
suas especificadas atribuições funcionais, porque somente nesse caso se pode deparar
com o dano efetivo ou potencial ao regular funcionamento da administração. Além
disso, o pagamento feito ou prometido deve ser a contraprestação de ato de atribuição
do sujeito ativo (RF 201/297; JTJ 160/306; RT 374/164, 390/100). Não se tipifica a
infração se a vantagem desejada pelo corruptor não é da atribuição e competência do
funcionário (RT 505/296,526/356,538/324).
...
Pode o ato objeto do tráfico ser legítimo, lícito, justo (corrupção imprópria) ou
ilegítimo, ilícito, injusto (corrupção própria). Há crime, assim, se a vantagem é
solicitada ou recebida ou a promessa é aceita para a prática de ato regular e legal. É
indiferente, também, que se trate de ato definitivo ou irrevogável ou sujeito a recurso
e confirmação ou revogação.
Desde que a solicitação, recebimento ou aceitação tenha relação com o ato de ofício,
pode a conduta ser anterior à prática do ato (corrupção antecedente), como posterior
a esta (corrupção subseqüente). Não importa, assim, que o agente tenha solicitado ou
fixado o quantum da vantagem indevida ou que a receba no dia seguinte à prática do ato.
Ele pode praticar o ato na esperança ou convicção da recompensa imoral, vindo a aceitá-la posteriormente e de acordo com a sua expectativa. Há do mesmo modo mercancia
de função (RT 534/319, 548/306). Entretanto, é necessário que se tenham elementos
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probatórios que indiquem ter havido essa esperança ou convicção da recompensa por
parte do funcionário para que se configure o ilícito quando o pagamento efetuado ao
funcionário o foi posteriormente à prática do ato de ofício (RT 699/299).’ (Grifei)
O ilustre Magistrado paulista, Dr. Rui Stoco, ao comentar o tema pertinente ao
objeto material do crime de corrupção passiva, anota, em fundamentadas considerações, que ‘A ação que a lei incrimina consiste em solicitar (pedir) ou receber (aceitar)
vantagem indevida em razão da função, ou aceitar promessa de tal vantagem. A ação
deve necessariamente relacionar-se com o exercício da função pública que o agente
exerce ou que virá a exercer (se ainda não a tiver assumido), pois é próprio da corrupção que a vantagem seja solicitada, recebida ou aceita em troca de um ato de ofício.
O agente aqui mercadeja com sua função. O ato a que visa a corrupção praticada não
deve necessariamente constituir uma violação do dever de ofício (...). Deve, todavia, o
ato ser da competência do agente ou estar relacionado com o exercício de sua função...’
(Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, p. 3046, 5ª ed., 1995, RT – grifei)
Orienta-se, nesse mesmo sentido – indispensabilidade da existência de conduta do
agente vinculada a determinado ato de seu ofício – a jurisprudência dos Tribunais, cujo
magistério destaca que o crime de corrupção passiva somente se perfaz quando se evidencia, como pressuposto indispensável que é, que o servidor público, na concreção de
seu comportamento venal, agiu, ao menos, na perspectiva de um ato de ofício inscrito
em sua esfera de atribuições funcionais (RT 374/164 - RT 388/200 - RT 390/100 - RT
526/356 - RT 538/324).” (In RTJ 176/65-8)
Outro não é o magistério clássico de R. Garraud, em seu Traité Théorique Et Pratique Du Droit Pénal Français, Troisième Édition, Recueil
Sirey, Paris, 1922, t. 4, pp. 387/8, nº 1.526, verbis:
“1526. Pour que le crime de corruption de fonctionnaire existe, l’article 177 exige
une seconde condition. Il faut que le but à atteindre par le corrupteur consiste, soit en
un acte, soit en une abstention d’acte de la fonction de la personne corrompue. Les
termes des articles 177 et 179 sont très précis sur ce point. L’article 177 dit: ‘Pour faire
un acte de son emploi, même juste, mais non sujet à salaire...’, et 1’ar­ticle l79: ‘Pour
obtenir, soit une opinion favorable..., soit tout autre acte du ministère du fonctionnaire,
agent ou pré­posé, soit énfin l’abstention d’un acte qui rentrait dans l’exercice de ses
devoirs.’ Ces deux dispositions, bien que n’ayant pas la même rédaction, imposent
cependant la même condition pour l’existence du crime ou du délit de corruption.
Il faut que le fonctionnaire fasse ou s’abstienne de faire un acte de son emploi (art.
177), ou qu’il fasse ou s’abstienne de faire un acte de son rninistère, rentrant dans
l’exercice de ses devoirs (art. 179). Il résulte de ce caractère même que la loi française
punit, dans la corruption, le trafic de la fonction même et non le trafic de l’influence
accessoire qu’elle donne. En un mot, la corruption est un délit de fonction, bien plus
qu’un délit de fonctionnaire.
Cette proposition va nous permettre de délimiter le cercle d’application du crime
de corruption de fonctionnaire, soit au point de vue des faits qu’il embrasse, soit au
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point de vue de ceux qu’il exclut.
a) La corruption a lieu seulement à raison d’un acte de fonc­tion, c’est-à-dire d’un
acte qui fait partie des attributions légales de celui qui l’accomplit ou qui s’abstient de
l’accom­plir. Cette qualification conviendrait, par conséqueut: 1º à l’acte d’un officier
de police judiciaire, qui s’abstiendrait, moyennant argent, de dresser procès-verbal
d’un délit ou d’une contravention qu’il avait le droit et le devoir de constater; 2° à
l’acte des membres du conseil de revision, autres que les médecins et chirurgiens, qui
recevraient des dons pour exempter du service militaire des jeunes gens appelés pour
le recrutement; 3° à l’acte du secrétaire de mairie, chargé de la délivrance des passeports, qui accepterait une somme d’argent pour accomplir cet office de sa fonction; etc.
b) Si l’acte le fonctionnaire accomp1it ou dont il s’abstient à prix d’argent ne rentre
pas dans l’ordre des devoirs que la loi lui impose, le fait peut constituer une escroquerie,
mais non une corruption., à moins qu’il ne rentre dans les termes du § 5 de l’article
177. C’est ce qui a été décidé particulièrement, par un arrêt des chambres réunies de la
Cour de cassa­tion, du 31 mars 1827, pour l’acte d’un garde champêtre qui, saisissant
un délit de chasse hors de sa circonscription territoriale, avait menacé de dresser un
procès-verbal et s’était abstenu de le faire à prix d’argent. (Dans l’espèce, le garde
champêtre avait été d’abord absous, la cour ayant jugé qu’il n’y avait, dans ce fait, ni
crime ni délit. Après cassation, la cour de renvoi appliqua au garde champêtre non pas
l’article 177, mais l’article 405 du Code pénal, c’est-à-dire qualifia l’acte reproché,
non de cor­ruption, mais d’escroquerie. Sur un nouveau pourvoi du ministère public, la
question fut portée devant les chambres réunies de la Cour de cassation, et le pourvoi
fut rejeté par ces motifs: ‘Attendu qu’il résultait de la déclaration du jury que l’accusé
avait sciemment abusé de sa qualité pour exiger une somme d’argent en promettant
de s’abstenir de rédiger un pro­cès-verbal qu’il n’avait pas le droit de dresser, et qui
n’entrait pas, par conséquent, dans l’ordre de ses devoirs; et qu’en appliquant à un
fait ainsi qualifié l’article 405 du Code pénal, la cour d’assises n’avait point violé l’ar­
ticle 177.’ Cass., 31 mars 1827 (D. J. G., vº Forfaiture, nº 119). Un arrét de la Cour
de Limoges a adopté la même doctrine, dan’s une espèce analogue (Limoges, 4 janv.
1836, D. J. G., vº Forfaiture, n° 120-2°).”
Por conseguinte, o tipo insculpido no art. 317 do Código Penal Brasileiro visa ao tráfico da função pública, ou seja, a solicitação, o recebimento ou a aceitação por parte do agente tem de ser para a prática ou
omissão de ato inerente à sua função.
A corrupção passiva, nos termos da melhor doutrina, exige para a
sua configuração a prática de atos de ofício – isto é, aquele pertinente à
função específica do funcionário público –, ensejando o recebimento de
vantagem indevida.
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ACÓRDÃOS
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DIREITO ADMINISTRATIVO
E DIREITO CIVIL
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APELAÇÃO CÍVEL Nº 2000.04.01.125870-6/RS
Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Amaury Chaves de Athayde
Apelante: Reneu José Kerber
Advogados: Drs. Paulo Laércio Soares Madeira e outro
Apelante: União
Advogado: Dr. Luís Henrique Martins dos Anjos
Apelados: (os mesmos)
Remetente: Mm. Juízo da 1ª Vara Federal de Santo Ângelo/RS
EMENTA
Administrativo. Servidor público federal. Aposentadoria proporcional
– requerimento suspenso em face de processo administrativo-disciplinar
– PAD (art. 172 da Lei nº 8.112/90). Prazo para conclusão expirado.
Arts. 152 e 167 do Estatuto. Indenização pelo trabalho realizado.
1. Factível a aplicação do artigo 172 da Lei nº 8.112/90 que determina a suspensão do processo de pedido de aposentadoria do servidor
público, enquanto não concluído o processo disciplinar contra o mesmo
instaurado, eis que impede que o mesmo servidor venha esquivar-se de
eventual resultado contra si definido.
2. A suspensão do pedido de aposentadoria voluntária apenas se faz
possível, enquanto não esgotado o prazo para a conclusão do processo
administrativo-disciplinar. Inteligência dos artigos 152 e 167 do Estatuto
do Servidor.
3. Não se há de cogitar de incursão extra petita à orientação do decisum, quando a demora no processo administrativo-disciplinar também
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compõe a causa de pedir do requerente.
4. A exigência de prestação laboral pelo período excedente àquele em
que a Administração deveria ter concluído o processo administrativo-disciplinar, acrescido do período regular necessário para a tramitação
do processo de aposentação, merece ser indenizada.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide
a Turma Especial do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, negar provimento à apelação da União e à remessa oficial e
dar parcial provimento à apelação da parte autora, ficando liberada ao
autor a caução prestada nos autos, nos termos do relatório, voto e notas
taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Porto Alegre, 7 de julho de 2004.
Des. Federal Amaury Chaves de Athayde, Relator.
RELATÓRIO
O Exmo. Sr. Des. Federal Amaury Chaves de Athayde: Trata-se de ação
ordinária processada perante o MM. Juízo da 1ª Vara Federal de Santo
Ângelo/RS, pela via da qual o autor, servidor público federal estável,
intenta o reconhecimento do direito à aposentadoria proporcional, com
termo em 15.09.95, quando cumpridos trinta anos de serviço, com a condenação da requerida no pagamento indenizatório dos correspondentes
proventos e demais consectários legais, objurgando o empeço que veio
a ser oposto ao processo de aposentação consubstanciado em processo
administrativo-disciplinar (PAD) ulteriormente, contra si, instaurado.
Após contestação (fls. 44 a 48 e anexos), em sede de reconsideração,
foi deferida, em parte, tutela antecipada, determinando-se à requerida
restabelecer o andamento do processo de aposentadoria do autor, com
todas as conseqüências legais, inclusa a aposentação se o caso (fls.
135 a 139). Agravada (fls. 149 a 153), a r. decisão veio a ser mantida,
negado provimento ao recurso.
Sob incidente impugnação, foi retificado o valor da causa. (fls.
157/158)
Consta dos autos, no cumprimento do trato antecipatório, a aposentadoria veio a ser concedida ao autor, publicado o ato em 02.04.97 (fl.
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169), pagos os proventos mediante caução. (fl. 204)
Sob regular tramitação, adveio v. sentença (fls. 540 a 545), julgando
parcialmente procedente a pretensão deduzida na exordial. Deu-se reconhecimento ao direito do autor à aposentadoria voluntária concedida na
via administrativa desde a data da publicação do respectivo ato, afastada
a restrição do artigo 172 da Lei nº 8.112/90, eis que ultrapassado o prazo
máximo para o término do processo administrativo-disciplinar contra ele
instaurado, ressalvando-se à União a aplicação do artigo 134 do Estatuto
ao final do PAD se o caso. Sucumbência recíproca, com honorários advocatícios de 10% sobre o valor atualizado da causa, por ela respondendo
o autor e a ré nas proporções de 20% e 80%, respectivamente, admitida
a compensação.
As partes apelam tempestivamente.
O autor (fls. 547 a 551) deduz razões pela reforma parcial do decisum,
visando à indenização de todo o tempo trabalhado a modo excedente,
desde quando completara o tempo para aposentação até a data em que
essa lhe foi concedida, com os legais consectários, refletindo no trato
sucumbencial.
A União (fls. 560 a 564) intenta a reforma do r. julgado, apontando-o
passível de nulidade porque fincado em causa extra petita, tal o decurso do prazo para a conclusão do PAD, quando o reclamo do autor se
assentou na alegação de inconstitucionalidade do artigo 172 da Lei nº
8.112/90. Ainda, propugna pela modificação da disposição sobre a sucumbência, querendo-a repartida pela metade à conta de cada uma das
partes, operando-se a compensação.
Os recursos foram contra-arrazoados. (fls. 554 a 558 e 567 a 570)
O autor pediu, e lhe foi indeferida, a liberação da garantia prestada
nos autos (fls. 574/575). Ainda, trouxe ao caderno processual o teor do
relatório da Comissão do PAD e parecer jurídico pelo arquivamento do
processo – não-comprovada a acusação que lhe fora feita –, agasalhado
pela autoridade competente. (fls. 576/577 e anexos)
Vieram os autos a esta Corte, também por remessa oficial.
É o relatório. Dispensada a revisão.
VOTO
O Exmo. Sr. Des. Federal Amaury Chaves de Athayde: A v. sentença da
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lavra do eminente Juiz Ezio Teixeira tocou com costumeira percuciência
a questão nuclear da lide. Cabe a transcrição –
“...
Adentrando ao mérito da presente demanda, busca a parte autora a concessão
da aposentadoria voluntária por tempo de serviço, de forma proporcional, pois teria
preenchido os requisitos exigidos para tanto, consubstanciados no exercício de cargo
público e possuir ao menos 30 (trinta) anos de tempo de serviço. O impedimento para
o andamento do processo administrativo de aposentadoria estaria nas disposições do
art. 172 da Lei nº 8.112/90.
No caso em exame, a documentação existente faz prova de que o demandante,
com mais de trinta anos de serviço, fls. 18/25, ingressou com pedido de concessão
de aposentadoria proporcional em 18 de setembro de 1995 (fl. 27). De outro lado o
processo disciplinar que visa a apurar as denúncias oferecidas contra o autor somente
foi instaurado pela Portaria ERERS 1.195, de 04 de outubro de 1995, publicada em
06.10.95. (fls. 28/29)
Ainda assim, o referido Processo Administrativo-Disciplinar, de nº 33.302/41395/95,
acabou praticamente anulado pela Relatora na Coordenação de Legislação e Apoio
Processual do Ministério da Saúde, que concluiu pela necessidade de novo procedimento, com nova comissão, para serem sanados vícios apontados desde o mandado
de citação até o relatório da comissão, com a renovação, inclusive, dos depoimentos
já prestados. (fls. 128/130)
...
O processo disciplinar, pela informação constante da fl. 469 dos autos, após a nulidade parcial do processo administrativo, em razão do mesmo apresentar falhas quanto
a sua forma, o processo encontra-se no setor SIAPI, aguardando reinstauração, isto
em 18 de fevereiro de 1998.
Neste diapasão, convém verificar se o atraso no deslinde do processo disciplinar
não compromete a aplicação das disposições insertas no art. 172 da Lei nº 8.112/90
pelo Poder Público, impondo-se ou não o prosseguimento do pedido de aposentadoria
voluntária.
Inicialmente, tenho por constitucional o art. 172 da Lei nº 8.112/90, que determina
a suspensão do processo de pedido de aposentadoria voluntária de servidor público
enquanto não concluído o processo disciplinar a que responde e seja cumprida a penalidade que eventualmente lhe venha a ser cominada. O dispositivo não afronta o art.
40, inciso III, c, da CF/88 ou o art. 186, inciso III, c, do Estatuto, porquanto não retira
da parte autora o direito à aposentadoria voluntária por ela assegurada. A disposição
é salutar, visto que impede que o servidor, por meio da exoneração a pedido ou de
aposentadoria voluntária, venha a esquivar-se do resultado do processo administrativo-disciplinar. Ademais, se a própria aposentadoria pode ser cassada em razão do resultado
do processo administrativo, não há que se cogitar de inconstitucionalidade do art. 172
da Lei nº 8.112/90, que configura uma medida cautelar que visa resguardar os interesses
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da Administração Pública.
O art. 172 da Lei nº 8.112/90, que determina o sobrestamento do pedido de exoneração e da aposentadoria voluntária do servidor que responde a processo disciplinar,
deve, necessariamente, ser combinado com os artigos 152, caput e também com o art.
167 do mesmo Codex, os quais juntos estabelecem o prazo máximo de 140 dias para a
conclusão e julgamento do processo. Outrossim, devem-se utilizar as disposições do art.
134 do Estatuto, se ultrapassado o prazo legal para o término do processo disciplinar,
possibilitando a concessão da aposentadoria voluntária.
Depreende-se que a parte autora responde a processo disciplinar há mais de 04
(quatro) anos, sem que haja uma solução para o processo administrativo. Superou-se em excesso o prazo máximo de 140 (cento e quarenta) dias para a conclusão do
julgamento do processo administrativo consoante dicção do artigo 152, caput com o
art. 167, ambos da Lei nº 8.112/90. Não tendo sido respeitado o prazo legal, impõe-se
o prosseguimento ao processo de aposentadoria.
Assim, tenho que a pendência de conclusão do processo administrativo destinado
a apurar falta disciplinar cometida por servidor público não impede, por si só, a tramitação normal de pedido de aposentadoria formulado pela parte autora, quanto mais se
aquele há muito ultrapassou o prazo previsto para o seu término.
Não pode o servidor ficar aguardando ad eternum a prolação da decisão final do
procedimento administrativo a que responde, para, somente após, ver examinado pela
Administração seu pedido de aposentadoria. Inexiste qualquer prejuízo ao Poder Público
se, após examinado e deferido pedido de aposentadoria, concluir o procedimento administrativo pela responsabilidade do servidor, pois que aquela poderá então, ser cassada,
nos termos em que o permite a Lei de Regência. O autor fica sujeito à regra prevista
no artigo 134 do Estatuto, segundo a qual ‘será cassada a aposentadoria ou disponibilidade do inativo que houver praticado, na atividade, falta punível com demissão’.
Quer dizer, se o autor for considerado, ao final do processo disciplinar, culpado pelas
acusações que lhe são impostas, sua aposentadoria proporcional, que foi concedida
administrativamente, será cassada a fim de que se aplique a pena de demissão.
Indubitavelmente que a parte autora efetivamente preenchera os requisitos para
usufruir o benefício de aposentadoria, pois administrativamente foi realizada a contagem
do tempo de serviço sem a objeção imposta pelo art. 172 da Lei nº 8.112/90, sendo
concedido o benefício de aposentadoria consoante Portaria nº MS/ERERS/DIAD/1188,
de 26 de março de 1997, e publicado no Diário Oficial de 02 de abril de 1997, data
em que passou a vigorar a aposentadoria nos termos do art. 188 da Lei nº 8.112/90.
...”
As razões recursais da União, a meu sentir, não elidem os fundamentos
do r. decisum, em seu concerto fático-jurídico como sustentados. Neles
não se há de cogitar em incursão extra petita ao cotejo com a causa de
pedir invocada pelo autor. Não se o há de fazer tanto, porque a demora do
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processo administrativo-disciplinar (como, de fato, veio a se confirmar)
também fora indigitada pelo requerente, como porque à orientação do
r. decisum, mesmo ex officio, socorre-lhe a disposição do artigo 462 do
Código de Processo Civil.
Penso, porém, na seqüência, a v. sentença está a merecer parcial reparo no que tange ao pedido de cunho indenizatório formulado pelo autor.
Justifico.
Assim visto pela transcrição feita, embora sem se afastar a validade do
artigo 172 da Lei nº 8.112/90, a higidez da produção do correspondente
comando legal não se dissocia do elemento temporal a cuja definição se
conjugam os artigos 152, caput, e 167, caput, do mesmo diploma. Portanto, sendo de cento e quarenta dias o prazo máximo para a conclusão
do processo disciplinar, o fato da existência desse não podia haver retido
o processo de aposentadoria por prazo que lhe excedesse. A exigência
da prestação laboral por prazo excedente, no contexto, ao mesmo prazo
acrescido o prazo regular e aceitável para o processo de aposentação (in
casu, dois meses, como se verifica desde a decisão antecipatória da tutela
até a concessão efetiva da aposentadoria), entendendo-a a desborde da
legalidade. Consubstancia ilícito administrativo que, ipso facto, deve ser
indenizado, tanto mais quando se constata que o próprio PAD conclui
por improvada a acusação contra o servidor.
Destarte, diferindo-se o termo, a partir de 04.10.95 (data da Portaria
ERERS – 1.195, pela qual instituída a comissão para o PAD), por cento
e quarenta dias (prazo legal dado à conclusão do PAD) a esses somados
mais dois meses (prazo para a regular tramitação do processo de aposentação), a aposentadoria teria tido a sua operação consumada a partir
de 21.04.96.
Logo, o autor faz jus ao ressarcimento pelo tempo trabalhado, desde
21.04.96 até 1º.04.97. A base quantitativa ao efeito cabe ser fixada no
valor da igual remuneração que lhe era devida por mês, nela o vencimento básico e todos os acréscimos, computando-se, outrossim, os
legais reflexos (férias com gratificação, gratificação natalina e outros
pertinentes). Os valores devem ser atualizados monetariamente, pelos
índices oficiais, desde quando devida cada prestação, até o seu efetivo
pagamento, e vencem juros moratórios de 6% ao ano (limite do pedido)
a contar da citação da requerida.
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Sucumbência
Modificada a solução da lide, tem-se decair o autor de parte mínima
do seu pedido. Assim, os ônus da sucumbência correm à conta exclusiva
da ré (CPC, art. 21, § único). São mantidos os honorários advocatícios
já fixados pela v. sentença, a eles se acrescendo 10% sobre o montante
da condenação em pecúnia ora aditada.
Caução
Entendendo não restar motivação para a sua permanência, libero ao
autor a caução por ele prestada nos autos.
Ante o exposto, nego provimento à apelação da União e à remessa
oficial.
Dou parcial provimento à apelação do autor. Faço-o no tocante à
indenização pleiteada, fixando o período correspondente, com reflexo
na sucumbência, nos termos de fundamentação.
Fica liberada ao autor a caução prestada nos autos.
É como voto.
APELAÇÃO CÍVEL Nº 2000.71.00.020202-6/RS
Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon
Apelantes: José Romeu Pujol Rodrigues e outros
Advogados: Drs. Mônica Guazzelli Estrougo e outros
Apelante: União Federal
Advogado: Dr. Luís Henrique Martins dos Anjos
Apelados: (os mesmos)
EMENTA
Administrativo. Danos morais. Demissão a bem do serviço público.
Dano direto e indireto. Prescrição. Impugnação. Depoimento. TestemuR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
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nha suspeita. Valor. Salário mínimo. Impossibilidade.
1. Tanto no dano direto como no indireto é possível haver titulação
jurídica por demandas reparatórias, são titulares diretos aqueles atingidos
de frente pelos reflexos danosos, enquanto indiretos aqueles que, por
conseqüência, sofrem os efeitos advindos do fato.
2. Na hipótese, o marco legal da contagem se deu a partir da possibilidade de exigir a reparação que se fez presente a contar do momento
em que se demonstrou injusta a demissão; com desfazimento do ato
administrativo a ela pertinente.
3. Em se tratando de indenização por dano moral, basta a demonstração do fato, desta forma, a desqualificação do depoimento requerida pela
União em nada influiria na formação do convencimento da Julgadora;
e, ainda, que se admitisse, ad argumentandum tantum, a suspeição da
testemunha, tal fato não implicaria nulidade da sentença, porquanto
preclusa a questão.
4. Dano material existiu na interrupção do vínculo laboral do autor e
o dano moral na imputação de atos desonestos em desfavor do Erário,
fazendo com que este passasse a conviver com a pecha que lhe foi atribuída, com conseqüências dramáticas em relação a seus entes queridos,
sendo irrecusáveis as conseqüências trágicas da perda do emprego,
intensificadas ao extremo pela nódoa moral imputada ao demandante.
5. A fixação do quantum indenizatório em salários mínimos afronta
a Constituição Federal.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas,
decide a Egrégia 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região,
por unanimidade, dar parcial provimento ao apelo da União e à remessa
oficial e negar provimento ao apelo dos autores, nos termos do relatório,
voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente
julgado.
Porto Alegre, 22 de junho de 2004.
Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon, Relator.
RELATÓRIO
O Exmo. Sr. Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon: José Romeu
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Pujol Rodrigues, ex-servidor do extinto Instituto Brasileiro do Café,
ora na inatividade, e seus filhos Ida Maria Zoch Rodrigues, Ilsa Marilu
Rodrigues Pinho, Alzira Ruth Zoch Rodrigues, Ruy Fernando Zoch
Rodrigues, Moema Iara Rodrigues Alves, Luiz Raimundo Zoch Rodrigues e Luciano Zoch Rodrigues movem a presente ação conta a União,
buscando indenização por dano moral decorrente da demissão, a bem
do serviço público, do primeiro dos Autores, alegando, em suma: a) que
o ex-servidor exerceu normalmente suas funções, até que, nos idos de
1965, determinou-se a instauração de processo administrativo, para apurar
a responsabilidade de cinco funcionários, dentre os quais José Romeu
Pujol Rodrigues; b) a partir da instauração do referido inquérito, houve
o ex-servidor decretada sua transferência para o interior do Estado do
Paraná e, posteriormente, para Curitiba; c) o inquérito administrativo foi
concluído, determinada a demissão do Autor “a bem do serviço público”,
no ano de 1969; d) foi também instaurada ação criminal, denunciado o
Autor com enquadramento no art. 316 do Código Penal; e) em abril de
1978, o autor foi absolvido, por ausência de provas; f) nos idos de 1979,
ingressou com ação ordinária objetivando sua reintegração no serviço
público, que, embora lograsse êxito em primeiro grau, foi objeto de
reforma em segunda instância, em acórdão que transitou em julgado;
g) intentou o mesmo José Romeu ação rescisória, que culminou com
determinação do Superior Tribunal de Justiça para que esta Corte reexaminasse todas as questões suscitadas, o que houve como conseqüência o
desarquivamento do feito, e, após uma série de recursos, pela negativa de
provimento do recurso do IBC, ordenada a reintegração do funcionário;
h) que as transferências do autor para lugares distantes de sua família
e, posteriormente, a demissão a bem do serviço público causaram para
os autores uma série de sofrimentos, dores, constrangimentos e infortúnios; i) que a demissão guardava índole de estigma, porquanto lançava
suspeitas sobre prática de atos ditos “subversivos”, além de dúvidas
sobre a probidade do ex-servidor; j) que imensas foram as vicissitudes
por que passaram os autores, dentre as quais a impossibilidade de arcar
com cirurgia para a esposa de José Romeu, o conseqüente nascimento
prematuro de Luciano, a ausência de meios para arcar com as despesas
do tratamento do câncer da esposa e com os custos do funeral quando
esta veio a falecer, a falta de recursos para oferecer aos filhos de José
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Romeu uma boa formação escolar; j) que houve, em relação a José Romeu,
dano a direitos personalíssimos, como a honra, a imagem, a dignidade e
a auto-estima; l) que, quanto aos demais autores, houve “dano próprio e
autônomo, decorrente do fato de presenciarem, diuturnamente, o sofrimento do pai, bem como em razão de inúmeros dissabores que passaram
em razão do ambiente familiar depressivo, da instabilidade da residência, das dificuldades educacionais, da ausência de condições materiais
adequadas para a prestação de uma assistência médico-hospitalar digna
à mãe, enquanto doente.”
A União, em resposta, alegou, preliminarmente, a ilegitimidade ativa
dos autores Ilda Maria, Ilsa Marilu, Alzira Ruth, Ruy Fernando, Moema Iara, Luís Raimundo e Luciano, porquanto o fato gerador do dano
sofrido consistiu na demissão de José Romeu, único titular do direito
subjetivo material lesionado, sendo “incabível ação de perdas e danos
proposta por ‘vítimas mediatas, ou como se diz às vezes, que seriam
fundadas sobre danos em ricochete’”; destacando que o filho Luciano
nem mesmo era nascido quando da demissão de José Romeu. Postulou,
in fine, a extinção da ação, sem julgamento do mérito, com fundamento
no art. 267, VI, do CPC, em relação aos autores filhos de José Romeu.
Em prejudicial de mérito, levantou a ocorrência de prescrição qüinqüenal,
por força do Decreto nº 20.910/37, uma vez que entre a data da demissão do autor e a interposição da demanda transcorreu bem mais que um
lustro; acrescentando que nem mesmo a contagem do prazo a partir da
decisão na esfera penal poderia ilidir a prescrição, pois que prolatada a
sentença em 04.04.78, sem interposição de qualquer recurso. Aponta,
outrossim, que a ação de reintegração, da mesma forma, não poderia
interromper a prescrição, pois questionava direito independente daquele
que ora pleiteado. Na abordagem do mérito propriamente dito, concorda
com a ilegitimidade da demissão de José Romeu, mas aponta ausência
de qualquer demonstração de que o ato de afastamento se deu em razão
de perseguição política, recusando, outrossim a possibilidade de agravamento do dano em decorrência da mora do Judiciário. Aponta, ainda,
que as ocorrências anteriores à demissão não podem ser considerados
fatores de danos morais, e que a despedida é ato normal de cessação
das relações de trabalho, não implicando ofensa à honra, à dignidade
profissional ou à imagem da pessoa. Registra que o dano material restou
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indenizado com a reintegração do autor no serviço público, e afasta a
presença de nexo causal entre a demissão, a doença da esposa de José
Romeu e o acidente automobilístico que vitimou seus filhos Rossy e
Rony. Por fim, asseverando que a sentença que determinou a reintegração
de José Romeu significou para ele um eficiente desagravo, reparando
sua imagem frente à opinião pública, e após tecer comentários sobre a
“indústria do dano moral”, postula que a indenização, em considerada
sendo devida, seja fixada “em patamar módico e jamais em paralelo com
a ação de reintegração”.
Em réplica, os autores enfrentam a preliminar de ilegitimidade passiva ao argumento de que os autores-filhos sofreram eles mesmos sua
própria cota de sofrimento íntimo; e mesmo Luciano, que sequer nascido
era à época dos fatos, viveu sob a égide da dor, numa família em ruínas.
Quanto à prescrição, dizem que se trata de direito imprescritível; e que,
mesmo se assim não fora, seu dies a quo estaria situado na declaração
judicial da ilegalidade do ato gerador do dano. No mais, insistem nas
teses constantes da peça inaugural.
Há nos autos petição da União recebida como agravo retido.
A ilustre Julgadora a quo houve por improcedente a preliminar de
ilegitimidade passiva. No que tange à prescrição, refutou-a também,
ao argumento de que o marco inicial, em casos que tais, não se situa
no próprio ato de demissão, mas na desconstituição definitiva do ato
administrativo, que põe por terra a presunção de legitimidade que o defende; portanto, com o trânsito em julgado da decisão que reconheceu
a ilegalidade do ato demissional é que exsurgiria o direito à ação para a
postulação dos danos morais daí decorrentes. Após zelosa e minudente
apreciação dos fatos, a nobre Julgadora houve por procedente o pedido,
fixando a título de indenização por danos morais 500 salários mínimos
para o autor José Romeu Pujol Rodrigues e 250 salários mínimos para
cada um dos demais autores, acrescidos de juros de mora de 6% ao ano,
contados desde 3 de novembro de 1995, data do trânsito em julgado da
decisão que determinou a reintegração do autor José Romeu, além de
despesas processuais e honorários advocatícios, fixados em dez por cento
sobre o valor da condenação.
Apelaram ambas as partes; os autores, irresignados apenas com a
fixação do dies a quo da contagem dos juros; a União, insistindo na
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preliminar de ilegitimidade ad causam de parte ativa, em manter, não
corrigir de mérito (prescrição), acrescentando que tecnicamente viável
“cumular-se o pedido de reintegração com indenização de danos materiais
e morais”. No que tange ao fundo de direito, repete o argumento de que
não há prova nos autos da ação em que determinada a reintegração de
que a demissão teria sido obra de perseguição política, ficando registrado apenas que “os motivos poderiam ser pessoais, políticos, financeiros
ou espírito de vingança”. No mais, repete argumentos já constantes da
contestação e refuta a impossibilidade de conseguir outros empregos,
negando caráter de ato afrontador da dignidade e da honra o exercício
de “atividades esporádicas” (venda de enciclopédias, serviço braçal na
estiva), apontando que a pecha de servidor público demitido a bem do
serviço público “não pode ser presumida como uma realidade conhecida
de todos”. Aduz que as dificuldades econômicas decorreram da má administração de José Romeu da economia doméstica, pondo em relevo o
fato de que este, confessadamente, já possuía dívidas. Assevera mais que
os Autores não se incumbiram de demonstrar o dano moral alegado. No
que concerne à indenização, pretende exacerbada a condenação. Analisa
a prova produzida, buscando vislumbrar contradições nos depoimentos
dos Autores. Enfrenta a fixação da verba honorária, que reputa excessiva. Requer a título de “prequestionamento”, que “as teses ventiladas no
presente recurso sejam explicitamente abordadas no acórdão”. Requer,
in fine:
“1) seja o presente feito extinto sem julgamento do mérito, a teor da preliminar
argüida, ou, sucessivamente;
2) seja o presente feito extinto com julgamento do mérito, pelo acolhimento da
prescrição total ou pela declaração da total improcedência do pedido, nos termos desta
apelação;
3) inversão dos ônus sucumbenciais, com a condenação dos Apelados ao pagamento
das custas e honorários advocatícios em favor da União, ora recorrente;
4) em caso de manutenção do provimento arrostado, a redução dos honorários
advocatícios.”
Contra-razões à fl. 540, pleiteando os Autores a manutenção da decisão
monocrática nos pontos referidos, negando-se provimento ao recurso interposto pela União, com a reforma, apenas, da parte do decisum tangente
à data inicial para o cômputo dos juros incidentes no valor da indenização,
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determinando-se sejam contados a partir da data de ocorrência do dano.
A União apresentou também contra-razões, pugnando pelo improvimento do recurso dos Autores concernentes à fixação dos juros moratórios.
É o relatório.
VOTO
1 - Do agravo retido
Havendo petição da União concernente à limitação do número de
testemunhas seu recebimento a título de agravo retido, à míngua de insistência na apelação quanto à necessidade de exame da matéria, nego
conhecimento ao recurso.
2 - Da indigitada ilegitimidade de parte passiva
Labora em equívoco a apelante ao tentar situar como terceiros os
autores filhos de José Romeu Pujol Rodrigues, ao entendimento de
que reparável seria apenas o dano direto. Registra, a respeito, a melhor
doutrina:
“Observa-se, diante do exposto, que por dano direto, ou mesmo por dano indireto,
é possível haver titulação jurídica por demandas reparatórias. Titulares diretos são,
portanto, aqueles atingidos de frente pelos reflexos danosos, enquanto indiretos os que
sofrem, por conseqüência, esses efeitos (assim, por exemplo, a morte do pai provoca
dano moral ao filho; mas o ataque lesivo à mulher pode ofender o marido, o filho ou a
própria família, suscitando-se, então, ações fundadas em interesses indiretos). Baseado
em elo jurídico afetivo mantido com o lesado direto, o direito do titular indireto traduz-se na defesa da respectiva moralidade, familiar, pessoal, ou outra. Trata-se, também,
de iuri próprio, que o interessado defende, na ação de reparação de danos denominada
par ricochet ou réflechis, a exemplo do que acontece como as de danos morais a empregados, por fatos que atingem o empregador; a sócio de uma sociedade, que alcança
outro sócio; a mulher, que lesiona o marido; a concubina, que fere o concubino, e assim
por diante, como o tem apontado a doutrina e assentado a jurisprudência, delimitando
as pessoas que a tanto se consideram legitimadas (em caso de parentesco até o 4º
grau: C. Civil, art. 1.612). Deve, pois, existir liame firme na sucessividade dos fatos,
admitindo-se, por exemplo, nas hipóteses de sub-rogação de direitos, a invocação dessa
teoria, como acontece com empresa seguradora, em acidentes havidos com transporte
e outras situações apontadas nos textos.
Assentaram-se, depois de inúmeros debates na doutrina, certas posições, como as
de filhos e cônjuges, em relação ao pai e ao marido, ou vice-versa; de companheiros,
em relações estáveis, de noivos, sob compromisso formal; de credores e devedores,
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em certos contratos, como, por exemplo, acidentes que impossibilitem a satisfação de
débitos; de empregados e empregadores, e outros, especialmente a partir da jurisprudência francesa, em que se colocaram essas inúmeras questões.
...
É que, em caso de pluralidade de vítimas, a regra básica é a da plena autonomia do
direito de cada lesado, de sorte que, nas demandas do gênero, se atribuem indenizações
próprias e individualizadas aos interessados: assim acontece, por exemplo, quanto a
mulher e filho, com respeito à morte provocada do marido ou pai; pode invocar, pessoalmente, danos ressarcíveis. Nada impede se faça sob litisconsórcio o pleito judicial,
quando admissível, mas cada demandante faz jus a indenização compatível com sua
posição.” (Carlos Alberto Bittar, Reparação Civil por Danos Morais, Editor RT, 3ª
Edição, p. 155 e ss.)
“No caso de prejudicado indireto, ou seja, aquele que também sofreu um prejuízo
em razão do dano padecido pela vítima imediata, o que faz com que outras pessoas
sofram em razão direta do comportamento nocivo como, por exemplo, quando surge
o evento morte, o autor ou autores da ação será ou serão o pai, a mãe e os filhos, em
conjunto, ou apenas um deles, figurando no vértice ativo da demanda.
Esse prejudicado indireto não é considerado terceiro. Ele, apenas, não sofreu o dano
verticalmente, mas alenta prejuízos, porque feridos foram seus interesses jurídicos. A
lesão da vítima ultrapassou ela própria e atingiu seus familiares.
Para melhor aclarar a questão do prejudicado direta e indiretamente, seja dito
que o prejudicado indireto sofre os efeitos do ato lesivo de forma reflexa. É óbvio que
a morte de um pai de família que sustenta o lar vai diminuir a possibilidade econômica dos demais componentes da família. Por isso, esses prejudicados não podem ser
considerados terceiros, mas partes legítimas.
É o que doutrina Ramon Daniel Pizarro (Daño Moral, p. 212) ao dissertar que ‘não
só a vítima de um fato danoso pode experimentar um prejuízo moral; também podem
resultar prejudicados certos terceiros que sofrem uma diminuição espiritual derivada da
lesão a interesses econômicos (dano patrimonial) ou extrapatrimoniais (dano moral) em
razão de um fato ilícito que tenha como prejudicado direto uma outra pessoa.” (Antonio
Jeová Santos, Direito Moral Indenizável, 2ª Edição, 1999, p. 483)
Importante ressaltar que, na hipótese vertente, não se trata de vítimas
diversas de idêntico prejuízo; aquele sofrido pelo autor José Romeu,
concernente à perda de seu emprego, ao dano à sua credibilidade, e o
sofrimento de tudo isso decorrente, é diverso daquele de que padeceram
seus filhos, privados de recursos materiais, criados em um lar em crise,
com todas as tintas de tragédia que a realidade emprestou ao quadro familiar. Não há que falar, portanto, em pleitear em nome próprio direito
alheio, ou em condição de terceiro: en ricochet que seja, cada um pleiteia
indenização pelo dano que individualizadamente sofreu.
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R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
A circunstância, outrossim, de o autor Luciano nem mesmo ser nascido
quando da gênese do fato danoso não afasta sua titularidade; evidenciado
que está a real presença de prejuízo seu ocorrido dentro de uma cadeia
etiológica em que irrecusável o nexo de causalidade entre o que foi feito
a seu pai e a participação sua em vexames e dores morais.
Mantenho, pois, a R. Sentença no que concerne à delimitação do pólo
ativo da relação processual.
3 - Da prescrição alegada
Tenho eu que a prescrição, na espécie, deve, sim, submeter-se ao lustro
legal. No entanto, cumpre determinar o marco legal da contagem; não se
pode entender mora no exercício do direito de ação em relação a quem
não dispõe dos pressupostos necessários para exercê-lo. Cumpre aqui
considerar o princípio da actio nata. A possibilidade de exigir a reparação
somente se fez presente, in casu, a partir do momento em que se demonstrou injusta a demissão; com desfazimento do ato administrativo a ela
pertinente. Ao que se dessume da leitura dos autos, a sentença absolutória
em âmbito criminal data de 04 de abril de 1978, firmada pelo saudoso
magistrado Hervandil Fagundes, que abrilhantou com sua presença este
Tribunal, então Juiz Federal da Terceira Vara desta Capital, que averbou
“não haver resultado provado fato tipificador do crime de concussão”.
A reintegração no cargo público, por seu turno, decorreu de sentença de
1981, resguardada pela autoridade do magistrado Eli Goraieb, que também enriqueceu este Tribunal com sua percuciência e senso de Justiça,
vindo a presidir esta Corte. Lamentavelmente, foi a sentença reformada
pelo Tribunal Federal de Recursos, em acórdão datado de 29 de maio
de 1990, da lavra do Ministro Armando Rollemberg. Houve, então, ação
rescisória, que, objeto de conflito de competência, somente houve seu
julgamento finalizado em data de 12 de setembro de 1995 (Embargos
de declaração na AC 93.04.35809-4/RS, rel. Juiz Surreaux Chagas),
ocorrido o trânsito em julgado em data de 03 de novembro de 1995 (fl.
254). Situo eu aí o dies a quo do prazo prescricional, porquanto o direito
do Autor somente adquiriu a exigibilidade necessária à proposição da
ação a partir de quando passada em julgado a sentença que houve por
equivocada a demissão. Antes, não havia direito a opor. Ora, a ação foi
proposta em 24 de julho de 2000, dentro, portanto, do qüinqüênio para
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prescrição do direito de mover ação contra a União.
Outrossim, não é de se negar validade ao argumento de que, na hipótese, os efeitos danosos protraem-se no tempo, sendo difícil determinar,
em toda a via crucis percorrida pelos Autores, onde o último prejuízo, a
derradeira dor, o vexame final.
Afasto, também, a preliminar de mérito.
4 - Da impugnação ao depoimento de uma testemunha
Ao fundamento utilizado pela R. sentença, a coincidência do depoimento da testemunha com os demais elementos probatórios, acrescento
eu outro mais: a desnecessidade de prova da dor moral em si. Segundo
é consabido, em se tratando de indenização por dano moral, basta a
demonstração do fato. A respeito, Antonio Jeová Santos (ob. supracit.,
p. 525), verbis:
“O prejuízo moral que alguém diz ter sofrido é provado in re ipsa. Acredita-se que
ele existe porque houve a ocorrência do ato ilícito. Quando a vítima sofre um dano,
que pela sua dimensão é impossível ao homem comum não imaginar que o prejuízo
aconteceu. Ninguém, em sã consciência, dirá que a perda do pai ou de um filho não
gera desgosto e mal-estar, tanto físico como espiritual, ou que alguém que teve a perna
ou um braço amputado não vá passar o resto da vida sofrendo por essa diminuição
física. A só consumação do ilícito que faz surgir fatos desta natureza mostra o prejuízo,
a prova é in re ipsa.”
A desqualificação do depoimento, portanto, em nada influiria na formação do convencimento da Julgadora, escopo da prova, tratando-se,
como ora se trata, de damnum ex facto.
Mais não fosse, não é o simples laço de amizade que implica suspeição; há que se tratar de amigo íntimo, o que exige um grau exacerbado
de relacionamento que não se encontra no simples fato de haver social
relacionamento entre as famílias. Mesmo o empregado da parte tem sido
admitido a depor em juízo. (RP 6/326, Nelson Nery Jr. e Rosa Maria
Andrade Nery, Código de Processo Civil Comentado, 3ª Edição, p. 647)
E, por fim, mesmo que se admitisse, ad argumentandum tantum, a
suspeição da testemunha, tal fato não implicaria nulidade da sentença,
porquanto preclusa a questão, não suscitada opportuno tempore em recurso específico. (RJTJSP 117/44 e RT 500/181)
Afasto, portanto, o vício indigitado, mantendo a sentença também
neste tópico.
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5 - Sobre o fundo de direito
A respeito da reparabilidade do dano moral à luz da Constituição
Federal de 1988, preleciona Américo Luís Martins da Silva (O Dano
Moral e a sua Reparação Civil, Editora Rt, 2ª Edição, p. 237:
“Qualquer oposição que ainda existia contra o princípio da reparabilidade do dano
moral puro caiu por terra com a vigência dos incisos V e X do art. 5º da Constituição
Federal de 1988. Com tais dispositivos constitucionais, o argumento contrário à reparação
do dano moral, fundado na inexecução de preceituação genérica, passou a ser de difícil
sustentação. Como bem destacou o Ministro Cláudio Santos, ‘a idéia de que o dano simplesmente moral não é indenizável pertence ao passado’. Hoje, por força de disposição
constitucional, é reparável o dano moral, quer haja ou não o dano patrimonial.
Dispõe o inciso V do art. 5º da Constituição Federal de 1988 que ‘é assegurado o direito
de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano, moral ou à imagem.’”
Concernentemente à responsabilidade do Estado no que tange aos
danos morais, é ela também de natureza objetiva, conforme averba
Carlos Alberto Bittar (Reparação Civil por Danos Morais), 3ª Edição,
Editora Rt, p. 167), verbis:
“Verifica-se, presentemente, que a responsabilização do Estado e dos entes públicos
tem ocorrido em quaisquer posições em que se encontrarem no relacionamento com os
particulares, ou seja, como entes investidos de poder de império, como vinculados por
meio de contratos, ou como simples envolvidos em relações ocasionais ou acidentais,
como por exemplo, nas hipóteses em que comparecem: como agentes expedidores de
normas, ou de ministração de justiça; prestadores de serviços públicos, ou partícipes
em acidentes de trânsito e outras.
Aliás, por longa evolução chegou-se à plena responsabilização das entidades públicas, alcançando-se ora toda a extensa base de fatos a ela imponíveis, em função da
multiplicidade de áreas de atuação em que se inserem. Prospera, ademais, a teoria do
risco na fundamentação da responsabilidade, que deriva, pois, do simples funcionamento dos serviços, permitindo-se assim a plena satisfação dos direitos dos lesados,
interessando-nos, mais de perto, na presente etapa do trabalho, os reflexos sentidos na
esfera de pessoas físicas, que enfocaremos à luz, principalmente, da jurisprudência
dominante.
A responsabilidade é, portanto, objetiva para o Estado, autarquias e entes de sua
estruturação (Constituição: art. 37, § 6º), ficando, no entanto, as empresas públicas ou
de economia mista submetidas ao mesmo regime obrigacional das pessoas jurídicas
de direito privado (art. 173, § 1º).”
A cuidada sentença da douta Julgadora a quo, de substanciosa fundamentação, afastou irrecusavelmente a singela alegação de que o ato
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de demissão, na hipótese vertente, fosse prática normal de cessação da
relação de emprego, em trecho que peço vênia para transcrever, qual seja:
“A doutrina é majoritária no sentido da admissibilidade do dano moral advindo do
exercício abusivo ou arbitrário do direito de rescindir o contrato de trabalho. Neste
sentido, aponta Sérgio Pinto Martins: ‘o caso mais típico de dano moral no âmbito
trabalhista é a dispensa por justa causa com alegação de que o empregado roubou,
furtou ou se apropriou indevidamente de alguma coisa do empregador, quando na
verdade isso não ficou provado ou não foi o empregado que praticou o ato, mas outra
pessoa.’ (‘Dano moral no Direito do Trabalho’, in Trabalho & Doutrina, Ed. Saraiva,
setembro de 1996, p. 77).
Neste sentido, confira-se o seguinte aresto:
‘O direito potestativo de resilir o contrato de trabalho encontra limites nas demais
normas componentes do ordenamento jurídico, que formam um todo, exigem interpretação harmônica. Havendo prova de que o empregado foi dispensado apenas por ser
deficiente físico, não importando a debilidade em redução da capacidade laborativa,
configurada está a despedida abusiva, com violação dos artigos 1º, III e IV, 5º, caput e
LXI, 7º, XXXI, 37, caput, 170, caput, e 193, todos da Constituição Federal de 1988,
além do art. 9º da CLT. Há abuso de direito por seu exercício sem legítimo interesse
e em desacordo com sua destinação social - teoria objetivista. O dano daí decorrente
- moral - deve ser ressarcido, sendo a Justiça do Trabalho competente para apreciar o
feito.’ (TRT/PR, RO 09.136/93, AC 1ª T. 17j.351/94, j. 17.05.2004, rel. Juiz Santino
Gonçalves, LTr, 59(3): 406).’
A vedação ao exercício do direito de despedida se impõe com muito maior rigor
à Administração Pública, cuja atuação é inteiramente pautada pela observância do
princípio da legalidade. O ato ilegal de demissão enseja, indiscutivelmente, o dever de
indenizar o dano moral sofrido pelo servidor injustamente demitido.”
Ingênuo, permissa venia, o argumento de que não demonstrada a
existência de perseguição política. O que cabia provar - e que finalmente
restou plenamente evidenciado em sentença passada em julgado - é a
ilegalidade da demissão. Sempre entendi, respeitando’ embora as opiniões em contrário, que a demissão sem justa causa não pode existir em
âmbito administrativo, porquanto o ato administrativo deve ser motivado.
Situar-se em área de oportunidade e conveniência rescindir o contrato
de funcionário concursado é fazer tabula rasa do direito adquirido e do
ato jurídico perfeito. In casu, entretanto, sequer é de discutir-se a possibilidade de rescisão à míngua de motivos, porquanto o afastamento do
servidor foi feito em decorrência de processo administrativo, a título de
sanção. Segundo a teoria dos motivos determinantes,
130
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“...os atos administrativos, quando tiverem sua prática motivada, ficam vinculados aos
motivos expostos, para todos os efeitos jurídicos. Tais motivos é que determinam e
justificam a realização do ato, e, por isso mesmo, deve haver perfeita correspondência
ente eles e a realidade. Mesmo os atos discricionários, se forem motivados, ficam vinculados a esses motivos como causa determinante de seu cometimento e sujeitam-se
ao confronto da existência e legitimidade dos motivos indicados. Havendo desconformidade entre os motivos determinantes e a realidade, o ato é inválido.” (HELY LOPES
MEIRELLES, Direito Administrativo Brasileiro, 14ª Edição, p.175).
Dano material existiu na interrupção do vínculo laboral de José Romeu. Dano moral existiu na imputação de atos desonestos em desfavor
do Erário, fazendo com que o Autor passasse a conviver com a pecha
que lhe foi atribuída, com conseqüências dramáticas em relação a seus
entes queridos. A respeito, Carlos Alberto Bittar (Reparação Civil por
Danos Morais, Editor Rt, 3ª Edição, p. 53), verbis:
“Isso significa que de diferentes reflexos na esfera jurídica alcançada defluem danos
de índole diversa, devendo-se registrar que, sob o prisma moral, a lesão pode resultar
de agressão à personalidade, mas também advir de atentado ao patrimônio (como, verbi
gratia, na dor moral resultante da calúnia assacada contra a vítima, e, de outro lado, no
constrangimento, permanente ou não, decorrente da lesão física em operação cirúrgica).
Sob o prisma patrimonial, prospera, aliás, a mesma diretriz: há danos derivados de
agressão ao patrimônio, bem como defluentes de prévia investida contra a moral do
lesado (como, exemplificativamente, na perda de negócio derivada de falta de ingresso
pecuniário devido e, de outra parte, a perda de clientela decorrente de divulgação de
informação falsa, ou de denigração pública do lesado).”
Também é vã a tentativa de demonstrar que problemas de ordem financeira preexistiam ao rompimento do vínculo funcional. De toda obviedade
é que o fato de perder o emprego agravou a situação econômico-financeira
de José Romeu, com duros reflexos sobre toda a família. Em se tratando
de etiologia do dano, equiparam-se causas e concausas; basta que o fato
apontado influa eficazmente na eclosão ou no agravamento do dano.
Irrecusáveis as conseqüências trágicas da perda do emprego, intensificadas ao extremo pela nódoa moral imputada a José Romeu. E a alegria
da vitória jurídica não se faz suficiente à reparação do mal sofrido por
todos os Autores, máxime tardia como veio, coroando uma vida toda de
sofrimento. Não se venha aqui falar de indústria de indenizações por
dano moral. Há que se estabelecer neste país o respeito pela honra alheia,
que o bom nome é o patrimônio mais precioso do cidadão. E tenho idéia
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bastante nítida de que a indenização do dano material sozinha não satisfaz
o prejuízo ocorrido in casu; basta imaginar hipótese em que a rescisão
contratual houvesse como causa mera interpretação administrativa equivocada, em matéria exclusivamente de direito, que nada houvesse com
achaques à integridade moral. Não fica evidente que na hipótese vertente
há um plus de vulneração ao patrimônio, atingida a esfera moral?
Concernentemente à quantificação da indenização, preleciona Carlos
Alberto Bittar (ob. supracit., p. 280), verbis:
“Nesse sentido é que a tendência manifestada, a propósito, pela jurisprudência
pátria é a da fixação de valor do desestímulo como fator de inibição a novas políticas
lesivas. Trata-se, portanto, de valor que, sentido no patrimônio do lesante, possa fazê-lo
conscientizar-se de que não deve persistir na conduta reprimida ou, então, deve afastar-se da vereda indevida por ele assumida. De outra parte, deixa-se para a coletividade,
exemplo expressivo da reação que a ordem jurídica reserva para infratores nesse campo
e em elemento que, em nosso tempo, tem-se mostrado muito sensível para as pessoas,
ou seja, o respectivo acervo patrimonial.
Compensam-se, com essas verbas, as angústias, as dores, as aflições, os constrangimentos e, enfim, as situações vexatórias em geral a que o agente tenha exposto o
lesado, com sua conduta indevida.
A atribuição do quantum, no caso concreto, que, normalmente, apura-se em execução
(RT 608/213; 588/61), fica a critério do juiz, que, relaciona direta e especificamente a
quaestio sub litem, encontra-se apto a detectar o valor compatível às lesões havidas.
...
A propósito, filiamo-nos ao sistema aberto, pois se mostra mais eficiente para o
alcance dos objetivos citados. Sustentamos que não deve nem existir limite máximo
em leis sobre a matéria - como corre em certos países - diante do princípio fundamental
dessa teoria, que é o da ilimitação da responsabilidade no patrimônio do lesante, ...
Deve-se, pois, confiar à sensibilidade do magistrado a determinação da quantia
devida, obedecidos os pressupostos mencionados. O contato com a realidade processual e com a realidade fática permite-lhe aferir o valor adequado à situação concreta.”
O magistério de Marcos Geraldo Porto de Oliveira (Dano Moral proteção jurídica da consciência, LED Editora de Direito, Edição 1999,
p. 67) consigna:
“No dano moral, não há uma perda material que possa ser dimensionada objetivamente em dinheiro, a não ser que a lei fixe certos valores para cada lesão específica,
como, por exemplo, tantos reais por lesão estética, tantos pela perda de pai, outro valor
pela calúnia e assim por diante. Esse critério é adotado na Bélgica. Não parece atender
ao critério de justiça essa fixação prévia da indenização. Diante da infinidade de casos,
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as circunstâncias específicas devem ser avaliadas.
O grau de culpa, a gravidade, extensão e repercussão da ofensa, a intensidade do
sofrimento, culpa concorrente como fator de atenuação da responsabilidade, a situação
patrimonial das partes e a eventual vantagem do lesante com a prática do ilícito são
alguns fatores determinantes no estabelecimento da quantia reparatória. Carlos Roberto
Gonçalves opina que a notoriedade e a fama constituem também fatores relevantes na
determinação da quantia a ser fixada.
No Brasil, o Código Brasileiro de Telecomunicações, já revogado, e a Lei de
Imprensa (Lei nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967) têm servido de parâmetro para o
estabelecimento da quantia indenizada. A primeira fixa o limite máximo em cem salários
mínimos e a segunda em duzentos salários mínimos. A lei sobre direitos autorais e o
Código Civil também fornecem alguns critérios para o arbitramento. A Lei de Imprensa
enumera os fatores que devem ser observados no arbitramento de indenização.
Por serem de natureza específica, a adoção dos critérios estabelecidos nessas leis
servem apenas como orientação geral. Na doutrina, as opiniões são variadas. Carlos
Alberto Bittar defende o arbitramento em valor exacerbado relacionado com as condições do lesante como desestímulo e fator de inibição a novas práticas lesivas. ‘Trata-se,
portanto, de valor que, sentido no patrimônio do lesante, possa fazê-lo conscientizar-se
de que não deve persistir na conduta reprimida ou, então, deve afastar-se da vereda
indevida por ele assumida.’
Maria Helena Diniz observa que a reparação por dano moral é, em regra, pecuniária,
...
A reparação em dinheiro viria neutralizar os sentidos negativos de mágoa, dor,
tristeza, angústia, pela superveniência de sensações positivas, de alegria, de satisfação,
pois possibilitaria ao ofendido algum prazer; que, em certa medida, poderia atenuar
o sofrimento. Ter-se-ia a compensação da dor pela alegria. Destaca ainda que cabe
sempre ao magistrado a fixação da pena pecuniária.”
Dir-se-ia exacerbada a fixação das indenizações, in casu?
Creio eu que não. A ilustre Juíza a quo soube bem ponderar a intensidade da dor moral no caso concreto, circunstância a que se somou uma
peculiaridade inelutável: a permanência do sofrimento no tempo; foram
trinta anos de persecução até que se restabelecesse a verdade jurídica,
apagando-se a mangra terrível da indigitação de improbidade.
No que concerne ao valor da indenização, todavia, merece alguma
sorte o apelo da União. É que a ilustre Julgadora a quo fixou-a em salários mínimos, o que afronta, a meu sentir, permissa maxima venia, a
Constituição Federal.
6 - Do apelo da parte autora
Muito embora a Súmula nº 54 do Superior Tribunal de Justiça de133
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
termine como dies a quo a data de ocorrência do dano, a hipótese sub
examine guarda peculiaridades a exigir que se recorra a critério outro,
porquanto: a) A actio nata fixou-se no reconhecimento da ilicitude da
demissão a bem do serviço público, e, à obviedade toda, não se há que
perquirir mora antes mesmo da possibilidade de exercício do direito; b)
A pretensão dos autores levaria à perplexidade de aplicar juros desde o
evento demissão em relação ao autor Luciano, que sequer havia nascido;
c) A espécie sub examine contempla, como acima já fiz registrar, não
só um sofrimento continuado, mas uma pluralidade de danos ocorridos
durante toda uma vida, cujas ocasiões de ocorrência nem sempre são
identificáveis; d) Não se pode confundir a causa do dano com o próprio
dano, pois, além do impacto moral traumatizante da própria demissão,
levou-se em conta a seqüência de circunstâncias nocivas em toda a saga
de uma tragédia familiar.
Tenho, assim, que a fixação concomitante ao surgimento da ação
traduz solução de eqüidade, na inviabilidade absoluta de localizarem-se
os eventos no tempo.
Ex positis, dou parcial provimento ao apelo da União e à remessa
oficial apenas para fixar o dano moral em R$ 100.000,00 (cem mil reais)
para o autor José Romeu Pujol Rodrigues e em R$ 50.000,00 para cada
um dos demais Autores, quantias sobre as quais incidirão juros legais
e correção monetária, esta computada a partir da data da sentença de
primeiro grau, e nego provimento ao apelo dos autores.
É o voto.
APELAÇÃO CÍVEL Nº 2001.04.01.087961-8/PR
Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores
Lenz
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R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
Apelante: Caixa Econômica Federal - CEF
Advogados: Drs. Cristina Napoli Madureira da Silva e outros
Apelada: Crystal Glass Distribuidora de Vidros Ltda.
Advogado: Dr. Luiz Celso Dalpra
EMENTA
Direito Civil. Contrato bancário. CDC. Teoria da imprevisão. Juros.
Jurisprudência do STF. Efeitos.
1. Realmente, os contratos firmados pelos requerentes constituem,
em sua essência, típicos contratos de adesão, ou seja, aquela modalidade
contratual em que todas as cláusulas são previamente estipuladas por
uma das partes de modo que a outra não tem poderes para debater as
condições, ou mesmo introduzir modificações no esquema proposto.
Essa espécie de contrato tem sido cada vez mais utilizada na atividade negocial, face à dinamicidade da realidade econômica do mundo
contemporâneo: “L’ordinamento giuridico non può opporsi a questo
fenomeno che corrisponde ad una esigenza della vita moderna: la realtà
economica odierna si fonda, infatti, anche su una rapida conclusione
degli affari, specie se si tratta di affari di piccola entità, che assumono importanza per il loro numero: al vantagio dell’acceleramento del
fenomeno produttivo deve essere dunque sacrificato il bisogno di una
libertà di trattative che spesso presenterebbe ostacoli insuperabili.” (In
ANDREA TORRENTE, Manuale Di Diritto Privato. 6. ed., Dott A.
Editore, Milano, 1965. p. 243. § 295).
Admitir-se a legalidade do procedimento pretendido pelos requerentes, implicaria o surgimento de perigoso precedente com sérias
conseqüências para todo o complexo e rígido sistema de financiamento
da habitação, cuja estrutura e mecanismo de funcionamento foi bem
exposta pelo consagrado administrativista, Prof. Caio Tácito, em alentado parecer que instruiu a Rp. nº 1.288, julgada pelo Egrégio Supremo
Tribunal Federal, verbis: “Ademais, os contratos imobiliários são, no
caso, parte integrante de um todo interligado, de um sistema global de
financiamento que tem, como outra face, a manutenção da estabilidade
de suas fontes de alimentação financeira consubstanciadas nos sistemas
de poupança e do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço. A noção de
equilíbrio financeiro não opera somente nas relações entre mutuários e
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
135
mutuantes, mas, igualmente, na reciclagem de recursos financeiros que,
em um mecanismo de vasos comunicantes, realimentam, no retorno do
capital investido, a dinâmica de novos investimentos.” (In TÁCITO,
Caio. Parecer publicado na Revista de Direito Administrativo, 165/348)
Ora, no caso dos autos não há sequer falar na imprevisão contratual,
pois a teoria da imprevisão consiste no reconhecimento de que eventos
novos, imprevistos e imprevisíveis pelas partes, e a elas não imputáveis,
refletindo sobre a economia ou a execução do contrato, autorizam a sua
revisão, para ajustá-lo às circunstâncias supervenientes. Trata-se da aplicação da cláusula rebus sic stantibus, elaborada pelos pós-glosadores,
que esposa a idéia de que todos os contratos dependentes de prestações
futuras incluíam cláusula tácita de resolução, se as condições vigentes
se alterassem profundamente.
Tal idéia se inspirava num princípio de eqüidade, pois se o futuro
trouxesse um agravamento excessivo da prestação de uma das partes,
estabelecendo profunda desproporção com a prestação da outra parte,
seria injusto manter-se a convenção, já que haveria indevido enriquecimento de um e conseqüente empobrecimento do outro (Cfe. sobre o
tema os seguintes autores: TORRENTE, Andrea. Manuale di Diritto
Privato. 6. ed., Giuffrè Editore, 1965. pp. 447-50. § 311; MADRAY,
Gilbert. Des Contrats D’aprè la Récent Codification Privée Faite aux
États-Unis – Étude Comparée de Droit Américain et de Droit Français.
Libr. Générale, Paris, 1936. p. 194; RIPERT, Georges. La Règle Morale
dans les Obligations Civiles. 4. ed., Libr. Générale, Paris, 1949, p. 143
e ss.; DURAND,Paul. Le Droit des Obligations dans les Jurisprudences
Française et Belge. Libr. Du Recueil Sirey, Paris, 1929. p. 134 e ss; VENIAMIN, Virgile. Essais sur les Donnes Economiques dans L’Obligation
Civile. Libr.- Générale, Paris, 1931. p. 373 e ss.; PLANIOL, Marcel.
Traité Élémentaire de Droit Civil. 10.ed., Libr. Générale, Paris, 1926. t.
II. n. 1.168. p. 414; SIDOU, Othon. A Revisão Judicial dos Contratos.
2. ed., Forense, 1984. p. 95; MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito
Privado. 3. ed., RT, 1984. t. XXV. § 3.060. pp. 218-20 e, do mesmo autor,
Dez Anos de Pareceres. Livr. Francisco Alves, Rio, 1976. vs. 7/36-9 e
10/197-9; FONSECA, Arnoldo Medeiros da. Caso Fortuito e Teoria da
Imprevisão. 3. ed., Forense, Rio, 1958. pp. 345-6, n. 242; CAMPOS, Francisco. Direito Civil – Pareceres. Livr. Freitas Bastos, 1956. pp. 05-11).
136
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
Todos os autores acima referidos admitem sob os mais variados fundamentos doutrinários, a aplicação da teoria da imprevisão, mas apenas em
circunstâncias excepcionais, que não se verificam no caso dos autos, ou
seja, somente a álea econômica extraordinária e extracontratual, desequilibrando totalmente a equação econômica estabelecida pelos contraentes
justifica a revisão do contrato com base na cláusula rebus sic stantibus.
Outro não é o entendimento adotado pela jurisprudência uniforme da
Suprema Corte, em todas as oportunidades em que se manifestou sobre
a tormentosa questão, como reflete o aresto relatado pelo eminente e
saudoso Ministro Aliomar Baleeiro, cuja cultura jurídica é por todos
reconhecida, ao votar no RE nº 71.443-RJ, verbis: “Rebus sic stantibus
- Pagamento total prévio. 1. A cláusula rebus sic stantibus tem sido admitida como implícita somente em contratos com pagamentos periódicos
sucessivos de ambas as partes ao longo de prazo dilatado, se ocorreu
alteração profunda inteiramente imprevisível das circunstâncias existentes ao tempo da celebração do negócio...” (in RTJ 68/95. No mesmo
sentido RTJ: 35/597; 44/341; 46/133; 51/187; 55/92; 57/44; 60/774;
61/682; 63/551; 66/561; 96/667; 100/140; 109/153; 110/328 e 117/323).
No caso concreto, contudo, é de todo estranho aos princípios de justiça
a aplicação da teoria da imprevisão, que deve ser aplicada com cautela
pelo magistrado, evitando que este interfira diretamente nos contratos
celebrados, substituindo a vontade das partes, livremente pactuada, pela
sua. A respeito, doutrina Virgile Veniamin, em clássica monografia, verbis:
“En limitand ainsi l’application de la théorie de l’imprévision au cas où
elle apparait comme une exigence, de 1’harmonieux développement de
1’organisation économique, on restreint par Là même consideráblement
son étendue. En offrant au juge un critérium objectif, fondé sur les donnés concrètes dégagées grâce à une méthode d’observation directe, à
1’aide du matériel préparé par des experts idoines, on évite l’arbitraite
auquel la recherche d’une intention malveillante, toujours devinatoire
peut fournir 1’occasion. En outre, le rapprochement que nous venons
de faire dans le présent chapitre, entrela 1ésion et l’imprévision - toutes
les deux ayant le même caractère et répondant aux mêmes nécessités de
1’ordre économique - nous indique une limitation technique du pouvoir
de juge. Dans les deux cas, ce n’est pas à la révision du contrat qu’on
doit aboutir, mais simplement à sa rescision (1). I1 n’appartient point
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
137
au juge d’orienter 1’activité humaine en s’immiscant dans la teneur
du contrat. Sa mission estterminée, dès qu’en obéissant aux directives
économiques, il empêche la ruine de 1’individu et lui assure en même
temps que sa sauvegarde personnelle, une participation efficace à la
collaboration générale” (In Essais sur les Données Economiques dans
L’Obligation Civile. Libr. Générale, Paris, 1931. pp. 393-4).
Não pode prosperar, igualmente, o argumento de que a taxa de juros
cobrada pela requerida, com previsão contratual, contrariou o disposto
na legislação.
A Chamada Lei da Usura vedava a cobrança de juros acima da taxa
legal, inclusive comissões. Porém, com o advento da Lei de Reforma
Bancária – Lei nº 4.595 –, o Conselho Monetário Nacional foi incumbido
de formular a política de moeda e crédito, bem como limitar as taxas
de juros, comissões e outras formas de remuneração. Por conseguinte,
o Dec. nº 22.626 foi revogado, no que concerne às operações com as
instituições de crédito sob o controle do Conselho Monetário Nacional,
que integram o Sistema Financeiro Nacional. Consagrando esse entendimento, editou a Suprema Corte a Súmula 596, que recebe inteira
aplicação pelos Tribunais do país.
O eminente Ministro Xavier de Albuquerque, ao votar sobre a questão no RE nº 78.953-SP (PLENO), disse, verbis: “Assim também me
parece. O legislador do Dec. 22.626/33 cuidou, ele mesmo, de limitar a
taxa de juros, fazendo-o no máximo de 12% ao ano. O da Lei 4.595/64,
porém, adotando nova técnica para a formulação da política da moeda
e do crédito, criou o Conselho Monetário Nacional e, conferindo-lhe
poderes normativos ‘quase legislativos’, cometeu-lhe o encargo de ‘limitar, sempre que necessário, as taxas de juros, descontos, comissões
e qualquer outra forma de remuneração de operações e serviços bancários ou financeiros’ (art. 4º, IX). A cláusula ‘sempre que necessário’,
contida nesse preceito, parece-me mostrar que deixou de prevalecer o
limite genérico do Dec. 22.626/33; a não ser assim, jamais se mostraria
necessária, dada a prevalência de um limite geral, único, constante e
permanente, preestabelecido naquele velho diploma legal, a limitação
que a nova lei atribuiu ao Conselho. De resto, tal limite geral, único,
constante e permanente seria incompatível com a filosofia que presidiu
à elaboração da Lei da Reforma Bancária, marcadamente conjuntural”.
138
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
(In RTJ 72/920. Nesse sentido, ainda, RTJ 73/987; 75/257, 957 e 963;
77/966; 78/624 e 79/620)
2. Apelação conhecida e provida.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide
a Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, dar provimento à apelação, nos termos do relatório, voto e notas
taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Porto Alegre, 29 de abril de 2003.
Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, Relator.
RELATÓRIO
O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz: A
r. sentença recorrida, a fls. 145/7, bem esclarece a controvérsia, verbis:
“CRYSTAL GLASS DISTRIBUIDORA DE VIDROS LTDA., já qualificada nos
autos, ingressou com a presente ação declaratória contra a Caixa Econômica Federal
objetivando, em síntese, anulação do título (nota promissória) vinculada ao Contrato
de Abertura de Crédito Rotativo em conta-corrente conhecido por ‘Cheque Azul Empresarial’. Alega a requerente preenchimento abusivo da nota promissória assinada
em branco, com a inclusão de encargos de abertura de crédito em conta-corrente com
limite para cobertura de cheques sem suficiente provisão de fundos no valor de R$
10.000,00 (dez mil reais), havendo, após a utilização do crédito, a cobrança em sua
conta de juros acima da taxa de 12% ao ano capitalizados e multas cumulativas. Entende a requerente que é proibida a cobrança de juros acima de 12% a.a., bem assim a
capitalização de juros. Sustentou que houve aplicação excessiva de juros devendo ser
levado em conta que o contrato é de adesão, sendo aplicáveis as disposições do Código
de Defesa do Consumidor.
Inicial instruída com os documentos de fls. 11/12.
Citada (fl. 36), a Caixa Econômica Federal ofereceu resposta argüindo, preliminarmente, inépcia da inicial; e no mérito, a improcedência da reivindicação da requerente,
ao argumento de que o propósito da presente é o de que adiar temporariamente o cumprimento por parte desta de suas obrigações contratuais, até porque sabe que a lei não
admite revisão de contratos que se aperfeiçoaram de conformidade com a lei vigente a
seu tempo; e que não se aplica o Código de Defesa do Consumidor nem a lei de Usura
aos contratos bancários. Dá ênfase à circunstância de a autora ter tido conhecimento das
cláusulas contratuais e com elas concordado, entre as quais a de juros.
Com a contestação vieram os documentos de fls. 61/85 e, posteriormente, os extratos
da conta-corrente da autora de fls. 74/84.
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
139
A preliminar de inépcia foi rejeitada pela decisão de fl. 100.
Réplica às fls. 87/91 onde afirma a requerente a procedência do pedido, pondo em
destaque a Súmula 121 sobre a capitalização de juros.
O contrato de abertura de crédito, por cópia, constitui a peça de fls. 61/73.
Designada audiência de conciliação, esta se realizou consoante termo de fl. 97.
Não ultimada a transação entre as partes foi oportunizada a produção de provas,
conforme consta de fl. 100.
Instada a depositar os honorários periciais, por duas vezes, a parte autora manteve-se silente ocorrendo, assim, a preclusão da prova pericial.
1.2. Da ação cautelar
A Autora ingressou com ação cautelar buscando a concessão de medida liminar, para
sustação de protesto da nota promissória emitida em favor da Caixa Econômica Federal, relativa ao protesto com número de distribuição 922090, emitido pelo 1º Cartório
de Protesto de Título da Capital, relativamente a nota promissória, com vencimento
à vista, no importe de R$ 10.362,00, mediante caução real. Alega, ainda, que o título
está eivado de nulidades e por isso deve ser anulado.
Face os documentos acostados aos autos, em especial as cláusulas 12ª e 16ª do
contrato, a autora comprovou a ocorrência do fumus boni iuris e em face da notificação
de fl. 13, o periculum in mora.
A liminar foi deferida (fl. 33).
Os bens oferecidos em caução são aqueles constantes das cópias das notas fiscais
de fls. 38/53.
Citada, a Caixa Econômica Federal contesta, fls. 57/58, alegando preliminarmente,
falta de interesse de agir, tendo em vista a inadequação da via processual, na medida
em que a autora pleiteia a anulação do título. Sustenta, ainda, a ré ser incabível o provimento pleiteado, porque teria natureza satisfativa, vedado pelo art. 1º, § 3º, da Lei
nº 8.437/92, no mérito, alega a inexistência do periculum in mora e fumus boni iuris,
requerendo, assim, a revogação da liminar e total improcedência do pedido.
Réplica às fls. 102/105.
Vieram-me os autos conclusos para sentença.”
Interposta a apelação, postula a CEF a reforma do julgado.
O MPF opinou pelo parcial provimento do recurso.
É o relatório.
VOTO
O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz:
Com efeito, a melhor doutrina encaminha-se pela aplicação das regras
do CDC aos contratos bancários (Guido Alpa e Salvatore Patti, in Le
Clausole Vessatorie Nei Contratti Con I Consumatori - Commentario
agli articoli 1469-bis - 1469-sexies del Codice Civile, Giuffrè Editore,
140
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
Milano, 1997, t. 2, p. 803 e segs.; Ugo Ruffolo, in Clausole Vessatorie e
Abusive, Giuffrè Editore, Milano, 1997, p. 244 e segs.; Jean Calais-Auloy,
in Droit de la Consommation, 4ª ed., Dalloz, Paris, p. 321;).
Em caso semelhante ao dos autos, de que fui relator, deliberou o
Tribunal, verbis:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO N.º 2002.04.01.037342-9/SC
RELATOR: DES. FEDERAL CARLOS EDUARDO THOMPSON FLORES LENZ
EMENTA
PROCESSO CIVIL E DIREITO CIVIL. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. ART.
273 DO CPC. SISTEMA FINANCEIRO DE HABITAÇÃO. CONTRATO. TEORIA
DA IMPREVISÃO. JUROS. LEI Nº 4.595. EFEITOS. JURISPRUDÊNCIA DO STF.
1. Realmente, os contratos firmados pelos requerentes constituem, em sua essência,
típicos contratos de adesão, ou seja, aquela modalidade contratual em que todas as
cláusulas são previamente estipuladas por uma das partes de modo que a outra não
tem poderes para debater as condições, ou mesmo introduzir modificações no esquema
proposto.
Essa espécie de contrato tem sido cada vez mais utilizada na atividade negocial,
face à dinamicidade da realidade econômica do mundo contemporâneo: ‘L’ordinamento
giuridico non può opporsi a questo fenomeno che corrisponde ad una esigenza della vita
moderna: la realtà economica odierna si fonda, infatti, anche su una rapida conclusione
degli affari, specie se si tratta di affari di piccola entità, che assumono importanza per
il loro numero: al vantagio dell’acceleramento del fenomeno produttivo deve essere
dunque sacrificato il bisogno di una libertà di trattative che spesso presenterebbe ostacoli insuperabili.’ (In TORRENTE, Andrea. Manuale di Diritto Privato. 6. ed., Dott
A. Editore, Milano, 1965. p. 243. § 295).
Admitir-se a legalidade do procedimento pretendido pelos requerentes, implicaria
o surgimento de perigoso precedente com sérias conseqüências para todo o complexo
e rígido sistema de financiamento da habitação, cuja estrutura e mecanismo de funcionamento foi bem exposta pelo consagrado administrativista, Prof. CAIO TÁCITO, em
alentado parecer que instruiu a Rp. nº 1.288, julgada pelo Egrégio Supremo Tribunal
Federal, verbis: ‘Ademais, os contratos imobiliários são, no caso, parte integrante de
um todo interligado, de um sistema global de financiamento que tem, como outra face,
a manutenção da estabilidade de suas fontes de alimentação financeira consubstanciadas nos sistemas de poupança e do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço. A noção
de equilíbrio financeiro não opera somente nas relações entre mutuários e mutuantes,
mas, igualmente, na reciclagem de recursos financeiros que, em um mecanismo de
vasos comunicantes, realimentam, no retorno do capital investido, a dinâmica de
novos investimentos.’ (In TÁCITO, Caio. Parecer publicado na Revista de Direito
Administrativo, 165/348).
Ora, no caso dos autos não há sequer falar na imprevisão contratual, pois a teoria da
imprevisão consiste no reconhecimento de que eventos novos, imprevistos e impreviR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
141
síveis pelas partes, e a elas não imputáveis, refletindo sobre a economia ou a execução
do contrato, autorizam a sua revisão, para ajustá-lo às circunstâncias supervenientes.
Trata-se da aplicação da cláusula rebus sic stantibus, elaborada pelos pós-glosadores,
que esposa a idéia de que todos os contratos dependentes de prestações futuras incluíam
cláusula tácita de resolução, se as condições vigentes se alterassem profundamente.
Tal idéia se inspirava num princípio de eqüidade, pois se o futuro trouxesse um
agravamento excessivo da prestação de uma das partes, estabelecendo profunda desproporção com a prestação da outra parte, seria injusto manter-se a convenção, já que
haveria indevido enriquecimento de um e conseqüente empobrecimento do outro (Cfe.
sobre o tema os seguintes autores: TORRENTE, Andrea. Manuale di Diritto Privato. 6.
ed., Giuffrè Editore, 1965. pp. 447-50. § 311; MADRAY, Gilbert. Des Contrats D’aprè
la Récent Codification Privée Faite aux États-Unis - Étude Comparée de Droit Américain et de Droit Français. Libr. Générale, Paris, 1936. p. 194; RIPERT, Georges. La
Règle Morale dans les Obligations Civiles. 4. ed., Libr. Générale, Paris, 1949, p. 143
e ss.; DURAND, Paul. Le Droit des Obligations dans les Jurisprudences Française
et Belge. Libr. Du Recueil Sirey, Paris, 1929. p. 134 e ss; VENIAMIN, Virgile. Essais
sur les Donnes Economiques dans L’Obligation Civile. Libr.- Générale, Paris, 1931. p.
373 e ss.; PLANIOL, Marcel. Traité Élémentaire de Droit Civil. 10 ed., Libr. Générale,
Paris, 1926. t. II. n. 1.168. p. 414; SIDOU, Othon. A Revisão Judicial dos Contratos. 2.
ed., Forense, 1984. p. 95; MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. 3. ed.,
RT, 1984. t. XXV. § 3.060. pp. 218-20 e, do mesmo autor, Dez Anos de Pareceres. Livr.
Francisco Alves, Rio, 1976. vs. 7/36-9 e 10/197-9; FONSECA, Arnoldo Medeiros da.
Caso Fortuito e Teoria da Imprevisão. 3. ed., Forense, Rio, 1958. pp. 345-6, n. 242;
CAMPOS, Francisco. Direito Civil – Pareceres. Livr. Freitas Bastos, 1956. pp. 05-11).
Todos os autores acima referidos admitem sob os mais variados fundamentos
doutrinários, a aplicação da teoria da imprevisão, mas apenas em circunstâncias excepcionais, que não se verificam no caso dos autos, ou seja, somente a álea econômica
extraordinária e extracontratual, desequilibrando totalmente a equação econômica
estabelecida pelos contraentes justifica a revisão do contrato com base na cláusula
rebus sic stantibus.
Outro não é o entendimento adotado pela jurisprudência uniforme da Suprema Corte,
em todas as oportunidades em que se manifestou sobre a tormentosa questão, como
reflete o aresto relatado pelo eminente e saudoso Ministro ALIOMAR BALEEIRO, cuja
cultura jurídica é por todos reconhecida, ao votar no RE n. 71.443-RJ, verbis: ‘Rebus sic
stantibus - Pagamento total prévio. 1. A cláusula rebus sic stantibus tem sido admitida
como implícita somente em contratos com pagamentos periódicos sucessivos de ambas
as partes ao longo de prazo dilatado, se ocorreu alteração profunda inteiramente imprevisível das circunstâncias existentes ao tempo da celebração do negócio...’ (in RTJ
68/95. No mesmo sentido RTJ: 35/597; 44/341; 46/133; 51/187; 55/92; 57/44; 60/774;
61/682; 63/551; 66/561; 96/667; 100/140; 109/153; 110/328 e 117/323).
No caso concreto, contudo, é de todo estranho aos princípios de justiça a aplicação
da teoria da imprevisão, que deve ser aplicada com cautela pelo magistrado, evitando
142
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
que este interfira diretamente nos contratos celebrados, substituindo a vontade das partes,
livremente pactuada, pela sua. A respeito, doutrina VIRGILE VENIAMIN, em clássica
monografia, verbis: ‘En limitand ainsi l’application de la théorie de l’imprévision au
cas où elle apparait comme une exigence, de 1’harmonieux développement de 1’organisation économique, on restreint par Là même consideráblement son étendue. En
offrant au juge un critérium objectif, fondé sur les donnés concrètes dégagées grâce
à une méthode d’observation directe, à 1’aide du matériel préparé par des experts
idoines, on évite l’arbitraite auquel la recherche d’une intention malveillante, toujours
devinatoire peut fournir 1’occasion. En outre, le rapprochement que nous venons de
faire dans le présent chapitre, entrela 1ésion et l’imprévision - toutes les deux ayant
le même caractère et répondant aux mêmes nécessités de 1’ordre économique - nous
indique une limitation technique du pouvoir de juge. Dans les deux cas, ce n’est pas
à la révision du contrat qu’on doit aboutir, mais simplement à sa rescision (1). I1
n’appartient point au juge d’orienter 1’activité humaine en s’immiscant dans la teneur
du contrat. Sa mission estterminée, dès qu’en obéissant aux directives économiques, il
empêche la ruine de 1’individu et lui assure en même temps que sa sauvegarde personnelle, une participation efficace à la collaboration générale’ (In Essais sur les Données
Economiques dans L’Obligation Civile. Libr. Générale, Paris, 1931. pp. 393-4).
Não pode prosperar, igualmente, o argumento de que a taxa de juros cobrada pela
requerida, com previsão contratual, contrariou o disposto na legislação.
A Chamada Lei da Usura vedava a cobrança de juros acima da taxa legal, inclusive comissões. Porém, com o advento da Lei de Reforma Bancária - Lei nº 4.595 -, o
Conselho Monetário Nacional foi incumbido de formular a política de moeda e crédito,
bem como limitar as taxas de juros, comissões e outras formas de remuneração. Por
conseguinte, o Dec. n. 22.626 foi revogado, no que concerne às operações com as
instituições de crédito sob o controle do Conselho Monetário Nacional, que integram
o Sistema Financeiro Nacional. Consagrando esse entendimento, editou a Suprema
Corte a Súmula 596, que recebe inteira aplicação pelos Tribunais do país.
O eminente Ministro XAVIER DE ALBUQUERQUE, ao votar sobre a questão no
RE n. 78.953-SP (PLENO), disse, verbis: ‘Assim também me parece. O legislador do
Dec. 22.626/33 cuidou, ele mesmo, de limitar a taxa de juros, fazendo-o no máximo de
12% ao ano. O da Lei 4.595/64, porém, adotando nova técnica para a formulação da
política da moeda e do crédito, criou o Conselho Monetário Nacional e, conferindo-lhe
poderes normativos ‘quase legislativos’, cometeu-lhe o encargo de ‘limitar, sempre que
necessário, as taxas de juros, descontos, comissões e qualquer outra forma de remuneração de operações e serviços bancários ou financeiros’ (art. 4º, IX). A cláusula ‘sempre
que necessário’, contida nesse preceito, parece-me mostrar que deixou de prevalecer
o limite genérico do Dec. 22.626/33; a não ser assim, jamais se mostraria necessária,
dada a prevalência de um limite geral, único, constante e permanente, preestabelecido
naquele velho diploma legal, a limitação que a nova lei atribuiu ao Conselho. De resto,
tal limite geral, único, constante e permanente seria incompatível com a filosofia que
presidiu à elaboração da Lei da Reforma Bancária, marcadamente conjuntural” (In RTJ
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
143
72/920. Nesse sentido, ainda, RTJ 73/987; 75/257, 957 e 963; 77/966; 78/624 e 79/620).
Por conseguinte, ausentes os pressupostos do art. 273 do CPC, impõe-se o indeferimento da antecipação de tutela, pois ausentes os pressupostos para a sua concessão,
notadamente a verossimilhança do direito invocado.
2. Agravo de instrumento a que se nega provimento.”
No que concerne à comissão de permanência, é de ser mantida a r.
sentença, face ao teor da Súmula 30 do STJ.
Quanto aos juros de 12% ao ano, merece, igualmente, reforma a sentença, em razão da jurisprudência do Egrégio STJ, transcrita no parecer
do MPF, à fl. 209, verbis:
“COMERCIAL – CONTRATO DE CONFISSÃO DE DÍVIDA – JUROS – LIMITAÇÃO (12% AA) – LEI DE USURA (DECRETO Nº 22.626/33) – NÃO INCIDÊNCIA – APLICAÇÃO DA LEI Nº 4.595/64 – DISCIPLINAMENTO LEGISLATIVO POSTERIOR – SÚMULA Nº 596/STF – CAPITALIZAÇÃO MENSAL DOS
JUROS – VEDAÇÃO – SÚMULA Nº 121/STF – COMISSÃO DE PERMANÊNCIA
– MULTA – INACUMULAÇÃO – LEI Nº 4.595/64 – CORREÇÃO MONETÁRIA –
TR – PREVISÃO CONTRATUAL – 1. Não se aplica a limitação de juros de 12% ao
ano prevista na Lei de Usura aos contratos de abertura de crédito bancário. II. Nesses
mesmos contratos, ainda que expressamente pactuada, é vedada a capitalização mensal
dos juros, somente admitida nos casos previstos em lei, hipótese diversa dos autos.
Incidência do art. 4º do Decreto nº 22.262/33 e da Súmula nº 121/STF. III. A existência
de cláusula permitindo a cobrança de comissão de permanência com suporte na Lei nº
4.595/64 c/c a Resolução nº 1.129/86/BACEN, não pode ser afastada para adoção da
correção monetária sob o simples enfoque de prejuízo para a parte adversa. Todavia, a
concomitante previsão contratual de multa por inadimplência e juros, exclui a comissão
de permanência, de acordo com as normas de regência. IV. Ausência de vedação legal
para utilização da TR como indexador de contrato de crédito bancário, desde que livremente pactuada. V. Recurso especial conhecido em parte e parcialmente provido. (STJ
– REsp 400984 – RS – 4ª T. – Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior – DJU 17.06.2002).”
Por esses motivos, conheço da apelação da CEF e dou-lhe provimento, mantendo a r. sentença apenas no que diz com a Súmula 30 do STJ,
arcando cada uma das partes com os honorários de seus procuradores,
bem como as despesas processuais.
É o meu voto.
144
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
APELAÇÃO CÍVEL Nº 2001.70.09.001274-0/PR
Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores
Lenz
Relator p/acórdão: O Exmo. Sr. Juiz Federal José Paulo Baltazar
Junior
Apelante: S S Motores Elétricos Ltda.
Advogados: Drs. Alex Fernando Dal Pizzol e outros
Apelada: União Federal
Advogado: Dr. Luís Henrique Martins dos Anjos
EMENTA
Administrativo. Descumprimento da legislação trabalhista. Aplicação
de penalidade. Cabimento. Art. 628 da CLT.
. Configurado o ato que caracteriza a infração trabalhista, é dever do
Fiscal do Trabalho a imposição da penalidade (art. 628 CLT), salvo nos
casos de inserções legislativas ou estabelecimentos novos, quando a lei
autoriza o procedimento de dupla visita, objetivando a orientação. (CLT,
arts. 627 e 627-A)
. Apelação improvida.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas,
decide a Egrégia 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região,
por maioria, vencido o Relator, negar provimento à apelação, nos termos
do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante
do presente julgado.
Porto Alegre, 29 de junho de 2004.
Juiz Federal José Paulo Baltazar Junior, Relator p/acórdão.
RELATÓRIO
O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz: É
este o teor da r. sentença recorrida, a fls. 306/312, verbis:
“Busca a autora, através da presente ação ordinária, a declaração de nulidade das
autuações fiscais contra ela lavradas e, conseqüentemente, a suspensão da exigibilidade
das multas trabalhistas impostas.
Informa que foi autuada pela prática de seis infrações à legislação trabalhista,
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
145
decorrentes de irregularidades constatadas pela auditoria de fiscalização do trabalho
de Ponta Grossa. O primeiro auto de infração fundamentou-se nos parágrafos 3° e 4°
do artigo 630 da Consolidação das Leis do Trabalho, atinente à não-apresentação de
pronto dos livros/fichas de registros de empregados e livro de inspeção do trabalho.
Relativamente a esta infração, a autora alega que em nenhum momento furtou-se de
apresentar os livros à fiscalização do trabalho, uma vez que os mesmos se encontravam
no escritório do contador da empresa e que, tão logo possível, seriam exibidos, o que
de fato ocorreu na segunda visita da fiscalização. Quanto às demais infrações, aduz, em
resumo, que o agente fiscal não poderia ter lavrado autos em separado para infrações
referentes a um mesmo Capítulo da CLT, qual seja, Duração do Trabalho, disposto
nos artigos 57 a 75 daquele diploma legal. Sustenta também a necessidade imperiosa
de trabalho, fato este que ocasionou a jornada extraordinária de alguns empregados.
Ainda, que a conduta do agente fiscal foi por demais severa, fixando as multas em
valores próximos ao limite máximo, sem fundamentação a tanto, ferindo os princípios
da razoabilidade, proporcionalidade e legalidade.
Foi requerida a antecipação dos efeitos da tutela, havendo a decisão de fls. 223/228
deferido parcialmente o pedido a fim de que fosse o nome da autora excluído do CADIN. Após emenda à inicial às fls. 238/240, determinou-se às Delegacias da Receita
Federal e de Rendas do Estado do Paraná de Ponta Grossa a abstenção da exclusão da
autora do SIMPLES.
Interpôs a União agravo de instrumento em face das decisões antecipatórias, ao
qual foi negado provimento (fl. 302).
Em contestação (fls. 262 a 274), sustenta a União, quanto à primeira infração, que
a apresentação posterior do livro ou fichas de registro de empregados e do livro de
inspeção do trabalho não descaracteriza a infração, a qual está perfeitamente tipificada
no art. 630, §§ 3° e 4°, da CLT. No que tange às demais infrações, afirma que a alegação
da autora de ‘necessidade imperiosa do trabalho’ é injustificável, tendo em vista que a
legislação é clara ao impor limites à duração da jornada de trabalho, ao acréscimo de
horário na mesma e ao período de descanso. E, quanto à aplicação das penalidades,
salienta a correção da ação do agente fiscal, visto que a autora violou vários dispositivos legais diferentes, ensejando a lavratura de seus respectivos autos de infração e
que a graduação das multas está de acordo com o previsto pela Portaria n° 290, de 11
de abril de 1997. Relativamente à tutela antecipada, reafirma a União a ausência dos
requisitos legais para sua concessão.
Houve réplica à contestação às fls. 282 a 284.
Entendendo-se desnecessária a produção de provas em audiência, nos termos do
artigo 330, I, do CPC, passou-se ao julgamento antecipado da lide.
É o relatório. Decido.
II - FUNDAMENTAÇÃO
O auto de infração n.º 01422-453, lavrado pelo agente fiscal da Subdelegacia Regional do Trabalho de Ponta Grossa, fundamentou-se no art. 630, §§ 3° e 4°, da CLT,
que dispõe:
146
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
‘Art. 630.
§ 3° O agente da inspeção terá livre acesso a todas as dependências dos estabelecimentos sujeitos ao regime da legislação trabalhista, sendo as empresas, por seus dirigentes
ou prepostos, obrigadas a prestar-lhes os esclarecimentos necessários ao desempenho de
suas atribuições legais e a exibir-lhes, quando exigidos, quaisquer documentos que digam
respeito ao fiel cumprimento das normas de proteção ao trabalho.
§ 4 ° Os documentos sujeitos à inspeção deverão permanecer, sob as penas da lei,
nos locais de trabalho, somente se admitindo, por exceção, a critério da autoridade
competente, sejam os mesmos apresentados em dia e hora previamente fixados pelo
agente da inspeção.’
Não há o que se repreender em tal autuação, visto que perfeitamente enquadrada
na legislação. Ainda que a autora não tenha se recusado a apresentar os livros/fichas
de registro de empregados e o livro de inspeção do trabalho, tendo feito em momento
posterior, permanece inalterada a ilicitude do fato, não tendo a subseqüente apresentação o condão de descaracterizar a infração. Correta, portanto, a ação do agente fiscal.
Neste sentido, o ensinamento doutrinário:
‘Segundo o disposto no art. 630, §§ 3° e 4°, da CLT, os documentos sujeitos à
inspeção trabalhista deverão permanecer, sob as penas da lei nos locais de trabalho,
somente se admitindo, por exceção, a critério da autoridade competente, sejam eles
apresentados em dia e hora previamente fixados pelo Auditor-Fiscal do Trabalho.
(...)
A Portaria 3.626, de 13.11.91, no entanto, permite que a empresa utilize controle
único e centralizado dos documentos sujeitos à inspeção do Trabalho (mantendo-os,
portanto, fora do local de trabalho), à exceção dos atinentes ao registro de empregados
(Livros, Fichas ou Sistema Eletrônico Competente), do registro de horário de trabalho
e Livro de Inspeção do Trabalho, que deverão permanecer em cada estabelecimento.’
(Marcello Ribeiro Silva, in Inspeção do Trabalho - Procedimentos Fiscais. p. 57, 2002
- sem negritos no original)
Note-se que o fiscal do trabalho não tem a obrigação de conceder prazo para que a
empresa apresente os documentos sujeitos à inspeção, devendo os mesmos permanecer
nos locais de trabalho e apenas a critério da autoridade competente serão apresentados
em dia e hora previamente fixados. A este respeito, veja-se o seguinte julgado:
‘ADMINISTRATIVO. ANULATÓRIA DE DÉBITO. AUSÊNCIA DE DOCUMENTOS SUJEITOS À INSPEÇÃO NO LOCAL DE TRABALHO. PRAZO PARA
A APRESENTAÇÃO E AUTUAÇÃO FUNDADA NA VIOLAÇÃO DO ART. 630
DA CLT CONCOMITANTES. IMPOSSIBILIDADE. - O parágrafo 4° do artigo 630
da CLT dispõe que ‘os documentos sujeitos à inspeção deverão permanecer, sob as
penas da lei, nos locais de trabalho, somente se admitindo, por critério da autoridade
competente, sejam os mesmos apresentados em dia e hora previamente fixados pelo
agente da inspeção’. - Se o Fiscal do Trabalho, utilizando-se da faculdade que lhe atribui a Lei, concede prazo para a apresentação dos documentos a serem inspecionados,
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
147
incabível que, na mesma data, seja a empresa autuada por infração ao disposto nos §§
3° e 4º do art. 630 da CLT.’ (TRF 4ª Região, AC 361725, Processo 200004011026297,
DF: PR, 3ª T., DJU: 30.01.2002, p. 517, Relator Juiz Eduardo Tonetto Picarelli - sem
grifos no original)
Por sua vez, os autos de infração de nos 01422-0454; 03068-235; 03068-236; 03068237 e 01422-0455 são relativos a violações do capítulo da CLT que regula a Duração
do Trabalho, sendo constatadas pela fiscal do trabalho as seguintes irregularidades:
prorrogar a jornada normal de trabalho além do limite legal de 2 horas diárias, sem
qualquer justificativa legal; desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos
contidos na Consolidação das Leis do Trabalho; deixar de conceder ao empregado
descanso semanal de 24 horas consecutivas; deixar de conceder um período mínimo
de 11 horas consecutivas para descanso entre duas jornadas de trabalho; e manter empregados em atividade aos domingos, sem prévia permissão da autoridade competente
(artigos 59, 9°, c/c § 2° do 74, 67, 66, e 68, respectivamente, da CLT).
Pois bem, quanto à prática dessas infrações a autora é confessa e nada articulou a
seu respeito que possa eximi-la. Apenas se reporta ao fato de que a necessidade imperiosa de trabalho motivou a jornada extraordinária de alguns empregados, e, ainda,
que todas as infrações se referem a mesmo Capítulo da CLT, pretendendo a aplicação
de uma só penalidade para as diversas infrações à legislação.
Tal entendimento, porém, desvia-se dos princípios gerais de hermenêutica jurídica,
pretendendo a autora beneficiar-se através de distorções à Lei e interpretações descabidas. Veja-se a respeito o que dispõem os artigos 75 e 628 da CLT:
‘Art. 75. Os infratores dos dispositivos do presente capítulo incorrerão na multa
de 50 (cinqüenta) a 5.000 (cinco mil) cruzeiros, segundo a natureza da infração, sua
extensão e a intenção de quem a praticou, aplicada em dobro no caso de reincidência
e oposição à fiscalização ou desacato à autoridade.’
(Atualmente, a Portaria Mtb 290/97, de 11.04.97, estabelece as normas para a
imposição de multas administrativas previstas na legislação trabalhista, tendo como
parâmetro a UFIR)
‘Art. 628. Salvo o disposto nos arts. 627 e 627-A, a toda verificação que o Auditor­
Fiscal do Trabalho concluir pela existência de violação de preceito legal deve corresponder, sob pena de responsabilidade administrativa, a lavratura de auto de infração.’
(sem negritos no original)
Com efeito, verifica-se que os dispositivos não deixam margem a dúvidas. Pretendeu
o legislador punir os violadores das normas per se referentes ao Capítulo ‘Duração
do Trabalho’ com a multa correspondente. Não significa dizer, como quer a autora,
que o infrator de qualquer dos dispositivos, sejam quantos forem, incorrerá em única
penalidade. Se assim fosse, a Lei acabaria por beneficiar o transgressor, sendo complacente com a prática desmedida de infrações à legislação, uma vez que lhe seria dado
cometer diversas irregularidades de um mesmo Capítulo da CLT e suportar uma única
penalidade. Referida interpretação se afasta do espírito da Lei, que é justamente o de
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R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
desestimular e coibir a prática de transgressões às normas.
Ainda, no tocante à afirmação da autora de que as cinco irregularidades se tratam
de infração continuada, resta observar que tal argumento não encontra fundamentação
nem amparo legal. As infrações, ainda que contidas no mesmo Capítulo da CLT, nada
têm em semelhança, visto que constituem irregularidades diferentes que atingem em
particular os direitos dos trabalhadores.
No que concerne à justificativa de necessidade imperiosa de trabalho, friso por
sua impropriedade, dado que não devidamente comprovada e, ainda que o fosse, o
empregado não tem a obrigação de suportar o trabalho incessante e indispensável
ao qual é compelido para o objetivo primeiro da empresa, que é o de obtenção de
lucros. Desejando manter a alta produtividade do trabalho para atender à necessidade
de acréscimo extraordinário de serviço, a autora deveria ter se utilizado do ‘trabalho
temporário’, regulado pela Lei nº 6.019 de 13.01.74, e não, como fez, ter sacrificado
os direitos dos empregados, alegando, singelamente, que os mesmos teriam anuído ao
cumprimento das tarefas excessivas.
Por fim, quanto à alegada exorbitância na graduação dos valores das multas, cabe
observar que o órgão responsável por sua aferição, qual seja, a Delegacia Regional do
Trabalho, agiu plenamente nos limites da legalidade, razoabilidade e proporcionalidade,
impondo estimativas correspondentes à gravidade das infrações praticadas e em conformidade com a Portaria nº 290, de 11.04.97 da Fiscalização do Ministério do Trabalho
e Emprego. Atente-se que a autora não cometeu uma, mas seis infrações à legislação
trabalhista. Constatou a agente fiscal da Subdelegacia Regional do Trabalho de Ponta
Grossa que a empresa, além de não manter em seu estabelecimento o livro/ficha de
registros de empregados, não vinha cumprindo as determinações da Consolidação das
Leis do Trabalho no que concerne à Duração do Trabalho. Importante transcrever o que
verificou a fiscal, de forma a demonstrar a gravidade da atuação da empresa:
‘Deixar de exibir ao Agente da Inspeção, quando exigidos, quaisquer documentos que digam respeito ao fiel cumprimento das normas de proteção ao trabalho’: A
empresa não exibiu, quando solicitado pela fiscalização, o livro ou fichas de registro
de empregados e o livro de inspeção do trabalho; (f1. 32 - infração ao art. 630, §§
3° e 4°, da CLT)
‘Prorrogar a jornada normal de trabalho, além do limite legal de 2 horas diárias,
sem qualquer justificativa legal’: Na situação acima descrita, dentre os empregados,
cita-se ao acaso: Paulo Cesar Tybuchewski, que no período de 26 de maio a 25 de
julho cumpriu jornadas de trabalho superiores 10 horas diárias, tendo no dia 15 de
julho trabalhado das 8:10 às 11:30 e das 11:57 às 23:30 horas (13 horas e 50 minutos),
conforme constatado através do cartão ponto n° 18, visado e rubricado); (f1. 58 - infração ao art. 59, caput, da CLT)
‘Desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na Consolidação das Leis do Trabalho’: Em situação irregular, cita-se exemplificativamente os
empregados Gilberto Ribeiro e Osvaldo Aparecido da Cruz. Tais empregados, durante
vários dias no período de 26.05.97 a 25.07.97 marcaram suas jornadas de trabalho nos
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149
cartões-ponto e, posteriormente, houve rasura dos horários por parte da empresa, impedindo, dessa forma, a aferição da real jornada de trabalho por parte da Fiscalização;
(fl. 84 - infração ao art. 9° c/c § 2° do art. 74 da CLT)
‘Deixar de conceder ao empregado descanso semanal de 24 horas consecutivas’.
Em situação irregular, cita-se exemplificativamente o empregado Paulo César Tybuchewski que, conforme anotação nos cartões-ponto, trabalhou de 02.06.97 a 14.07.97
sem desfrutar de descanso semanal de 24 horas consecutivas; (f1. 89 - infração ao art.
67, caput, da CLT)
‘Deixar de conceder período mínimo de 11 horas consecutivas para descanso
entre duas jornadas de trabalho’: Cita-se como exemplo o empregado PauloCésar
Tybuchewski que no dia 15.07.97 encerrou sua jornada de trabalho às 23:30 horas,
retornando ao trabalho no dia 16.07.97 às 08:14 horas, não desfrutando do período
mínimo de 11 horas consecutivas para descanso entre as duas jornadas de trabalho;
(f1. 115 - infração ao art. 66 da CLT)
‘Manter empregados em atividade aos domingos, sem prévia permissão da autoridade competente’: Nas situações acima descritas cita-se os empregados Luiz Carlos E.
Oliveira, o qual trabalhou no dia 29.06.97, cumprindo jornada das 7:44 às 11:20 hs, e
Edson Rosnei Florenski no dia 08.06.97, das 13:19 às 16:33 horas. (fl. 142 - infração
ao art. 68, caput, da CLT)
Evidencia-se a reiterada falta de respeito por parte da empresa à legislação protetiva
do trabalhador, justificando a imposição das multas bastante acima do mínimo legal.
Destarte, não há como prosperar a pretensão exposta na exordial.
III - DISPOSITIVO
Diante do exposto, julgo improcedente o pedido, extinguindo o processo com exame
de mérito, nos termos do art. 269, I, do CPC, e revogo as decisões antecipatórias dos
efeitos da tutela de fls. 223/229 e 238/240.
Condeno a parte autora ao pagamento das custas processuais e de honorários advocatícios, que fixo em 10% (dez por cento) sobre o valor atribuído à ação, na forma
do artigo 20, §§ 3° e 4°, do Código de Processo Civil.”
Interposta a apelação, postula o recorrente a reforma do julgado,
reproduzindo os argumentos da inicial.
A União apresentou a resposta.
O MPF opinou pelo provimento do recurso.
É o relatório.
VOTO
O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz: Em
seu parecer, a fls. 346/7, anotou, com inteiro acerto, o douto MPF, verbis:
“Trata-se de apelação interposta contra sentença que julgou improcedente a ação
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R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
por entender regular a fiscalização e autuação dos agentes do Ministério do Trabalho.
O apelo merece provimento.
Os fatos indicam que o agente fiscal não procedeu de forma correta. A fiscalização
administrativa tem como objetivo primordial a educação para o cumprimento das
normas trabalhistas e não a simples autuação como forma de punição.
A educação resulta da recomendação inicial para o cumprimento das normas e em
caso de persistência na irregularidade, aí sim, a devida autuação. No caso presente o
agente fiscal não advertiu em nenhum momento a empresa apelante, nem sequer ouviu suas razões ou os próprios empregados utilizados no fundamento da autuação, ao
contrário, simplesmente procedeu a autuação, sem considerar sequer a possibilidade
de se tratar de caso isolado na vida da empresa, e justamente por isso, fato excepcional
por presunção.
Igualmente o agente não levou em consideração que a realização de horas extras
traduz-se em benefício pecuniário aos empregados, ansiosos por melhoria salarial, o
que confirma ainda mais as declarações prestadas, na medida em que há claro interesse
dos empregados em sua realização.
Além da autuação não ter advertido antecipadamente a empresa para realização
de uma segunda visita, igualmente não verificou a existência de tal prorrogação de
jornada em outros meses, para constatar se tratava-se de situação isolada ou de prática
reiterada, o que permitiria a autuação apenas neste segundo caso.
Resta ainda a justificativa apresentada que não pode ser simplesmente desconsiderada, partindo-se de pressuposto falso de a alegação do empregador não é verdadeira.
Registre-se ainda a autuação pela não apresentação dos livros obrigatórios, cujos
registros são feitos normalmente pelo contador da empresa no escritório de contabilidade
e não na sede da empresa, razão pela qual se toma sempre necessária a remoção de
tais livros para outro local. A falta de compreensão do agente fiscal sobre tais aspectos
básicos do costume empresarial seiva de irregularidade sua ação.
Por tais circunstâncias, as autuações administrativas devem ser anuladas.
Isto posto, opina o Parquet pelo conhecimento e provimento do apelo.”
Por esses motivos, acolhendo o parecer do MPF, conheço da apelação
e dou-lhe provimento, julgando procedente a ação, invertidos os ônus
da sucumbência.
É o meu voto.
VOTO DIVERGENTE
O Exmo. Sr. Juiz Federal José Paulo Baltazar Junior: A tese adotada
pelo Eminente Relator, baseada no parecer do MPF, é de que: a) a autuação da fiscalização trabalhista deve ser voltada para a educação e não
para a punição, de modo que a imposição de multa deve ser precedida
de recomendação inicial para o cumprimento das normas, impondo-se a
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
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sanção somente em caso de recalcitrância; b) a realização de horas extras
é de interesse do empregado, de modo que a falta de comprovação da
necessidade imperiosa não pode resultar em punição ao empregador; c)
a manutenção de livros obrigatórios fora da sede da empresa é prática
usual no meio empresarial, devendo ser tolerada.
Com a devida vênia, tenho que merece confirmação a sentença.
É que, ao contrário do sustentado, não é condição legal para a imposição de penalidade a advertência, verbal ou formal, nem exigem as
infrações sob exame a habitualidade ou prática reiterada para sua caracterização. Uma vez configurado o ato que caracteriza a infração, é dever
do fiscal a imposição da penalidade (CLT, art. 628), salvo nas hipóteses
dos arts. 627 e 627-A que, por sua vez, não se encontram configuradas
no presente caso. Eis o texto dos dispositivos referidos:
“Art. 627 - A fim de promover a instrução dos responsáveis no cumprimento das
leis de proteção do trabalho, a fiscalização deverá observar o critério de dupla visita
nos seguintes casos:
a) quando ocorrer promulgação ou expedição de novas leis, regulamentos ou instruções ministeriais, sendo que, com relação exclusivamente a esses atos, será feita
apenas a instrução dos responsáveis;
b) em se realizando a primeira inspeção dos estabelecimentos ou dos locais de
trabalho, recentemente inaugurados ou empreendidos.
Art. 627-A. Poderá ser instaurado procedimento especial para a ação fiscal, objetivando a orientação sobre o cumprimento das leis de proteção ao trabalho, bem como a
prevenção e o saneamento de infrações à legislação mediante Termo de Compromisso,
na forma a ser disciplinada no Regulamento da Inspeção do Trabalho. (Artigo incluído
pela MP 2.164-41/01).
Art. 628. Salvo o disposto nos arts. 627 e 627-A, a toda verificação em que o
Auditor-Fiscal do Trabalho concluir pela existência de violação de preceito legal
deve corresponder, sob pena de responsabilidade administrativa, a lavratura de auto
de infração. (Redação dada pela MP 2.164-41/01).”
Quanto às horas extras, é claro que há interesse pessoal do trabalhador em sua realização, em razão do acréscimo remuneratório que
estas acarretam. Contudo, as regras referentes à segurança e duração
do trabalho são imperativas, não havendo margem para alterações, seja
por vontade do empregado ou do empregador. Tais normas têm por fim
a proteção do trabalhador contra jornadas excessivas, que prejudiquem
a sua saúde e acarretem prejuízo ao desempenho laboral. Tais normas,
152
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
reunidas no capítulo da CLT referente à duração do trabalho, que por sua
vez é dividido em seções (duração, jornada e períodos de descanso), não
foram consideradas na realização das atividades laborais. Constatadas
as referidas violações da lei, o Fiscal do Trabalho, de acordo com suas
atribuições (CLT, art. 628, e Decreto 4.552/02), lavrou os respectivos
autos de infração, impondo multa de acordo com os limites legais (art.
75 da CLT) que segue transcrito:
“Art. 75. Os infratores dos dispositivos do presente Capítulo incorrerão na multa
de cinqüenta a cinco mil cruzeiros, segundo a natureza da infração, sua extensão e a
intenção de quem a praticou, aplicada em dobro no caso de reincidência e oposição à
fiscalização ou desacato à autoridade.”
Por fim, o costume do descumprimento não tem o condão de revogar
a norma que determina a manutenção dos livros no local de trabalho,
nos termos do § 4º do art. 630 da CLT, que assim dispõe:
“Art. 630. (...).
§ 4º - Os documentos sujeitos à inspeção deverão permanecer, sob as penas da lei
nos locais de trabalho, somente se admitindo, por exceção, a critério da autoridade
competente, sejam os mesmos apresentados em dia hora previamente fixados pelo
agente da inspeção”. (Parágrafo incluído pelo Decreto-Lei nº 229, de 28.02. 67)
Com estas considerações, acrescidas da necessidade de prestigiar
o trabalho da fiscalização, quando realizado sem excesso, nego provimento à apelação.
É como voto.
APELAÇÃO CÍVEL Nº 2001.71.00.007121-0/RS
Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores
Lenz
153
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
Relator p/acórdão: A Exma. Sra. Desa. Federal Marga Barth Tessler
Apelante: Elevadores Otis Ltda.
Advogados: Drs. Raquel Campani Schmiedel e outros
Apelante: Caixa Econômica Federal - CEF
Advogados: Drs. Sirlei Neves Mendes da Silva e outros
Apelados: (os mesmos)
EMENTA
Civil. Contrato. Execução. Multa. Aplicabilidade.
1. Deve ser parcialmente modificada a sentença, apenas para determinar que as multas aplicadas sejam reduzidas para dez por cento sobre
o valor de cada etapa da obra, pois é aplicável o art. 9º do Decreto nº
22.626/33.
2. Somente a mora aliada à total inexecução do contrato pode ensejar
multa no limite máximo, o que não é o caso dos autos.
3. Apelação da parte autora parcialmente provida. Prejudicado o
recurso da CEF.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a
Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por maioria,
vencido o Desembargador Federal Thompson Flores Lenz, dar parcial
provimento ao apelo da parte autora e julgar prejudicado o recurso da
CEF, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo
parte integrante do presente julgado.
Porto Alegre, 18 de março de 2003.
Desa. Federal Marga Barth Tessler, Relatora p/acórdão.
RELATÓRIO
O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz:
É este o teor da r. sentença recorrida, a fls. 163/171, verbis:
“ELEVADORES OTIS LTDA. ajuizou a presente Ação Ordinária contra CAIXA
ECONÔMICA FEDERAL (CEF), em que se discute a validade de multas de mora
avençadas em dois contratos de prestação de serviços, nos quais constam, como contratada, a Autora e, como contratante, a Ré.
Colhe-se da petição inicial, em resumo: que a Autora foi contratada para modernizar elevadores de dois prédios da Ré; que firmaram dois contratos, um para cada
154
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
prédio; que os contratos foram firmados após procedimento licitatório de tomada de
preços; que as prestações de serviços eram constituídas por etapas; que houve atraso
em algumas dessas etapas; que os serviços foram concluídos, ainda que com atraso;
que os contratos estabelecem multas de mora para o atraso na conclusão de cada etapa
da prestação de serviço contratada; que essa multa está dosada em 0,3% (três décimos
por cento) por dia de atraso incidente sobre o valor da etapa, sendo dobrada a partir
do 31º dia de atraso; que a Ré reteve valores de pagamento da Autora em razão das
multas que considerou incidentes; que tais multas, aplicadas pela Ré, foram dosadas
em percentagens elevadas do montante que deveria ser pago por cada etapa concluída;
que tais percentagens vão de 37,20% a 112,80% das etapas concluídas com atraso; que
a multa de mora do contrato atinente ao Ed. Querência foi cominada no mesmo valor
do preço da referida avença, isto é, em R$ 561.422,04; que a multa de mora avençada
nos contratos possui natureza de cláusula penal; que, por essa condição, não poderia
ser superior ao percentual de 2% do valor da etapa atrasada, por aplicação analógica
do CDC; ou que não poderia ser superior ao percentual de 10% do valor da etapa atrasada, por aplicação analógica do art. 9º do Decreto nº 22.626/33; que a Autora prestou
cauções em garantia dos contratos; que o valor dessas cauções não lhe foi devolvido,
apesar de concluídas as prestações de serviço; que, por isso, a Ré deve ser condenada
ao pagamento do valor das mencionadas cauções; que deve ser declarada a invalidade
das cláusulas penais contratadas, as quais devem ser minoradas para o percentual de
2% ou de outro patamar inferior a 10% do valor da etapa atrasada; e que a Ré deve
ser condenada ao pagamento dos valores retidos em virtude das multas moratórias ora
profligadas.
Citada, contestou a CEF, alegando, em suma: que a Autora perpetrou infrações
contratuais; que, por isso, foram aplicadas multas de mora; que a CEF apenas cumpriu o
acordado; que deve prevalecer o acordado; e que a ação deve ser julgada improcedente.
A Autora apresentou réplica, na qual requereu o julgamento antecipado da lide.
Apesar de intimada, a CEF não se manifestou sobre produção probatória. Vieram os
autos conclusos para prolação de sentença.
2. Fundamentação
Julgamento antecipado da lide.
Os fatos narrados na petição inicial não foram impugnados pela CEF em sua contestação. Limitou-se a Ré a defender a validade das cláusulas contratuais que dispuseram sobre multas de mora. Logo, sendo incontroversos os fatos, é caso de julgamento
antecipado da lide, consoante disciplina o art. 330, I, do CPC.
Dos fatos.
Estão sob foco nesta demanda as cláusulas de multa de mora estabelecidas em dois
contratos avençados entre as Partes.
O objeto desses contratos é a execução de reparação ou de modernização em elevadores de dois edifícios da CEF localizados nesta Cidade. Ambos decorrem do procedimento licitatório de tomada de preços nº 33/97 da CEF; e foram assinados em 16.02.98.
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155
Um dos contratos refere-se ao Ed. Barão do Cahy, tendo sido contratada a modernização de 03 elevadores. Foi avençado o preço global de R$ 146.190,04; que o serviço
seria realizado em 08 etapas; que o prazo total seria de 360 dias para a execução do
serviço; e que, a cada etapa, seria paga uma determinada parcela do preço.
O outro contrato atine ao Ed. Querência, tendo sido contratada a modernização
de 06 elevadores. Foi avençado o preço global de R$ 561.422,04; que o serviço seria
realizado em 14 etapas; que o prazo total seria de 540 dias para a execução do serviço;
e que, a cada etapa, seria paga uma determinada parcela do preço.
Em ambos os contratos foi avençada cláusula de multa de mora no percentual de
0,3% da parcela da etapa atrasada por dia de atraso, sendo majorado tal percentual do
31º dia de atraso.
Reconhece a Autora que atrasou a execução de etapas de ambos os contratos. Mas
aduz, contudo, que executou integralmente os serviços contratados. Cumpre frisar,
desde já, que este fato se mostra incontroverso, já que a CEF não o profligou.
Também aduz a Autora que os contratos foram garantidos, inicialmente, por fianças
bancárias, e, depois, por cauções em dinheiro. Essas cauções totalizaram o valor de R$
22.171,62. Este fato, além de incontroverso, está demonstrado pelo documento fl. 75.
Executados os serviços, alega a Autora que a CEF lhe aplicou as multas de mora
contratadas. Aduz que as multas atinentes ao Ed. Barão do Cahy totalizaram o montante de R$ 74.311,31. E que o percentual das multas variou de 37,20 % a 112,80% das
parcelas das etapas atrasadas. Obtempera, outrossim, que as multas relativas ao Ed.
Querência totalizaram o montante de R$ 561.422,04, o que equivale, precisamente, ao
preço do contrato. Isso significa que as multas deste contrato foram fixadas, conjuntamente, no percentual de 100% de seu valor. Estes fatos, pertinentes às fixações das
multas, também se mostram incontroversos.
Insta destacar, ainda, os atrasos verificados na execução de cada contrato. Quanto
ao contrato do Ed. Barão do Cahy, a Autora atrasou a execução das etapas 3ª a 8ª, isto
é, atrasou a execução de 06 etapas. Atrasou 199 dias a 3ª etapa; 93 dias a 4ª; 149 dias
a 5ª; 77 dias a 6ª; 99 dias a 7ª; e 203 dias a 8ª, que era a última. Isso significa que o
serviço, contratado para execução em 360 dias, somente foi finalizado em 563 dias. No
que toca ao Ed. Querência, foram atrasadas 12 etapas do total de 14. Restaram atrasadas
as etapas 3ª a 14ª. A 3ª atrasou 210 dias; a 4ª, 152 dias; a 5ª, 201 dias; a 6ª, 183 dias;
a 7ª, 258 dias; a 8ª, 271 dias; a 9ª, 355 dias; a 10ª, 247 dias; a 11ª, 305 dias; a 12ª, 171
dias; a 13ª, 176 dias; e, a 14ª, 235 dias. Nota-se que este serviço, contratado com prazo
de execução de 540 dias, somente foi finalizado com 775 dias. Estes dados também
são incontroversos e estão indicados em documentos da própria CEF: fls. 112 e 123.
Das multas moratórias contratadas no caso concreto.
O objeto desta Ação está limitado, tão-somente, ao exame da validade das cláusulas
contratuais que cuidaram da multa moratória.
Em ambos os contratos, essas multas de mora estão previstas nas cláusulas décimas,
parágrafos terceiros a sextos.
Segundo a Autora, as multas de mora avençadas possuem natureza contratual, e,
156
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não, legal. Por isso, não poderiam ser consideradas sanção administrativa, mas, sim,
uma cláusula penal contratual, apenas. Possuindo tal natureza, de cláusula penal, tais
multas estariam jungidas aos limites fixados no Direito Privado: 2% do valor da prestação, pela aplicação do art. 52, § 1º, do CDC; ou 10% do valor da dívida, consoante
dispõe o art. 9º do Decreto nº 22.626/33.
Os contratos vertentes tiveram origem em procedimento administrativo licitatório
regido pela Lei nº 8.666/93. Isso se deu porque a CEF é empresa pública, estando subordinada, portanto, ao regime de Direito Público delineado na supra-referida Norma.
Além disso, os contratos vertentes possuem cláusulas exorbitantes, ou seja, cláusulas
que seriam vedadas, em regra, no Direito Privado. Por exemplo, caracterizam-se como
cláusulas exorbitantes, nos presentes contratos, aquelas que exigiram a prestação de
garantia pela Autora; e as que lhe submeteram à aplicação de sanções administrativas.
Diante disso, mostra-se impositivo concluir que os contratos em exame são contratos administrativos, nos quais o Poder Público está em posição de supremacia sobre o
contratado e nos quais há prevalência do interesse público sobre o particular.
Ante a essas ponderações, nota-se que as cláusulas atinentes às multas de mora
são cláusulas exorbitantes, que, por seu turno, são próprias do contrato administrativo.
Possuem amparo legal no art. 86 da Lei nº 8.666/93, o qual estabelece que o ‘atraso
injustificado na execução do contrato sujeitará o contratado à multa de mora, na forma
prevista no instrumento convocatório ou no contrato.’
Na espécie, a multa de mora foi vinculada à execução das etapas dos contratos.
Como já dito, por dia de atraso, foi dosada em 0,3% da parcela a ela correspondente,
sendo dobrada a partir do 31º dia. Não se estabeleceu um limite temporal máximo de
mora para a execução de cada etapa ao cabo do qual ficasse rescindido o contrato. Assim, por conseqüência, não se estabeleceu também um limite máximo financeiro para
o valor das multas que fossem aplicadas. Em razão disso, verificou-se, na espécie, que
o valor da multa de determinadas etapas atrasadas ficou superior ao valor do preço a
elas atinentes.
Esse é, precisamente, o ponto nevrálgico da presente discussão: a Administração,
fazendo uso de sua supremacia expressada por meio de uma cláusula exorbitante e de
seu poder discricionário, estabeleceu uma multa de mora sem limite e cuja dimensão
dependia, apenas, do atraso que seria, ou não, perpetrado pela contratada.
Cabe perquirir, diante disso, se essa postura discricionária da Administração mostra-se válida.
Na busca da resposta desse questionamento, cabe considerar, por primeiro, que a
fixação do quantum da multa de mora em comento devia ser, como foi, regida pelo poder
discricionário da Administração. A própria Lei de regência delegou ao administrador
competente a determinação casuística dessa parcela do contrato.
Nesse mister, o Administrador deve estar atento ao disposto no art. 54 da Lei de
regência, o qual estabelece que os ‘contratos administrativos de que trata esta Lei
regulam-se pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, aplicando-se-lhes,
supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito
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privado.’
Diante disso, tenho que as lacunas destinadas à discricionariedade do Administrador
pela Lei nº 8.666/93 devem ser preenchidas com observância aos princípios de Direito
Público, e, supletivamente, com os princípios de Direito Privado.
Pelo prisma do Direito Público, deve o Administrador ter em conta o princípio
da proporcionalidade, a fim de averiguar se, na relação entre meios e fins, não houve
excesso.
E, por outra, na ausência de norma específica de Direito Público e desde que não
reste violada a supremacia do Poder Publico, pode a Administração, em integração
analógica, ter em conta as normas que regem o temário no Direito Privado.
Nosso Direito Civil cuida do tema nos arts. 916 a 927 do Código Civil Brasileiro
(CCB). Tais cânones versam sobre a cláusula penal compensatória e sobre a cláusula
penal moratória. Esta última possui natureza semelhante à multa de mora estabelecida
no Regime da Lei nº 8.666/93, porquanto ambas visam punir a demora no cumprimento
de obrigação.
Fixa o art. 920 do CCB que o ‘valor da cominação imposta na cláusula penal não
pode exceder o da obrigação principal’.
Essa Regra contida no citado art. 920 deveria ter sido, a meu ver, considerada pela
Administração na feitura dos contratos em exame. A sua própria utilização, em integração analógica, induziria consagração ao princípio da proporcionalidade, porquanto
restaria estabelecido um limite ao meio - aplicação de multa moratória - manejado na
consecução do fim pretendido - punição à demora do cumprimento do contrato. Com
tal limite, seria possível conter o excesso do meio e, ainda assim, ficaria protegido
o fim. Ademais, com tal limite, sabendo a Administração que a multa moratória não
poderia exceder o valor da obrigação, certamente seria mais diligente na fiscalização
da prestação do serviço contratado, e, também, na caracterização da causa de rescisão
contratual prevista no art. 78, III, da Lei de regência.
Frente a isso, cabe concluir que as cláusulas atinentes à multa de mora, na forma
como avençadas, violam o princípio da proporcionalidade. Este princípio reside na
ponderação e no cotejo dos meios utilizados pela Administração para atingir seus fins
públicos. No caso, reside na ponderação entre a aplicação da multa de mora (meio) e a
punição pela demora no atraso do cumprimento dos serviços contratados (fim). Indica,
por meio de sua ponderação, que houve excesso da Administração no meio utilizado.
Este (meio), assim como aquele (fim), estão previstos na Lei de regência. Se há excesso
em um deles, resta malferida a lei. Logo, havendo excesso na cominação da multa de
mora (meio), a cláusula que a contém se mostra parcialmente ilegal.
Por outro lado, cabe registrar que não são aplicáveis aos contratos em comento as
limitações de cláusulas penais previstas no art. 52, § 1º, do CDC e no art. 9º do Decreto nº 22.626/33. O primeiro dispositivo citado aplica-se, tão-somente, às relações de
consumo; e, o segundo, aos mútuos de capital. Os contratos presentes não se amoldam
a essas hipóteses, portanto, não devem ser disciplinados por tais Normas.
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R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
Quanto ao Decreto 22.626/33, impende acrescentar que a restrição de sua aplicação
a outros contratos decorre de sua própria redação, a qual identifica o mútuo de capital
como seu objeto. Para ilustrar tal asseveração, cumpre colecionar seus considerandos:
‘O Chefe do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil:
Considerando que todas as legislações modernas adotam normas severas para
regular, impedir e reprimir os excessos praticados pela usura;
Considerando que é de interesse superior da economia do país não tenha o capital
remuneração exagerada impedindo o desenvolvimento das classes produtoras;
Decreta: (...).’
Nota-se que esse trecho do referido Decreto evidencia sua esfera de aplicação apenas
como sendo os contratos de mútuo de capital.
Sendo assim, tenho que a aplicação analógica autorizada pela Lei nº 8.666/93
deve ser operada apenas com o art. 920 do CCB, sendo inaplicáveis, ao caso, como já
referido, o art. 52, § 1º, do CDC e o art. 9º do Decreto nº 22.626/33.
Da nova multa de mora resultante da intervenção judicial.
Diante da ilegalidade da multa de mora avençada, cumpre ao Judiciário intervir nos
contratos, para constituir uma nova cláusula que atenda aos ditames legais.
A ilegalidade verificada reside na possibilidade de que a multa de mora ultrapasse
o valor da parcela correspondente à etapa atrasada. Essa é, precisamente, a ilegalidade
que deve ser afastada.
Assim, a multa de mora contratada em ambos os contratos deve ficar limitada ao
valor da parcela da etapa a que se referir.
Essa é a única intervenção judicial que deve ser operada nas cláusulas em exame
por força da ilegalidade suso constatada.
Todavia, há outra intervenção judicial a ser operada, atinente à aplicação, ao caso,
do art. 924 do CCB.
Esse cânone, em integração analógica, também pode ser aplicado ao regime da
Lei nº 8.666/93. Registre-se que a pretensão de aplicação desse dispositivo integra a
fundamentação da petição inicial da Autora.
Refere tal artigo que o juiz pode reduzir a pena de mora quando a obrigação foi
cumprida em parte.
No caso, é incontroverso que a Autora cumpriu integralmente os serviços contratados, ainda que em mora. Logo, tenho que a redução da pena em comento deve ser
aplicada em benefício da Autora.
Passo a dosar tal redução. Somente a ausência da mora possibilitaria a ausência de
aplicação de pena. Em contrapartida, somente a mora aliada a uma total inexecução
poderia ensejar a aplicação da pena em seu grau máximo. No caso, os serviços foram
cumpridos inteiramente. Assim, a multa resultante da mora, no caso dos dois contratos
em exame, deve ser reduzida de metade, por força do art. 924 do CCB.
Frente a essas ponderações, as multas de mora previstas nas cláusulas décimas,
parágrafos terceiros a sextos, dos contratos subjacentes, ficam jungidas ao limite ditado
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pelo valor das parcelas atinentes às etapas atrasadas. E, além disso, o valor da multa
resultante dessa primeira operação, deverá ser reduzido de metade, por força do art.
924 do CCB.
É incontroverso que há multas superiores ao valor das parcelas. E mesmo aquelas
inferiores ao valor das parcelas deverão ser minoradas, em razão da redução do art.
924 supramencionado.
Logo, a CEF deve ser condenada a pagar à Autora o valor da diferença existente
entre os valores que reteve a título de multa de mora e os valores efetivamente devidos
pela Autora a título de multa de mora, conforme disciplinado nesta sentença.
Valor das cauções.
É incontroverso que a Autora prestou cauções nos contratos em comento; e que a
CEF ainda não devolveu à Autora o valor dessas cauções.
Deve a CEF ter retido as cauções em quitação das multas de mora, já que alguma
destas eram superiores aos valores das parcelas de pagamento da Autora.
Contudo, diante das alterações operadas nas multas de mora por esta sentença, não
há mais razão para a retenção das referidas cauções. Os valores retidos pela CEF, que
não foram pagos pela prestação dos serviços, são suficientes à quitação das multas de
mora alteradas por esta decisão.
Além disso, os serviços foram prestados integralmente.
Logo, deve a CEF ser condenada a pagar à Autora o valor atinente às cauções prestadas por esta no bojo dos contratos em exame, já que a retenção operada se mostra
indevida.
Liquidação dos valores de condenação.
I) Valores retidos por força das multas de mora: como já referido, a CEF deve pagar
à Autora o valor da diferença existente entre os valores que reteve a título de multa de
mora e os valores efetivamente devidos pela Autora a título de multa de mora, conforme
disciplinado nesta sentença.
Tais valores deverão ser determinados em liquidação de sentença.
Outrossim, deverão ser corrigidos monetariamente pelo NPC ou por outro índice
que o venha substituir. O termo a quo da incidência de correção monetária é a data em
que cada parcela deveria ter sido paga, nos termos das cláusulas segundas, parágrafos
primeiros, dos contratos.
Demais disso, a tais valores devem ser acrescidos juros moratórias de 6% ao ano,
calculados de forma simples, a partir da citação da CEF.
II) Valor das cauções: deve a CEF pagar à Autora o valor das cauções que prestou
em garantia dos contratos em exame.
O valor original dessas cauções era de R$ 22.171,62 (fl. 75).
Da data de prestação das garantias até o termo de 30 dias contados da execução
completa dos serviços, o valor das cauções deve ser atualizado pelos critérios contratuais
(cláusulas terceiras, parágrafos quintos, dos contratos).
A partir do fim do trintídio contratual (cláusulas terceiras, parágrafos terceiros, dos
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contratos), deve começar a incidir a correção monetária decorrente da condenação judicial,
porquanto este é o marco em que tais valores deveriam ter sido liberados. A correção
judicial deve ser pautada pelo INPC ou por outro índice que o venha substituir.
Demais disso, tais valores devem ser acrescidos de juros moratórios de 6% ao ano,
calculados de forma simples, a partir da citação da CEF.
Verbas sucumbenciais.
A sucumbência é recíproca. Logo, tenho que cada Parte deve suportar 50% das
despesas processuais. Fixo os honorários advocatícios em 10% do valor da condenação,
dos quais cada Parte deve suportar 50%. Esses quinhões sucumbenciais devem ser compensados entre as Partes. Fundamentos legais: arts. 20, § 3º, e 21, caput, ambos do CPC.
3. Dispositivo
Isso posto, julgo parcialmente procedente os pedidos vertidos na petição inicial,
com lastro no art. 269, I, do CPC, para, nos termos da fundamentação suso expendida:
declarar a ilegalidade parcial das cláusulas dos contratos sob exame que versaram
sobre multa de mora; desconstituir parcialmente as cláusulas dos contratos sob exame
que versaram sobre multa de mora; constituir novas cláusulas de multa de mora nos
contratos sob exame, as quais consistem no amálgama formado pela parcela que se
mostrou legal das cláusulas originais e pela intervenção judicial operada nesta sentença;
condenar a CEF a pagar à Autora o valor da diferença existente entre os valores que
reteve a título de multa de mora e os valores efetivamente devidos pela Autora a título
de multa de mora, conforme disciplinado nesta sentença; e condenar a CEF a pagar
à Autora o valor das cauções que esta prestou em garantia dos contratos em exame.
Na forma disciplinada na fundamentação, os valores de condenação devem ser
determinados em liquidação de sentença; corrigidos monetariamente; e acrescidos de
juros moratórios.
Condeno, outrossim, cada Parte a suportar 50% das despesas processuais e dos
honorários advocatícios, os quais restam fixados em 10% do valor da condenação,
ficando compensados tais quinhões sucumbenciais, tudo com base nos arts. 20, § 3º,
e 21, caput, ambos do CPC.”
A parte autora interpôs apelação, postulando a reforma do julgado, alegando violação aos arts. 920 do Código Civil, 9º do Decreto nº 22.626/33
e 52, § 1º, do Código do Consumidor.
A CEF, também, recorreu, visando à reforma do julgado.
O MPF opinou pelo provimento da apelação da CEF.
É o relatório.
VOTO
O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz: Em
seu parecer, a fls. 250/2, anotou o douto MPF, verbis:
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“Trata-se de apelações interpostas contra sentença que julgou parcialmente procedente a ação por entender abusivas as multas contratuais convencionadas, reduzindo-as.
Somente o apelo da CAIXA deve ser provido.
Importa destacar desde logo que não se trata de cláusula penal, ou seja, pena cominada pelo não cumprimento da obrigação principal, que ao final foi integralmente
cumprida.
O exame da cláusula décima, parágrafo terceiro, do contrato juntado às fls. 56, dá
conta que se trata, isto sim, de multa por atraso na obrigação de fazer, ou seja, astreintes,
o que evidentemente não se limita pelo valor da obrigação principal, ainda que possa
eventualmente ser diminuído.
Isto porque enquanto a cláusula penal é a penalidade ou previsão de danos decorrentes do descumprimento da obrigação assumida, a multa moratória ou astreintes tem
em foco o cumprimento de determinada obrigação de fazer ou não fazer em determinado tempo, logo, a finalidade e natureza são completamente diversas, haja vista que
o prejuízo não se calcula pelo descumprimento da obrigação, mas pelo atraso em seu
cumprimento.
Tal atraso não possui limitação sob pena de cessar a coação contratual imposta pela
multa, em que pese não possa ser excessiva, sob pena de tratar o atraso prolongado da
mesma forma que o pequeno atraso, ou razoável, privilegiando o primeiro.
Assim, havendo expressa previsão contratual e considerando a possibilidade de
fixação da referida multa, deve-se preservar integralmente o princípio do pacta sunt
servanda de modo a garantir a execução contratual.
Nesse sentido, as decisões transcritas.
‘MULTA - CLÁUSULA PENAL - MULTA COMPENSATÓRIA - LIMTAÇÃO
DO ART. 920 DO CÓDIGO CIVIL - PRECEDENTE DA CORTE - 1. Há diferença
nítida entre a cláusula penal, pouco importando seja a multa nela prevista moratória
ou compensatória, e a multa cominatória, própria para garantir o processo por meio do
qual pretende a parte a execução de uma obrigação de fazer ou não fazer. E a diferença
é, exatamente, a incidência das regras jurídicas específicas para cada qual. Se o Juiz
condena a parte ré ao pagamento de multa prevista na cláusula penal avençada pelas
partes, está presente a limitação contida no art. 920 do Código Civil. Se, ao contrário,
cuida-se de multa cominatória em obrigação de fazer ou não fazer, decorrente de título
judicial, para garantir a efetividade do processo, ou seja, o cumprimento da obrigação,
está presente o art. 644 do Código de Processo Civil, com o que não há teto para o valor
da cominação 2. Recurso especial conhecido e provido.’ (STJ - REsp 196262 - RJ – 3ª
T. – Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito - DJU 11.09.2000 - p. 00250)
‘CIVIL - CLÁUSULA PENAL - A cláusula penal não se confunde com as ‘astreintes’ e está sujeita à limitação prevista no artigo 920 do Código Civil. Recurso especial
conhecido e provido.’ (STJ – REsp 191959 – (199800762868) – SC – 3ª T. – Rel. p/
acórdão Min. Ari Pargendler – DJU 19.06.2000 – p. 00142)
Resta, por fim, prejudicado o apelo interposto pela autora.
162
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Isto posto, opina o Parquet pelo conhecimento e provimento do apelo da CEF.”
Realmente, in casu, não incidem as limitações previstas nos arts. 920
e 924 do Código Civil, bem como o disposto nos arts. 9º do Decreto nº
22.626/33 e 52, § 1º, do Código do Consumidor.
Ora, no caso em julgamento, em razão da natureza do contrato – contrato administrativo – e de cláusula expressa, aplica-se a Lei nº 8.666/93,
em especial o disposto no art. 87, IV e seu § 1º, inclusive quando disciplina relações jurídicas de empresa pública.
A respeito, leciona Jessé Torres Pereira Jr., in Comentários à Lei das
Licitações e Contratações da Administração Pública, 5ª edição, Renovar,
2002, pp. 546/7, verbis:
“A publicização dos contratos da Administração não significa a proscrição, neles,
dos princípios da teoria geral dos contratos, nem das normas reitoras dos contratos
tipicamente privados, como se deduz das ressalvas do art. 54 da Lei nº 8.666/93.
Mas, sem dúvida, introduz fato novo na concepção que predominava, até a edição do
Dec.-Lei nº 2.300/86 e da Constituição de 1988, quanto aos contratos celebráveis pela
Administração, qual seja a de que, ao contrário do que antes se sustentava, a só presença, no contrato, de pessoa integrante da Administração Pública, direta ou indireta,
ou de empresa sujeita ao controle estatal, já basta para atrair a incidência de princípios
e normas especiais de direito público.”
E, à p. 550, conclui, verbis:
“os contratos das empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações públicas de direito privado devem ser precedidos de licitação, sejam aquelas empresas
prestadoras de serviço público ou exploradoras de atividade econômica, e conterão,
necessariamente, por determinação da Lei nº 8.666/93, certas cláusulas e condições
estranhas ao direito comum, o que a EC nº 19/98 veio reforçar;”
Nesse sentido, a jurisprudência da Corte, verbis:
“APELAÇÃO CÍVEL Nº 1999.71.00.033370-0/RS
RELATOR: DES. FEDERAL CARLOS EDUARDO THOMPSON FLORES LENZ
APELANTE: PIRES SERVIÇOS DE SEGURANÇA LTDA.
ADVOGADO: Alfredo Jorge Achoa Mello e outros
Fernando Gheller Morschbacher
APELADO: CAIXA ECONÔMICA FEDERAL - CEF
ADVOGADO: Fernando Antonio Sá de Azambuja e outros
EMENTA
ADMINISTRATIVO. CONTRATO ADMINISTRATIVO. NULIDADE. CLÁUSULAS EXORBITANTES. EFEITOS.
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163
1. A Administração Pública atua, por meio dos contratos administrativos, com supremacia de poder, em razão do interesse público, por meio das denominadas ‘cláusulas
exorbitantes’, entre as quais figura a aplicação de penalidades contratuais diretamente
pela Administração.
A respeito leciona Lucia Valle Figueiredo, in Curso de Direito Administrativo, 5ª
edição, Malheiros Editores, 2001, p. 481, verbis:
‘Doutra parte, a aplicação de sanções, unilateralmente, pela Administração também não é prerrogativa à disposição do administrador, algo a ser desfrutado pelo
administrador. Bem ao contrário. Entendemos a imposição de sanções como dever do
administrador. A omissão, em determinados casos, dará ensejo, por exemplo, à ação
popular. Aplicar penalidades é dever. Insistimos, não é direito. É traço característico
do contrato administrativo. Porém, é dever.
Por outro lado, é claro, ao falarmos de sanções, presume-se estar-mos a falar de
fiscalização do contrato, obrigatória para a Administração. A Administração não tem
o direito de fiscalizar o contrato. Tem o dever de fiscalizá-lo em todas as suas etapas.
Em todo o seu cronograma. Não poderá aditar o contrato sem que haja fundamento
fático suficiente, que dê ensejo a tal aditamento.’
No mesmo sentido, G. Péquignot, in Théorie Générale Du Contrat Administratif,
éditions A. Pédone, Paris, 1945, p. 336 e seguintes; A. de Laubadère, in Traité Théorique
et Pratique Des Contrats Administratifs, L.G.D.J., Paris, 1956, T.1º, p. 91 e seguintes.
2. Improvimento da apelação.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a Terceira
Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, negar provimento
à apelação nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte
integrante do presente julgado.
Porto Alegre, 06 de agosto de 2002.
Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz – Relator”.
Dessa forma, as multas aplicadas têm natureza de sanções administrativas, com previsão na Lei de Licitações e no contrato ajustado
entre as partes.
Ora, tratando-se de multa administrativa, informada por princípios de
direito público, não há que se invocar os dispositivos legais do Código
Civil e do Código do Consumidor.
Em obra clássica, leciona André de Laubadère, in Traité Théorique
et Pratique des Contrats Administratifs, L.G.D.J., Paris, 1956, t. 2, pp.
131/2, verbis:
“La théorie des sanctions dans les contrats administratifs est profondément différente
de la théorie correspondante du droit civil.
164
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
D’une part, certaines sanctions du droit administratif sont originales en elles-mêmes,
n’ont pas d’équivalent en droit civil - de même du reste qu’à 1’inverse, certaines sanctions du droit civil (astreintes) ne sont pas applicables en droit administratif.
D’autre part, les sanctions du droit administratif qui trouvent leur équivalent en
droit civil n’y connaissent pas le même régime juridique; elles obéissent, dans leur
mise en œuvre, à des règles propres au droit public qui les marquent d’une profonde
originalité.”
Nesse sentido, ainda, o ensinamento de Georges Péquignot, in Théorie
Générale du Contrat Administratif, Éditions A. Pédone, Paris, 1945, pp.
441/2, verbis:
“Ce droit est incontestablement postulé par 1’idée de service public: il faut que si
l’Administration constate des manquements graves de son cocontractant, elle puisse, soit
faire exécuter le marché en régie, au cas où 1’interruption du service serait à craindre,
soit prononcer la résiliation du marché. On se souvient comment 1’idée de service public
a présidé à 1’introduction, d’une manière-génèrale, dans tous les contrats administratifs,
d’une sanction, dont on se demandait si elle existait dans l’arsenal de l’concession au cas
où les parties ne l’avaient pas expressément formulée, les dommages et intérêts.
Toutes ces sanctions sont d’ordre public, en ce sens que le contrat ne peut les écarter:
si le contrat pouvait les supprimer toutes, la bonne marche du service risquerait fort
d’être compromise.
Mais ce que peut faire le contrat, c’est, sans pouvoir ni gêner, ni réduire, ni limiter le
droit de sanction, déterminer les conditions, organiser des garanties et des procédures,
réglementer les effets et les conséquences pour le cas oú ces sanctions seraient mises en
œuvre. De telles clauses, si elles sont stipulées, sont obrigatoires pour l’Administration
qui ne peut s’y soustraire.”
Trata-se, portanto, de típico contrato administrativo, contrato caracterizado como de adesão, onde incidem as normas de direito público, in
casu, da Lei de Licitações.
A respeito, assinala Péquignot, à p. 259, verbis:
“Le contrat administratif, mème si parfois il ne présente pas les caractères de forme du contrat d’adhésion, nous parait, dans ses éléments de fond, posséder de façon
beaucoup plus accusée qu’aucun contrat de droit privé, les traits qui devraient être
entrainés par la logique du contrat d’adhésion. (Section 1).
Le cocontractant de l’Administration ne fait qu’adhérer aux propositions qui lui
sont faites par l’Administration, ou tout se passe, du moins, comme s’il ne faisait qu’y
adhérer.”
Em suas razões de apelo, a fls. 214/7, anotou, com acerto, a Procuradoria da CEF, verbis:
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
165
“Cumpre ressaltar inicialmente, que o contrato sub judice é um ato jurídico perfeito,
celebrado sob o mando da autonomia da vontade, da obrigatoriedade da convenção e
da boa-fé, preenchendo os requisitos do art. 82 do Código Civil pátrio, ou seja: agente
capaz, objeto lícito e forma prescrita ou não defesa em lei.
O acordo de vontades assim celebrado perfaz verdadeira norma jurídica - pacta
sunt servanda - o contrato é lei entre as partes.
Tão imperativa é a norma jurídica em que se traduz a convenção, que não é lícito ao
Poder Judiciário alterá-la, ou impedir a execução, mesmo sob a alegação da existência
de condições muitíssimo desvantajosas quando da contratação.
O ilustre Silvio Rodrigues, in Direito Civil - Dos Contratos e das Declarações
Unilaterais da Vontade, vol. 3, p. 17, leciona:
‘O princípio da força vinculante das convenções consagra a idéia de que o contrato, uma vez obedecidos os requisitos legais, se torna obrigatório entre as partes, que
dele não se podem desligar senão por outra avença, em tal sentido. Isto é, o contrato
vai constituir uma espécie de lei privada entre as partes, adquirindo força vinculante
igual à do preceito legislativo, pois vem munido de uma sanção que decorre da norma
legal, representada pela possibilidade de execução patrimonial do devedor. Pacta sunt
servanda!’ (grifo nosso)
Desse raciocínio, a conclusão de que não é lícita qualquer alteração contratual,
ainda que a pretexto de tornar mais eqüitativas as condições estipuladas. O contrato
faz Lei entre as partes, estas têm que cumprir o contrato nos termos em que o mesmo
foi assinado.
O contrato faz lei entre as partes, não podendo se escusar de ser cumprido, por
nenhuma das partes.
Diante do descrito, errou o MM. Juízo de primeiro grau ao modificar o valor das
multas de mora impostas no contrato que foi assinado por ambas as partes, tendo concordância tanto do Autor como da ré.
As cláusulas de tal contrato não podem, e não têm razão de serem modificadas.
O pagamento feito a título de multa aplicada pela demora dos serviços prestados, não
foi estipulado unilateralmente por parte da CAIXA, tal aplicabilidade desta penalidade
está inserida claramente no contrato, tendo sido lido, aceito e assinado por ambas as
partes, após regular processo de licitação do serviço.
A multa foi aplicada justamente, nos exatos termos do contrato assinado pelo Autor.
A penalidade seria aplicada se houvesse demora na prestação.
Desta forma, não foi a CAIXA quem deu causa à multa aplicada, e sim a empresa
contratada ao demorar na prestação do serviço. A multa estava prevista e foi aplicada
justamente, não podendo ser tal cláusula revisada, pois o contrato faz lei entre as partes
e se perfectibilizou, não carecendo de reformas.
Tal multa foi inserida no contrato objetivando a não demora da modernização dos
elevadores da CAIXA.
Os elevadores fazem parte da segurança dos prédios da CAIXA. O edifício Que-
166
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
rência, em especial, com 12 andares, não pode ficar com os elevadores em desuso,
visto que há grande circulação de pessoas em ambos os prédios, todos os dias, além
de grande quantidade de materiais que precisam ser transportados.
A demora na execução dos serviços trouxe diversos transtornos, situações difíceis
e despesas para a demandada.
O juiz ao fundamentar sua decisão, o fez com aplicação do art. 920 do CC, porém,
Excelências, tal dispositivo não se aplica ao caso em questão, pois o mesmo dispõe:
‘O valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação
principal’.
Como se verifica no exame das Cláusulas do contrato, a multa seria de 0,3% ao dia,
não excedendo, de forma alguma, o valor da obrigação principal.
Assim, Excelências, se a empresa atrasasse apenas poucos dias, o valor da multa
seria irrisório, porém o atraso foi demasiadamente grande.
Ademais, não pode ser imposto, neste caso, a incidência do art. 920 do Código Civil,
visto que no contrato, na cláusula décima, parágrafo décimo segundo, está expresso que
a sanção aplicada obedecerá ao disposto no art. 87, IV, da Lei nº 8.666/93.
No próprio contrato, na cláusula décima, está disposto o seguinte:
‘Pela inexecução total ou parcial do contrato, a CONTRATADA sujeitar-se-á às
seguintes sanções, sem prejuízo das demais cominações aplicáveis:
I - advertência;
II - multa;
III - suspensão temporária de participar em licitação e impedimento de contratar
com a CEF por prazo de até 02 (dois) anos;
IV- declaração de idoneidade;’ (grifei)
Assim, claro está que a multa foi licitamente imposta ao caso, visto que tal disposição
acima citada encontra-se inserida expressamente no contrato juntado pelo Autor.
E mais, tal contrato é regido pela Lei das Licitações, que estipula ainda, em seu art. 87:
‘§ 1º: Se a multa aplicada for superior ao valor da garantia prestada, além da perda
desta responderá o contratado pela sua diferença, que será descontada dos pagamentos
eventualmente devidos pela Administração ou cobrada judicialmente.’
Desta forma, não há como ser reduzida pela metade a multa contratada e nem ser
aplicado ao caso o art. 920 do CCB, visto que não há nenhum suporte para que seja
feita tal reforma, uma vez que o contrato foi perfeitamente assinado e aceito, estando
nele inserido que a incidência seria da Lei das Licitações, e nunca do Código Civil.
Desta forma, a legislação que deverá predominar neste caso é especificamente a
Lei das Licitações, conforme previsto no contrato.”
E, a fls. 219/220, acrescenta, verbis:
“Foi prestada pelo Autor uma quantia a título de caução, conforme valor especificado
nos contratos, nas fls. 50 e 59, nos valores respectivos de R$ 4.385,17 e 16.842,67.
Assim, estes foram os valores prestados a título de caução para a modernização dos
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elevadores dos dois prédios da CAIXA, totalizando R$ 21.227,84.
Porém, foi prestada caução de dois outros contratos que ainda estão em andamento,
que não podem ser retirados da conta, visto que o contrato ainda não finalizou-se.
Segue abaixo uma planilha explicativa:
Conta caução sob conta nº 428.008.606.069-5, com saldo nesta data de R$ 25.574,10,
em nome de Elevadores Otis Ltda., oriunda da licitação tipo Tomada de Preço 33/97,
para quatro contratações conforme abaixo:
Processo objeto
valor inicial valor
da caução
corrigido
n/data
18.5112.550/96modernização elevadores Ed.Barão Cahy
18.5112.550/96modernização elevadores Ed.Querência
18.2676.110/98manutenção elevadores Ed.Querência
18.2676.111/98manut.elev.escada/Ed.B.Cahy/Ag.O.Rocha R$4.385,71
R$16.842,67
R$544,08
R$399,18 R$5.058,74
R$19.427,34
R$627,58
R$460,44
Contudo, as contratações sob processos nos 18.2676.110/98 e 18.2676.111/98, permanecem em vigor, e dessa forma, salvo melhor entendimento, não poderão ter seus
valores caucionados liberados.
Deste modo, acaso mantida a r. decisão, somente poderão ser liberados os valores
referentes aos serviços de modernização dos elevadores do Ed. Barão do Cahy e do
Ed. Querência.
Merecendo, assim, reforma a decisão acima descrita.”
Portanto, impõe-se a reforma da r. sentença, julgando-se improcedente
a ação.
Por esses motivos, conheço da apelação da CEF e dou-lhe provimento,
julgando improcedente a ação, condenando a parte autora no pagamento
das despesas processuais e honorários advocatícios, que fixo em 10%
sobre o valor atualizado da causa, prejudicado o exame da apelação da
autora.
É o meu voto.
VOTO- VISTA
A Exma. Sra. Desa. Federal Marga Barth Tessler: Com a vênia do
Eminente Relator, vou divergir para dar provimento ao apelo da empresa,
prejudicado o apelo da CEF.
A execução dos contratos em exame foi peculiar, houve atraso na entrega do objeto da licitação, mas o contrato foi integralmente executado.
Os elevadores foram modernizados nos dois edifícios da CEF. O contrato
previsto para 540 dias foi executado em 775 dias. Somente a mora alia168
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
da à total inexecução poderia ensejar a multa máxima. É incontroverso
que há multas superiores ao total das parcelas do pagamento, o que em
princípio não pode ser tolerado. É de ser aplicado o artigo 9º do Decreto
nº 22.626/33 – Lei da Usura –, no sentido de que a multa não pode ser
superior a 10% do valor da dívida. Temos aplicado a limitação dos juros
à taxa de 12% ao ano, e a questão é a mesma aqui, pois a lei da usura não
se restringe a ser aplicada aos contratos de mútuo, conforme precedentes
desta Corte e do Superior Tribunal de Justiça, assim ementados:
“CLÁUSULA PENAL. LIMITE.
A cláusula penal de 100% sobre o valor da dívida pode ser reduzida a 10% (art. 9º
do Dec. 22.626/33; art. 924 do CCivil), quando se trata de descumprimento parcial.
A regra do art. 9o do Decreto 22.623/33 não contém nenhuma limitação quanto a
incidir apenas sobre os contratos de mútuo.
Recurso conhecido e em parte provido”. (REsp nº 229776/SP, Rel. Min. Ruy Rosado
de Aguiar, 4a Turma, DJ de 17.12.99, p. 381)
“ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. CONTRATO DE ARRENDAMENTO RURAL. EFICÁCIA DECLARATÓRIA. TERMOS DO PEDIDO. ART.
128 DO CPC. MULTA ABUSIVA. CLÁUSULA PENAL. APLICAÇÃO DA LEI
CIVIL. DISPOSIÇÃO LEGAL EXPRESSA. ART. 54 DA LEI 8.666/93. ART. 9º DO
DECRETO Nº 22.626/33.
1. Nada obsta a cumulação de pedidos declaratório e condenatório em uma única
ação, sendo irrelevante para a identificação da carga eficacial da sentença a denominação atribuída à demanda, desde que tenha sido deduzida de modo claro e inequívoco a
pretensão em causa, que servirá de referencial para a definição do conteúdo do próprio
ato sentencial. O que não é admissível é a parte querer agregar ao pedido declaratório uma eficácia que lhe é estranha, por criar a possibilidade de execução, depois de
processado o feito, extraindo da leitura da petição inicial o que ali não se contém. 2.
Regendo-se o contrato em questão pela Lei nº 8.666/93, cujo art. 54 dispõe que ‘os
contratos administrativos de que trata esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas e pelos
preceitos de direito público, aplicando-se-lhes, supletivamente, os princípios da teoria
geral dos contratos e as disposições de direito privado’, e tratando-se de pena imposta
pela inadimplência de um dos contratantes (arts. 916 a 921 do Código Civil), com razão
o magistrado que aplicou a norma contida no art. 9º do Decreto nº 22.626/33, a cuja
observância a Administração está adstrita, por força da legalidade (art. 5º, II, c/c art.
37, caput, da Constituição da República)”. (AC nº 1999.04.01.005075-5/RS, TRF-4ª
Região, 3ª Turma, Rel. Juíza Vivian Josete Pantaleão Caminha, julg. em 28.09.2000,
DJU de 01.11.2000, p. 262)
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
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Assim, dou provimento parcial ao apelo da parte autora, reduzindo
as multas ao patamar de 10% (dez por cento) no valor de cada etapa,
corrigidos monetariamente os valores e acrescidos de juros legais, prejudicado o apelo da CEF.
É o voto.
APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA
Nº 2002.71.10.002992-0/RS
Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Valdemar Capeletti
Apelantes: Paulo Silveira Junior e outros
Advogados: Drs. João Batista Almeida Ribeiro e outro
Apelada: Universidade Federal de Pelotas - UFPEL
Advogado: Dr. Luís Henrique Martins dos Anjos
EMENTA
Servidor público. Lei nº 9.527/97. Lei nº 9.624/98. MP nº 2.22545/2001. Décimos. Transformação em VPNI. Reajuste.
1. O art. 3º da MP nº 2.225-45/2001 transformou em vantagem pessoal
nominalmente identificada as parcelas de décimos de funções até então
já integradas à remuneração dos servidores.
2. Na forma de décimos, as parcelas incorporadas encontram-se
atreladas à remuneração dos respectivos cargos em comissão e funções
gratificadas, de forma que havendo elevação na retribuição das funções
comissionadas automaticamente devem ser reajustados os décimos, na
mesma proporção.
3. Constituindo o Adicional de Gestão Educacional (AGE) em aumento da remuneração dos cargos de direção e funções gratificadas, deverá
o mesmo incidir sobre a vantagem dos décimos incorporados.
170
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide
a Quarta Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, dar provimento à apelação dos impetrantes, nos termos do
relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante
do presente julgado.
Porto Alegre, 15 de outubro de 2003.
Des. Federal Valdemar Capeletti, Relator.
RELATÓRIO
O Exmo. Sr. Des. Federal Valdemar Capeletti: Trata-se de mandado de
segurança impetrado por Paulo Silveira Junior e outros (76), servidores
públicos federais ativos e inativos, vinculados à Universidade Federal de
Pelotas (UFPEL), visando à concessão de segurança, fundada no justo
receio de prática de ato por parte da Reitoria daquela Universidade, tendente à redução ou alteração de parcelas incorporados pelos mesmos, a
título de “décimos”.
A alegada redução decorreria da implementação, no sistema informatizado daquela Instituição, a partir de julho/2002, do chamado módulo PIF
(Parcela Incorporada de Função), destinado a uniformizar procedimentos para pagamentos da Vantagem Pessoal Nominalmente Identificada
(VPNI), de que trata o art. 62-A da Lei nº 8.112/90, com a redação dada
pela Medida Provisória nº 2.225-45, de 04.09.01, em cumprimento à
orientação do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG).
Após discorrerem sobre o trato legislativo dado à matéria, argumentam
os impetrantes que, nos termos do parecer AGU/GM nº 13, de 13.12.00,
a partir da Lei nº 9.624, de 02.04.98, em razão do restabelecimento das
parcelas incorporadas a título de décimos, inexistiriam as vantagens pessoais de que trata a Lei nº 9.527/97, de tal sorte que eliminada a barreira
de reajuste exclusivo sobre as mesmas, podendo, assim, as atualizações
nos valores dos Cargos de Direção (CD) e Funções Gratificadas (FG),
posteriores à vigência da referida Lei e até a edição da MP nº 2.225,
de 04.09.01, serem estendidas às incorporações de décimos, quer em
benefício de ativos ou inativos. Mais especificamente, defendem a possibilidade de atualização de seus décimos incorporados com a percepção
do Adicional de Gestão Educacional (AGE), criado pela Lei nº 9.640,
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
171
de 25.05.98, posterior, portanto, à Lei nº 9.624/98, procedimento que a
UFPEL até vinha adotando e que colide com a sistemática do módulo
PIF, a ser implantada.
Às fls. 228/233, concedida a liminar requerida, tendo a UFPEL interposto agravo de instrumento, cujo seguimento restou negado, porque
manifestamente prejudicado em razão da prolação da sentença.
Às fls. 294/306, parecer do Ministério Público, opinando pela denegação da segurança.
Em sentença, às fls. 305/310, o MM. Juiz Federal Substituto julgou
improcedente a ação, denegando a segurança, entendendo que, nos termos do art. 62-A da Lei nº 8.112/90, o qual expressamente transformou
a vantagem dos quintos/décimos incorporados em Vantagem Pessoal
Nominalmente Identificada, não há vínculo entre as vantagens incorporadas e o exercício de função, de forma que não mais seria possível
qualquer estabelecimento de liame entre os quintos/décimos e o Adicional de Gestão Educacional, esse diretamente associado ao exercício
da função. Sustentou não haver violação aos princípios da isonomia, do
direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da irredutibilidade salarial,
ressaltando que a Administração estaria agindo nos estritos limites da
legalidade, de modo que não se pode falar em ato abusivo praticado pela
autoridade impetrada.
Irresignados, os autores apelaram. (fls. 328/341)
Com as contra-razões de fls. 362/386, e parecer do Ministério Público Federal, às fls. 390/391, opinando pelo desprovimento da apelação,
subiram os autos a este Tribunal.
É o relatório.
VOTO
O Exmo. Sr. Des. Federal Valdemar Capeletti: Discute-se, no presente mandamus, acerca da possibilidade de extensão, a partir da Lei
nº 9.624, de 02.04.98, e até a edição da MP nº 2.225, de 04.09.01, dos
reajustes conferidos aos Cargos de Direção (CD) e Funções Gratificadas
(FG) existentes no quadro da UFPEL, às parcelas incorporadas de quintos/décimos pelos servidores ativos e inativos vinculados àquela mesma
Instituição de Ensino.
Sustentam os impetrantes que, muito embora a Lei nº 9.527/97 tenha
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R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
extinto a possibilidade de incorporação da retribuição pelo exercício
de cargo em comissão ou função comissionada, passando a vantagem
incorporada a constituir Vantagem Pessoal Nominalmente Identificada
(VPNI), sujeita exclusivamente à atualização decorrente de revisão geral de remuneração dos servidores públicos federais, a Lei nº 9.624/98
voltou a tratar do assunto, prevendo a possibilidade de incorporação/
atualização da vantagem dos quintos/décimos, não mencionando a sua
transformação em VPNI, o que somente veio a se dar pela MP nº 2.22545/2001, a qual estabeleceu que as parcelas quíntuplas/decimais a que se
referem os arts. 3º e 10 da Lei nº 8.911/84 e o art. 3º da Lei nº 9.624/98
ficam transformadas em VPNI.
Por outro lado, a parte ré investe na argumentação de que o Adicional de Gestão Educacional (AGE), criado pela Lei nº 9.640/98, devido
aos ocupantes dos cargos de direção ou função gratificada, não guarda
nenhum vínculo com o pretérito direito à incorporação dos quintos/décimos, restringindo-se à contemporaneidade do exercício, de forma que a
UFPEL, a par das disposições legais, apenas fez cumprir a lei. Ademais,
sendo Fundação Pública, vinculada ao Ministério da Educação, depende
das diretrizes operacionais que emanam do Poder Executivo.
Estamos diante, pois, mais uma vez, de questão relacionada à famigerada vantagem dos quintos/décimos a que faziam jus os servidores
públicos federais, presentemente transformada em Vantagem Pessoal
Nominalmente Identificada (VPNI).
Ainda que complexa a matéria, tenho por despiciendo discorrer sobre
a evolução da legislação atinente à mesma, pontuando que se está a tratar
na presente ação da possibilidade de reajustar a vantagem nos mesmos
índices conferidos aos Cargos de Direção (CD) e Funções Gratificadas
(FG) existentes no quadro da UFPEL, no período que medeia a edição
da Lei nº 9.624/98 até a edição da MP nº 2.225-45/2001, sustentando os
impetrantes que nesse interregno haveria de se considerar tratar-se de
vantagem dos “décimos incorporados” e não de VPNI.
Registro a existência de julgados nesta Corte, por suas 3ª e 4ª Turmas,
baseados em jurisprudência dos Tribunais Superiores, acerca da alteração
de critério de reajustamento da vantagem dos quintos/décimos a partir
da Lei nº 9.527/97, nos quais se firmou o entendimento no sentido de
inexistir qualquer ofensa a direito adquirido às modificações operadas
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
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pela referida Lei, haja vista que o servidor público não tem direito adquirido a regime jurídico.
Assim, e não negam os impetrantes, indiscutível que a VPNI, originária de quintos/décimos incorporados, está sujeita, hoje, exclusivamente
à atualização decorrente da revisão geral da remuneração dos servidores
públicos federais, critério que guarda conformidade com a lei.
No caso vertente, o direito que se busca assegurar é o de reajuste
da vantagem pelo critério anterior ao estabelecido na Lei nº 9.527/97,
em dado período, no qual se defende que restabelecida a vantagem dos
décimos pela Lei nº 9.624/98.
Vamos aos diplomas legais que estariam dando margem a tal exegese,
verbis:
Lei nº 9.527/97
“Art. 15 Fica extinta a incorporação da retribuição pelo exercício de função de
direção, chefia ou assessoramento, cargo de provimento em comissão ou de Natureza
Especial a que se referem os arts. 3º e 10 da Lei nº 8.911, de 11 de julho de 1994.
§ 1º A importância paga em razão da incorporação a que se refere este artigo passa
a constituir, a partir de 11 de novembro de 1997, vantagem pessoal nominalmente
identificada, sujeita exclusivamente à atualização decorrente da revisão geral da remuneração dos servidores públicos federais.
§ 2º É assegurado o direito à incorporação ou atualização de parcela ao servidor
que, em 11 de novembro de 1997, tiver cumprido todos os requisitos legais para a
concessão ou atualização a ela referente.”
Lei nº 9.624/98
“Art. 2º Serão consideradas transformadas em décimos, a partir de 1º de novembro
de 1995 e até 10 de novembro de 1997, as parcelas incorporadas à remuneração, a título
de quintos, observado o limite máximo de dez décimos.
Parágrafo único. A transformação de que trata este artigo dar-se-á mediante a divisão de cada uma das parcelas referentes aos quintos em duas parcelas de décimos
de igual valor.
Art. 3º Serão concedidas ou atualizadas as parcelas de quintos a que o servidor faria
jus no período compreendido entre 19 de janeiro de 1995 e a data de publicação desta
Lei, mas não incorporados em decorrência das normas à época vigentes, observados
os critérios:
I - estabelecidos na Lei nº 8.911, de 1994, na redação original, para aqueles servidores
que completaram o interstício entre 19 de janeiro de 1995 e 28 de fevereiro de 1995;
II - estabelecidos pela Lei nº 8.911, de 1994, com a redação dada por esta Lei, para
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o cálculo dos décimos, para os servidores completaram o interstício entre 1º de março
e 26 de outubro de 1995.
Parágrafo único. Ao servidor que completou o interstício a partir de 27 de outubro
de 1995 é assegurada a incorporação de décimo nos termos da Lei nº 8.911, de 194,
com a redação dada por esta Lei, com efeitos financeiros a partir da data em que completou o interstício.
(...)
Art. 5º Fica resguardado o direito à percepção dos décimos já incorporados, bem
como o cômputo do tempo de serviço residual para a concessão da próxima parcela, até
10 de novembro de 1997, observando-se o prazo exigido para a concessão da primeira
fração estabelecido pela legislação vigente à época.”
MP nº 2.225-45
“Art. 3º. Fica acrescido à Lei nº 8.112, de 1990, o artigo 62-A, com a seguinte
redação:
Art. 62-A. Fica transformada em Vantagem Pessoal Nominalmente Identificada
– VPNI a incorporação da retribuição pelo exercício de função de direção, chefia ou
assessoramento, cargo de provimento em comissão ou de Natureza especial a que se
referem os arts. 3º e 10 da Lei nº 8.911, de 11 de julho de 1994, e o art. 3º da Lei nº
9.624, de 2 de abril de 1998.
Parágrafo único. A VPNI de que trata o caput deste artigo somente estará sujeita às
revisões gerais de remuneração dos servidores públicos federais.”
Cobra relevo salientar que a Lei nº 9.624/98 transformou as parcelas
incorporadas em décimos, mas silenciou quanto à conversão das mesmas
em VPNI.
Por outro lado, forçoso reconhecer que o art. 15, § 1º, da Lei nº
9.527/97 e o art. 3º da MP nº 2.225-45 tratam da transformação em VPNI
da incorporação da vantagem dos quintos/décimos.
Ora, tendo a Lei posterior, no caso o art. 3º da MP nº 2.225-45, regulado inteiramente a matéria de que trata a Lei anterior, no caso o § 1º do
art. 15 da Lei nº 9.527/97, irrefutável ter havido a revogação tácita da
disposição anterior, ou seja, do § 1º do art. 15 da Lei nº 9.527/97.
Conforme prevê a mencionada MP, fica transformada em VPNI a
incorporação da retribuição pelo exercício de função de direção, chefia
ou assessoramento, cargo de provimento em comissão ou de Natureza
Especial a que se referem os arts. 3º e 10 da Lei nº 8.911, de 11.07.94, e
o art. 3º da Lei nº 9.624, de 02.04.98, daí decorrendo, logicamente, que
até então não se havia dado tal transformação, de forma que possível a
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175
atualização da vantagem dos décimos, observados os mesmos reajustes
praticados para os cargos em comissão e funções gratificadas que lhes
deram origem, desde a edição da Lei nº 9.624/98 até a véspera da vigência
da MP nº 2.225-45, ou seja, até 04.09.01, sendo que a partir daí, aí sim,
na forma do parágrafo único do art. 3º da MP supra, passariam a sofrer,
tão-somente, os reajustes gerais de remuneração dos servidores públicos.
Consigno que tal entendimento não se deve estender ao regime de
incorporação, ponto que não é debate nesta ação. O juízo aqui firmado
tem lugar na hipótese de designação das parcelas incorporadas, onde
vejo que outra interpretação não pode ser dada.
Certo é que a MP nº 2.225-45 atingiu a Lei nº 9.527/97 no que
respeita à transformação da vantagem dos quintos/décimos em VPNI,
derrogando, assim, aquela.
A corroborar o entendimento de que se estaria a tratar de “décimos
incorporados” e não de VPNI, o art. 15 da Lei nº 9.624/98, disciplinando,
com efeitos ex nunc, os limites remuneratórios do funcionalismo, admite,
expressamente, a existência, daí por diante, de décimos incorporados na
remuneração dos servidores, a saber:
“Art. 15. Para efeito do cálculo do limite máximo estabelecido pelo art. 3º da Lei
nº 8.852, de 4 de fevereiro de 1994, excluem-se da remuneração as parcelas relativas
à diferença de vencimentos nominalmente identificada decorrente de enquadramento
e os décimos incorporados.”
Este, aliás, o entendimento consubstanciado nos pareceres da Advocacia-Geral da União - AGU/GQ-208, de 16.12.99, e AGU/GM-13, de
13.12.00 -, e, mais recentemente, na decisão nº 732/2003-TCU/Plenário.
Oportuno transcrever excerto do voto do Relator Ministro Guilherme
Palmeira, constante da mencionada Decisão da Corte de Contas, no que
toca ao ponto em questão:
“(...)
... até a véspera da edição da MP nº 2.225-45, tinha-se o seguinte quadro:
a) servidores que tempestivamente haviam preenchido os requisitos legais pertinentes tinham integrados à sua remuneração décimos de funções gratificadas anteriormente exercidas;
b) encontrava-se extinto o regime de incorporação de novas parcelas.
Esse o contexto em que surgiu a Medida Provisória. Em tais circunstâncias, fácil
perceber que a norma nada mais pretendeu do que aquilo que literalmente expressou,
ou seja, transformar as parcelas de décimos em VPNI.
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R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
(...)”
Assim considerando, tenho que quaisquer reajustes incidentes sobre o
valor dos cargos de direção e funções gratificadas até a edição da MP nº
2.225-45 deverão ser estendidos à vantagem dos décimos incorporados.
In casu, o Adicional de Gestão Educacional (AGE), instituído pela
Lei nº 9.640/98, devido aos ocupantes de Cargos de Direção (CD) ou
Funções Gratificadas (FG), à medida que veio a ser absorvido pelos valores dos Cargos de Direção fixados pela MP nº 2.229-43, de 06.09.01,
veio a modificar o padrão remuneratório desses Cargos, fixando-os em
parcela única, pelo que, ao menos em relação a esses, se incorporou
definitivamente aos respectivos padrões remuneratórios, não sendo mais
pago como um valor à parte.
Assim, conquanto a Lei nº 9.624/98 tenha restabelecido a possibilidade
de incorporação de décimos pelo exercício de cargo ou função comissionados, sendo omissa com relação à transformação desses em VPNI,
automaticamente autorizou a adoção do critério de reajuste da vantagem
praticado anteriormente à sua conversão em VPNI, o que veio a se dar
somente em 05.09.01.
Sendo assim, devem os aumentos nos valores dos Cargos de Direção
(CD) e Funções Gratificadas (FG) das Instituições Federais de Ensino,
ocorridos no período que vai da vigência da Lei nº 9.624/98 até a vigência
da MP nº 2.225-45, ser repassados para a base de cálculo da vantagem
dos décimos incorporados pelos servidores, quer ativos ou inativos.
Ante o exposto, dou provimento à apelação, dando por prequestionados os dispositivos relacionados às fls. 385/386 nas contra-razões da
União, para o fim de interposição dos recursos cabíveis às instâncias
superiores.
É como voto.
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177
APELAÇÃO EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA Nº 2003.04.01.023448-3/PR
Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Valdemar Capeletti
Apelante: Carvílio da Silveira
Advogado: Dr. Renato Alberto Nielsen Kanayama
Apelado: Ministério Público
Advogado: Dr. Luís Alberto d’Azevedo Aurvalle
Interessada: Maria José Dutra
Advogado: Dr. Osmann de Oliveira
Interessado: Luimar Carlos Kavinski
Advogados: Drs. Mauricio Kavinski e outro
Interessado: Paulo Sérgio Growoski Fontoura
Advogado: Dr. Juliano Locatelli Santos
Interessado: Alziro de Amorim
Advogado: Dr. Osmann de Oliveira
EMENTA
Administrativo. Servidores federais. Improbidade. Lei nº 8.429/92.
Ação obstativa de licitude de concurso público. Conduta culposa. Não
caracterização do tipo. Improbidade afastada.
1. As normas constitucionais e infraconstitucionais, em especial a Lei
de Improbidade Administrativa, Lei nº 8.429/92, conferem, de forma
clara, competência ao Ministério Público para a propositura de ação civil
de improbidade administrativa.
2. A improbidade administrativa, enquanto delito disciplinar, busca
como elemento subjetivo de sua configuração que haja, no mínimo, a
voluntariedade do agente público, não se contemporizando com a mera
conduta culposa.
3. Se a ação obstativa da licitude de concurso público é meramente
culposa, não terá ocorrido a infração disciplinar em destaque.
4. Proposta a ação por prática de ato de improbidade que atenta contra
os princípios da Administração Pública, na forma do art. 11 da Lei nº
8.429/92, e constatada a inocorrência de dolo, incabível voltar-se para
as condutas ao tipo do art. 10 da mesma Lei, as quais admitem a forma
culposa, a bem de aplicar as sanções constantes do art. 12 da Lei de
Improbidade, se sequer admitido o dano ao erário pela pessoa jurídica
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interessada.
5. Configurado o litisconsórcio necessário-unitário, a lide deve ser
decidida de maneira uniforme para todos os litisconsortes, de modo que
o recurso interposto por um dos réus a todos aproveita, a teor do disposto
no art. 509 do CPC.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide
a Quarta Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, dar provimento à apelação e negar provimento ao agravo retido,
nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo
parte integrante do presente julgado.
Porto Alegre, 11 de fevereiro de 2004.
Des. Federal Valdemar Capeletti, Relator.
RELATÓRIO
O Exmo. Sr. Des. Federal Valdemar Capeletti: Trata-se de ação civil
de improbidade administrativa, proposta pelo Ministério Público Federal, visando à responsabilização dos réus Carvílio da Silveira, Luimar
Carlos Kavinski, Alziro Amorim, Maria José Dutra e Paulo Sérgio Growoski Fontoura, todos professores da Universidade Federal do Paraná,
Departamento de Medicina Veterinária, os três primeiros aposentados,
por atos de improbidade administrativa, consubstanciados na frustração
da licitude de Concurso Público, nos termos do art. 11, inciso V, da Lei
nº 8.429/92.
Conforme consta dos autos, os réus integraram Comissão Julgadora
de Concurso Público de Provas e Títulos para a carreira do Magistério
Superior, na área do conhecimento da Medicina Veterinária, promovido
por aquela instituição de ensino, sendo que o resultado final do aludido
certame indicou como primeira classificada a candidata Silvana Krychack
e em 2º lugar o candidato Marcus Vinícius Ferrari.
Irresignado, o 2º colocado requereu, junto à Universidade, a reavaliação dos resultados do Concurso e, na seqüência, a anulação do mesmo,
alegando ter havido alteração das notas que já haviam sido atribuídas
aos dois candidatos e conseqüente inversão da classificação final, em
seu prejuízo, bem assim por não ter sido observada, na prova de títulos,
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179
a “tabela de valoração de títulos”, conforme previsto na Resolução nº
77/94, do Conselho de Ensino e Pesquisa.
Diante das denúncias apresentadas, a UFPR instaurou processo administrativo (cópia às fls. 26/89) com o fito de apurar as irregularidades
denunciadas, tendo, ao final, decidido pela anulação do Concurso Público
em questão e pela instauração de sindicância para apuração das irregularidades e tomada de ações administrativas cabíveis (fls. 127/134, 167/170
e 237/243). Posteriormente, uma vez instada pelo Ministério Público
Federal, determinou a abertura de processo administrativo-disciplinar (fl.
260), a fim de apurar a responsabilidade dos servidores envolvidos, em
face do disposto no art. 11, inciso V, da Lei nº 8.429/92, sendo que, nos
termos da certidão de fl. 255, dito processo administrativo encontra-se
em andamento, não tendo sido apresentado relatório final.
Consta também dos autos que o assunto foi objeto de Inquérito Policial, tendo o mesmo sido arquivado, a pedido do Ministério Público
Federal, com a ressalva do art. 18 do CPP, conforme certidão à fl. 545.
Em seguimento, forte nos artigos 37, caput, 127 e 129, inciso III, da
Lei Maior, bem como no art. 5º, inciso I, alínea h, e inciso III, alínea b,
da Lei Complementar nº 75/93, promoveu o Ministério Público, diante
das denúncias feitas pelo candidato Marcus Vinícius Ferrari, a presente
ação civil pública, requerendo a aplicação aos réus das condenações
previstas no inciso III do art. 12 da Lei nº 8.429/92.
Citados, os réus apresentaram contestação, às fls. 366/439, alegando,
preliminarmente, a ilegitimidade ativa ad causam do Ministério Público,
posto que cabível a intervenção do mesmo somente nos casos de lesão
ao erário, ou, ainda, somente na hipótese de inércia da autoridade administrativa. O réu Carvílio da Silveira requereu o indeferimento da inicial
por faltar-lhe pedido, já que se encontra aposentado. No mérito, pedem
todos a improcedência da ação. Numa eventual condenação, pede o reú
Paulo Sérgio G. Fontoura seja a pena aplicada com base nos princípios
da proporcionalidade e da razoabilidade.
Às fls. 450/457, o Ministério Público apresentou réplica, sustentando
sua legitimidade ativa, por força dos arts. 127, 129, II e III, da atual Constituição Federal, bem como em face dos arts. 109/117 da Lei nº 7.347/85,
com as alterações da Lei nº 8.078/90, além do disposto no art. 6º, inciso
VII, letras a e b, e inciso XIV, letra f, da LC nº 75/93. No mérito, requer
180
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
seja julgada procedente a pretensão deduzida, argumentando que os atos
praticados pelos réus revelam-se de todo incompatíveis com os princípios
da Administração Pública, tendo os mesmos, ao manipularem os resultados das provas, frustrado a licitude do concurso, constituindo tal prática
ato de improbidade, nos termos do art. 11, inciso V, da Lei nº 8.429/92.
Em atenção ao despacho de fl. 463, a União Federal, à fl. 465, manifestou-se dizendo não possuir qualquer interesse na causa. Do mesmo modo,
a UFPR, à fl. 467, manifesta não ter interesse em integrar a presente lide,
em razão de não ter sido concluído o processo administrativo-disciplinar
instaurado por aquela Universidade.
Às fls. 469/471, o Juízo de 1º Grau reconheceu a legitimidade ativa
do Ministério Público, entendendo relevante a produção de prova testemunhal dos candidatos do concurso, requerida por aquele Parquet,
bem assim necessária a oitiva dos réus, cujo depoimento determinou de
ofício, com fulcro no art. 130 do CPC, designando data e horário para
Audiência de Instrução e Julgamento, nos termos do art. 450 do CPC.
Da referida decisão, interpôs Agravo de Instrumento o réu Luimar
Carlos Kavinski, tendo esse sido recebido e retido nos autos, mantendo-se a decisão agravada.
Às fls. 547/548, o Ministério Público Federal apresentou memorial,
consoante dispõe o art. 454, § 3º, do CPC, aduzindo que, diante de todo
o conjunto probatório, resta indubitavelmente comprovado que os atos
praticados pelos réus enquadram-se com absoluta precisão no rol de atos
considerados como ímprobos pela Lei nº 8.429/92, postulando, assim,
pela procedência do feito, reconhecendo-se judicialmente as irregularidades praticadas, aplicando-se aos réus as condenações previstas no
inciso III do art 12 da Lei nº 8.429/92.
Às fls. 552/563, constam memoriais apresentados pelos réus Carvílio
da Silveira, Maria José Dutra e Alziro Amorim. Alegam que inexiste
prova de improbidade, bem como fato jurídico para controle em Juízo,
uma vez que não há lei vedando que membros da banca se valham de
notas ou anotações e mesmo até revejam-nas, tornando-as líquidas e
certas ao lançarem-nas como ato definitivo e final; que, entretanto, acaso
se entender que procede o pedido, não alcançará ele jamais o réu Carvílio da Silveira, que já não exerce cargo ou função, uma vez que sua
aposentadoria não poderá ser cassada; que descabe a possibilidade de
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
181
aplicação conjunta das penas em bloco, devendo observar-se os princípios
gerais da proporcionalidade e da razoabilidade, ínsitos à jurisdição; que
não é de ser colhida a alegação de que deverão os réus ressarcir o erário
pelas despesas efetivadas com o Concurso anulado, porque nenhum dos
membros da Comissão agiu em nome próprio e nem tiveram por objetivo
causar danos à Fazenda.
Às fls. 565/579, a sentença do Juiz de 1º Grau julgou parcialmente
procedente o pedido, entendendo que a única conduta irregular dos
membros da banca, objetivamente comprovada, foi a de não haverem
lavrado ata indicando a necessidade de alteração das notas anteriormente
atribuídas aos candidatos na prova didática, aplicando aos réus a sanção
civil de ressarcimento integral aos cofres da União dos prejuízos com
a realização do concurso anulado, a serem apurados em liquidação de
sentença, ocasião em que a UFPR deverá indicá-los. Custas pelos réus.
Sem honorários, devido a sucumbência recíproca.
Às fls. 581/589, apresenta o réu Carvílio da Silveira recurso de apelação, requerendo, preliminarmente, seja julgado procedente o Agravo
interposto, que aproveita ao apelante, declarando o apelado parte ilegítima. No mérito, pede a improcedência da ação, assinalando tratar-se de
ação civil de forte conteúdo penal, e, uma vez não tendo sido reconhecido
o tipo, impor-se-ia a absolvição. Aduz, ademais, que somente possível
efeito civil, se condenação penal houvesse, inexistindo, sequer, interesse
da vítima (UFPR).
Contra-razões do Ministério Público apresentadas às fls. 591/593,
sustentando a legitimidade daquele Órgão para a propositura da ação e,
no mérito, assinalando que a Lei nº 8.429/92 não tem natureza penal,
prevendo, sim, sanções negativas de natureza administrativa, às quais
se aplicam princípios similares aos de Direito Penal, mas com eles inconfundíveis, pois que adaptados às peculiaridades próprias do Direito
Administrativo Sancionador.
Subiram os autos ao Tribunal.
É o relatório.
VOTO
O Exmo. Sr. Des. Federal Valdemar Capeletti: Cuida-se de ação de
improbidade administrativa proposta pelo Ministério Público Federal
contra 5 (cinco) professores da Universidade Federal do Paraná (UFPR),
182
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na condição de componentes de Banca Examinadora de Concurso Público de Provas e Títulos para a carreira do Magistério Superior daquela
Instituição, com base nas disposições constantes da Lei nº 8.429/92.
Segundo o Autor, teriam os réus, quando dos procedimentos relacionados à aferição e à divulgação dos resultados do aludido certame,
praticado atos de improbidade administrativa atentatórios aos princípios
da Administração Pública, de modo a frustrar a licitude de concurso
público, conforme previsto no art. 11, inciso V, da supracitada Lei.
A MM. Juíza Federal julgou parcialmente procedente o pedido, entendendo que houve conduta negligente por parte dos membros da banca,
aplicando aos réus a sanção civil de ressarcimento integral aos cofres da
União dos prejuízos com a realização do concurso anulado.
Apelou da sentença, unicamente, o réu Carvílio da Silveira. Requer,
preliminarmente, seja julgado procedente o Agravo de Instrumento
interposto, declarando o apelado parte ilegítima. No mérito, pede a improcedência da ação.
No que respeita a preliminar de ilegitimidade ativa do MP
Sustenta o apelante que, conforme reiterada jurisprudência do Superior
Tribunal de Justiça, a legitimidade do Ministério Público para ajuizar
ação civil pública é com o fim de proteger e cuidar de interesses sociais
e difusos ou coletivos, e não patrocinar direitos individuais privados e
disponíveis, como o que se apresenta na espécie, sendo que o interesse
difuso, nas exatas observações do jurista Celso Bastos, tem como característica primordial a sua descoincidência com o interesse de uma
determinada pessoa, abrangendo, na realidade, toda uma categoria de
indivíduos unificados por possuírem um denominador fático qualquer
em comum.
O Órgão Ministerial, de sua parte, alude ser competente para a propositura da presente ação, por força do próprio texto constitucional - arts.
127, 129, II e III, da atual Constituição Federal - bem assim com arrimo
na legislação infraconstitucional - arts. 109/117 da Lei nº 7.347/85, com
as alterações da Lei nº 8.078/90, além do disposto no art. 6º, inciso VII,
letras a e b, e inciso XIV, letra f, da LC nº 75/93.
A teor das referidas disposições, as funções institucionais do Ministério Público, relacionadas à defesa da ordem jurídica, do regime demoR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
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crático e dos interesses sociais e individuais disponíveis, lhe conferem
poder para ajuizar ação civil pública, inclusive, como in casu, quanto à
defesa da probidade administrativa.
De outra parte, a Lei de Improbidade, em seu art. 17, trata da legitimação ad causam ativa: A ação principal, que terá o rito ordinário, será
proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada,
dentro de trinta dias da efetivação da medida cautelar. Complementa
tal regra a previsão contida no § 2º do próprio art. 17, que autoriza a
Fazenda Pública a promover as ações necessárias à complementação do
ressarcimento do patrimônio público.
Não há como se negar, assim, que, em virtude do status constitucional
alcançado pela ação civil pública, consectário inafastável ao também
inafastável desempenho das relevantes atribuições ministeriais, a obrigatoriedade de tutela do patrimônio público, sem prejuízo da dos demais
interessados-legitimados (pessoa jurídica interessada), alcança o Parquet.
Não vejo dúvida, portanto, quanto à legitimidade do Ministério Público para a propositura da presente ação, desde que entendida a tutela
do patrimônio público como um interesse difuso.
A respeito da conceituação de patrimônio público, é de se trazer a
observação de Fernando Rodrigues Martins, in Controle do Patrimônio
Público:
“De considerar, ainda, a idéia de que o patrimônio público não pode ser compreendido apenas do ponto de vista material, econômico ou palpável. O patrimônio público
espelha todo o tipo de situação em que a Administração Pública estiver envolvida, desde
a mais módica prestação de serviço típica até os bens que fazem parte do seu acervo
dominial. Com efeito e como veremos adiante, a própria moral da Administração Pública constitui patrimônio a ser resguardado por todos os membros da sociedade, sob
pena da completa submissão dos valores rígidos de honestidade e probidade às práticas
vezeiras de corrupção, enriquecimento ilícito, concussão e prevaricação. Tudo isso a
gerar desconfiança dos administrados em face dos administradores e, se não, o pior –
difundir a ilicitude como meio usual nas multifárias relações entre os particulares, já
que o mau exemplo dos administradores autorizaria, em tese, o desmantelamento dos
critérios de lisura.”
Tenho, ainda, por pertinente, fazer um parênteses. Está a tratar-se
de tipo disciplinar (frustrar a licitude de concurso público) cuja tutela
jurídica objetiva a preservação dos princípios reitores da Administração
Pública e sua credibilidade pública, de modo que a sanção disciplinar
184
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desses delitos procura promover a regularidade e o aperfeiçoamento do
serviço público.
Em especial, quanto aos atos de improbidade dos quais decorrem
a frustração à licitude de concurso público, não há de se simplificar a
questão, dizendo que o princípio afrontado é tão-somente o princípio da
igualdade entre os administrados. Busca a ação resguardar o patrimônio
público, sendo que a própria moral da Administração Pública constitui
patrimônio a ser resguardado por todos os membros da sociedade.
Friso, ademais, que a jurisprudência vem reconhecendo a possibilidade de o Ministério Público ajuizar ação civil pública não só para o
ressarcimento do dano causado ao erário como também para a aplicação
das sanções previstas no art. 12 da Lei nº 8.429/92.
Rejeito, pois, a preliminar de ilegitimidade ativa do MP suscitada
pelo apelante.
Consigno haver nos autos Agravo Retido, formulado pelo réu Luimar
Carlos Kavinski, versando sobre a legitimidade ativa ad causam do Ministério Público para a propositura da ação de improbidade, o qual, em
razão dos fundamentos acima erigidos, não há de ser provido.
No que toca ao mérito
Pede o apelante a improcedência da ação, alegando tratar-se de ação
civil de forte conteúdo penal, e, uma vez não tendo sido reconhecido o
tipo, impor-se-ia a absolvição. Refere, ademais, que somente possível
efeito civil, se condenação penal houvesse, inexistindo, sequer, interesse
da vítima.
Em primeiro lugar, é de se afirmar, no que concerne às sanções passíveis de aplicação ao ímprobo, que a independência entre as instâncias se
apresenta absoluta. O ordenamento jurídico pátrio, na forma do disposto
nos arts. 1.525 do CC, 110 do CPC e 64 do CPP, amparou o sistema de
independência entre as instâncias penal, civil e administrativa.
Assinale-se que os fatos de que trata a presente ação foram também
objeto de Inquérito Policial, o qual, contudo, restou arquivado, a pedido
do próprio Ministério Público Federal.
Neste sentido, porém, ainda que afastada a responsabilidade criminal, a natureza da ação civil pública, que constitui instrumento de tutela
jurisdicional dos direitos e interesses metaindividuais, não permite seja
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185
ela confundida com a ação penal condenatória, inexistindo, sob qualquer
aspecto situação de litispendência ou de prejudicalidade entre as ações
judiciais em causa. (STF, rel. Min. Celso de Mello, RTJ nº 167/166, apud
Wallace Martins Paiva Junior, Probidade, pág. 297)
Assim, ainda que havendo o arquivamento do procedimento inquisitorial respectivo, a questão poderá ser amplamente examinada nas esferas
cível e administrativa. (art. 67, I, do CPC)
Penso, entretanto, que pertine melhor verificar a questão relacionada
à adequação do ato à tipologia legal da improbidade.
Isso porque o princípio da juridicidade impõe ao operador do direito
que sua atividade se inicie com o exercício da subsunção do ato à tipologia
do art. 11 da Lei de Improbidade, com ulterior avanço para as figuras
dos arts. 9º e 10 do mesmo diploma em sendo divisado enriquecimento
ilícito ou dano.
A configuração da improbidade, a teor do caput do art. 11 da Lei de
Improbidade, será possível sempre que demonstrada a inobservância
dos princípios regentes da atividade estatal: legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficiência, ainda que não tenha causado dano
ao patrimônio público ou acarretado enriquecimento ilícito do agente.
Subsumindo-se a conduta à tipologia do art. 11, estará o agente sujeito
às sanções previstas no art. 12, III, da Lei nº 8.429/92.
Tenho por pertinente asseverar aqui, partindo-se da idéia de que
a conduta dos réus se enquadrou nos tipos disciplinares da improbidade, na forma da Lei nº 8.429/92, que, em se tratando de caso que
envolve servidores federais, a improbidade administrativa disciplinar
poderá ser processada nos termos da Lei nº 8.112/90. Assim preceitua
o art. 14, § 3º, da própria Lei de Improbidade. Vale dizer, a instância
administrativa tem legitimidade e competência para apurar o delito
de improbidade por parte de agente público.
Considera-se daí a possibilidade de o procedimento administrativo
culminar com a aplicação das sanções previstas no estatuto da categoria,
uma vez denotando o contexto probatório que o agente efetivamente
praticou ato de improbidade.
A Lei nº 8.429/92 definiu as várias hipóteses de improbidade administrativa, catalogando, respectivamente, nos seus arts. 9º a 11, os tipos
disciplinares da improbidade, quais sejam, (i) aqueles que importam
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enriquecimento ilícito, (ii) aqueles que causam prejuízo ao erário e (iii)
aqueles que atentam contra os princípios da Administração Pública.
Dentre os últimos, a teor do inciso V do art. 11, estaria “frustrar a licitude
de concurso público”, espécie delitual de improbidade que entendeu o
Ministério Público incidir in casu.
Precisamente, tratar-se-ia de transgressão disciplinar que arrosta o
princípio da igualdade, também chamado da isonomia do administrado,
conforme classificação dos tipos específicos arrolados no art. 11 da
supradita Lei.
Conforme dos autos consta (docs. de fls. 235/236), a autoridade administrativa competente da UFPR entendeu, num primeiro momento, que
a declaração administrativa quanto à nulidade do concurso já atendia a
sua obrigação, no que respeita à apuração de irregularidade no serviço
público, na forma do art. 143 da Lei nº 8.112/90. Frisou que, embora
constatados erros de procedimento que viciaram o concurso, aquela
Administração entendeu por afastar a responsabilidade dos servidores
envolvidos, seja porque nenhum prejuízo ao erário veio a ser demonstrado, seja porque não havia no processo então instaurado por aquela
Autarquia qualquer outro elemento que permitisse tal conclusão.
Posteriormente, atendendo reiteradas requisições do Ministério Público, veio a determinar a abertura de processo administrativo-disciplinar,
visando à apuração de possíveis atos de improbidade praticados pelos
professores integrantes da comissão julgadora do indigitado concurso
público, na forma do disposto nos arts. 148 a 182 da Lei nº 8.112/90, sob
pena de responsabilização da autoridade administrativa nos termos do art.
11, incisos I, in fine, e II, da Lei nº 8.429/92 e art. 320 do Código Penal.
Vejo, entretanto, que o MM. Juiz de 1º Grau reconheceu a conduta
ímproba dos réus, ainda que não-comprovado dolo, com a intenção de
beneficiar a candidata Silvana, mas, sim, reconhecida a conduta culposa
(negligente) dos membros da banca, tendo determinado a aplicação da
sanção civil de ressarcimento integral dos danos causados.
Mas, afinal, quais dos atos praticados pelos réus que estariam a configurar a conduta ímproba?
Pelo que dos autos consta, a única conduta irregular dos membros
da banca, objetivamente comprovada, foi a de não haverem lavrado ata
indicando a necessidade de alteração das notas anteriormente atribuídas
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aos candidatos na prova didática.
Ora, a improbidade administrativa, enquanto delito disciplinar, busca como elemento subjetivo de sua configuração que haja, no mínimo,
a voluntariedade do agente público, não se contemporizando com a
mera conduta culposa, que carece de deliberação volitiva, preordenada
à consecução de vantagem pessoal, ou de terceiro, em detrimento da
Administração Pública.
Por elucidativo, menciono lição de José Armando da Costa, in Contorno Jurídico da Improbidade Administrativa, Brasília Jurídica, 2000,
1ª Edição:
“Se a ação obstativa da licitude de concurso público é meramente culposa, não
terá ocorrido a infração disciplinar em destaque, haja vista que, como já afirmamos
em várias passagens deste livro, a conduta desonesta, por qualquer que seja o ângulo
a ser considerado, não poderá jamais resultar de comportamento que não seja doloso,
ou pelo menos voluntário.
Insista-se, mais uma vez: a negligência, imprudência ou imperícia não se coadunam
com comportamento desonroso ou desonesto.
Qualquer ato voluntário do agente público posto em prática com vistas a arranhar,
através de fraudes, simulação ou dissimulação, a lisura ou a legitimidade de concurso
público, constitui, sem dúvida, ato de improbidade administrativa atentatória ao princípio da igualdade do administrado.”
Conforme dos autos consta, e assim admitido pelo Juízo monocrático,
não restou comprovada a voluntariedade dos atos dos agentes públicos,
tendente a beneficiar um candidato em detrimento do outro. Ao contrário,
caracterizou-se a conduta dos réus como culposa.
Partindo-se da premissa de que a responsabilidade objetiva pressupõe
normatização expressa, é de se aderir a tese de que: a) a prática dos atos
de improbidade previstos nos arts. 9º e 11 pressupõe o dolo do agente; b)
a tipologia inserida no art. 10 admite que o ato seja praticado com dolo
ou com culpa; c) o mero vínculo objetivo entre a conduta do agente e o
resultado ilícito não é passível de configurar a improbidade.
Penso, assim, que as condutas praticadas pelos réus não tipificaram
improbidade administrativa, na forma do disposto no art. 11, inciso V,
da Lei nº 8.429/92.
Chamo a atenção, ademais, para o fato de que a UFPR aduziu nos
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autos que nenhum prejuízo ao erário veio a ser demonstrado, circunstância que condicionaria a sanção imposta de ressarcimento integral do
dano causado, com aplicação do disposto no art. 12, inciso III, da Lei
de Improbidade. Aliás, aquela Autarquia manifestou não ter interesse
na lide no momento, em razão de não ter ainda concluído o processo
disciplinar instaurado por aquela Universidade (fl. 467). Do mesmo
modo, a União conforme manifestação à fl. 465.
A despeito das ilações trazidas pelo Juiz de 1º Grau, relativas aos
custos de um concurso público, tais danos nem ao menos foram suscitados pela UFPR, pelo contrário. Admitidos esses, aí, sim, as atenções
poderiam se voltar para as condutas ao tipo do art. 10, as quais admitem
a forma culposa.
Ante o exposto, rejeito a preliminar de ilegitimidade ativa do MP e,
no mérito, dou provimento ao apelo do réu Carvílio da Silveira.
Considerando haver litisconsórcio necessário-unitário, a lide deve ser
decidida de maneira uniforme para todos os litisconsortes, de modo que o
recurso interposto pelo réu Carvílio a todos aproveita, a teor do disposto
no art. 509 do CPC. Desta forma, afasto de todos os réus a determinação
contida na sentença de ressarcimento integral dos danos causados.
Em conseqüência, afasto os ônus sucumbenciais, os quais, em relação
aos mesmos, deverão ser suportados pelo apelado.
Nego provimento ao Agravo Retido, apresentado pelo réu Luimar Carlos Kavinski, por entender legitimado o Ministério Público à propositura
da ação de improbidade, forte nos fundamentos já lançados quando do
exame da correspondente preliminar suscitada.
É como voto.
APELAÇÃO CÍVEL Nº 2003.04.01.045856-7/SC
Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon
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Apelante: União Federal
Advogado: Dr. Luís Henrique Martins dos Anjos
Apelados: Armin Ernesto Binz e outro
Advogada: Dra. Noemia da Silva Lopes
Apelados: Arno Carlos Binz e outros
Advogados: Drs. Evanildes Figueiredo Pereira e outro
Remetente: Juízo Substituto da 3ª Vara Federal de Florianópolis/SC
EMENTA
Administrativo. Processual Civil. Nulidade. Alegação na primeira oportunidade. Art. 245 do CPC. Razões finais. Art. 454 do CPC.
Cabimento. Prejuízo. Ausência. Usucapião. Imóvel. Florianópolis.
Ilha costeira. Possibilidade jurídica. Arts. 20, IV, e 26, II, da CF/88.
Requisitos comprovados. Declaração procedente. Terras de marinha.
Ônus da prova. Linha preamar. Estabelecimento. Demarcação judicial
ou administrativa.
1. Além de ter sido oportunizada a participação da União na audiência
de justificação de posse realizada na Justiça Estadual, quando, na Justiça
Federal, ela nada disse acerca de cerceamento de defesa. Optou, na sua
contestação, por insistir na tese da impossibilidade do bem ser usucapido.
2. Na dicção do art. 245 do CPC, sob pena de preclusão, a parte
interessada deve alegar o vício no primeiro momento que lhe foi oportunizado falar nos autos.
3. A abertura de prazo para razões finais, forte no art. 454, § 3º, do
CPC, só será compatível com a realização de audiência de instrução e
julgamento, de sorte que as partes possam lançar suas derradeiras razões.
Ao depois, mesmo que assim não fosse, a União nada disse concretamente sobre a lesividade da não-apresentação de razões finais; é caso de
aplicação da diretriz jurídica que põe a salvo da invalidade os atos que,
embora realizados em descompasso com a lei vigente, não provocam
prejuízos às partes.
4. Localizado o imóvel em ilha classificada como sendo costeira,
é ele passível de ser havido por particulares via prescrição aquisitiva.
Inteligência dos arts. 20, IV, e 26, II, da CF/88. Precedentes desta Corte
e do Pretório Excelso.
5. Demonstrado que anteriormente à edição da CF/88 os autores,
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considerando a accessio possessionis, atendiam os pressupostos legais
para aquisição do imóvel por usucapião extraordinária, é de ser julgada
procedente a ação declaratória.
6. Incumbia à União, forte no art. 333, II, do CPC, demonstrar cabalmente que o imóvel usucapiendo engloba área de terras de marinha. À
míngua de definição da preamar média de 1831, e por conseqüência a
área de marinha, inconsistente a afirmativa da União. Não fica inibido,
contudo, que ela efetue posteriormente a demarcação da área de marinha,
seja na esfera administrativa seja mediante a propositura da competente
ação demarcatória, de modo que fica ressalvado seu direito, circunstância
que deverá constar no registro imobiliário do imóvel usucapiendo, a fim
de precatar interesse de terceiros.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas,
decide a Egrégia 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região,
por unanimidade, negar provimento ao apelo e à remessa oficial, nos
termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte
integrante do presente julgado.
Porto Alegre, 29 de junho de 2004.
Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon, Relator.
RELATÓRIO
O Exmo. Sr. Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon: Trata-se
de Ação de Usucapião Extraordinária proposta sob o fundamento do
exercício de posse mansa, pacífica e com animus domini de um terreno
situado em Ponta das Canas, Distrito de Cachoeira do Bom Jesus, Município de Florianópolis/SC, contendo a área total de 13.828,00m2 (treze
mil, oitocentos e vinte e oito metros quadrados) (fl. 07), cujos direitos
foram havidos pelos autores por meio de escrituras públicas lavradas
em 09.09.76 e 03.11.76, cujos outorgantes exerciam posse antiga e sem
contestação há mais de 25 anos.
Considerando que o imóvel usucapiendo abarcava terras de marinha,
a União requereu fosse incluída no pólo passivo da demanda, com o
conseqüente deslocamento da competência para a Justiça Federal.
Os autores, em face do pedido da União, disseram que, embora ocupem
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a faixa de terras de marinha há muitos anos, ela não integra o pedido,
de sorte que não estava configurado o interesse da União, devendo ser
mantida a tramitação no feito perante a Justiça Estadual.
Em audiência de justificação foi indeferida a pretensão da União e
dada por suficientemente justificada a posse do imóvel usucapiendo pelos
autores. (fl. 82 e verso)
Após manifestação favorável do Ministério Público Estadual, o Juízo
de Direito da 4ª Vara Cível de Florianópolis/SC deu pela procedência
da ação de usucapião, declarando a propriedade em favor dos autores.
(fls. 86/89)
Acolhendo as razões perfiladas no recurso da União, o Tribunal de
Justiça do Estado de Santa Catarina decidiu anular o feito ab initio,
ordenando a remessa à Justiça Federal de primeira instância, ficando
prejudicado o recurso. (fl. 144)
Já perante o Juízo da 3ª Vara Federal de Florianópolis/SC, a União
ofertou contestação opondo-se à pretensão sob fundamento de que no
imóvel usucapiendo existe uma faixa de marinha pertencente à União
Federal e, além disso, o referido imóvel localiza-se em ilha oceânica,
pertencente à União e inocorre no caso qualquer das exceções previstas
no art. 26, II, da CF.
Os lindeiros Mario Sebastião Hass e Estela Maria Gentil Hass
opõem-se à pretensão declaratória impugnando a descrição do imóvel
usucapiendo, a qual se sobreporia, alegam, em 55,00m2 ao seu imóvel.
(fls. 182/183)
Após resposta dos autores à impugnação dos lindeiros, foi determinada
a realização de perícia, cujo laudo foi carreado a fls. 269/275 e fls. 285.
A Secretaria de Patrimônio da União, cuja manifestação foi requerida pelo MPF, asseverou que parte do imóvel contém faixa de marinha
(1.352,34m2), sendo o restante da área pertencente à União por situar-se
na Ilha de Santa Catarina. (fls. 298/299)
Em face da manifestação da SPU, o Sr. Perito, por determinação do
Juiz Federal, apresentou parecer complementar. (fls. 309/318)
A sentença de fls. 330/341 julgou procedente a ação sobre o imóvel
com área de 13.828m2, situado em Ponta das Canas, Distrito de Cachoeira do Bom Jesus, Município de Florianópolis/SC, com a descrição e
caracterização estampada na inicial.
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A União ofertou apelação, alegando, preliminarmente, ofensa aos
princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório,
porquanto o Juízo a quo, para comprovação da posse dos autores, valeu-se de prova testemunhal produzida à época em que o processo tramitava
na Justiça Estadual, sem que tenha sido oportunizada sua participação,
bem assim porque não foi intimada para apresentação de razões finais,
como preconiza o art. 454, § 3º, do CPC. No mérito, numa primeira
abordagem, assevera que ao menos deveria ter sido julgada a ação parcialmente procedente, porquanto parte do imóvel usucapiendo, conforme
informações da Gerência Regional do Patrimônio da União em Santa
Catarina, está localizado em faixa de marinha, espaço do território de
propriedade da União (art. 20, VII). Enfatiza, depois, que o imóvel, por
estar localizado em ilha oceânica, que é de propriedade da União - art.
20, IV e VII, c/c art. 26, II, da CF/88, é insuscetível de ser usucapido,
na exata dicção dos art. 183, § 3º, e 191, parágrafo único, da CF/88. Na
seqüência, assevera que os autores não provaram, como lhes impunha
o art. 333, I, do CPC, a dominialidade privada dos imóveis, de sorte a
serem inseridos na ressalva do inciso II, do art. 26, c/c art. 20, IV, da
CF/88, que garante a manutenção da propriedade das áreas localizadas
nas ilhas oceânicas e costeiras aos particulares.
Os autores apresentaram contra-razões.
O MPF, nesta Corte, ofertou parecer, opinando pelo improvimento
do apelo.
É o relatório.
À revisão.
VOTO
O Exmo. Sr. Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon: Improcede
a preliminar de nulidade do processo.
A União, após receber a comunicação da designação da audiência de
justificação da posse, aprazada para 18.05.89 (fl. 30), protocolizou petição
dizendo do seu interesse na causa, porquanto, alegadamente, o imóvel
usucapiendo lhe pertenceria (fl. 36); requerendo, então, fossem os autos
remetidos à Justiça Federal, forte no art. 109, I, do CF/88.
Não tendo sido realizada a audiência na data aprazada, foi fixado
novo dia para justificação da posse (14.03.90), do qual foi novamente
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193
comunicado o representante judicial da União. (fl. 64)
Muito embora sabedora da data e local em que se realizaria a audiência de justificação da posse, bem assim ciente do seu interesse na lide,
optou a União por não comparecer ao ato. O que se alega sob o título de
cerceamento de defesa, então, na verdade, constitui desistência do direito
de defesa. É significativamente diversa a hipótese, em essência, de não se
oportunizar a defesa, e que constituiria violação a garantia fundamental,
e de omitir-se na defesa; enquanto no primeiro caso a parte interessada
deixou de exercer o direito em face da omissão no seu chamamento, no
segundo a falta de defesa atribui-se a opção da parte interessada em se
demitir do seu direito.
Doutra finta, reconhecida a competência da Justiça Federal para
apreciar a lide, o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina anulou
ab initio os atos processuais e determinou a remessa dos autos. O Juízo
da 3ª Vara Federal, a quem foi distribuído o feito, aproveitando os atos
de cunho não-decisório realizados até então, julgou justificada a posse
dos autores sobre o imóvel usucapiendo (fls. 151/152). Novamente,
devidamente intimada do reconhecimento da posse, a União quedou-se
silente. Ofertou resposta insistindo, apenas, na tese de que o imóvel usucapiendo englobava faixa de marinha, e que, não ocorrendo qualquer das
exceções previstas no art. 26, II, da CF/88, o bem é de sua propriedade,
insuscetível, pois, de ser usucapido. Deveria ter aviado sua insatisfação,
acerca do ora alegado cerceamento, logo no primeiro momento que lhe
foi oportunizada a manifestação nos autos, de modo que, não o fazendo,
restou convalidado pela preclusão (art. 245 do CPC) o alegado vício.
A jurisprudência:
“EMBARGOS DE DECLARAÇÃO - EXECUÇÃO FISCAL - EXTINÇÃO - PRÉVIA INTIMAÇÃO PESSOAL DO REPRESENTANTE DA FAZENDA PÚBLICA ART. 25 DA LEI Nº 6.830/80 - NULIDADE - APLICAÇÃO DO ART. 145 DO CPC.
1 - A teor do art. 245 do CPC, a NULIDADE dos atos deve ser alegada na primeira
oportunidade em que couber à parte falar nos autos, sob pena de preclusão. Hipótese
em que cumpria à exeqüente alegar o fato nas suas razões de apelação. 2 - Embargos
de declaração rejeitados. (AC nº 2002.04.01.031516-8/RS – 1ª T. – Rel. Des. Federal
Antônio Albino Ramos de Oliveira - DJU em 10.12.2003)
PROCESSUAL CIVIL. INTIMAÇÃO. NULIDADE. PROCURAÇÃO NOS AUTOS. NECESSIDADE.
1. A NULIDADE deve ser argüida na primeira oportunidade que a parte tiver para
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falar nos autos (art. 245, caput, CPC).
2. A INTIMAÇÃO somente deve ser feita à pessoa habilitada, com procuração nos
autos (art. 37, CPC).
3. Provido o agravo de instrumento.” (AI 2001.04.01.002529-0/PR – 3ª T. – Rel.
Desa. Federal Marga Barth Tessler - DJU em 05.09.2001)
Noutra preliminar, a União pugna pela nulidade do processo a partir
da sentença, porquanto não houve a abertura de prazo para oferta de
razões finais, forte no art. 454, § 3º, do CPC. Sucede que, além da manifestação final só ser compatível com a oportunidade da realização de
audiência instrução e julgamento, de sorte que as partes possam lançar
suas derradeiras razões, o que não ocorreu na hipótese vertente, a só falta
da realização do ato não torna írrito o processo. A alegação de corrupção
do rito processual deve vir acoplada à comprovação do efetivo prejuízo;
vige diretriz jurídica que põe a salvo da invalidade os atos que, embora
realizados em descompasso com lei cogente, não patrocinaram prejuízos
às partes (art. 249, § 1º, do CPC). A respeito, Rui Portanova (in Princípios
do Processo Civil, Ed. Livraria do Advogado, p.192) preleciona:
“A forma, contudo, não tem valor em si. Ela existe para evitar que a parte fique
prejudicada na sua liberdade de atuação pessoal. Esse prejuízo é um entrave que dificulta a adequada participação das partes no processo. Contudo, caso haja um ato cuja
nulidade não chegou a tolher a liberdade de atuação de qualquer dos postulantes, não
há prejuízo. Logo, não cabe falar em nulidade. Assim, o direito brasileiro consagra o
adágio vindo do direito francês: pas de nullité sans grief”.
No caso concreto, nada se disse concretamente sobre a lesividade da
não-apresentação das razões finais, até porque, a tese desenvolvida pela
União fulcra-se em temas exclusivamente de direito, cujos fundamentos
foram detalhadamente expostos ao longo da demanda.
Diz a jurisprudência:
“CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. ALEGAÇÕES FINAIS. FALTA DE OPORTUNIDADE. NULIDADE NÃO ALEGADA NA AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO
NEM NO PRAZO DE AGRAVO NESTA SURGIDO. PRECLUSÃO. AUSÊNCIA DE
PREJUÍZO. NULIDADE NÃO DECLARADA. CONTRATO ESCRITO. DESFAZIMENTO POR ACORDO TÁCITO. EXISTÊNCIA DESTE NÃO AFIRMADA PELAS
INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. REEXAME INVIÁVEL NA INSTÂNCIA ESPECIAL.
ENUNCIADO Nº 7 DA SÚMULA/STJ. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO
CARACTERIZADA. RECURSO DESACOLHIDO.
I - Em princípio, a regra do art. 454, CPC, adota a oralidade como regra na instrução
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e julgamento, sucedendo à instrução a faculdade de as partes sustentarem, oralmente e
na mesma audiência, suas razões finais antes do julgamento. A substituição dessa fase
oral por memoriais vincula-se às ‘questões complexas de fato ou de direito’ mencionadas no dispositivo, traduzindo-se, assim, em exceção à regra.
II - Ainda a admitir-se a possibilidade de suscitar-se a falta de oportunidade para
as alegações finais, por memoriais, meses após a audiência, na apelação, certo é que a
decretação de nulidade, no sistema processual brasileiro, deve atender à demonstração
de prejuízo, o que não ocorreu, na espécie. Trata-se, na verdade, da relação entre a
forma a ser dada aos atos do processo e a finalidade a que visam.
III - A lei, prelecionava o grande Amílcar de Castro, embora nunca ao arrepio do
sistema jurídico, deve ser interpretada em termos hábeis e úteis. Com os olhos voltados,
aduza-se com Recasens Siches, para a lógica do razoável.
IV - Uma vez não afirmada pelas instâncias ordinárias a existência ou não de acordo
tácito hábil a desconstituir contrato escrito anterior, o reexame do tema resta vedado a
esta instância especial, a teor do óbice do enunciado nº 7 da Súmula/STJ.
V - Sem indicação de repositório autorizado e sem cotejo analítico entre o acórdão
impugnado e o aresto trazido a confronto, não se instaura o acesso ao recurso especial
com fundamento na divergência jurisprudencial (art. 105-III-c da Constituição).” (REsp
167383/DF – 4ª T. – DJU EM 15.10.2001 – Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira)
“PROCESSO CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. APRESENTAÇÃO DE
MEMORIAIS. 1. Da leitura do art. 454, § 3º, do CPC, constata-se que o juiz não está
obrigado deferir às partes a juntada de memoriais. 2. Se for o caso, quando do julgamento
da apelação, poderá a parte que alega o prejuízo comprovar eventual configuração de
prejuízo à defesa. 3. Agravo conhecido e desprovido. Agravo regimental prejudicado.”
(AI nº 2003.04.01.021577-4/RS – 3ª T. – DJU em 05.11.2003 – Rel. Des. Federal Carlos
Eduardo Thompson Flores Lenz)
Igualmente, deve ser rejeitada a preliminar.
Avançando no mérito, creio adequada a confirmação in totum da
sentença posta sob controle.
O imóvel usucapiendo, está claro nos elementos de prova e na descrição da sua caracterização e localização, situa-se no perímetro da ilha
de Florianópolis, cujo território, em face da sua classificação como ilha
costeira, é passível de ser havido por particulares via prescrição aquisitiva. Peço vênia para, no tocante à juridicidade da pretensão declaratória
deduzida nesta demanda, reproduzir voto da i. Desembargadora Federal
Silvia Goraieb, Presidente deste Colegiado, lançado à ocasião do julgamento da AC nº 2000.72.00.008768-9/SC, que, com sua peculiar maestria
e objetividade, bem solve o tema, arredando os obstáculos alevantados
pela União contra a procedência do pleito, in verbis:
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“A questão discutida nos autos diz respeito à titularidade do domínio das ilhas
marítimas, já que tanto a Constituição Federal de 1967, quanto a de 1988 contêm
dispositivos que as incluem entre os bens da União.
O art. 4º da Constituição de 1967, inalterado pela Emenda Constitucional de 1969,
referia-se às ilhas oceânicas como sendo de domínio da União:
‘Art. 4º Incluem-se entre os bens da União:
...
II - os lagos e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que
banhem mais de um Estado, constituam limite como outros países ou se estendam a
território estrangeiro; as ilhas oceânicas, assim como as ilhas fluviais e lacustres nas
zonas limítrofes com outros países;’
Sobre o tema, quando do julgamento do RE nº 101.037 (RTJ 113:1279), em 1985, o
Ministro Francisco Rezek alertou para a necessidade de dar-se à expressão mencionada
a devida abordagem técnica, a qual foi sintetizada pelo geógrafo Aroldo de Azevedo
nos seguintes termos:
‘As ilhas marítimas classificam-se em costeiras e oceânicas. Ilhas costeiras são as
que resultam do relevo continental ou da plataforma submarina; ilhas oceânicas são
as que se encontram afastadas da costa e nada têm a ver com o relevo continental ou
com a plataforma submarina.’
Partindo do conceito acima transcrito, entendeu o Supremo Tribunal Federal que
a ilha de Florianópolis não é passível de classificação como ilha oceânica e, como tal,
seria inadmissível simplesmente deixar de reconhecer o domínio privado dos particulares nela instalados:
‘A ler a expressão ‘ilhas oceânicas’ o que lêem, neste momento, os patronos da
fazenda federal, e dada a realidade elementar de que contra o comando constitucional
não há direito adquirido ou ato jurídico perfeito que se contraponha, teremos que três
Unidades federais - não menos que três Unidades federadas - perderam, em 1967, suas
capitais para o patrimônio da União. Em São Luís do Maranhão, bem assim em Vitória
e Florianópolis, o Estado e o Município já não deteriam seus bens dominicais, nem os de
uso especial, nem os de uso comum do povo. Ter-se-ia extinto, igualmente, o patrimônio
privado. Do palácio do governo à casa de família, da catedral ao clube recreativo, das
lojas e fábricas à praça pública, tudo se haveria num repente convertido em patrimônio
da União por obra do constituinte de 67, tomado este - e logo este - por um rompante de
audácia que teria assombrando os legisladores da Rússia de 1918.’
A situação não foi alterada com a promulgação da Constituição de 1988, salvo
pelo fato de que os dispositivos atinentes à matéria em tela são mais claros quanto à
distinção feita pelo constituinte entre as ilhas marítimas, referindo-se expressamente
a ilhas oceânicas e ilhas costeiras:
‘Art. 20. São bens da União:
...
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IV - as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes como outros países; as praias marítima; as ilhas oceânicas e as costeiras, excluídas, destas, as áreas referidas no art. 26, II.
Art. 26 . Incluem-se entre os bens dos Estados:
...
II - as áreas, nas ilhas oceânicas e costeiras, que estiverem no seu domínio, excluídas
aquelas sob domínio da União, Municípios ou terceiros;’
Como se vê, o texto constitucional em vigor manteve a norma anterior que atribuía
à União o domínio sobre as ilhas costeiras. Todavia, este não é absoluto, uma vez que
foram ressalvadas as áreas que estiverem no domínio do Estado, do Município e, ainda,
de particulares.
A regra, então, é a de que as ilhas costeiras, em princípio, pertencem ao patrimônio
da União; porém, poderão integrar o domínio do Estado, desde que não sejam tituladas
por Municípios ou por particulares.
Na ressalva constante do art. 26 citado, encontra-se a ilha de Santa Catarina que, por
isso mesmo, é passível de usucapião, como já decidiu a Segunda Turma desta Corte,
no julgamento da AC nº 98.04.04891-5/SC, na sessão de 21.11.91 (DJ de 29.01.92),
sendo Relatora a Exma. Juíza Luiza Dias Cassales:
‘USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. POSSE NÃO TITULADA. ILHA DE
SANTA CATARINA. TERRENOS DE MARINHA.
1. A ilha de Santa Catarina, por ser ilha costeira, não integra o patrimônio da União,
quando estiver dentro dos limites do art. 26, II, ressalvado pelo art. 20 da CF.
2. A posse por mais de vinte anos, da área não titulada, foi homologada pelo juízo.
Trata-se, portanto, da usucapião extraordinária, que se caracteriza pela maior duração
da posse, e por dispensar o justo título e a boa-fé.
3. Os terrenos de marinha, que pertencem à União, terão de ser reservados, não
podendo integrar a área usucapienda.
4. Apelo provido.’
Do acima exposto, conclui-se que a área descrita na inicial pode ser objeto de usucapião, porque o art. 26, inc.II, ao incluir entre os bens do Estado as ilhas oceânicas
e costeiras, excepciona aquelas que estejam sob o domínio da União, dos Municípios
ou de terceiros.”
Colhe-se, em igual sentido, inúmeras outras manifestações jurisprudenciais:
“EMBARGOS INFRINGENTES. USUCAPIÃO. ILHAS COSTEIRAS. AUSÊNCIA DE REGISTRO IMOBILIÁRIO. POSSE MANSA E PACÍFICA COMPROVADA.
- A ilha de Santa Catarina, na qualidade de ilha costeira, não integra o patrimônio
da União, se dentro dos limites do art. 26, II, da atual Carta, ou de forma absoluta, nos
termos da Constituição de 1967.
- No caso em tela, a prova dos autos, não elidida pela União, remonta a posse privada
da gleba à década de quarenta, de forma contínua, o que autoriza a análise do pedido
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R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
pela ótica da Constituição de 1967. Para casos de sentença de eficácia declaratória,
como o presente, se aplica a lei vigente à época em que satisfeitas as condições para
o exercício do direito.
- Na esteira do que entende o Pretório excelso, não deve ser acatada a presunção de
que a ausência de registro de domínio particular converteria a terra em bem público.
Não se presume a condição de terra devoluta, cabendo a quem alega o ônus da prova
o que não logrou cumprir a ora embargante. (EIAC 9704119690/SC – 2ª S. – DJU em
18.05.2002 – Rel. Des. Federal Edgard Lippmann)
USUCAPIÃO. SENTENÇA DECLARATÓRIA. EFEITO EX TUNC. ILHAS COSTEIRAS. BENS DA UNIÃO. ART-20, II C/C ART-26, IV, CF-88. NÃO INCLUSÃO
DAS ILHAS DOS ESTADOS, MUNICÍPIOS E TERCEIROS.
1. Possuindo a sentença declaratória o efeito de retroagir à data em que se formou
a relação jurídica, a prescrição vintenária consumou-se em período anterior à promulgação da CF-88, faltando, apenas, a declaração do domínio.
2. Antes de 1988, as ilhas costeiras não integravam o patrimônio da União Federal.
3. Somente após a promulgação da nova Carta Constitucional é que tais bens passaram a ser de domínio da União, ressalvados os pertencentes aos Estados, Municípios
e terceiros.
4. Apelação e remessa oficial desprovidas. (AC 199804010646404/SC – 3ª T. – DJU
em 23.08.2000 – Rel. Juiz Federal Sergio Renato Tejada Garcia)
CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIO. REQUISITOS. PREENCHIMENTO. ÔNUS DE SUCUMBÊNCIA.
1. Como a sentença da ação de usucapião tem eficácia declaratória, e não constitutiva
de direitos, é sob a égide da Constituição de 1967/69 que deve ser analisada a pretensão
da parte autora, face ao período de posse comprovado nos autos. Assim, não se aplica
ao caso dos autos o inciso IV do art. 20 da Constituição de 1988 que, pioneiramente,
incluiu as ilhas costeiras dentre os bens da União.
2. Modificada, então, a sentença que julgou improcedente o pedido de usucapião,
pois o lapso temporal para a prescrição aquisitiva foi preenchido antes mesmo da
promulgação da Constituição Federal de 05.10.88. Ademais, os confrontantes da área
em nada se opuseram ao pedido, exceto a União, que não embargou a posse do autor,
limitando-se a sustentar a imprescritibilidade da área. Deve ser reconhecido, então, o
direito à propriedade da área descrita na petição inicial.
3. Invertidos os ônus de sucumbência, para condenar a União no reembolso das
custas eventualmente pagas pela parte autora, bem como no pagamento dos honorários
de advogado, que fixo em 10% (dez por cento) sobre o valor atualizado da causa.
4. Apelação provida.” (AC 200004010037780/SC – 3ª T. – DJU Data:26.07.2000
– Rel. Desa. Federal Marga Barth Tessler)
Resta, agora, tratar da posse do imóvel alegada pelos autores.
A posse da área de terras objeto da presente demanda foi havida pelos
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autores no ano de 1976, via de escrituras públicas de cessão de direitos
possessórios, sendo que os respectivos outorgantes, declararam, exerciam
tais direitos há mais de 25 anos (fls. 18/19, 21/22, 24 e verso, e 26 e verso).
Além dos confrontantes e mesmo a União não terem oposto qualquer
reserva a estas afirmativas, na audiência de justificação as testemunhas
Sérgio Miguel Karen de Menezes e Tarcísio Schmitt confirmaram, seja
por conhecimento próprio, seja por informações que circulam na comunidade, que efetivamente os autores e seus antecessores exerciam a posse
alegada, qualificada pelo animus domini sem oposição.
De então, tomando por base a data da promulgação da Carta Constitucional de 1988 e considerando a accessio possessionis (art. 552 do CCB, de
1916), os autores ostentam os requisitos legais necessários à obtenção
da declaração judicial de prescrição aquisitiva - usucapião extraordinária - do imóvel objeto da presente demanda, descrito e caracterizado no
petitório inicial.
Por fim, sobre a faixa de marinha, a própria Secretaria do Patrimônio
da União declara que inexiste a sua demarcação na área que localizado
imóvel usucapiendo (fls. 37), tendo estabelecido a linha de preamar e
calculado a área de marinha para o caso concreto em face da manifestação solicitada pelo Ministério Público (fls. 298/299). Só que, além de
não ter sido trazidas aos autos referências específicas acerca dos critérios
históricos e técnicos utilizados pelo órgão federal para demarcação do
terreno de marinha que deveria ser reservado no imóvel usucapiendo, o
processo de identificação deve seguir o devido processo legal, com garantia do contraditório e da ampla defesa. Isto é diretriz constitucional,
aplicável a todos os processos administrativos, e mesmo está previsto
no Decreto-Lei nº 9.760/46 (arts. 9º e seguintes). Careceu, então, de
comprovação a alegativa de que o imóvel usucapiendo estaria englobando terras de marinha; trata-se de ônus da prova que incumbia à União,
porquanto significava fato impeditivo do direito alegado pelos autores.
(art. 333, II, do CPC)
À míngua, então, de definição da preamar média de 1831, e por conseqüência a área de marinha, inconsistente a afirmativa da União. Não
fica inibido, contudo, que ela efetue posteriormente a demarcação da área
de marinha, seja na esfera administrativa, seja mediante a propositura da
competente ação demarcatória, de modo que fica ressalvado seu direito,
200
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circunstância que deverá constar no registro imobiliário do imóvel usucapiendo, a fim de precatar interesse de terceiros.
Por tais razões, então, é de ser mantida a sentença posta sob controle.
Voto, pois, no sentido de negar provimento ao apelo da União e à
remessa oficial.
É o voto.
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO
Nº 2004.04.01.014570-3/SC
Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Edgard Lippmann
Agravante: União Federal
Advogado: Dr. Luís Henrique Martins dos Anjos
Agravado: O despacho de fl. 334/7
Interessado: Ministério Público Federal
Interessado: Departamento Nacional de Infra-estrutura de Transportes
– DNIT
Advogada: Dra. Mitzi Silva Antunes
EMENTA
Ação civil pública. Duplicação de rodovia federal. Intervenção do
Poder Judiciário na Administração Pública. Possibilidade antecipação
de tutela.
A moderna jurisprudência admite a intervenção do Poder Judiciário
na Administração Pública, viabilizando a antecipação de tutela para
determinar a execução de obra relativa à duplicação de rodovia federal,
ante a responsabilidade civil do Estado sobre mortes e mutilações decorrentes de acidentes de trânsito havidos na rodovia de sua competência.
ACÓRDÃO
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Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas,
decide a Egrégia 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por
maioria, vencido o Des. Amaury Chaves de Athayde, negar provimento
ao agravo regimental, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas
que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Porto Alegre, 23 de junho de 2004.
Des. Federal Edgard Lippmann, Relator.
RELATÓRIO E VOTO
O Exmo. Sr. Des. Federal Edgard Lippmann: Trata-se de agravo
regimental contra o despacho[*] de minha relatoria, em anexo, que deferiu, parcialmente, o pedido de agregação de efeito suspensivo ativo,
voltado contra decisão monocrática que indeferiu pedido de antecipação
de tutela em ação civil pública onde se pleiteia (i) responsabilidade civil
do Estado pelas mortes e mutilações da BR-101-Sul/SC; (ii) seja apresentado cronograma de obras da duplicação da citada rodovia federal;
(iii) apresentação de projeto de adequação dos cruzamentos da mesma
rodovia; e (iv) reativação do posto de pesagem em Araranguá-SC. A
antecipação de tutela foi deferida apenas quanto ao item (ii), para o fim
de determinar aos Requeridos, que, no prazo de 60 (sessenta) dias, apresentem cronograma para início das obras da duplicação da BR-101-Sul/
SC, trecho entre Palhoça/SC e Osório/RS, sob pena de multa diária de
R$ 100.000,00. Irresignada quanto a tal decisão, postula a Agravante a
sua reconsideração e, sucessivamente, recebê-la como agravo regimental.
Alega haver risco de dano irreparável para si, especialmente por envolver
matéria de dotação orçamentária.
Tenho que a decisão hostilizada merece ser mantida. Em reexame da
matéria, cotejados os argumentos aduzidos com os elementos contidos
nos autos, entendo que sem embargo da invejável cultura jurídica do
ilustre Procurador Judicial da Agravante, concessa venia, não é de ser
guarida à irresignação, senão vejamos:
Colhe-se dos autos que uma das teses de maior consistência aduzida
pela Agravante seria o prejuízo elevado se tivesse que suportar de imediato os efeitos da tutela antecipada deferida, visto que a seu critério
envolveria o controle do Poder Judiciário em políticas públicas. Como
salientado na decisão objurgada, na verdade, modernamente, tanto a
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doutrina como a jurisprudência admitem tal intervenção, citando, a título
de exemplo, precedente desta eg. 4ª Turma, de relatoria do eminente Des.
Fed. Valdemar Capeletti (AI 2002.04.01.056347-7). Daí por que, diante
de tais circunstâncias, não vislumbro fato ou fundamento novo capaz de
infirmar a decisão hostilizada, a qual mantenho indene.
Isto posto, voto no sentido de negar provimento ao agravo regimental
na forma supra.
É o voto.
*[DESPACHO
Trata-se de agravo de instrumento voltado contra decisão monocrática que indeferiu pedido de antecipação de tutela em ação civil pública onde se objetiva (i) a
responsabilidade civil do Estado pelas mortes e mutilações da BR-101-Sul/SC; (ii)
seja apresentado cronograma de obras da duplicação da citada rodovia federal; (iii)
apresentação de projeto de adequação dos cruzamentos da mesma rodovia; e (iv) a
reativação do posto de pesagem em Araranguá/SC, bem como laudo de vistoria na
Ponte J.K., em Tubarão/SC.
Quanto ao item (i) a decisão monocrática indeferiu a inicial por ilegitimidade ativa
do MPF; quanto aos itens (iii e iv) julgou extinto o processo face à litispendência,
tópicos estes que estão sendo atacados mediante recurso de apelação, daí por que se
conhece do recurso apenas e tão-somente quanto ao item (ii), sendo que em relação
aos demais será examinado no tempo, forma e modo como disposto na Lei Adjetiva.
Em juízo de delibação, inicialmente, registro meu posicionamento de que apenas em
casos excepcionais revela-se pertinente a intervenção da Instância Superior na Inferior,
providência que se afeiçoa à prevalência do prestígio que devem gozar as decisões
judiciais, como também, e ainda, da segurança das relações jurídico-processuais. No
caso em apreço, contudo, sem deslustro à invejável cultura jurídica do ilustre Juiz
Federal prolator da decisão objurgada, tenho que a mesma, concessa venia, merece
reparos, em parte, senão vejamos:
A tese central utilizada na douta decisão centra-se no princípio da reserva legal
quanto aos Poderes (funções) do Estado (ou da tripartição de poderes), mais especificamente na vedação de intervenção do Poder Judiciário em atos do Poder Executivo,
especialmente no que tange aos atos discricionários (critérios da conveniência e oportunidade), destacando-se, no caso, hipótese de intervenção na questão envolvendo
políticas públicas. Se por um lado relevantes os fundados e rebuscados argumentos
aduzidos na douta decisão, aliás, em profundo e exaustivo exame doutrinário e jurisprudencial sobre o tema, todavia, já de algum tempo, venho me manifestando em
sentido de interpretar a questão cum granu salis, conforme ouso demonstrar, mesmo
que em juízo inicial de delibação.
Inicialmente, anoto que a questão relativa à efetivação de duplicação da BR-101,
no trecho compreendido entre Palhoça/SC e Osório/RS, tem ganhado espaço cada
vez maior na mídia nacional diante do aterrorizador quadro estatístico do número de
acidentes e vítimas, a maior parte fatais. Tão dramática a situação que recentemente o
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prestigiado articulista Paulo Sant´Ana, do jornal gaúcho ‘Zero Hora’, de 04.04.2004,
ao abordar em sua coluna dominical o tema ‘Lula foi Sensível’, assim arrematou: ‘...
Do jeito que hoje está, a gente ingressa na BR-101 como boi no caminho do matadouro.’. Circunstância esta que deve ser associada ao fato de que, desde 23.06.97, o 16o
D.R.F. vem tentando deflagrar o procedimento de concorrência pública para seleção
de empresas de consultoria, objetivando a elaboração dos projetos de engenharia da
duplicação do chamado trecho sul da citada BR-101, conforme informação do próprio
DNIT à fl. 195, e até a presente data nada de concreto resultou implementado.
Mesmo que se relute, até fundadamente, em estarmos diante de bem jurídico sobranceiro – direito à dignidade da pessoa humana, do qual decorre o direito à integridade
físico-corporal –, conforme exuberantemente sustentado na douta decisão profligada,
ouso dissentir da conclusão exposta. A farta documentação carreada aos autos, bem
como as inúmeras invectivas realizadas pela administração pública, bem antedemonstram que, mesmo aos mais tolerantes, a inércia (para não dizer descaso) com a caótica
situação da citada rodovia federal desborda dos limites do razoável.
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DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL
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APELAÇÃO CRIMINAL Nº 2001.71.07.001952-3/RS
Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Tadaaqui Hirose
Apelantes: L. C. F.
L. A. F.
Advogado: Dr. Luiz Carlos dos Santos
Apelado: Ministério Público Federal
EMENTA
Penal. Crime contra a honra. Art. 138 do CP. Art. 20 da Lei nº
5.250/67. Lei de Imprensa calúnia. Ausência de dolo em relação a um
dos acusados. Animus narrandi. Absolvição. Dolo eventual. Veracidade
do fato imputado não comprovada. Ausência de animus defendendi.
Exclusão da ilicitude. Erro invencível. Não-caracterização. Dosimetria
da pena. Análise das circunstâncias judiciais. Art. 59 do CP. Redução
da pena. Multa. Prestação pecuniária.
1. Em se tratando dos delitos previstos no artigo 138 do Código Penal
e art. 20 da Lei de Imprensa, pune-se o atribuir falsamente a outrem –
através ou não dos meios de informação e divulgação – a prática de
fato definido como crime, constituindo o elemento subjetivo do tipo, em
princípio, o dolo de dano a atingir a honra objetiva da vítima.
2. Não restando suficientemente comprovado o intuito calunioso de
um dos agentes, mas, tão-somente, o animus narrandi, a absolvição é
medida que se impõe.
3. De outra parte, evidenciado que em suas declarações o agente
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assumiu o risco de produzir o resultado, imputando à vítima fato
inverídico definido como crime (seja no art. 138 do CP, seja no art.
20 da Lei nº 5.250/67), resta configurado o dolo eventual, suficiente
à caracterização do delito de calúnia.
4. Na espécie, o conjunto probatório não se mostra apto à demonstração do animus defendendi alegado pelo réu, de forma a descaracterizar
o dolo de sua conduta.
5. A exceção de verdade a que alude o art. 138, § 3º, do CP, afigura-se
como o meio próprio de comprovar a veracidade dos fatos imputados.
Assim, em não tendo o acusado lançado mão do aludido instituto - embora lhe sendo possível - conclui-se que, efetivamente, foi temerário em
suas asserções.
6. Não se há falar em erro invencível quando evidenciado que o
agente teria plenas condições de discernir se o fato imputado era ou não
verdadeiro. In casu, considerando-se as circunstâncias pessoais do denunciado (empresário conhecido no Estado, portando em seu currículo
um mandato como deputado estadual, inclusive, ocupando o cargo de
vice-presidente da Casa Legislativa por determinado período), presume-se detenha razoável sagacidade, de modo a prever as conseqüências
jurídicas do exercício de sua liberdade de expressão desmedida.
7. Segundo entendimento firmado nesta Turma (ACR
2003.04.01.003269-2, rel. Des. Federal Fábio Bittencourt da Rosa,
DJU 02.07.2003) e no STF (HC 81.759, rel. Ministro Maurício Corrêa,
Informativo 262 do STF), inquéritos e processos penais em andamento
caracterizam maus antecedentes.
8. A valoração da conduta social deve dar-se “em relação à sociedade na qual o acusado esteja integrado, e não em relação à sociedade
formal dos homens”, sendo que, em não demonstrado nos autos nada
que venha em desabono ao acusado, inviável a valoração negativa de
tal circunstância.
9. A personalidade do agente deve ser entendida em seu aspecto
técnico, sendo necessário, para fins de ponderação negativa do vetor,
embasamento em laudo específico.
10. Em sendo os motivos inerentes ao tipo em questão, inviável a
valoração negativa de tal vetor, pena de bis in idem. O mesmo se diga
quanto às conseqüências do delito, pois que considerada a ocorrência de
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causa de aumento de pena constante no art. 23, II, do CP.
11. No presente caso, as circunstâncias são inerentes ao tipo, já que,
justamente, em face de a calúnia ter sido proferida através de meios de
informação e divulgação é que o acusado foi dado por incurso também
na figura típica constante do art. 20 da Lei de Imprensa.
12. A dosimetria da pena de multa deve ser feita em consonância com
os critérios norteadores da fixação da pena privativa de liberdade.
13. A pena restritiva de direitos consistente no pagamento de prestação pecuniária deve ser arbitrada de modo a não tornar a prestação em
pecúnia tão diminuta a ponto de mostrar-se inócua, nem tão excessiva
de maneira a inviabilizar seu cumprimento, mostrando-se suficiente à
prevenção e reprovação do crime praticado, atentando-se, ainda, para
a situação econômica do condenado e a extensão dos danos decorrentes
do ilícito praticado.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide
a Sétima Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, dar provimento ao apelo do réu L. A. F., para absolvê-lo do
crime de calúnia (art. 138 do Código Penal), e dar parcial provimento ao
apelo do réu L. C. F., nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas
que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Porto Alegre, 29 de junho de 2004.
Des. Federal Tadaaqui Hirose, Relator.
RELATÓRIO
O Exmo. Sr. Des. Federal Tadaaqui Hirose: O Ministério Público
Federal, com fulcro na representação criminal de fls. 20/24, ofereceu
denúncia contra L. C. F. e L. A. F., dando-os como incursos nas sanções
dos artigos 138 e 139 do CP, c/c os arts. 141, II, e 70 do CP. Ainda, com
relação a L. C. F., requereu a peça acusatória fosse dado como incurso
também nas penas dos arts. 20 e 21 da Lei nº 5.250/67 (Lei de Imprensa),
c/c art. 23, inciso II, da referida lei, c/c art. 70 do CP.
O relatório da sentença, constante às fls. 589/594, bem elucida os
fatos narrados na denúncia:
“(...) em 29.03.2001, às 14h, na sala de audiências da 2ª Vara Federal de Caxias do Sul,
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
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os denunciados, ao serem interrogados nos autos da Ação Penal nº 2001.71.07.000672-3,
a qual respondiam pela prática dos delitos previstos nos arts. 1º, II e 2º, I, c/c o art. 12,I,
todos da Lei 8.137/90, na forma dos arts. 29 e 71 do CP, por terem, como administradores
da empresa NOVA PROMOÇÕES E EVENTOS LTDA., desviado R$12.502.163,83
em tributos e acessórios devidos ao Fisco Federal, caluniaram e difamaram o DD. Senhor Procurador da República então atuante nesta cidade, DR. C. A. T., imputando-lhe
falsamente fato definido como crime e fato ofensivo à sua reputação e à sua dignidade
como Procurador da República e membro do Ministério Público Federal.
Segundo a denúncia, o primeiro acusado fez as seguintes declarações em seu
interrogatório antes referido: ‘(...) o denunciado acha que não existem débitos relacionados à sua empresa descrita na inicial, achando que o presente processo é fruto
de perseguição pessoal em que estariam envolvidas as pessoas do fiscal do município
M. A. B. e o Procurador da República C. A. T.; recorda, inclusive, que M. A. B. era
acostumado a jogar no bingo de propriedade do denunciado, tendo, numa ocasião,
solicitado ao denunciado a obtenção de proveito indevido quando da realização dos
jogos, ou seja, jogar para a casa, ganhando comissão; que como a proposta não foi
aceita pelo denunciado o fiscal teria iniciado uma perseguição pessoal, a qual culminou
com a exigência do pagamento de cinqüenta mil dólares, os quais em parte seriam
repassados ao Procurador C. A. T. para que este ‘esquecesse o processo criminal’, que
como denunciado recusou a proposta e expulsou o fiscal de seu estabelecimento, este
último, na saída, ainda ameaçou, na frente de outros presentes, ‘a federal vai te pegar’;
que para a surpresa do denunciado, logo no dia seguinte, viu estampado o seu nome nas
manchetes dos jornais, nas quais aparecia o procurador C. A. T. dizendo que o bingo
seria fechado; tal fato levou o denunciado a crer que existia algum tipo de ligação entre
o procurador e a pessoa de M. A. B., sendo que, hoje, pelos fatos ocorridos, bem como
pelo fato de o procurador ter convocado fiscais da Caixa e dito publicamente que os
alvarás para funcionamento do bingo não deveriam ser emitidos, o denunciado acredita
na existência de uma ligação entre o procurador e M. A. B., achando que o processo é
decorrência de uma perseguição pessoal (...)’.
Já o segundo acusado, na mesma oportunidade, declarou que ‘(...) acha que a pessoa
de M. A. B., fiscal da prefeitura de Caxias, é um dos responsáveis pelos processos que
tramitam como represália pessoal, uma vez que no início dos bingos, este fiscal ia todas
as noites para jogar, sendo conhecido da casa (...); que numa outra noite recorda que
o fiscal pediu para jogar na casa sem qualquer pagamento, falando ao denunciado que
isso implicaria obtenção de vantagem da fiscalização, mas que o denunciado repeliu a
medida (...); já no Central Bingo, recorda ter havido uma séria discussão entre seu pai e
o fiscal, no escritório do segundo andar; sendo que quando o fiscal saiu teria ameaçado
dizendo ‘teu nome vai sair no jornal, e a federal vem te visitar’ (...); recorda, ainda, de
uma outra discussão em que o fiscal mencionou ao pai do denunciado que queria 50 mil
reais, para trancar processo criminal, sendo que estava usando o nome do procurador
C. A. T.; (...) alguns dias depois desta discussão o nome da empresa saiu nos jornais
da cidade, como devedora de tributos, bem como o nome do pai do denunciado, com
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a menção de que o procurador C. A. T. iria ingressar com medida contra o bingo; que
tais notícias prejudicaram o nome da família (...)’.
Afirmou o Ministério Público Federal que o teor de tais declarações demonstra,
de forma inequívoca, a intenção dos denunciados de atribuir falsamente a prática do
delito de concussão (art. 316 do CP) ao Procurador da República C. A. T., ao dizer que
o fiscal de tributos municipais M. A. B. exigiu vantagem indevida em nome do Procurador, a fim de que o estabelecimento NOVA PROMOÇÕES E EVENTOS continuasse
operando. A mesma conduta configurou, segundo a denúncia, o delito de difamação,
uma vez que tal declaração, atribuindo-lhe falsamente a prática do delito do art. 316
do CP e, bem assim, conduta desonesta, ofendeu a reputação de ilibado membro do
Ministério Público Federal e sua dignidade de Procurador da República, agravada por
ter sido dirigida contra este no exercício de sua função.
Asseverou o Ministério Público Federal que a acusação configurou tática defensiva
dos Réus para desviar o foco dos delitos contra a ordem tributária, fragilizando e
desqualificando o órgão Ministerial, isso sem saber que o procedimento relativo ao
fechamento de casas de bingo estava sendo tratado de forma coordenada uniforme
no âmbito da Procuradoria da República no Rio Grande do Sul e no País, sabendo,
porém, que tais atos tinham sido tomados a partir de decisão judicial da 1ª Vara
Federal desta cidade.
Em seguida, narrou o Ministério Público Federal que, praticamente um mês após
os fatos acima descritos, nos dias 25 e 26.04.2001, o denunciado L. C. F. novamente
caluniou e difamou a vítima, imputando-lhe falsamente fato definido como crime e
fato ofensivo à sua reputação de Procurador da República e sua dignidade de membro
do Ministério Público Federal, quando prestou declarações à Rádio Caxias e ao Jornal
O Pioneiro.
Em 25.04.2001, às 17h30min, durante a exibição do programa Jornal Caxias - Edição da Tarde pela Rádio Caxias, em entrevista aos repórteres ALBERTO MENEGUZZO
e CIRO FABRIS NETO, o primeiro denunciado declarou: ‘Pois é nós estamos ainda
em tratativas para reabrir o ...o nosso bingo agora tudo, tudo isso aí me estranha...me
estranha esse...essa posição da Caixa Econômica porque nós estávamos no prazo que
ela tinha nos dado para apresentar a documentação quando a nossa casa foi fechada
pelo Procurador da República (...) Agora a respeito do Central Bingo e do Bingo da
Sorte, a história toda meus caros ouvintes e.. Alberto, ela começou através de um fiscal
da Prefeitura, que se chama M. A. B., que vivia nos achacando, um cara que jogava
bingo, era viciado no jogo, queria jogar de graça e queria levar vantagem sim, e nos
ameaçava a todo instante com...com denúncia junto ao Procurador da República (...)’
ALBERTO – Como é o nome do cidadão L. C. F.?
L. C. F. – É M. A. B., é ele que manda no setor de fiscalização, é ele que usava o
nome do senhor Procurador da República inicialmente, dizendo que queria dinheiro
do Central Bingo para evitar uma queixa-crime, sob sonegação de impostos, (...) na
última vez que veio, usando o nome do Procurador da República, C. A. T., e estranhamente também, cada vez que me achacava, no outro dia o senhor Procurador usava
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a imprensa para dizer que tinha uma diferença comigo, que ia fechar a minha casa e
que não sei o que, quando aliviava dois ou três dias isso, lá vinha o seu M. B. de novo
para a minha casa, pedindo cinqüenta mil dólares, porque teria que dar uma parte ao
senhor Procurador, e eu me neguei a fazer esse tipo de coisa, porque não faço e taí as
conseqüências que eu estou pagando, o meu bingo fechado os outros trabalhando e
não me deram condições de eu trabalhar, e só tô fazendo isso através da imprensa, no
espaço que você tá me dando, porque essas pessoas também usaram a imprensa pra me
atacar, pra mentir pra opinião pública que tem muita mentira no meio disso, e tudo isso
que eu estou falando está no meu depoimento junto a ... ao Ministério Público Federal.
ALBERTO – O senhor, o... o... o senhor tem noção ... Dr. L. C. F. da ... da gravidade
dessas denúncias, o senhor tá dizendo o seguinte, que o M. A. B. é um cidadão corrupto, fiscal da Prefeitura, ele que manda lá e ele estaria pedindo dinheiro pro senhor ...
L. C. F. (interrompendo) - usando o nome do Procurador da República...
ALBERTO – pra repartir esse valor, só um pouquinho L. C. F., ele tá, ele estaria
pedindo dinheiro pro senhor pra repartir com o Procurador da República e?
L. C. F. – Exatamente isso está lá no meu depoimento (...)
ALBERTO – E...e chegou haver tentativa de extor...?(...)
L. C. F. – É o do C. A. T. ...(pausa)...ele usava o nome do Procurador pra me achacar
sistematicamente cada vez que eu me negava disso lá vinha uma notificação dele, (...)’.
Posteriormente, no dia 26.04.2001, o Jornal O Pioneiro publicou novas declarações
de L. C. F., por meio das quais novamente difamou e caluniou o Procurador da República C. A. T., nos mesmos termos das declarações anteriores:
‘(...) Sem rodeios, L. C. F. acusa o agente tributário da Secretaria Municipal da
Fazenda M. A. B. - a quem classifica de corrupto - de tentar intimidá-lo e extorqui-lo,
usando o nome do procurador da República C. A. T. (...) a ira de L. C. F. culminou
quando soube do resultado do novo alvará solicitado para reabertura do estabelecimento.
O documento foi expedido pelo Município com a ressalva: não liberado para bingo.
(...) ‘Primeiro ele (o agente tributário) era cliente dos bingos, depois começou a querer jogar de graça, a pedir dinheiro, depois me ameaçava com o C. A. T. (...), dizendo
que tinha que lhe dar o dinheiro, pois do contrário haveria queixa crime e a casa seria
fechada. E conforme ele falava isso, no outro dia vinham manifestações do procurador
na imprensa, que ficava me condenando, me enxovalhando perante a sociedade com
coisas que não fecham com a realidade’, acusa L. C. F.’.
Na ocasião, segundo a denúncia, o acusado já tinha conhecimento de que os atos de
fechamento de casas de bingo foram realizados por ordem judicial abrangendo todas as
casas de bingo da circunscrição federal de Caxias do Sul em situação irregular, mediante
procedimento coordenado adotado pela Procuradoria da República no Rio Grande do
Sul, com o que entende que os crimes praticados por intermédio da Rádio Caxias e do
Jornal O Pioneiro configuram, mais uma vez, tentativa de fragilizar a acusação perante
a opinião pública como manobra da defesa.
Disse que L. C. F. responde a quatro ações penais perante a Justiça Federal de
Caxias do Sul, e L. A. F. a três, todas por sonegação de contribuições sociais e tributos
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federais, somando R$ 34.153.800,91 devidos ao Fisco Federal e ao INSS, sendo esta
a motivação dos crimes contra a honra por eles perpetrados.
Requereu a condenação dos acusados, imprimindo-se ao feito o rito da Lei 5.250/67,
cumpridos os arts. 43 e 57 da mesma Lei quanto à notificação da empresa de radiodifusão pelo teor do documento da fl. 120 (...)”.
Requerida pelo Ministério Público Federal a observância ao disposto no art. 43, §1º, da Lei 5.250/67, a mesma foi acolhida, seguindo
o processo o rito procedimental especial da legislação supra-referida,
porquanto parte dos delitos descritos na denúncia deu-se por meio da
imprensa. (fl. 294)
Regularmente citados os réus (fls. 295 e 297), apresentada defesa prévia (fls. 310/313), foi a denúncia recebida em 05.11.2001. Seguindo-se a
instrução do feito, os réus foram interrogados (fls. 364/370 e 378/399),
procedendo-se a ouvida das testemunhas arroladas pela acusação. (fls.
400/423)
Em decisão de fl. 371, determinou o juízo a ouvida da testemunha M.
A. B., na qualidade de testemunha referida nos autos. (termo de transcrição de depoimento às fls. 441/452)
Às fls. 430/431, os denunciados requereram a expedição de ofícios
ao DETRAN, a fim de obter certidão de veículos adquiridos em nome
do Procurador da República, C. A. T., e sua esposa, bem como ao Chefe
do Ministério Público Federal da 4ª Região, a fim de perquirir acerca
da existência de procedimento administrativo com relação aos fatos articulados nos presentes autos envolvendo a atividade do Procurador C.
A. T. Requereu, ainda, a oitiva do Prefeito Municipal de Caxias do Sul,
Gilberto Spier Vargas, como testemunha referida, aduzindo a isonomia
processual em relação à testemunha M. A. B. (fl. 432)
Após manifestação do MPF acerca dos requerimentos supramencionados (fls. 454/462), em decisão de fls. 463/465, entendeu o julgador
monocrático por indeferir os pedidos formulados pelos réus.
Apresentadas alegações finais por parte do Ministério Público Federal
(fls. 477/487) e pelos acusados. (fls. 492/501)
Irresignados com a decisão constante às fls. 463/465, os réus ingressaram, neste Tribunal, com pedido de correição parcial, requerendo,
liminarmente, fosse suspensa a instrução do feito (fls. 503/515), a qual
foi negada (fl. 518). No mérito, o então relator, Desembargador Federal
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Vladimir Freitas, entendeu por deferir parcialmente a correição, tão-somente, para permitir a juntada de documentos. (fls. 545/550)
Procedida a juntada da documentação, manifestou-se o Ministério
Público Federal pelo desentranhamento de parte dos documentos por
ventilarem fatos estranhos a presente lide (fl. 562), no que foi atendido
pelo magistrado a quo. (fl. 563)
Apresentadas alegações finais por parte da defesa – oportunidade em
que noticiado o ingresso de nova correição parcial, agora, com relação à
decisão de fl. 563 (fls. 567/568) – entendeu o julgador de primeiro grau
por reconsiderar sua decisão, determinando fosse a defesa intimada para
reapresentação de ditos documentos (fl. 579), no que foi atendido (fls.
586/587), restando prejudicada a correição parcial interposta.
Após, sobreveio sentença, publicada em 13.09.2002 (fl. 629), julgando
parcialmente procedente a denúncia para condenar L. A. F., pela prática
do crime previsto no art. 138, c/c o art. 141, II, do CP, às penas de 01
(um) ano e 06 (seis) meses de detenção e de 50 (cinqüenta) dias-multa,
no valor unitário de 50% do salário mínimo vigente à época dos fatos,
bem como para condenar L. C. F., pela prática dos delitos previstos no art.
138, c/c o art. 141, II, do CP, e art. 20, c/c art. 23, II, da Lei 5.250/67, às
penas de 04 (quatro) anos e 08 (oito) meses de detenção e de 150 (cento
e cinqüenta) dias-multa, no valor unitário de 50% do salário mínimo
vigente à época dos fatos. Com relação ao réu L. A. F., a pena corporal
restou substituída por duas restritivas de direitos, consistentes em prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária correspondente
à metade de um salário mínimo mensal, pelo tempo da pena corporal.
Quanto ao réu L. C. F., deixou o sentenciante de efetuar a substituição,
por entender não-atendidos os requisitos do art. 44, I e III, do CP, fixando
o regime semi-aberto como o inicial de cumprimento da pena (art. 33, §
2º, b, do CP). (fls. 589/628)
Inconformada, apelou a defesa, sustentando, em síntese (fls. 248/263):
a) prefacialmente, a impossibilidade de negativa da ouvida do Chefe
do Poder Executivo Municipal, como testemunha referida pela defesa,
por infringência à isonomia processual entre as partes;
b) no mérito, no tocante ao réu L. A. F.:
b.1) a ausência de dolo específico, uma vez que apenas reproduziu o
que ouviu de seu genitor, e em interrogatório judicial, estando presente,
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pois o animus defendendi;
b.2) em assim não o sendo, seja afastado o dolo eventual reconhecido na sentença, por se tratar de erro invencível, faltando ao apelante
a consciência da falsidade, devendo ser excluída a condenação a título
de calúnia;
Quanto ao réu L. C. F.:
b.3) negativa de autoria, pois nunca partiu diretamente do apelante a
afirmação caluniosa no sentido de que o Procurador da República houvesse praticado o crime de concussão, mas sim do Fiscal do Município,
M. A. B., pelo que inexistente ofensa à honra objetiva da vítima;
b.4) o animus defendendi, uma vez que “a perseguição da vítima ao
apelante é inconsteste” e, ainda, diante da conduta da vítima “solapando,
inclusive, atribuições jurisdicionais, quando denuncia e de igual forma
condena pessoas a que respondem ação penal, violentando princípios
constitucionais da preservação de imagem, da moral, e dos efeitos somente após sentença criminal transitada em julgado (...)” (fls. 660 e 663);
b.5) que os testemunhos colhidos não são aptos à formação de um
juízo condenatório, porquanto não evidenciam, de forma cabal, a prática
do delito descrito na denúncia por parte do apelante;
b.6) exclusão da ilicitude, nos termos aduzidos na defesa do co-réu L.
A. F.;
c) no que tange à dosimetria das penas:
c.1) em relação ao réu L. A. F., insurge-se quanto à avaliação negativa
dos vetores do art. 59 do CP, devendo ser reduzida a pena-base para o
mínimo legal;
c.2) quanto ao co-réu L. C. F., igualmente, requer a redução da pena-base, por se tratar de réu primário, sem condenação transitada em julgado, devendo a pena-base aproximar-se do mínimo legal.
Além disso, aduz que o número de dias-multa fixado na sentença
discrepa da realidade financeira dos apelantes, devendo ser reduzido.
Após, subiram os autos a este Tribunal, tendo a Procuradoria Regional da República ofertado parecer pelo não-provimento do recurso (fls.
667/675) dos apelantes.
É o relatório.
À revisão.
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VOTO
O Exmo. Sr. Des. Federal Tadaaqui Hirose: Trata-se de apelação
interposta pela defesa contra sentença que condenou o réu L. A. F., pela
prática do crime previsto no art. 138, c/c o art. 141, II, do CP, às penas de
01 (um) ano e 06 (seis) meses de detenção e de 50 (cinqüenta) dias-multa,
no valor unitário de 50% do salário mínimo vigente à época dos fatos,
bem como condenou o réu L. C. F., em concurso material, pela prática
dos delitos previstos no art. 138, c/c o art. 141, II, do CP e art. 20, c/c art.
23, II, da Lei 5.250/67, às penas de 04 (quatro) anos e 08 (oito) meses
de detenção e de 150 (cento e cinqüenta) dias-multa, no valor unitário
de 50% do salário mínimo vigente à época dos fatos. Com relação ao
réu L. A. F., a pena corporal restou substituída por duas restritivas de
direitos, consistentes em prestação de serviços à comunidade e prestação
pecuniária, esta correspondente à metade de um salário mínimo mensal
pelo tempo da pena corporal. Quanto a L. C. F., deixou o sentenciante
de efetuar a substituição, por entender não-atendidos os requisitos do
art. 44, I e III, do CP, fixando o regime semi-aberto como o inicial de
cumprimento da pena (art. 33, § 2º, b, do CP). (fls. 589/628)
Inconformados, apelaram os réus, sustentando, em síntese (fls.
248/263):
a) prefacialmente, a impossibilidade de negativa, por parte do juízo, da
ouvida do Chefe do Poder Executivo Municipal, como testemunha referida pela defesa, por infringência à isonomia processual entre as partes;
b) no mérito, no tocante ao réu L. A. F.:
b.1) a ausência de dolo específico, uma vez que apenas reproduziu o
que ouviu de seu genitor, e em interrogatório judicial, estando presente,
pois o animus defendendi;
b.2) em assim não o sendo, seja afastado o dolo eventual reconhecido na sentença, por se tratar de erro invencível, faltando ao apelante
a consciência da falsidade, devendo ser excluída a condenação a título
de calúnia;
No tocante ao réu L. C. F.:
b.3) negativa de autoria, pois nunca partiu diretamente do apelante a
afirmação caluniosa no sentido de que o Procurador da República hou216
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vesse praticado o crime de concussão, mas sim do Fiscal do Município,
M. A. B., pelo que inexistente ofensa à honra objetiva;
b.4) o animus defendendi, uma vez que “a perseguição da vítima ao
apelante é inconteste” e, ainda, diante da conduta da vítima “solapando,
inclusive, atribuições jurisdicionais, quando denuncia e de igual forma
condena pessoas a que respondem ação penal, violentando princípios
constitucionais da preservação de imagem, da moral, e dos efeitos somente após sentença criminal transitada em julgado (...)” (fls. 660 e 663);
b.5) que os testemunhos colhidos não são aptos à formação de um
juízo condenatório, porquanto não evidenciam, de forma cabal, a prática
do delito descrito na denúncia por parte do apelante;
b.6) exclusão da ilicitude, nos termos aduzidos na defesa do co-réu L.
A. F.;
c) no que tange à dosimetria das penas:
c.1) em relação ao réu L. A. F. insurge-se quanto à avaliação negativa dos vetores do art. 59 do CP, devendo ser reduzida a pena-base
para o mínimo legal;
c.2) quanto ao co-réu L. C. F., igualmente, requer a redução da pena-base, por se tratar de réu primário, sem condenação transitada em julgado, devendo a pena-base aproximar-se do mínimo legal.
Além disso, aduz que o número de dias-multa fixado na sentença
discrepa da realidade financeira dos apelantes, devendo ser reduzido.
Passo, pois, à análise das razões do recurso.
1) Preliminarmente:
Cerceamento de defesa em razão da negativa, por parte do juízo a
quo, da ouvida do Chefe do Poder Executivo Municipal na qualidade
de testemunha referida
Insurge-se a defesa quanto à negativa, por parte do juízo a quo, da
ouvida do Prefeito Municipal de Caxias do Sul na qualidade de testemunha referida, tal como ocorrido com a testemunha M. A. B., pena de
ofensa à isonomia processual entre as partes.
Sem razão. No tocante à decisão de fl. 371 - que determinou a ouvida
da testemunha M. A. B. - não há falar em inobservância ao princípio da
isonomia processual entre as partes, porquanto, nos termos do art. 209
do CPP, “o juiz, quando julgar necessário, poderá ouvir outras testemu217
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
nhas, além das indicadas pelas partes”, dispondo ainda o § 1º do aludido
dispositivo que “se ao juiz parecer conveniente, serão ouvidas as pessoas
a que as testemunhas se referirem”.
Além disso, a irresignação já havia sido ventilada na Correição Parcial nº 2002.04.01.007814-6/RS, tendo o então relator, Desembargador
Federal Vladimir Freitas, assim decidido:
“(...) No que diz respeito à oitiva do Sr. Prefeito municipal de Caxias do Sul, inexiste
também, a meu ver, qualquer obstáculo à administração do processo. Isto porque a magistrada indeferiu requerimento relativo à testemunha referida pelo requerente e quanto
a este tópico, é a produção de prova pautada no livre convencimento do juiz (...)”.
Ademais, a alegação da importância da ouvida do Chefe do Executivo
no sentido de confirmar ou não que o co-réu L. C. F. compareceu em
seu Gabinete reclamando da conduta de seu subordinado M. A. B. não
merece prosperar, porquanto irrelevante à configuração do delito ora em
análise, sobretudo se considerado o farto conjunto probatório constante
nos autos, o qual se mostra suficiente à caracterização de um juízo seguro
de condenação, como adiante se verá.
Nesses termos, rejeito a preliminar aventada.
2) Mérito:
Antes de enfrentar as razões do recurso de apelação, cumpre salientar
que, em se tratando do crime previsto no artigo 138 do Código Penal,
que tem como conduta punível a atribuição a outrem, falsamente, da
prática de fato definido como crime, é de se ressaltar que se incrimina
o comportamento de quem aponta a terceiro, inveridicamente, a prática
de crime, tendo como elemento subjetivo do tipo, prima facie, o dolo de
dano, ou seja, o sujeito tem a intenção de macular a reputação da vítima,
atingindo sua honra objetiva. Destarte, consuma-se o delito no instante em
que a imputação chega ao conhecimento de um terceiro que não a vítima.
No caso dos autos, portanto, impende verificar, primeiramente, se
houve a imputação falsa de fato definido como crime e, em caso positivo,
se tal imputação foi proferida com o objetivo de defesa de um direito ou
com o intuito de ofensa à honra objetiva da vítima.
Com relação ao co-réu L. A. F.
Aduz a defesa a ausência de dolo específico, requisito indispensável
à configuração do delito de calúnia, restando caracterizada, tão-somente,
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a intenção de defender-se (animus defendendi) em processo judicial
movido contra si.
Acerca de tal alegação, destaquem-se trechos do interrogatório de L.
A. F., nos autos da Ação Penal nº 2001.71.07.000672-3, em que responde
pela prática de crime contra a ordem tributária (fls. 31/32):
“(...) que trabalha com o pai desde os 14 ou 15 anos de idade, e ia até o escritório do
bingo diariamente, porque sua atividade exclusiva nos últimos 3 anos, assumindo o
negócio sempre que seu pai se ausentava (...) acha que a pessoa de M. A. B., fiscal
da prefeitura de Caxias, é um dos responsáveis pelos processos que tramitam como
represália pessoal, uma vez que no início dos bingos, este fiscal ia todas as noites para
jogar, sendo conhecido da casa (...) recorda de uma noite, sendo que até esta data não
sabia da profissão do fiscal, e que este pediu ao denunciado para segurar um cheque
de despesas efetuadas no bingo, ocasião em que se apresentou como fiscal, quando o
denunciado negou o benefício ao fiscal, dizendo que só o pai poderia autorizar; que
numa outra noite recorda que o fiscal pediu para jogar na casa sem qualquer pagamento, falando ao denunciado que isto implicaria obtenção de vantagem da fiscalização,
mas que o denunciado repeliu a medida, verificando que o fiscal chegou a conversar
com seu pai sobre o assunto, mas pelo que sabe sem sucesso; que depois o fiscal ficou
uns três dias sem aparecer, e quando voltou veio acompanhado de outros fiscais, por
volta de 1 hora da manhã, autuando a casa em valores absurdos, sendo que na época
havia uma grande discussão jurídica sobre se o pagamento de impostos à prefeitura,
por parte dos bingos, era devido; já no Central Bingo, recorda ter havido uma séria
discussão entre seu pai e o fiscal, no escritório do segundo andar, sendo que quando
o fiscal saiu teria ameaçado dizendo ‘teu nome vai sair no jornal, e a federal vem te
visitar’ isto depois de o pai do denunciado ter dito ‘tu não vai me comprar’ (...) recorda,
ainda, de uma outra discussão em que o fiscal mencionou ao pai do denunciado que
queria 50 mil reais para trancar processo criminal, sendo que estava usando o nome do
Procurador C. A. T. (...) alguns dias depois desta última discussão o nome da empresa
saiu nos jornais da cidade, como devedora de tributos, bem como o nome do pai do
denunciado, com a menção de que o procurador C. A. T. iria ingressar com medida
contra o bingo; que tais notícias prejudicaram o nome da família, abalando o crédito,
bem como prejudicando o movimento da casa (...)”.
Pelo que se depreende, as ilações de L. A. F. quanto à pessoa do Procurador da República foram proferidas no intuito de aparelhar sua defesa
no processo em que responde pela prática do crime de sonegação fiscal.
A propósito, a prova colhida nos presentes autos corrobora tal afirmação.
Veja-se o interrogatório do acusado às fls. 396/399:
“(...) JUÍZA: O senhor referiu no outro processo que esse fiscal teria exigido esse
valor de cinqüenta mil em nome de um Procurador da República, do Dr. C. A. T.
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RÉU: Isso.
JUÍZA: O senhor ouviu isso também?
RÉU: Eu ouvi C. A. T., o Procurador da Rep...não vou te precisar, ou C. A. T., ou
Procurador, mas ele usava.
(Omissis)
JUÍZA: O senhor entende que há alguma vinculação desse fiscal com o Dr. C. A. T.?
RÉU: Não tenho certeza, não vou lhe responder.
JUÍZA: O senhor em algum momento afirmou que haveria alguma vinculação?
RÉU: Não, eu acho que eu não devo ter afirmado, eu acho que coisas que aconteceram que nos levaram a crer, ou pelo menos me deixaram dúvidas.
JUÍZA: De que?
RÉU: Daquilo que ele falava. Coisas que ele falava e daqui a pouco, um tempo
depois saía no jornal, ele dizia o teu bingo vais fechar, eu vou dar o recado para ele,
ele dizia, mas coisas assim que eu pegava no ar (...).
(Omissis)
JUÍZA: Sim, mas o senhor não respondeu o que eu lhe perguntei? Havia alguma
vinculação...O senhor entendia que havia alguma vinculação entre o fiscal e o Procurador?
RÉU: Eu achava...Eu achei estranho as coisas que ele falava para o meu pai e
que depois começavam a acontecer. Agora, te precisar que ele tenha dito isso aí pra
mim, porque o Procurador vai fazer isso ou aquilo eu não posso te dizer (grifou-se).
JUÍZA: Ele nunca lhe falou, então, eu preciso de dinheiro pra repartir com o Procurador...
RÉU: Pra mim não.
JUÍZA: Ele falou isso com seu pai?
RÉU: Possivelmente tenha falado com meu pai.
JUÍZA: O senhor sabe se ele falou?
RÉU: Foi isso que o meu pai comentou.
JUÍZA: O senhor tem consciência de que a partir do momento em que o senhor
disse que acha estranho que depois que o fiscal tenha iniciado a fazer essas ameaças e
o seu pai então e o senhor também tenham se recusado a atender aquilo que ele estava
pedindo, e que logo em seguida, como o senhor se refere, começou a acontecer uma
série de situações, a família sendo exposta ao jornal, como o senhor está se referindo,
e que isso aconteceu a partir do momento em que esse fiscal ameaçou dizendo que era
pra que a família se cuidasse, pra que vocês se cuidassem, que a Federal ia chegar e ia
fazer alguma coisa, o senhor tem consciência de que o senhor pode estar imputando um
fato ofensivo à reputação do Procurador da República e da mesma forma o senhor pode
estar acusando o Procurador da República de estar praticando um crime? O senhor tem
consciência de que esta suspeita do senhor tem essa conotação?
RÉU: Olha, doutora, é que nem eu falei, em momento algum eu acuso ele diretamente, mas que fatos que aconteceram, fatos que vieram a acontecer, e que eu, na
minha liberdade de expressão, eu tenho direito de imaginar coisas (...)”.
220
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
Ora, como se vê, L. A. F. limitou-se a reproduzir o narrado por seu
pai, não restando demonstrado em nenhum momento que ele próprio
tenha imputado ao Procurador da República o cometimento de crime de
concussão (Art. 316 do CP - Exigir, para si ou para outrem, direta ou
indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em
razão dela, vantagem indevida). Ademais, é de se notar que no presente
interrogatório o réu cingiu-se a responder os questionamentos formulados pelo juízo, relatando o que havia ouvido e/ou presenciado e, pelo
que se constata, se imputação houve, ainda que de forma indireta, certo
é que não partiu de L. A. F., pois que suas declarações evidenciam, tão-somente, o animus narrandi.
Desse modo, não restando suficientemente comprovado nos autos o
ânimo do agente em caluniar o Parquet federal, essencial para a caracterização do delito, a absolvição é medida que se impõe.
Com relação ao co-réu L. C. F. – Calúnia (art. 138 do Código Penal)
Aduz o apelante não haver imputado ao Procurador da República
C. A. T. fato definido como crime, mas sim que o Fiscal de Tributos da
Prefeitura Municipal de Caxias do Sul, M. A. B., falava em nome do
Procurador.
No tópico, convém transcrever excertos do depoimento prestado por
L. C. F. ao juiz da 2ª Vara Federal de Caxias do Sul nos autos da Ação
Penal nº 2001.71.07.000672-3, em que responde por crime de natureza
fiscal (fls. 28 v./30):
“(...) o denunciado acha que não existem débitos relacionados à sua empresa descrita
na inicial, achando que o presente processo é fruto de perseguição pessoal em que
estariam envolvidas as pessoas do fiscal do município M. A. B., e o Procurador da
República C. A. T.; recorda, inclusive, que M. A. B. era acostumado a jogar no bingo
de propriedade do denunciado, tendo numa certa ocasião solicitado ao denunciado a
obtenção de proveito indevido quando da realização do jogo, ou seja, ‘jogar para a
casa’ ganhando comissão; que como a proposta não foi aceita pelo denunciado o fiscal
teria iniciado uma perseguição pessoal, a qual culminou com a exigência do pagamento
de cinqüenta mil dólares, os quais em parte seriam repassados ao Procurador C. A.
T., para que este ‘esquecesse o processo criminal’”.
“(...) que para surpresa do denunciado, logo no dia seguinte, viu estampado o seu nome
nas manchetes dos jornais, nas quais aparecia o procurador C. A. T. dizendo que o bingo
seria fechado; que tal fato levou o denunciado a crer que existia algum tipo de ligação
entre o procurador e a pessoa de M. A. B., sendo que hoje, pelos fatos ocorridos, bem
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
221
como pelo fato de o procurador ter convocado fiscais da Caixa e dito publicamente
que os alvarás para funcionamento do bingo não deveriam ser emitidos, o denunciado
acredita na existência de uma ligação entre o procurador e M. A. B., achando que o
processo é decorrência de uma perseguição pessoal, visto que nada deve (...)”
“(...) que sabe que foi denunciado por falta de recolhimento de contribuições sociais,
algum tempo depois, de outros envolvidos, achando que tal fato tem relação com o
fiscal M. A. B., e sua ligação com o Procurador C. A. T. (...)” (grifou-se).
Veja-se, ainda, o depoimento da testemunha E. F. A., magistrado que
presidiu a audiência em que colhido o depoimento de L. C. F. nos autos
da ação penal supra-referida (fls. 403/404):
“(...)
JUÍZA: Perfeito. Então, compromissada a testemunha eu vou passar à inquirição.
O senhor atuou como presidente do feito no processo, inicialmente junto à Segunda
Vara Federal de Caxias do Sul, em que eram réus L. C. F. e L. A. F. O senhor recorda
dessa situação?
TESTEMUNHA: Recordo, excelência, fizemos uma audiência, seria objeto desse
processo, que V. Exa. agora instrui, no qual presidi a audiência, ouvimos, interroguei
L. C. F., naquela ocasião me parece que o Dr. C. A. T. estava recebendo um prêmio
em Brasília, por distinção em relação à sua atividade profissional em Caxias do Sul, e,
se eu não estou equivocado, naquele momento, no interrogatório, o réu teria deixado
muito claro que a atuação do Dr. C. A. T. em relação a ele, seria uma persecução mais
no sentido pessoal, motivada por algum ganho financeiro, dando a entender que seria
algo ligado a suborno, do que propriamente uma atividade isenta em relação aos bingos
em Caxias do Sul.
JUÍZA: Isso então L. C. F. referiu ao ser interrogado?
TESTEMUNHA: Perfeito.
JUÍZA: O senhor recorda se ele fez alguma referência a uma vinculação entre o
Dr. C. A. T. e um fiscal da prefeitura municipal de Caxias do Sul?
TESTEMUNHA: Sim, houve uma menção a esse fato, de que haveria alguma forma
de ligação entre os dois, e que isso... e que o fiscal esse, inclusive, teria dito que estaria
exigindo dinheiro do L. C. F., para protegê-lo frente à atividade do Dr. C. A. T. como
procurador da República em Caxias do Sul. Dando a entender que seria um agente
do Dr. C. A. T., algo nesse sentido, não lembro, já faz algum tempo (...)” (grifou-se).
Com efeito, depreende-se do ora esposado, se não a vontade livre e
consciente do agente em imputar voluntariamente à vítima fato inverídico
definido como crime, pelo menos, o dolo eventual, uma vez que, ao fazer
tais declarações, assumiu o risco de produzir o resultado.
Nessa linha, como bem ressaltado pela julgadora a quo (fl. 604),
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R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
“não se pode exigir do denunciado que proceda à sua auto-acusação, dizendo que efetivamente acusou a vítima da prática do delito de concussão. Entretanto, sua atitude,
reprisada no interrogatório no presente feito, sem qualquer embasamento probatório
consistente que não suas meras suspeitas, estas desprovidas de fundamentação fática e
lógica, de externar tais suspeitas, de forma tão veemente, dá conta de que, no mínimo,
assumiu o risco de tais declarações, ou seja, de imputar a alguém fato definido como
crime, ainda que tenha dúvidas sobre a veracidade ou a falsidade da imputação, o que
configura o dolo eventual antes mencionado”.
Sobre o tema já decidiu o e. STF (RT 565/400):
“É característico dos crimes contra a honra, calúnia, difamação e injúria praticados
por pessoas de certo preparo intelectual o dizer com disfarce ou ambigüidade aquilo que
outra pessoa menos ilustrada diria cruamente. Nem por isso o dolo é menor. O homem
inculto, que refere com palavras duras o fato atributivo de prevaricação, pratica o crime com a mesma gravidade daquele que o faz com certas delicadezas e subterfúgios.
Atingem da mesma forma a honorabilidade da pessoa”.
Por outro lado, insubsistente a tentativa de desvalorizar o depoimento da testemunha E. F. A. sob o argumento de que este, na condição
de Juiz Federal, proferira sentença condenatória contra o réu em outra
ação penal (Processo nº 2001.71.07.000672-3), inclusive decretando
sua prisão preventiva, entendendo o réu que “não cabe à testemunha, na
condição de instrutor de um processo, vir em outro depor e obsequiar o
seu sentimento subjetivo”.
Em verdade, não se verifica qualquer mácula que venha a infirmar a
credibilidade da testemunha em comento. O depoimento do magistrado
sobre fato de que teve ciência em razão do seu dever de ofício é valorado
como qualquer outro, servindo de subsídio ao livre convencimento do
julgador, tal como ocorre em relação ao restante conjunto probatório.
Desse modo, tenho não restar dúvida acerca do animus do agente de
imputar ao Procurador da República a prática de um fato típico (concussão), atingindo-a em sua honra.
De outra parte, tenho que a falsidade do fato imputado, igualmente,
restou evidenciada nos autos.
Note-se que as insinuações proferidas no sentido de que haveria uma
perseguição pessoal contra o réu por parte do Procurador da República,
levando o apelante a “imaginar coisas”, ou seja, que realmente haveria
alguma ligação do fiscal M. A. B. com o Procurador C. A. T. e, caso a
quantia de 50 mil fosse paga ao fiscal, não teria sido deflagrado o processo
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R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
criminal, mostram-se totalmente infundadas.
Consoante se verifica da prova produzida, o réu L. C. F. havia sido
denunciado pelo Ministério Público Federal, juntamente com outros
agentes – estes, também proprietários de casa de bingo na cidade de
Caxias do Sul – em 05.11.99, sendo subscritor da denúncia o Procurador
da República L. F. (fls. 36/41). Já o Procurador C. A. T. somente assumiu
suas funções na cidade de Caxias do Sul em 2000, dando seguimento,
assim, ao trabalho já iniciado por seu colega de profissão, afastando o
caráter de perseguição pessoal alegado. Gize-se que tais procedimentos
se encontram elencados na Lei Orgânica do Ministério Público (Lei
Complementar nº 75, de 20.05.93), sendo dever dos membros do MPF
promover as diligências cabíveis sempre que verificada alguma suspeita
de irregularidade.
Ademais, os documentos de fls. 36/55 bem evidenciam que a problemática acerca da regulação das casas de bingo, e a conseqüente
investigação dos responsáveis, foi medida imposta em âmbito nacional
a partir da edição da Lei 9.981, de 14.07.2000, que alterou dispositivos
da Lei nº 9.615/98 (instituiu normas gerais sobre desportos e outras
providências - Lei Pelé), e do Decreto nº 3.659, de 14 de novembro de
2000, que passou a regulamentá-la, estabelecendo a responsabilidade da
Caixa Econômica Federal, a qual cabe, ao tomar conhecimento de jogo
de bingo funcionando em desacordo com a legislação, comunicar, de
imediato, o fato ao Ministério Público. (art. 17 do Dec. nº 3.659/2000)
Por outro lado, não se diga que o réu assim teria agido com o fito de
defender-se ou com intuito narrativo, pois tais argumentos não encontram
amparo no conjunto probatório, já exaustivamente mencionado, a ponto
de descaracterizar o dolo de sua conduta.
Além disso, teve o réu oportunidade de demonstrar a veracidade de
suas alegações, por força do disposto no art. 138, § 3º. Todavia, embora
afirmando veementemente que comprovaria o todo alegado, não apresentou a exceção de verdade, com o que se conclui que, efetivamente,
foi temerário em suas asserções. Por oportuno, a lição de Luiz Regis
Prado, in Curso de Direito Penal Brasileiro, Volume 2 – Parte Especial,
2ª edição, ed. RT, 2002, pág. 226:
“(Omissis)
No delito de calúnia, previsto pelo artigo 138, caput, exige-se que o agente tenha
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consciência da falsidade da imputação feita (dolo direto). Se o autor considera como
seriamente possível a falsidade da imputação e, apesar da dúvida, prefere arriscar-se a
imputá-la a renunciar à ação (dolo eventual), também se caracteriza o delito insculpido
no caput”.
Assinale-se, outrossim, que as conjeturas articuladas pelo réu no
sentido de demonstrar a veracidade do fato delituoso imputado à vítima,
tais como “a intimidade entre ambos (Procurador da República e Fiscal
do Município), quando os aspectos funcionais e de competência são
totalmente diversos” ou “(...) é notório o esforço de M. A. B. (Fiscal do
Município) em declinar que a porta do Gabinete do Procurador estava
aberta (...)” ou, ainda, “ (...) o Dr. C. A. T. omitiu os contatos mantidos
com o Fiscal, no seu Gabinete funcional. Qual razão? Certo que não
há relação funcional, disso admite o apelante, entretanto altamente
estranhável o vínculo ocorrido (...)”, não passam de meras insinuações
desprovidas de fundamentação, mostrando-se insuficientes e precárias à
argüição da exceptio veritatis, nos termos dispostos no já mencionando
art. 138, § 3º, do Código Penal.
Assim, conclui-se que o apelante imputou ao Procurador da República
C. A. T. fato descrito como crime (art. 316 do CP), do que decorre o acerto
na condenação pelo crime de calúnia, bem assim no que tange à aplicação
da majorante do art. 141, II, do CP (ofensa proferida contra Procurador
da República em razão de suas funções), porquanto a afirmação do réu
tida por ofensiva à honra da vítima descreveu especificadamente os elementos de tipo penal caracterizadores do crime de calúnia.
Com relação ao réu L. C. F. – Delito de calúnia perpetrado na imprensa
A Lei nº 5.250/67 (Lei de Imprensa) em seu art. 20 dispõe que aquele
que caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime, através dos meios de informação e divulgação, sujeita-se à pena de
detenção de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, além de multa.
Como bem explicitado pela julgadora monocrática, a única diferença
conceitual existente entre os delitos de calúnia e difamação previstos pelos arts. 138 e 139 do CP e os previstos nos arts. 20 e 21 da Lei 5.250/67
é a especial circunstância de ter sido a ofensa perpetrada por meio dos
chamados meios de informação e de divulgação.
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
225
Assim, no caso em tela, oportuno transcrever trechos da entrevista
concedida pelo acusado aos repórteres Alberto Meneguzzo e Ciro Fabris
Neto da Rádio Caxias, programa Edição da Tarde, em data de 25.04.2001:
“ (...)
ALBERTO: Tudo bem. Que que lhe parece essa decisão da Caixa Federal?
L. C. F.: - Pois é nós estamos ainda em tratativas para reabrir o...o nosso bingo agora
tudo, tudo isso aí me estranha...me estranha esse... essa posição da Caixa Econômica
porque nós estávamos no prazo que ela tinha nos dado para apresentar a documentação quando a nossa casa foi fechada pelo Procurador da República. Todo mundo sabe
disso, inclusive, a direção da Caixa deu entrevista a esse respeito. Agora a respeito do
Central Bingo e do Bingo da Sorte, a história toda meus caros ouvintes e...e Alberto,
ela começou através de um fiscal da Prefeitura, que se chama M. A. B., que vivia nos
achacando, um cara que jogava bingo, era viciado no jogo, queria jogar de graça e
queria levar vantagem sim, e nos ameaçava a todo instante com... com denúncia junto
ao Procurador da República, isso acabou acontecendo estranhamente acabou acontecendo e a respeito desse achaque todo eu fiz contato com o senhor Prefeito, coloquei
ele ao par da situação no início desse, desse achacamento que... que eu sofri... dentro
da minha empresa, uma vez que esse mesmo fiscal sistematicamente, a cada quinze
dias, me dava uma notificação de ISQN, de quarenta, cinqüenta mil que totaliza hoje
seiscentos mil reais junto à Prefeitura de Caxias do Sul (...)
ALBERTO: Como é que é o nome do cidadão L. C. F.?
L. C. F.: - É M. A. B., é ele que manda no setor de fiscalização, é ele que usava o
nome do senhor Procurador da República inicialmente , dizendo que queria dinheiro do Central Bingo para evitar uma queixa-crime sob sonegação de impostos(...)”
(grifou-se).
“(...)
A prova está... a prova está Alberto, que eu tenho a cada quinze, vinte dias, uma
notificação de vinte, trinta, quarenta, cinqüenta mil reais de ISQN que esse cidadão
sistematicamente aplicava na minha empresa. E isso porque eu me furtei de atender as
exigências dele e atropelei ele dentro da...do meu estabelecimento na última vez que
veio, usando o nome do Procurador da República, C. A. T., e estranhamente também,
cada vez que achacava, no outro dia o senhor Procurador usava a imprensa pra dizer
que tinha uma diferença comigo, que ia fechar a minha casa e que não sei o que, quando
aliviava dois ou três dias isso, lá vinha o seu M. A. B. de novo para minha casa, pedindo cinqüenta mil dólares, porque teria que dar uma parte ao senhor Procurador (...)
ALBERTO: - O senhor, o... o... o senhor tem noção... Dr. L. C. F. da...da gravidade
dessas denúncias, o senhor tá dizendo o seguinte, que o M. A. B. é um cidadão corrupto, fiscal da Prefeitura, ele que manda lá e ele estaria pedindo dinheiro pro senhor...
L. C. F. (interrompendo): - usando o nome do Procurador da República...
ALBERTO: - ...pra repartir esse valor, só um pouquinho L. C. F., ele tá, estaria
pedindo dinheiro pro senhor pra repartir com o Procurador da República e?
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L. C. F.: - Exatamente isso está lá no meu depoimento (grifou-se).
CIRO: - O senhor se refere só a notificações consecutivas que totalizam seiscentos
mil ou a tentativa de extorsão também?
L. C. F.: - Seiscentos mil as notificações que ele me dava sistematicamente que
está lá na Prefeitura.
ALBERTO: - E...e chegou haver tentativa de extor...?
L. C. F.: - e mais olha o absurdo, olha o absurdo, esse mesmo funcionário no
momento que eu estava viabilizando legalmente a casa, ele me manda a...a...pra...
pra Caixa Econômica Federal, uma relação dos meus débitos pedindo que não fosse
liberado meu alvará, isso aí a despeito de seus superiores inclusive, não respeitando
hierarquia do funcionário público, porque acredito que o senhor Prefeito nem sabe dessa
atitude desse Procurador, mas nós temos isso documentado, está no processo junto ao
Ministério Público Federal.(...)”.
“(...)
ALBERTO: - O...o senhor tá se referindo a que Procurador Dr. L. C. F.?
L. C. F.: - Como?
ALBERTO: - O senhor tá se referindo a que Procurador?
L. C. F.: - Que ele usava o nome?
ALBERTO: - É?
L. C. F.: - É o do C. A. T. ...(pausa) ...ele usava o nome do Procurador pra me
achacar sistematicamente cada vez que eu me negava disso lá vinha uma notificação
dele, então isso nós...nós não podemos aceitar, eu não posso aceitar no início volto
a dizer eu tinha minhas dúvidas, e depois no decorrer dos dias vendo manifestações
públicas, de autoridades do... do... do... do gabarito e da altura que eu citei, eu comecei
a ter minhas dúvidas porque vem cá, cada vez que ele vinha me achacar no outro dia
vinha uma manifestação publicamente, que iam fechar a minha casa, que minha casa
tava irregular, e eu estava dentro do prazo que a Caixa Econômica Federal tinha nos
dado para apresentar a documentação(...)” (grifou-se).
“(...)
ALBERTO: - Tá bom. O senhor sabe Dr. L. C. F., o senhor é uma pessoa experiente,
empresário já longa data aqui na área de bingos aqui em Caxias do Sul, que as suas
declarações são declarações que vão repercutir muito, o senhor tem provas concretas
sobre tudo isso que o senhor está falando?
L. C. F.: - Eu tenho, tenho na hora que for solicitada, não resta dúvida que eu
tenho (grifou-se). Tem todos os meus funcionários que viram eu atropelar ele mais de
uma vez, e ele de dedo em riste dizendo: o Procurador vai te pegar! o Procurador vai
te pegar! O Procurador te pega! O federal vai te pegar! E no outro dia a manchete no
jornal, então isso aí tá nos autos do meu processo, eu não estou falando coisas que...
que... que... ao... ao léu, eu estou falando coisas que qualquer pessoa que se detém no
processo todo que nós temos no Ministério Público chega a essa conclusão, infelizmente
eu estou fazendo isso publicamente porque esse tratamento foi me dado dessas duas
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autoridades com...com...com o mesmo caminho, só por isso, se eu não ia me restringir
ao processo que está instaurado inclusive na...poli...na justiça federal (...)”.
Também, destaque-se o afirmado pelo réu em matéria publicada no
jornal O Pioneiro de 26.04.2001 (fls.):
“(...)
‘Primeiro, ele (o agente tributário) era cliente dos bingos, depois começou a querer
jogar de graça, a pedir dinheiro, e depois me ameaçava com o C. A. T., com a Polícia
Federal, dizendo que tinha que lhe dar dinheiro, pois do contrário haveria queixa-crime
e a casa seria fechada. E conforme ele falava isso, no outro dia vinham manifestações
do procurador na imprensa, que ficava me condenando, me enxovalhando perante a
sociedade com coisas que não fecham com a realidade’, acusa L. C. F. Ele vai além e diz
que, por não ter cedido às ameaças do servidor, a cada 15 dias recebia uma notificação
com valores que giravam entre R$ 60 mil a R$ 30 mil, somando hoje uma dívida de
R$ 600 mil junto à prefeitura.‘Tudo pelo mesmo fiscal, só porque não atendemos aos
pedidos de propina feitos com o uso do nome do procurador’. Isso teria ocorrido até
pouco antes do fechamento do Central Bingo (...)”.
Como se vê, não restam dúvidas acerca da materialidade e da autoria
delitivas.
No que toca ao dolo, consoante se infere dos trechos supracolacionados, observa-se nitidamente a vontade livre e consciente de imputar ao
douto Procurador da República a prática do crime de concussão, embora
não diretamente, mas sempre fazendo o réu questão de mencionar que terceira pessoa – no caso, o fiscal de tributos municipais M. A. B. – “usava o
nome do procurador”, o que não afasta a tipificação do delito de calúnia.
Reitere-se que o delito de calúnia, também na modalidade prevista
na Lei de Imprensa, admite a exceção da verdade (art. 20, § 2º, Lei nº
5.250/67). No entanto, mesmo afirmando ter provas concretas acerca do
alegado (fl. 143), o réu jamais as trouxe aos autos, circunstância que,
aliada aos demais elementos de prova, levam à conclusão de que o fato
típico atribuído ao membro do Ministério Público Federal é falso, tendo
tal imputação o firme propósito de lesar o Procurador C. A. T. em sua
honra objetiva. Nesse ponto, aliás, valho-me dos argumentos anteriormente expendidos quando da análise do delito de calúnia previsto no
Código Penal.
Outrossim, quanto ao argumento de as testemunhas Rosilene Pozza e Alberto Meneguzzi, respectivamente, repórteres do Jornal O
Pioneiro e Rádio Caxias, terem afirmado que o apelante em momento
228
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algum proferiu acusações caluniosas à vítima, destaque-se cumprir ao
julgador realizar a adequação típica do caso em concreto, cabendo às
testemunhas, tão-somente, narrar os fatos que têm conhecimento, sem
emissão de qualquer juízo de valor.
Ainda, pretende o acusado ver excluída a ilicitude de sua conduta, sob
o argumento de que se encontraria diante de erro invencível. Na espécie,
não há falar em erro invencível, porquanto, ao contrário do aduzido pelo
agente, resta claro que teria condições plenas de discernir se o fato imputado era ou não verdadeiro. In casu, é de se considerar as circunstâncias
pessoais do agente (empresário conhecido no Estado, portando em seu
currículo um mandato como deputado estadual, “participando ativamente
da Comissão de Constituição e Justiça da Assembléia Legislativa do RS,
inclusive na condição de vice-presidente num determinado período (...)
(fl. 28)”, portanto, com razoável sagacidade de modo a prever as conseqüências jurídicas do exercício de sua liberdade de expressão desmedida.
Por fim, assinale-se que o presente processo não é o mecanismo
processual adequado à discussão quanto à conduta funcional da vítima,
conforme erigido à fl. 663, uma vez que eventuais insurgências do réu
quanto ao comportamento do Procurador da República deveriam ser
aventadas em ação própria, não se prestando tais argumentos à constituição da defesa do acusado nestes autos.
Passo à dosimetria das penas.
Art. 138, c/c art. 141, II, ambos do Código Penal:
Postula o réu a redução da pena-base.
O grau de reprovabilidade da conduta é normal à espécie, não havendo razão para avaliação negativa de tal vetor. Quanto aos antecedentes,
observo que o réu responde a outras quatro ações penais no âmbito da
Justiça Federal – (certidão de fls. 290/291), sendo que o entendimento
já firmado nesta turma (ACR 2003.04.01.003269-2, rel. Des. Federal
Fábio Bittencourt da Rosa, DJU 02.07.2003) e no STF (HC 81.759, rel.
Ministro Maurício Corrêa, Informativo 262 do STF) é no sentido de que
inquéritos e processos penais em andamento caracterizam maus antecedentes. No que toca à conduta social, considerando que “sua valoração
se dá em relação à sociedade na qual o acusado esteja integrado, e não
em relação à sociedade formal dos homens” (José Antônio Paganella
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
229
Boschi, in Das Penas e seus critérios de Aplicação, ed. Livraria do Advogado, 2ª edição, pág. 202), não vislumbro nos autos nada que venha
em desabono ao acusado. Ao contrário. O acusado foi vereador em sua
cidade e deputado estadual, não tendo as testemunhas conhecimento de
nenhum fato desabonatório à conduta do acusado. Quanto à personalidade, a sentença, ao valorar negativamente tal aspecto, ante o fundamento
de que “não há notícia que nos últimos anos tenha o réu atividade lícita
que lhe garanta a subsistência” não merece subsistir, porquanto tais
razões em nada dizem, tecnicamente, com a personalidade do agente,
sendo necessário, para tanto, embasamento em laudo específico, o que
inocorre no presente caso. Os motivos são inerentes ao tipo em questão,
não se podendo, no presente caso, valorar negativamente tal vetor nos
moldes constantes na sentença, sob pena de se incorrer em bis in idem.
No tocante às circunstâncias, da mesma forma, tenho serem normais à espécie, não se verificando, ao longo do depoimento do acusado, desabono
ao Judiciário Federal de tal monta a ponto de se ponderar negativamente
o vetor em questão. Quanto às conseqüências do crime, considerando
a ocorrência da causa de aumento de pena constante no art. 141, II, do
CP, entendo que a valoração negativa deste vetor configura bis in idem,
pelo que deve ser afastada.
Dessa forma, fixo a pena-base em 08 (oito) meses de detenção.
Ausentes circunstâncias agravantes e/ou atenuantes.
Em face da incidência da majorante prevista no art. 141, II, do CP,
acresço a pena em 1/3 (um terço), tornando-a definitiva em 10 (dez)
meses e 20 (vinte) dias de detenção.
Relativamente à pena de multa, esta é pena pecuniária e, sendo assim, quando da fixação dos dias-multa, deve-se levar em consideração
os critérios norteadores que ensejaram a fixação da pena privativa de
liberdade, como o acréscimo decorrente da continuidade delitiva, atenuantes e agravantes, e causas de aumento e diminuição da pena, não
se restringindo apenas aos vetores do art. 59 do CP, porquanto não teve
o legislador a intenção de fixar critérios de censurabilidade distintos
para a pena privativa de liberdade e a de multa, sob pena de a resposta
do direito penal à conduta delitiva se dar de forma assimétrica. Nessa
linha, cumpre destacar que o art. 60, caput, do Código Penal refere que
o juiz, na fixação da pena de multa, deve atender, principalmente, e não
230
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
exclusivamente, à situação econômica do réu.
Todavia, no caso dos autos, considerando que a adoção do entendimento acima esposado implicaria efetivo reformatio in pejus, e haja
vista a inexistência de apelo ministerial nesse sentido, deve ser mantida
a pena de multa fixada na proporção de 50 dias-multa, à razão de metade
do salário mínimo cada dia, tal determinado na sentença (fl. 624), uma
vez que, diante do argumento de situação financeira de penúria (fl. 664),
competia ao apelante demonstrar o todo alegado. (art. 156 do CP)
Art. 20, c/c art. 23, II, ambos da Lei nº 5.250/67 (Lei de Imprensa):
O grau de reprovabilidade da conduta é normal à espécie, não havendo razão para avaliação negativa de tal vetor. Quanto aos antecedentes,
observo que o réu responde a outras quatro ações penais no âmbito da
Justiça Federal, constando, ainda, um inquérito em curso – (certidão de
fls. 290/291), sendo que o entendimento já firmado nesta turma (ACR
2003.04.01.003269-2, Rel. Des. Federal Fábio Bittencourt da Rosa, DJU
02.07.2003) e no STF (HC 81.759, Rel. Ministro Maurício Corrêa, Informativo 262 do STF) é no sentido de que inquéritos e processos penais
em andamento caracterizam maus antecedentes. No que toca à conduta
social, considerando que “sua valoração se dá em relação à sociedade na
qual o acusado esteja integrado, e não em relação à sociedade formal dos
homens” (José Antônio Paganella Boschi, in Das Penas e seus critérios
de Aplicação, ed. Livraria do Advogado, 2ª edição, pág. 202), não vislumbro nos autos nada que venha em desabono ao acusado. Ao contrário.
O acusado foi vereador em sua cidade e deputado estadual, não tendo as
testemunhas conhecimento de nenhum fato desabonatório à conduta do
acusado. Quanto à personalidade, a sentença, ao valorar negativamente
tal aspecto, ante o fundamento de que “não há notícia que nos últimos
anos tenha o réu atividade lícita que lhe garanta a subsistência” não merece subsistir, porquanto tais razões em nada dizem, tecnicamente, com
a personalidade do agente, sendo necessário, para tanto, embasamento
em laudo específico, o que inocorreu no presente caso. Os motivos são
inerentes ao tipo em questão, não se podendo, no presente caso, valorar
negativamente tal vetor nos moldes constantes na sentença, sob pena de
se incorrer em bis in idem. No tocante às circunstâncias são inerentes
ao tipo em questão, já que, justamente em face de a calúnia ter sido
proferida através de meios de informação e divulgação é que o acusado
231
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
foi dado por incurso também na figura típica constante do art. 20 da
Lei de Imprensa. Quanto às conseqüências do delito, considerando a
ocorrência de causa de aumento de pena constante no art. 23, II, do CP,
entendo que a valoração negativa deste vetor configura bis in idem, pelo
que deve ser afastada.
Dessa forma, fixo a pena-base em 08 (oito) meses de detenção.
Ausentes circunstâncias agravantes e/ou atenuantes.
Em face da incidência da majorante prevista no art. 23, II, do CP,
acresço a pena em 1/3 (um terço), tornando-a definitiva em 10 (dez)
meses e 20 (vinte) dias de detenção.
Relativamente à pena de multa, esta é pena pecuniária e, sendo assim, quando da fixação dos dias-multa, deve-se levar em consideração
os critérios norteadores que ensejaram a fixação da pena privativa de
liberdade, como o acréscimo decorrente da continuidade delitiva, atenuantes e agravantes, e causas de aumento e diminuição da pena, não
se restringindo apenas aos vetores do art. 59 do CP, porquanto não teve
o legislador a intenção de fixar critérios de censurabilidade distintos
para a pena privativa de liberdade e a de multa, sob pena de a resposta
do direito penal à conduta delitiva se dar de forma assimétrica. Nessa
linha, cumpre destacar que o art. 60, caput, do Código Penal refere que
o juiz, na fixação da pena de multa, deve atender, principalmente, e não
exclusivamente, à situação econômica do réu.
Todavia, no caso dos autos, considerando que a adoção do entendimento acima esposado implicaria efetivo reformatio in pejus, e haja
vista a inexistência de apelo ministerial nesse sentido, deve ser mantida
a pena de multa fixada na proporção de 50 dias-multa, à razão de metade
do salário mínimo cada dia, tal como determinado na sentença (fl. 626),
uma vez que, diante do argumento de situação financeira de penúria (fl.
664), competia ao apelante demonstrar o todo alegado. (art. 156 do CP)
Assim, em face do cúmulo material, resta o acusado L. C. F. condenado
à pena de 01 (um) ano, 09 (nove) meses e 10 (dez) dias de detenção, a
ser cumprida inicialmente em regime aberto.
Como se vê, possível a substituição da pena privativa de liberdade
por restritiva de direitos, nos termos do art. 44 do CP. Assim, substituo
a pena corporal por duas restritivas de direito consistentes em prestação
de serviços à comunidade ou a entidades públicas – por igual período
232
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
fixado para cumprimento da pena privativa de liberdade – e prestação
pecuniária, na ordem de 10 (dez) salários mínimos conforme art. 45, §
1º, do Código Penal, restando a destinação e forma de pagamento submetidos ao Juízo da Execução. Especificamente com relação à prestação
pecuniária ora fixada, saliento que a lei penal não estabeleceu qualquer
critério de correlação entre esta e a pena de multa a que alude o artigo
32, III, do Código Penal. Contudo, entendo que, quando da fixação da
prestação pecuniária, deve o julgador, dentre os parâmetros estabelecidos
pelo artigo 45, § 1º, do CP, considerar certos fatores, de modo a não tornar
a prestação em pecúnia tão diminuta a ponto de mostrar-se inócua, nem
tão excessiva de maneira a inviabilizar seu cumprimento. Nessa linha,
tenho que tal prestação deve ser suficiente para a prevenção e reprovação do crime praticado, atentando-se, ainda, para a situação econômica
do condenado e a extensão dos danos decorrentes do ilícito praticado.
Em vista disso, tenho por adequado o valor ora estabelecido, sobretudo
se considerados os limites mínimo (01 salário mínimo) e máximo (360
salários mínimos) estipulados pelo já mencionado dispositivo legal.
Frente ao exposto, dou provimento ao recurso do réu L. A. F., para
absolvê-lo do crime de calúnia (art. 138 do Código Penal), com supedâneo
no artigo 386, III, do Código de Processo Penal, e dou parcial provimento
ao recurso do réu L. C. F., nos termos da fundamentação.
Se unânime a decisão desta Turma, oficie-se ao MM. Juízo a quo,
para que providencie o imediato cumprimento das penas impostas, salvo
pena de multa, porquanto eventual recurso especial ou extraordinário não
possui efeito suspensivo (STF, HC nº 81.580/SP, rel. Min. Sepúlveda
Pertence, DJU de 22.03.2002). Nesse sentido, também a Súmula nº 267
do egrégio Superior Tribunal de Justiça.
É o voto.
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
233
QUESTÃO DE ORDEM NA AC Nº 2003.04.01.014537-1/SC
Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz
Apelante: T. N. F.
Advogado: Dr. Claudione Fernandes de Medeiros da Cunha
Apelado: Ministério Público Federal
EMENTA
Penal. Apropriação indébita previdenciária. Omissão no recolhimento
de contribuições previdenciárias. Adesão ao REFIS posteriormente ao
recebimento da denúncia. Suspensão da pretensão punitiva. Possibilidade.
É possível a suspensão da pretensão punitiva do Estado desde que
o débito originário da ação penal tenha sido incluído em parcelamento,
ainda que posteriormente ao recebimento da denúncia, nos termos do
art. 9º da Lei 10.684/03.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide
a 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade,
determinar a suspensão da pretensão punitiva e da prescrição, nos termos
do art. 9º da Lei nº 10.684/03 e, por maioria, vencido o Des. Federal Luiz
Fernando Wowk Penteado, determinar a remessa dos autos à origem, nos
termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte
integrante do presente julgado.
Porto Alegre, 31 de março de 2004.
Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz, Relator.
RELATÓRIO
O Exmo. Sr. Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz: O Ministério Público Federal ofereceu denúncia contra T. N. F., dando-o como incurso
nas sanções do art. 95, d, da Lei nº 8.212/91, relatando que o denunciado, na qualidade de responsável pela empresa Indústria Catarinense de
Adubos e Mineração Ltda. - INCAL, deixou de recolher aos cofres do
INSS, no prazo legal, as contribuições previdenciárias descontadas dos
salários de seus empregados nos meses de 12/93 a 12/94 e 11/91 a 12/95,
encontrando-se tais débitos consolidados nas NFLDs nos 32.335.731-8 e
234
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
32.335.732-6, com valores de R$ 2.771,08 (dois mil, setecentos e setenta
e um reais e oito centavos) e R$ 79.486,53 (setenta e nove mil, quatrocentos e oitenta e seis reais e cinqüenta e três centavos), respectivamente,
conforme documento da fl. 83 do Apenso.
A denúncia foi recebida em 18.06.99 (fl. 10). Com relação à NFLD
nº 32.335.731-8, foi declarada extinta a punibilidade pelo pagamento
do débito.
O réu foi citado (fl. 22, verso) e interrogado (fls. 28 e 29). Durante
a instrução, foram ouvidas as testemunhas arroladas pela acusação (fls.
56 e 57) e pela defesa. (fls.70, 71, 76 e 83 a 90)
Sentenciando, o juiz a quo julgou procedente a ação penal para
condenar o réu à pena de 02 (dois) anos e 07 (sete) meses de reclusão e
ao pagamento 50 (cinqüenta) dias-multa, no valor unitário de 02 (dois)
salários mínimos vigentes ao tempo dos fatos. Em face do montante da
pena privativa de liberdade, houve substituição desta por duas penas restritivas de direitos, consistentes em prestação de serviços à comunidade
e prestação pecuniária, esta fixada em ½ (meio) salário mínimo mensal,
destinada à mesma instituição em que prestar o serviço. A sentença (fls.
625 a 645) foi publicada em 13.11.02 conforme certidão da fl. 645, verso.
Apela o réu condenado (fls. 647 a 660). Nas razões de recurso, aduz,
preliminarmente, a nulidade do processo, ante o fato de ter sido interrogado, pela polícia e pelo juízo, sem observância às suas garantias
constitucionais. No mérito, alega, em síntese, a negativa de autoria e a
existência de dificuldades financeiras a exculpar a conduta delitiva.
Com as contra-razões, vieram os autos a esta Corte para julgamento.
O Ministério Público Federal, em seu parecer (fls. 685 a 690), opinou
pelo desprovimento do apelo e manutenção da sentença.
Em face da informação contida nas fls. 145 a 149 do Apenso, foi
determinado ao INSS que informasse sobre a situação atual do débito
consolidado na NFLD 32.335.732-6. (fl. 695)
Atendendo à solicitação deste juízo, a Autarquia Previdenciária informou que o débito em questão foi incluído no Programa de Recuperação
Fiscal das Empresas – REFIS, em 17.03.00, estando em situação regular
até 22.01.04 (data da consulta), conforme documento da fl. 699.
É o relatório.
Dispensada a revisão.
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
235
VOTO
O Exmo. Sr. Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz: Os arts. 15 da Lei
nº 9.964/00 e 9o da Lei nº 10.684/03 assim dispõem:
“Art. 15. É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos
nos arts. 1° e 2° da Lei n° 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e no art. 95 da Lei n°
8.212, de 24 de julho de 1991, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada
com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no Refis, desde e inclusão no referido
Programa tenha ocorrido antes do recebimento da denúncia criminal”.
“Art. 9o. É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos
nos arts. 1o e 2o da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168 A e 337
A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver
incluída no regime de parcelamento” (grifos nossos).
O delito anteriormente capitulado pelo art. 95, d, da Lei nº 8.212/91,
corresponde, hoje, ao art. 168-A do CP, de forma que as leis referidas
tratam do mesmo delito. A questão a ser examinada diz com a suspensão
do processo, em virtude de o débito objeto da ação penal ter sido incluído
em programa de parcelamento.
Confrontando os dispositivos supratranscritos, que tratam, respectivamente, dos denominados REFIS e PAES, depreende-se que o art. 15 da
Lei nº 9.964/00 (REFIS) exige, para a suspensão da pretensão punitiva,
que o parcelamento seja efetuado antes do recebimento da denúncia
criminal. Tal exigência não foi reproduzida na Lei nº 10.684/03, em seu
art. 9o, que, tão-somente, estabelece a suspensão da pretensão punitiva
durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente
dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento. Assim,
poder-se-ia afirmar que, tratando-se de normas que dizem respeito ao
mesmo tipo penal (168-A do CP), a regra do art. 9o da Lei nº 10.684/03
configurou novatio legis in mellius.
Contudo, discute-se acerca da aplicabilidade indiscriminada da referida norma àqueles parcelamentos efetuados ainda na vigência da Lei
nº 9.964/00, porquanto os requisitos para adesão ao REFIS e ao PAES
não são idênticos. Desta forma, defende-se que não se poderia estender a
regra benéfica da lei nova ao parcelamento efetuado sob a égide daquela
em que se previu a suspensão do processo tão-somente se o parcelamento
fosse efetuado até a denúncia. Para usufruir da regra mais favorável,
236
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
deveria o acusado “migrar” do REFIS para o PAES.
Em que pesem as respeitáveis opiniões em sentido contrário, penso
não haver óbice à aplicação da lei nova mais benéfica aos parcelamentos
efetuados sob as regras da Lei nº 9.964/00, sem que seja necessária a
adesão ao novo programa. É cediço que o objetivo primordial da instituição de benefícios como o presente – suspensão da pretensão punitiva
em virtude de parcelamento do débito – é o ressarcimento do dano ao
erário. Provavelmente em razão disso é que a lei mais nova ampliou o
benefício, deixando de exigir que o parcelamento fosse efetuado antes da
denúncia. Desta forma, considerando que tanto a Lei nº 9.964/00 quanto
a Lei nº 10.684/03 visam, neste contexto, ao mesmo fim, a solução mais
justa, no caso, é a aplicação desta última aos parcelamentos efetuados
nos termos da primeira.
É certo que o art. 2º da Lei n° 10.684/03 dispõe que os débitos incluídos no REFIS, de que trata a Lei nº 9.964/00, ou no parcelamento
a ele alternativo, poderão, a critério da pessoa jurídica, ser parcelados
nas condições do art. 1º, nos termos a serem estabelecidos pelo Comitê
Gestor do mencionado Programa.
A mim me parece que esta regra não disciplina matéria penal. Possibilita, apenas, o reparcelamento nos termos da nova lei, na forma como
estabelecer o Comitê Gestor do Programa PAES, dispondo, desta forma,
no que tange ao aspecto financeiro/tributário e não penal.
Estando as condições de contratação do parcelamento previsto na Lei
nº 10.684/03 afetas à competência do Comitê Gestor do Programa, e
sendo estas variáveis, inclusive quanto à duração e critério de cálculo do
valor da prestação, tomando em consideração a situação particularizada
de cada contribuinte, não há falar-se seja este mais ou menos favorável
ou benéfico ao contribuinte, embora se saiba que, na prática, as condições do REFIS têm se revelado, quanto a valor das parcelas e prazo, na
maioria dos casos, mais favoráveis aos contribuintes devedores. Mas,
outro lado, se tem notícia de parcelamentos com base na nova lei (PAES)
em que o prazo é de 15 anos e o valor das prestações mínimo. Assim,
penso que a diversidade de critérios não é óbice ao reconhecimento do
favor legal previsto no art. 9°.
O parcelamento do REFIS, quaisquer que sejam as condições, por vontade legislativa, seria hábil para suspender a pretensão punitiva se obtido
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
237
antes do recebimento da denúncia. Assim que não é lícito desconsiderá-lo
agora para o mesmo fim sob o pretexto de não se servir ao pagamento do
débito ou de ser o prazo muito elástico ou baixas as prestações.
Ademais, para o Fisco – e isto foi da vontade do legislador – o REFIS
implicou moratória e impediu, obviamente, a cobrança do débito. Não
seremos nós, dessarte, os interessados em desconsiderar os efeitos do
referido parcelamento.
A interpretação que conduz à objeção levando em conta as condições
particularizadas de cada um dos parcelamentos, por prejudicial e restritiva
aos acusados (in malan parten, portanto), porque tal óbice sequer foi
cogitado pela lei, coloca a justiça penal de braços com situação que se
pretende evitar, vale dizer, aquela que atribui aos juízes criminais, nos
delitos da espécie, a pecha de meros cobradores de tributo.
De toda sorte, releva notar que o valor do débito consolidado, quando da
adesão da empresa ao REFIS, era de R$ 1.114.934,67 (um milhão, cento
e quatorze mil, novecentos e trinta e nove reais e sessenta e sete centavos),
restando o saldo atual em R$ 579.949,72 (quinhentos e setenta e nove mil,
novecentos e quarenta e nove reais e setenta e dois centavos), conforme
documento da fl. 699. Depreende-se disso que a Administração auferiu
montante considerável com o parcelamento realizado, eis que mais da metade
do débito já foi adimplido, bem como demonstra a intenção do acusado em
cumprir o acordado.
Temos que considerar, portanto, que a regra do art. 9º é de natureza
mais benéfica ao contribuinte devedor (novatio legis in mellius), devendo
ser aplicada de forma retroativa e a possibilitar a suspensão da pretensão
punitiva também quanto aos acusados que, tendo as empresas ingressado
no REFIS depois de recebida a denúncia, não puderam beneficiar-se da
suspensão.
A propósito do tema, em caso análogo, assim decidiu o STF:
“A Turma, acolhendo proposta formulada pelo Min. Cezar Peluso – no sentido de
que a quitação do débito antes da sentença que condenara o paciente pela prática de
crime de sonegação fiscal consubstancia questão preliminar que prejudica a análise
dos fundamentos do pedido – concedeu habeas corpus de ofício para declarar extinta
a punibilidade, nos termos do disposto no art. 9º, § 2º, da Lei 10.684/2003, já que tal
Lei possui retroatividade, por ser mais benéfica que a existente ao tempo da impetração (Lei 9.249/95) – a qual previa a extinção de punibilidade quando o pagamento
fosse realizado até o recebimento da denúncia. (Lei 10.684/2003, art. 9º: ‘É suspensa
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R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1º e 2º da Lei
8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168A e 337A do Decreto-Lei nº 2.848,
de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica
relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento... § 2º Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a
pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos
oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios.’). HC 81929/RJ, rel.
orig. Min. Sepúlveda Pertence, rel. p/ acórdão Min. Cezar Peluso, 16.12.2003” (grifei).
(in Informativo do STF n° 334 – 15 a 19 de dezembro de 2003)
O caso em tela bem ilustra a necessidade de aplicação retroativa do
art. 9º da Lei 10.684/03. A denúncia foi recebida em 18.06.99 (fl. 10),
e o débito foi incluído no REFIS em 17.03.00, estando em situação
regular até 22.01.04 (data da consulta - fl. 699). Cumpre esclarecer que
seria impossível o réu requerer a inclusão no programa anteriormente à
denúncia, eis que a lei que o instituiu (9.964/00) é posterior à peça acusatória. Assim, embora a adesão ao REFIS tenha ocorrido em momento
subseqüente à denúncia, é de ser aplicada a suspensão da pretensão
punitiva à presente ação penal, por força do contido na Lei 10.684/03.
Ademais, sendo a situação dos contribuintes semelhantes – para não
dizer idêntica –, o tratamento diverso constituiria violação ao princípio
isonômico.
Por outro lado, é também meu entendimento que se aplica o favor
legal da suspensão do processo (art. 9º) aos casos de contribuições
descontadas e não recolhidas à previdência social, mesmo diante do
veto que sofreu a Lei nº 10.684/03 no que afeta ao parcelamento deste
débito. Se vamos fazer uma leitura do art. 9º da referida lei abstraída
do aspecto tributário, tomando seu enunciado como mera disposição de
natureza penal aplicável a todos os casos de parcelamento, ainda que por
esta lei não disciplinados, como me parece ser a vontade do legislador
(evitar a condenação de quem se dispõe, de qualquer forma, a efetuar o
pagamento e, conseqüentemente, reparar o dano), resta evidente a irrelevância do citado veto, que, aliás, teve como mote as disposições da Lei
nº 10.666/03, que vedavam o parcelamento do débito em questão, mas
sem dispor, em momento algum, sobre matéria penal, vale dizer, sobre
suspensão da pretensão punitiva do Estado.
Por derradeiro, consigne-se apresentar-se fora de dúvida que o caso
é de suspensão do processo e da pretensão punitiva e não de extinção.
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
239
Não fosse a expressa disposição legal a respeito, que não permite outra
interpretação, temos a considerar a possibilidade de descumprimento pelo
contribuinte do parcelamento e o impedimento da aplicação da suspensão da prescrição, imposições do legislador ao instituir o favor legal, de
forma a tornar insuscetível, ao depois, a persecução penal.
A extinção do processo, ainda que se reconheça permanecer, ex legis,
suspenso o decurso do prazo de prescrição, imporia, em caso de descumprimento do parcelamento, o reinício da ação penal, com a realização
de nova instrução e proferimento de nova sentença, o que se revela, na
prática, anos depois, inviável.
Consulte-se, a propósito, o precedente do STF:
“HABEAS CORPUS. PENAL. PROCESSO PENAL. FISCAL. REFIS. SUSPENSÃO DA AÇÃO PENAL. A inclusão no programa REFIS, anterior ao recebimento da
denúncia (Lei nº 9.964/2000, art. 15), suspende a ação penal. O Estado tem suspensa a
pretensão punitiva, durante o período em que estiverem sendo cumpridas as condições
do parcelamento do débito. Nesse tempo, não corre o prazo prescricional. Habeas deferido”. (STF – HC 81444/RS. 2ª Turma. Rel. Min. Nelson Jobim. DJU 31.05.02, pág. 47)
Ante o exposto, apresento esta questão de ordem, propondo:
a) a retificação do julgamento da sessão anterior (17.03.04) que
afetara a matéria à 4ª Seção;
b) o reconhecimento da suspensão da pretensão punitiva do Estado,
com a conseqüente suspensão da ação penal, em razão da adesão da
empresa ao REFIS, oficiando-se ao INSS para que informe sobre eventual
exclusão daquela do referido programa.
É o voto.
QUESTÃO DE ORDEM NA APELAÇÃO CRIMINAL
Nº 2003.04.01.050865-0/RS
Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Tadaaqui Hirose
240
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
Apelante: Ministério Público Federal
Apelado: J. F. M.
Advogado: Dr. Ede Silva Moreira
EMENTA
Processual Penal. Prazo recursal. Ministério público. Termo inicial.
Intimação pessoal. Vista dos autos. Intempestividade do apelo.
1. O termo a quo do prazo recursal, para o Parquet, se dá a contar
da remessa do processo ao órgão acusador, com abertura de vista. 2.
A intimação pessoal não exige o lançamento de ciência nos autos por
parte do agente ministerial, uma vez que tal procedimento permitiria ao
Ministério Público manipular os prazos processuais, bem como fixar o
termo inicial para a interposição de recurso, o que violaria os princípios
do processo penal e da isonomia. 3. Precedentes desta Corte e dos Tribunais Superiores. 4. Recurso não conhecido, por intempestivo.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide
a Sétima Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por maioria,
não conhecer da apelação criminal, porquanto intempestiva, nos termos
do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante
do presente julgado.
Porto Alegre, 6 de abril de 2004.
Des. Federal Tadaaqui Hirose, Relator.
RELATÓRIO
O Exmo. Sr. Des. Federal Tadaaqui Hirose: O Ministério Público
Federal denunciou J. F. M. como incurso nas penas previstas no art. 168
do Código Penal, pela prática da seguinte conduta narrada na exordial
acusatória (fls. 02/03):
“(...) Em 09 de dezembro de 1994, na cidade de Sobradinho, RS, o denunciado, na
condição de representante legal da COOPERATIVA TRITÍCOLA SUPERENSE LTDA.,
firmou com a Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) ‘Contrato de Depósito
para os Estoques Vinculados às Operações de Aquisição do Governo Federal – AGF’,
havendo recebido, como depositário, 426.600 kg de milho em grãos, safra 93/94 (fl.
08), comprometendo-se à sua guarda e conservação, bem como à pronta e fiel entrega,
quando solicitada pela depositante. No entanto, por ocasião de vistoria realizada em 03
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
241
de fevereiro de 1997 pela Fiscalização da CONAB nos armazéns daquela Cooperativa,
foi constatada a falta do estoque depositado, na quantia anteriormente referida, do qual
se apropriou o acusado (...).”
A denúncia foi recebida em 20.03.2000. (fl. 89)
Regularmente citado, o réu foi interrogado. (fls. 103/104)
Procedeu-se à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação
(fls. 126/127) e pela defesa. (fls. 144/146 e 153)
Após regular instrução, sobreveio sentença, publicada em 03.10.2002
(fls. 182/202), onde o MM. Juiz Federal da 2ª Vara Federal de Santa
Maria/RS julgou improcedente a pretensão punitiva estatal, absolvendo
o réu com fulcro no art. 386, VI, do CPP.
O Ministério Público Federal interpôs recurso de apelação (fl. 206).
Nas suas razões, requereu a condenação do réu, argumentando que as
provas produzidas nos autos eram suficientes para comprovar a autoria
e a materialidade do ilícito de forma incontestável.
Contra-razões às fls. 217/229.
A Procuradoria Regional da República opinou pelo provimento do
apelo. (fls. 250/256)
Na sessão de 09.03.2004, o processo foi apresentado em mesa. A 7ª
Turma, acolhendo a questão de ordem, converteu o julgamento em diligência, com abertura de vista ao Ministério Público para se manifestar
sobre a preliminar de intempestividade argüida nas contra-razões do
recurso. (fl. 260)
Juntada a manifestação do Ministério Público Federal às fls. 263/266.
É o relatório.
VOTO
O Exmo. Sr. Des. Federal Tadaaqui Hirose: Cuida-se de apelação
interposta pelo Ministério Público contra a sentença que julgou improcedente a pretensão punitiva estatal, absolvendo o réu com fulcro no art.
386, VI, do CPP.
Compulsando os autos, pode-se constatar que o processo foi remetido
ao Parquet Federal, com abertura de vista na data de 03.10.2002 (fl. 203),
tendo o mesmo sido recebido e remetido ao Gabinete do Procurador da
República em 04.10.2002. (fl. 203v.)
Todavia, apenas em 14.10.2002 (fl. 203v.), o agente do órgão acusa242
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
dor lançou o seu “ciente” nos autos, apresentando na mesma data o seu
recurso e respectivas razões. (fls. 206/215)
Em contra-razões ao recurso, o nobre causídico do acusado alegou a
intempestividade do apelo, na medida em que, tendo sido o Ministério
Público Federal intimado da sentença em 04.10.2002, uma sexta-feira,
o prazo recursal teria iniciado na segunda-feira, 07.10.2002, findando
na sexta-feira, dia 11.10.2002. (fls. 217/220)
Assim, levando-se em conta o prazo de 05 (cinco) dias estabelecido
pelo art. 593, caput, do CPP, a verificação da tempestividade do recurso
depende da definição do termo a quo do prazo recursal, se da abertura
de vista ao órgão acusador ou da data do “ciente” por parte do agente
ministerial.
Nesse aspecto, instado a se manifestar, o órgão acusador, na sua
manifestação de fls. 263/266, ratificou o parecer de fls. 250/256, sustentando que o termo inicial do prazo recursal, para o MP, flui a partir de
sua ciência nos autos.
Destaque-se que o Ministério Público é instituição permanente,
essencial à função jurisdicional (art. 127, caput, da CF), tendo a Lei
Complementar 75/93, no seu artigo 18, inciso II, alínea h, bem como o
§ 4º do art. 370 da lei processual penal lhes reservado benefícios inerentes ao exercício de suas atribuições, uma vez que determinam a sua
intimação pessoal.
Contudo, embora esses dispositivos legais garantam a intimação pessoal do Parquet, em nenhum momento exigem o lançamento do “ciente”
nos autos, mas apenas a entrega dos autos com vista para a contagem
do prazo recursal.
O entendimento de que, além da certidão abrindo vista, seria necessária a aposição do “ciente” nos autos, permitiria ao órgão acusador, a seu
talante, manipular os prazos estipulados no Diploma Processual, ficando
ao arbítrio do Ministério Público fixar o termo a quo do prazo recursal, o
que convenhamos, feriria de morte os princípios norteadores do processo
penal, resultando num odioso tratamento desigual entre as partes.
Neste sentido, arestos desta Corte, do STJ e do STF:
“PROCESSUAL PENAL. TERMO INICIAL PARA INTERPOSIÇÃO DO RECURSO. MINISTÉRIO PÚBLICO. INTIMAÇÃO PESSOAL. VISTA DOS AUTOS.
INTEMPESTIVIDADE.
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
243
1. O início do prazo recursal, para o Ministério Público, começa a fluir da abertura
de vista certificada pelo Cartório.
2. A LC nº 75/93 (art. 18, II, h) e o Código de Processo Penal (art. 370, § 4º) garantem apenas que a intimação do Parquet será sempre pessoal, não havendo nenhuma
exigência quanto ao lançamento do ‘ciente’ nos autos.
3. O entendimento de que, além da certidão abrindo vista, é preciso a ciência formal por parte do Procurador, permitiria ao órgão acusador o mais absoluto controle
dos prazos processuais, pois bastaria receber os autos em uma determinada data e,
posteriormente, quando lhe aprouver, colocar o aludido ‘ciente’ no processo para, a
partir daí, ter início o prazo recursal, o que representa evidente violação aos princípios
norteadores do processo penal e da igualdade entre as partes.
4. Precedentes. (TRF da 4ª Região - RSE 2002.04.01.033177-0, 8ª Turma, rel. Des.
Federal Élcio Pinheiro de Castro, DJU 08.01.2003)
PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. SENTENÇA DE IMPRONÚNCIA.
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO.
INTEMPESTIVIDADE. LEI 8.625/93, ART. 41, IV.
1. Não obstante possuir o Ministério Público o privilégio da intimação pessoal, o seu
prazo começa a fluir independentemente do lançamento do ‘ciente’ nos autos pelo seu
membro atuante. Caso contrário, estar-se-ia permitindo que o órgão acusador tivesse
o total controle sobre os seus prazos processuais, em clara afronta aos princípios do
devido processo legal e da igualdade das partes, norteadores do nosso Processo Penal.
2. Pedido de Habeas Corpus deferido para declarar a intempestividade do Recurso
em Sentido Estrito interposto pelo Ministério Público Estadual. (STJ, HC 14.650/MG,
5ª Turma, rel. Min. Edson Vidigal, DJU 05.03.2001)
PROCESSO PENAL. RECURSO ESPECIAL. TEMPESTIVIDADE. MINISTÉRIO PÚBLICO. INTIMAÇÃO PESSOAL. VISTA DOS AUTOS.
1. O prazo de recurso para o Ministério Público começa a fluir da intimação pessoal,
formalidade que se opera, a teor da Lei 8.625, de 12.02.93 - art. 41, IV - através da
entrega dos autos com vista. 2. Remetidos os autos à Procuradoria de Justiça em 15 de
outubro de 1998 (data do registro), apresenta-se como intempestivo recurso especial
interposto após 15 de dezembro de 1998, data em que o Representante do MP fez lançar
o ‘ciente’. 3. Recurso especial não conhecido. (STJ, REsp 216.721/SP, 6ª Turma, rel.
Min. Fernando Gonçalves, DJU 15.05.2000).
INTIMAÇÃO - MINISTÉRIO PÚBLICO - QUOTA NOS AUTOS. A intimação
do Ministério Público, titular da ação penal, dispensa quota nos autos por meio da qual
este se dá por ciente da decisão proferida. Deve-se observar o tratamento igualitário
das partes, afastando-se a possibilidade de uma delas vir, mediante ato próprio e na
oportunidade eleita, a fixar o termo inicial de prazo para desincumbir-se de ônus processual - interposição de recurso. (STF, HC 79782/RJ, 2ª Turma, rel. Min. Maurício
Corrêa, DJU 14.12.2001).”
Recentemente, o Plenário do Colendo Supremo Tribunal Federal
244
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
deferiu a ordem no Habeas Corpus nº 83255/SP, publicado no DJ de
12.03.2004, para consignar a intempestividade do recurso especial interposto pelo Parquet. Veja-se a ementa:
“DIREITO INSTRUMENTAL - ORGANICIDADE. As balizas normativas instrumentais implicam segurança jurídica, liberdade em sentido maior. Previstas em textos
imperativos, hão de ser respeitadas pelas partes, escapando ao critério da disposição.
INTIMAÇÃO PESSOAL - CONFIGURAÇÃO. Contrapõe-se à intimação pessoal a
intimação ficta, via publicação do ato no jornal oficial, não sendo o mandado judicial
a única forma de implementá-la.
PROCESSO - TRATAMENTO IGUALITÁRIO DAS PARTES. O tratamento igualitário das partes é a medula do devido processo legal, descabendo, na via interpretativa,
afastá-lo, elastecendo prerrogativa constitucionalmente aceitável.
RECURSO - PRAZO - NATUREZA. Os prazos recursais são peremptórios.
RECURSO - PRAZO - TERMO INICIAL - MINISTÉRIO PÚBLICO. A entrega
de processo em setor administrativo do Ministério Público, formalizada a carga pelo
servidor, configura intimação direta, pessoal, cabendo tomar a data em que ocorrida
como a da ciência da decisão judicial. Imprópria é a prática da colocação do processo
em prateleira e a retirada à livre discrição do membro do Ministério Público, oportunidade na qual, de forma juridicamente irrelevante, apõe o ‘ciente’, com a finalidade
de, somente então, considerar-se intimado e em curso o prazo recursal. Nova leitura
do arcabouço normativo, revisando-se a jurisprudência predominante e observando-se
princípios consagradores da paridade de armas.”
Peço vênia para destacar trechos do voto proferido pelo eminente
relator, Min. Marco Aurélio, que muito bem analisou a questão:
“Cumpre analisar a problemática da tempestividade ou não do recurso especial. Os
prazos são peremptórios. Assim, não ficam à disposição da parte quanto aos termos
inicial e final. O Ministério Público, na ação penal, é parte autora e não fiscal da lei. No
dia-a-dia forense, nota-se o costume de proceder-se à remessa dos processos criminais
ao Ministério Público, onde são recebidos, assinando o servidor o controle de carga. Essa
prática tem como objetivo facilitar a atuação do órgão, no que dispensável a retirada dos
processos no cartório. Julgado o Habeas, o órgão do Ministério Público em atuação na
Câmara julgadora tomou ciência do teor respectivo, subscrevendo o acórdão. Mais do
que isso, ocorreu o citado encaminhamento do processo e o recebimento já aludidos.
Descabe o tratamento desigual, assentando-se que os processos, após a entrada no
setor próprio do Ministério Público, podem permanecer na prateleira aguardando que
o titular da ação penal delibere, quando melhor lhe aprouver, sobre a fixação do termo
inicial do prazo para desincumbir-se de certo ônus processual. Significa afirmar que
só corre o prazo recursal quando, de acordo com a conveniência própria, o integrante
do Ministério Público lance no processo a ciência. Esse entendimento não se coaduna
com a ordem natural das coisas, com a natureza do processo recursal, com a paridade
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
245
de armas que deve ser observada no trato da acusação e da defesa (...) A defesa passa
no cartório e fica ciente de que o processo está com vista ao Ministério Público, sem
que isso se faça limitado no tempo. É a vista sem sujeição a prazo; é a vista a perder
de vista. Não se pode levar a tanto a prerrogativa da intimação pessoal. Esta há de ser
considerada como a distinguir-se da ficta, daquela decorrente da simples publicação de
um ato no jornal oficial. Atende plenamente à citada prerrogativa a chegada do processo,
devidamente formalizada, às dependências do Ministério Público, imaginando-se que o
servidor público que passa o competente recibo esteja devidamente autorizado e que, a
seguir, seja encaminhado o processo a quem de direito. Eis o enquadramento que mais
corresponde aos anseios da justiça, à igualização que deve ser a tônica no tratamento
das partes, sem subterfúgios, sem subjetividades acomodadoras, sem ‘jeitinhos’ que
acabem por gerar enfoque contrário à sempre esperada isonomia.”
Assim, pelos fundamentos acima expostos, não conheço do recurso
do Ministério Público Federal, eis que intempestivos.
É o voto.
MANDADO DE SEGURANÇA Nº 2003.04.01.050888-1/PR
Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro
Impetrante: M. P. M.
Advogados: Drs. Wilson Roberto Raitani e outro
Impetrado: Juízo Federal da 2ª Vara Federal Criminal de Curitiba/PR
Interessado: Ministério Público Federal
EMENTA
Processo Penal. Mandado de segurança. Seqüestro e hipoteca legal.
Arts. 134 e 136 do CPP. Ministério Público. Legitimidade. Materialidade
e autoria. Bem de família. Lei 8.009/90. Meação.
1. Nos termos do art. 142 do Código de Processo Penal, o Ministério
Público tem legitimidade para requerer medida assecuratória de seqüestro
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R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
e posterior hipoteca legal (arts. 134 e 136 do CPP) em havendo interesse
da Fazenda Pública. 2. A Lei 8.009/90 excepciona da impenhorabilidade
o bem de família, na hipótese de execução de sentença penal (art. 3º,
inciso VI) que é o caso dos autos, já que a medida acautelatória se destina
justamente a assegurar o pagamento dos prejuízos, multa e custas processuais numa eventual condenação. 3. Para o deferimento da inscrição
da hipoteca legal, exige-se apenas a certeza da infração e os indícios
suficientes da autoria. Portanto, não há necessidade de se provar que o
réu esteja dilapidando o patrimônio. 4. A medida impugnada não transfere a propriedade dos imóveis, que permanecem na esfera patrimonial
do impetrante e sua esposa. Logo, descabe alegar desrespeito à meação, hipótese restritiva a ser levantada somente no caso de condenação
transitada em julgado, quando os bens poderão ser alienados em hasta
pública, se o réu não possuir outros meios de cumprir suas obrigações.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos entre as partes acima indicadas, decide a Oitava Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região,
por unanimidade, denegar a segurança, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Porto Alegre, 23 de junho de 2004.
Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro, Relator.
RELATÓRIO
O Exmo. Sr. Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro: - Cuida-se de
mandado de segurança, com pretensão liminar, impetrado por M. P. M.
contra ato do MM. Juiz da 2ª Vara Federal Criminal de Curitiba/PR que,
nos autos da Ação Cautelar nº 2003.70.00.041447-8, decretou, a requerimento do Ministério Público Federal, o arresto prévio de vários imóveis
de propriedade do ora Impetrante para fins de posterior especialização
da hipoteca legal.
Segundo se depreende, a cautelar foi distribuída por dependência ao
processo criminal nº 2003.70.00.039531-9, onde M. P. M.e outros acusados foram denunciados pela prática dos delitos tipificados nos artigos
4º e 22 da Lei nº 7.492/86, além dos previstos nos artigos 288 e 299,
ambos do Código Penal, em face de sua suposta participação na remessa
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
247
ilegal de valores para o exterior através das denominadas contas “CC-5”.
Objetivando “assegurar o pagamento das multas e das custas processuais, bem como o ressarcimento dos danos”, o agente ministerial pleiteou
a referida medida, sendo acolhida pelo ínclito Magistrado a quo, com
apoio no artigo 136 do CPP.
Inconformado, M. P. M. ajuizou o presente mandamus, alegando,
em suma, ausência dos requisitos legais para o deferimento do pedido
formulado pelo Parquet Federal. Nesse escopo, aduz que, “se a lei não
confere ao Ministério Público legitimidade para agir na execução da pena
de multa, não lhe outorga também poderes para acionar medida cautelar
que tente resguardar apenas a satisfação da sanção pecuniária”. Sustenta,
ainda, ausência de indícios suficientes de autoria, mencionando que
“nunca abriu ou mandou abrir, encerrou ou mandou encerrar, intermediou, esteve
submisso à ordem superior, aliciou ou valeu-se de qualquer artifício ou meio fraudulento, agiu sozinho ou com a participação de outros, visando abrir contas bancárias dos
chamados ‘laranjas’ ou não nas agências do Banestado de Foz e região, muito menos
teve qualquer relação, até porque não estava na área de abrangência das atribuições da
superintendência, com a carteira de câmbio em qualquer de seus segmentos, de modo
a ter qualquer ingerência nas tais contas CC5 ou com as agências do Banco del Paraná
ou do Banestado de Nova Iorque.”
Por fim, menciona que o ato constritivo alcançou seus imóveis sem
respeitar o bem de família e a meação da cônjuge.
Nesse contexto, requereu a concessão liminar da ordem para que se
suspenda desde logo o r. despacho atacado e, no mérito, a procedência
do pedido a fim de
“declarar extinto o processo cautelar em referência por faltar-lhe os requisitos essenciais da ação (...) ou, se outro for o entendimento, seja excluído dos bens seqüestrados
o imóvel constituído pelo apartamento nº 702, TIPO ‘I’, situado no 7º pavimento do
edifício Torre Nobre (...) por se tratar de bem de família e, por fim, de todos os demais
bens seqüestrados para que o gravame recaia apenas sobre a metade deles que são da
propriedade exclusiva do impetrante (...).”
A liminar foi indeferida (fls. 114/116). A digna autoridade impetrada
prestou informações (fl. 121), e a douta Procuradoria Regional da República, oficiando no feito (fls. 125/129), manifestou-se pela denegação da
segurança.
É o relatório.
248
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
À revisão.
VOTO
O Exmo. Sr. Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro: - Ab initio,
impende examinar a adequação da via processual eleita para veicular
irresignação contra ato da autoridade impondo, liminarmente, o arresto
de bens pertencentes ao Impetrante.
Segundo Fernando da Costa Tourinho Filho (in Código de Processo
Penal Comentado, v. 01, 4ª edição, Editora Saraiva, São Paulo, 1999,
p. 306)
“se o Juiz julga o pedido de restituição de coisa apreendida (art. 120, § 1º, do CPP) se
ordena, ou não, o seqüestro (art. 127 do CPP) se autoriza, ou não, o levantamento do
seqüestro (art. 131 do CPP) se acolhe, ou não, o pedido de especialização e inscrição
de hipoteca legal ou de arresto (arts. 134, 135, 136 e 137, todos do CPP) (...) em todos
esses casos, o remédio é a apelação supletiva de que trata o art. 593, II”.
Contudo, tal orientação se afigura correta somente na hipótese de
ser definitiva a decisão objurgada. Como, na espécie, o provimento tem
caráter interlocutório (liminar), evidencia-se aparentemente irrecorrível,
pois ausente o traço de definitividade a que refere o art. 593, inciso II,
do Diploma Processual, razão por que se revela cabível a utilização do
mandamus.
No mérito, segundo se deduz da leitura dos artigos 134 e 140, ambos
do CPP, a hipoteca legal visa garantir o ressarcimento do dano e o pagamento das despesas processuais e penas pecuniárias. Já o dito “seqüestro
prévio” de imóveis (em que pese a imprecisão da terminologia adotada
pelo legislador, pois a providência tem nítidas características de “arresto”)
encontra-se regrado pelo artigo 136 do mesmo diploma, verbis:
“O seqüestro de imóvel poderá ser decretado de início, revogando-se, porém,
se no prazo de 15 (quinze) dias não for promovido o processo de inscrição de
hipoteca legal.”
A propósito, vale destacar outro trecho da aludida obra de Fernando
da Costa Tourinho Filho:
“(...) Muitas vezes o processo de inscrição e especialização de hipoteca legal se
alonga no tempo, e, com o intuito de oferecer maiores garantias à vítima do crime, ou
ao Ministério Público, se for o caso, o artigo 142 permite às pessoas a tanto legitimadas
a formulação de pedidos no sentido de serem seqüestrados (melhor seria empregasse
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
249
o legislador o termo arrestados) os bens sobre os quais se pretende recaia a hipoteca,
até que essa medida constritiva se concretize (...).”
Como bem salienta o ilustre doutrinador, o artigo 142 do aludido
Codex determina que “caberá ao Ministério Público promover as medidas estabelecidas nos artigos 134 e 137, se houver interesse da Fazenda
Pública, ou se o ofendido for pobre e o requerer”.
No caso dos autos, o Parquet solicitou a medida cautelar em comento,
tendo em vista dispor o Código Penal que “transitada em julgado a sentença condenatória a multa será considerada dívida de valor, aplicando-se-lhe as normas relativas à dívida ativa da Fazenda Pública” (art. 51).
Destarte, a cobrança da pena pecuniária, no que couber, é regida pela
Lei nº 6.830/80, restando claro o interesse fazendário na execução da
quantia fixada no decreto condenatório.
Ora, o Estado não pode correr risco em relação aos créditos assim
constituídos. Em face da delonga do processo judicial regular, o seqüestro
e posterior hipoteca de imóveis afiguram-se totalmente corretos, inibindo
a possibilidade de frustração do interesse público. A propósito, veja-se
Acórdão desta Corte assim ementado:
“PROCESSUAL PENAL. SEQÜESTRO E HIPOTECA LEGAL. ARTS. 134 E 136
DO CPP. MEDIDA CAUTELAR. LEGALIDADE. MANUTENÇÃO DA MEDIDA.
1. Nos termos do art. 142 do Código de Processo Penal, o Ministério Público tem legitimidade para requerer medida assecuratória de seqüestro e posterior hipoteca legal
(arts. 134 e 136 do CPP) em havendo interesse da Fazenda Pública. 2. O seqüestro,
preparatório da hipoteca legal e esta, são medidas cautelares previstas no ordenamento processual penal pátrio, que têm por escopo assegurar, tanto a reparação de
dano ex delicto, quanto a efetividade da sanção pecuniária e o pagamento de custas
processuais, que possam vir a ser impostos ao indiciado. 3. O seqüestro previsto no
art. 136 pode recair sobre quaisquer bens do(s) réu(s). 4. Havendo fortes evidências
quanto ao caráter fraudulento de negócios jurídicos realizados com o imóvel objeto da
constrição, correta a declaração da ineficácia dos referidos negócios, a fim de propiciar
a especialização da hipoteca legal. 5. Apelação improvida.” (TRF/4ª Região, ACR nº
2001.04.01.057916-7, Sétima Turma, Rel. Des. José Germano da Silva, publ. no DJU
de 16.01.2002, p. 1349)
Portanto, presente o interesse da Fazenda Pública Federal, lídima a
atuação ministerial, em consonância com o art. 142 do CPP e, também,
com o art. 6º, XIV, b e c, da Lei Complementar nº 75/93, dispondo sobre
as atribuições do Ministério Público da União.
250
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
Argumenta ainda o acusado que a medida assecuratória o estaria “impedido de dar continuidade ao seu trabalho de natureza rural”, pois não
poderia “obter financiamentos concedidos ao produtor agropecuário”.
Porém, não apresentou qualquer prova cabal de tais circunstâncias. Por
outro lado, percuciente análise dos autos revela que o magistrado a quo
não determinou o seqüestro prévio de todos os imóveis do denunciado,
porquanto, segundo sua declaração de Imposto de Renda ano-base 2003,
esse possui outros lotes urbanos e rurais não abrangidos pelo ato impugnado, assim como 04 (quatro) automóveis. (fl. 76, verso)
Além disso, nada impede que sobre os bens arrestados recaiam hipotecas de natureza cível, pois é cediço a possibilidade de oferecer o mesmo
bem como garantia de diversas dívidas, em graus subseqüentes, sempre
respeitada a ordem de preferência entre os credores.
Aduz também o impetrante inexistirem provas da materialidade e
indicativos suficientes de autoria. Refere não ter sido informado sobre
seu indiciamento, quando da instauração do inquérito policial, bem como
procura demonstrar sua boa reputação e antecedentes.
Contudo, a ação de seqüestro não é o local próprio para discutir tais
questões, inclusive aquelas atinentes ao mérito da pretensão punitiva,
que devem ser amplamente debatidas nos autos principais. O instituto
previsto no artigo 136 do CPP é medida cautelar, de cunho assecuratório.
Portanto, no perigo de dano irreparável, no caso, ao erário federal, não
há necessidade de absoluta certeza, porque desprovida de definitividade,
quanto à ocorrência e à autoria dos fatos narrados.
Assim, por ora basta o juízo de admissibilidade da ação penal, exarado
quando do recebimento da exordial. Note-se que a denúncia já foi acolhida pelo juízo competente e, em seu despacho, o magistrado analisou
de forma minuciosa a existência de elementos de convicção quanto à
autoria do impetrante, como bem se observa do trecho transcrito a seguir:
“(...) A denúncia encontra amparo em ampla documentação juntada aos apensos.
Merecem também referência específica o laudo nº 1392/03, que retrata o fluxo de recursos movimentados nas contas CC5, e o laudo de nº 1.698/03, que retrata o fluxo de
recursos movimentados pela conta CC5 titularizada pelo Banco del Paraná, e mantida
junto ao Banestado, agência de Foz do Iguaçu, e a relação dos depósitos efetuados por
‘laranjas’ na referida conta (...). No que se refere à autoria, a denúncia discrimina as
responsabilidades de cada um dos acusados no esquema fraudulento, identificando a
função exercida por cada um junto às instituições financeiras (...). A própria dimenR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
251
são dos fatos sugere a necessidade de uma complexa organização da fraude, com a
comunhão de esforços de várias pessoas, que seria viabilizada apenas como política
institucional. Tal constatação constitui indício de autoria dos dirigentes e gerentes dos
referidos bancos envolvidos com os fatos (...).” (fl. 37)
Em relação à presença do periculum in mora, melhor sorte não tem
o denunciado. Assinalo que os únicos requisitos exigidos para o deferimento da inscrição de hipoteca legal estão no art. 134 do Código de
Processo Penal, sendo eles a certeza da materialidade delitiva e os indícios
suficientes da autoria. Não há, como se observa, a exigência de prova de
que o réu esteja dilapidando patrimônio.
Quanto ao tema, insta trazer à colação o seguinte precedente deste
Tribunal:
“PROCESSO PENAL. MEDIDA ASSECURATÓRIA. HIPOTECA LEGAL E
ARRESTO. REQUISITOS. 1- Os únicos requisitos exigidos para o deferimento da
inscrição de hipoteca legal estão no art. 134, do Código de Processo Penal, sendo eles,
a certeza da infração e os indícios suficientes da autoria. Não há, como se observa,
a exigência de prova de que os réus estejam dilapidando o patrimônio. 2- A hipoteca
visa garantir não somente a satisfação do prejuízo, causado pelo crime, mas também
a pena pecuniária e as despesas processuais (...).” (ACR nº 97.04.18576-6, Rel. Juiz
Fernando Quadros da Silva, Segunda Turma, publ. no DJ de 21.03.2001, p. 241)
Alega o impetrante que um dos imóveis objeto do seqüestro é residência familiar, logo impenhorável, nos termos da Lei nº 8.009/90.
Essa tese desmerece abrigo, pois a legislação criminal não faz nenhuma
ressalva quanto aos bens passíveis de serem seqüestrados para garantia
da indenização dos danos causados com a prática criminosa e do pagamento da pena pecuniária.
Por outro lado, se entendermos que a lei em comento também se aplica às hipóteses das medidas acautelatórias previstas no CPP, ainda sem
razão a defesa, pois o próprio diploma excepciona a impenhorabilidade
do bem de família no caso de execução de sentença penal, conforme
depreende-se do disposto no seu artigo 3º, inciso VI, nas seguintes letras:
“A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal,
previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido: (...) VI - por ter sido
adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a
ressarcimento, indenização ou perdimento de bens.”
Aduz ainda o denunciado que o referido dispositivo não se aplica no
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R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
caso sub judice, porquanto entre as hipóteses legais previstas inexiste
referência à execução da pena de multa, pois essa “não tem caráter indenizatório ou de ressarcimento, sendo simples sanção penal”. Porém,
colaciona, para fundamentar sua tese, doutrina civilística, que trata
apenas do instituto da hipoteca no direito privado, cujas peculiaridades
desaconselham a aplicação pura e simples na seara penal, sem prévia e
cuidadosa análise.
Ademais, totalmente descabida tal assertiva na hipótese concreta,
porquanto o Parquet funda seu pedido de seqüestro não só para garantia
de futura pena pecuniária, mas também para o ressarcimento do dano,
como depreende-se de suas próprias palavras, apostas à fl. 33 do presente
caderno processual.
A respeito, é farta a jurisprudência desta Corte, da qual destaco dois
Acórdãos:
“INSCRIÇÃO DE HIPOTECA LEGAL. ART. 134 DO CPP. PROVA DE DILAPIDAÇÃO DO PATRIMÔNIO. DESNECESSIDADE. GARANTIA DO PREJUÍZO
CAUSADO PELO CRIME. BEM DE FAMÍLIA. EXECUÇÃO DE SENTENÇA. Para
o deferimento da inscrição da hipoteca legal, exige-se apenas a certeza da infração e
os indícios suficientes da autoria, sendo, portanto, inexigível a prova de que os réus
estejam dilapidando o patrimônio. A hipoteca visa tanto a reparação do dano ex delicto,
quanto a efetividade da sanção pecuniária que possa vir a ser imposta ao indiciado, pois
são providências que visam a acautelar os interesses do prejudicado com a prática da
infração. A impenhorabilidade conferida pela Lei nº 8.009/90 não alcança a execução
de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens
(art. 3º, VI).” (ACR nº 2000.70.09.002433-5/PR, Oitava Turma, Rel. Des. Amir José
Finocchiaro Sarti, publ. no DJU em 29.05.2002, p. 632)
“HIPOTECA LEGAL. ESPECIALIZAÇÃO. GARANTIA DO PAGAMENTO
DOS DANOS, MULTA E CUSTAS PROCESSUAIS. MATERIALIDADE E AUTORIA. BEM DE FAMÍLIA. LEI 8.009/90. - A especialização da hipoteca legal de bens
do réu está lastreada objetivamente no perigo de dano ao erário federal, não havendo
necessidade de certeza, porque desprovida de definitividade, quanto à ocorrência e à
autoria dos fatos narrados. - A Lei 8.009/90 excepciona da impenhorabilidade o bem
de família, na hipótese de execução de sentença penal (art. 3º, inciso VI), que é o caso
dos autos, já que a hipoteca se destina justamente a assegurar o pagamento dos danos,
multa e custas processuais numa eventual condenação.” (ACR nº 2002.04.01.055825-9,
Oitava Turma, Rel. Des. Volkmer de Castilho, publ. no DJU em 14.05.2003, p. 1114)
No que tange ao fato da medida assecuratória não atentar para a meação da mulher do impetrante, já vimos que o seqüestro de bens, por sua
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
253
própria natureza, é cautelar e provisório. Assim na hipótese concreta os
imóveis continuam na esfera patrimonial do denunciado e seu cônjuge,
inexistindo qualquer ato de transferência da propriedade. A perda do
domínio só ocorrerá após eventual condenação transitada em julgado,
quando os bens serão vendidos em hasta pública para cobrir os danos,
multa e custas processuais. Somente nessa ocasião há de se observar
eventuais direitos da esposa do acusado, ensejando, caso contrário,
embargos de terceiros.
Com essas considerações, denego a segurança.
APELAÇÃO CRIMINAL Nº 2003.70.00.043123-3/PR
Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro
Apelantes: Ministério Público Federal
D. C. Réu Preso
Advogados: Drs. Haroldo Alves Ribeiro Junior e outro
Drs. Antônio Acir Breda e outros
Apelados: (os mesmos)
EMENTA
Penal e processual. Direito de apelar em liberdade. Réu preso durante
a instrução do processo. Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional.
Arts. 4º, 16 e 22, § único, da Lei nº 7.492/86. Preliminares. Competência.
Cerceamento de defesa. Litispendência. Gestão fraudulenta. Evasão de
divisas. Operar instituição financeira sem autorização. Autoria. Tipicidade. Falsidades. Artigo 299 do Código Penal. Consunção. Quadrilha.
Separação do processo. Art. 80 do CPP. Cabimento. Duas denúncias.
Bis in idem. Dosimetria. Circunstâncias. Concurso material. Pena de
multa. Prescrição. Inocorrência. Regime inicial fechado.
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R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
1. Não tem direito de recorrer em liberdade o acusado que permaneceu preso no decorrer da instrução criminal. Precedentes. Revogação da
custódia indeferida. 2. A Resolução nº 20 da Presidência desta Corte, de
20.05.2003, editada com amparo na Res. nº 314 do CJF e na Lei 9.664/98,
determinando a especialização da 2ª Vara Federal Criminal de Curitiba
para processar e julgar os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e
de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores, nada tem de ilegal
ou inconstitucional, sendo descabida a alegação de incompetência do
juízo. Precedentes. 3. A questão da litispendência foi objeto de habeas-corpus, bem como da respectiva exceção ajuizada no primeiro grau. O
exame detido dos autos demonstra não haver perfeita identidade de partes,
pedido e causa de pedir nas referidas ações penais e, ocorrendo variação
de qualquer destes elementos entre os dois processos, não é possível reconhecer o suposto bis in idem. 4. A jurisprudência deste Regional tem
se orientado no sentido de não ser indispensável a transcrição integral
de todas as conversas telefônicas interceptadas, desde que às partes seja
franqueado o acesso ao conteúdo das gravações, o que ocorreu na hipótese sub judice. Cerceamento de defesa inexistente. 5. Atenta leitura do
conjunto probatório não deixa margem a qualquer dúvida sobre a autoria
delitiva. 6. Segundo se depreende da prova dos autos, o Recorrente, com
o concurso de outros agentes e testas-de-ferro, criou nominalmente uma
pessoa jurídica no Paraguai e esta, por sua vez, na qualidade de empresa
estrangeira, abriu contas CC-5 em bancos nacionais objetivando a remessa ilegal de numerário para fora do país, principalmente depositados
por “laranjas”, ou seja, ocultando os verdadeiros titulares das quantias,
incidindo, portanto, no crime de evasão de divisas tipificado no art. 22,
parágrafo único, da Lei 7.492/86. 7. Verificando que a constituição da
pessoa jurídica (Casa de Câmbios) foi procedida mediante documentação
inidônea, resta evidenciado tratar-se da conduta típica descrita no artigo
16 da aludida lei, que pune o ato de fazer operar instituição financeira
sem autorização ou mediante autorização obtida com declaração falsa. 8.
A referida empresa é integrante do sistema financeiro apenas por ficção
legal, para efeito do disposto no art. 16 da Lei 7.492/86, eis que criada
de maneira irregular e, desta forma, sem autorização para operar no mercado nacional. Logo, os atos de gerência do negócio ilícito se mostram
incompatíveis com o crime de gestão fraudulenta previsto no art. 4º da
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
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mesma norma, pois quem não pode praticar a conduta vedada pelo tipo
em questão é o administrador, diretor ou gerente de instituição regular,
formalmente constituída. 9. Ausência de provas nos autos quanto ao delito
de gestão fraudulenta. Absolvição com apoio no art. 386, inciso VI, do
CPP. 9. O falsum, segundo o próprio agente ministerial, foi praticado
“com o escopo de evadir divisas ao exterior”, restando assim absorvido
pelos crimes contra o sistema financeiro. 10. Conforme a jurisprudência da Suprema Corte, “a tese de que é impossível condenar-se uma só
pessoa em processo por delito de quadrilha, por ser crime de concurso
necessário, não merece guarida, porquanto o que importa é a existência
de elementos nos autos denunciadores da societas delinquentium”. Por
outras palavras, a separação facultativa do processo contra os vários
membros do bando, não impede que um deles seja condenado separadamente, se no feito desmembrado há prova da participação de todos,
como ocorreu na espécie. 11. Contudo, tendo sido ajuizada precedente
denúncia pelo crime de quadrilha, este deve ser processado e julgado na
Vara Federal Criminal de Foz do Iguaçu, impondo-se afastar o decreto
condenatório exclusivamente em relação ao art. 288 do CP. 12. Prevalecendo a avaliação negativa concernente à culpabilidade, circunstâncias
e conseqüências das práticas delituosas, cabível a fixação da pena acima
do mínimo legal. 13. Pena de multa dosada de forma proporcional à
privativa de liberdade. Mantido o quantum unitário do dia-multa, em
face das boas condições econômicas do Recorrente. 14. Não ocorreu a
prescrição da pretensão punitiva, porquanto a prova dos autos demonstra
que a instituição financeira operou até abril de 2000, quando foi dissolvida, não havendo transcorrido quatro anos até o recebimento da denúncia
(08.08.2003). 15. Condenação do réu como incurso nas sanções previstas
aos infratores dos artigos 16 e 22, § único, da Lei 7.492/86, c/c o art. 71
do Código Penal, aplicada a regra do concurso material (art. 69 do CP).
16. Tendo em conta a reprimenda fixada (sete anos de reclusão), bem
como tratar-se de crime praticado no âmbito de organização criminosa
(art. 10 da Lei 9.034/95) além do disposto nos artigos 33, §§ 2º e 3º, e
59 do Código Penal, o cumprimento da pena deverá se dar no regime
inicialmente fechado.
ACÓRDÃO
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Vistos, relatados e discutidos estes autos entre as partes acima indicadas, decide a Oitava Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região,
por unanimidade, negar provimento ao agravo regimental e dar parcial
provimento aos recursos, nos termos do relatório, votos e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Porto Alegre, 16 de junho de 2004.
Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro, Relator.
RELATÓRIO
O Exmo. Sr. Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro: - O Ministério
Público ofertou denúncia em desfavor de D. C. e outros vinte e seis réus,
pela prática dos delitos insculpidos nos artigos 4º, caput, 16 e 22, todos
da Lei nº 7.492/86; arts. 288 e 299, ambos do Estatuto Repressivo, bem
como no artigo 1º, incisos VI e VII, c/c o art. 4º da Lei nº 9.613/98.
A peça acusatória (fls. 02/65) descreveu os fatos, em resumo, nas
seguintes letras:
“1. AGENTES DA CASA DE CÂMBIOS IMPERIAL SRL e da PHOENIX CÂMBIO E TURISMO LTDA. 1.1. VICTOR MANUEL DECOUD CARDENAS, paraguaio,
casado, comerciante, natural de Asunción (...) 1.6. D. C., vulgo Pingo, brasileiro, casado,
empresário, nascido em 18.09.54, natural de Jandaia do Sul/PR, filho de R. C. e M. A.,
podendo ser encontrado na Rua Marechal Deodoro, 427, Centro, em Curitiba/PR, ou
ainda na Rua João Soares Barcellos, 3001, Casa, Boqueirão, em Curitiba; 1.7. R. C.
(...) 2. Contadores (...) 3. ‘Laranjas’ (...) 4. Agenciadores de Laranjas (...) 5. Gerentes de
Instituições Financeiras (...). Breve escorço dos fatos. Em 1996, o BACEN autorizou
5 instituições financeiras, que mantinham agências na cidade fronteiriça de Foz do
Iguaçu (BEMGE, BANCO DO BRASIL, BANESTADO, ARAUCÁRIA E REAL) a
receberem depósitos em espécie nas famosas contas ‘CC-5’, acima do patamar de R$
10.000,00 (dez mil reais) a pretexto de facilitar o repatriamento de recursos gastos por
brasileiros, ‘compristas’ no comércio de Ciudad del Este. Ao ensejo desta facilidade,
‘doleiros’ vislumbraram a possibilidade de dissimular recursos financeiros de origem
ilícita e promoverem a evasão de divisas, em detrimento das reservas nacionais cambiais. Para tanto, em um primeiro momento, os agentes das organizações criminosas
valeram-se de falha na fiscalização por parte dos órgãos da Receita Federal, que não se
propunham a implementar a contagem dos valores trazidos do Paraguai em carros-forte
por ocasião de sua entrada em território nacional (...) Em um segundo momento, as
mesmas organizações criminosas incrementaram a abertura de outras tantas contas de
‘laranjas’ mediante a co-autoria de inúmeros gerentes bancários, sendo certo que essas
novas contas não ensejaram saque de quantias em espécie (as quais eram depositadas
em contas CC-5 de casas de câmbio paraguaias, para posterior liquidação de câmbio e
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remessa de moeda estrangeira ao exterior) mas tão-somente transferência de recursos
através de cheques ou ‘docs’. Em suma, o dinheiro depositado nessas contas de ‘laranjas’
era repassado diretamente para contas de casas de câmbio ou bancos paraguaios, para
fins de remessa mediante crédito em contas no exterior. (...) Mister esclarecer que as
excogitadas contas CC-5 assumem três diferentes modalidades contábeis, quais sejam:
as que movimentam recursos ‘provenientes de vendas de câmbio’; recursos ‘de outras
origens’ e recursos ‘de instituições financeiras’. No caso em tela, as casas de câmbio (...)
movimentavam, desde 1996, contas ‘CC-5 de outras origens’, sendo que elas admitem
depósitos e saques em moeda nacional, mas não admitem conversão em moeda estrangeira ou remessa ao exterior. O depósito na conta CC-5 configura evasão de divisas,
saída de recursos, conforme o disposto no art. 7º da Carta-Circular 2.677: ‘Para os fins
e efeitos desta Circular caracterizam: II – saídas de recursos do País os créditos efetuados pelo banco depositário em contas tituladas por domiciliados no exterior, exceto
quando os recursos provierem de venda de moeda estrangeira ou diretamente de outra
conta da espécie’. Daí a imprescindibilidade de que os recursos financeiros fossem,
após recebidos pelas casas de câmbio, creditados em contas de bancos estrangeiros,
principalmente Banco Integración e Banco Del Paraná. (...) A conta CC-5 da CASA
DE CÂMBIOS IMPERIAL recebeu centenas de depósitos irregulares, sem a correta
identificação dos depositantes, sendo certo que cada um dos depósitos corresponde a
uma conduta criminosa, conforme o parágrafo único do art. 22 da Lei 7.492/86. A Casa
de Câmbios Imperial mantinha 3 (três) contas CC-5, sendo que no Banco Araucária de
Curitiba detinha a nº 18.006-6; no Banco Araucária de Foz do Iguaçu possuía a conta
nº 45.001-4 e no Banco do Estado do Paraná – BANESTADO detinha a de nº 341369. Os depósitos encontram-se discriminados no Laudo nº 1.676/03/INC, em anexo,
sendo certo que os valores evadidos através da conta de cada um dos ‘laranjas’ foram
depositados para as contas CC-5 da Casa de Câmbios Imperial SRL (fls. 12/16 - Rol
dos depósitos em nome de ‘laranjas’). Além de tais depósitos, existem ainda os que não
foram identificados (...) É de se salientar que através das mencionadas contas-correntes
movimentaram-se recursos financeiros nunca antes imaginados, visando à sua remessa
ilegal ao exterior. Conforme consta do Laudo nº 1.676/03/INC, em anexo, nos anos de
1996 a 1998, através das contas CC-5 que a Casa de Câmbios Imperial SRL mantinha
nos Bancos Araucária e Banestado, em Foz do Iguaçu e Curitiba, recebeu o equivalente
a R$ 631.251.003,53 (seiscentos e trinta e um milhões, duzentos e cinqüenta e um mil,
três reais e cinqüenta e três centavos) a título de disponibilidades no exterior, depositados tanto por ‘laranjas’ como por ‘outros’. Nunca é demais ressaltar que 98,4% do
dinheiro depositado na conta CC-5 da Imperial no Araucária de Foz do Iguaçu (...) foi
dissimulado em contas de ‘laranjas’, caracterizando os crimes contra o sistema financeiro
descritos nesta inicial. De tal conta, o destino foi 100% para o Banco Integración do
Paraguai. Pertinente à conta CC-5 no Araucária de Curitiba, 86,1% do dinheiro depositado foi proveniente de laranjas, destinando-se também 100% dos valores ao Banco
Integración do Paraguai. No que tange à conta CC-5 da Imperial no Banestado de Foz
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do Iguaçu, 56,8% do dinheiro depositado foi proveniente de ‘laranjas’, sendo que a
maior parte foi destinada ulteriormente ao Banco Del Paraná (74,7%). Comprovou-se que os vinte e sete denunciados (...) se associaram em quadrilha ou bando, para o
fim de cometer os crimes descritos nesta denúncia, incidindo, portanto, no art. 288 do
Código Penal e nos aspectos processuais da Lei 9.034/95 (com a redação dada pela Lei
10.217/2001). O depósito de recursos nas contas CC-5 da paraguaia Casa de Câmbios
Imperial SRL, que caracteriza a ‘constituição de disponibilidades no exterior’, deu-se
em desobediência às normas regulamentares, porquanto a dissimulação da origem dos
recursos, com a movimentação através de ‘laranja’, macula todos os atos seguintes da
operação financeira, de modo que restaram devidamente integrados os tipos do art. 22 e
parágrafo único da Lei 7.492/86, tratando-se de normas penais em branco, complementadas pela Carta-Circular nº 2.677/96 do Banco Central do Brasil. Em síntese, a partir do
momento em que os depositantes valeram-se de interposta pessoa para movimentarem
seus recursos para o exterior, burlaram as normas regulamentares do BACEN, incidindo
nas penas do referido artigo 22 e § único da Lei 7.492/86...”
Especificamente em relação ao acusado, consta da exordial (fls. 19
e seguintes) que:
“Durante as investigações da Polícia Federal nos inquéritos acima referidos, ficou
claro que D. C. (vulgo ‘Pingo’) e R. C., proprietários da empresa Sigla Câmbio e Turismo, sediada em Curitiba, são sócios de fato da empresa Casa de Câmbios Imperial
SRL. Tais denunciados, com a sucursal paraguaia, tinham o real escopo de facilitar a
respectiva remessa ilegal de valores para o Paraguai e outros países, através de conta
CC5 (de não-residentes). Outrossim, além de D. C. constar como sócio de direito da
empresa Phoenix, veja-se que continuou a gerir tal empresa mesmo após 25.09.98,
juntamente com seu irmão e denunciado R. C. Neste momento, trazemos à baila a
transcrição de alguns depoimentos importantes ao deslinde da quaestio: ... (fls. 214). Outrossim, foram apreendidos diversos documentos através da busca e apreensão
requerida no procedimento criminal diverso de nº 2003.70.00.030924-5, em trâmite
nessa Vara Criminal. Alguns desses documentos indicam claramente a propriedade da
Casa de Câmbios Imperial pelos irmãos R. C. e D. C., dentre eles um contrato privado
de cessão de quotas da referida empresa (...) O. A. C. M., apesar de constar como sócio
de direito da Casa de Câmbios Imperial, nada mais é do que um longa manus de R. C. e
D. C. para fins de evasão de divisas do Brasil para o Paraguai e outros países. (...) G. E.
E. V. (sócio da Phoenix) a mando dos denunciados R. C. e D. C., continuou em Foz do
Iguaçu para arregimentar ‘laranjas’ e facilitar a remessa ilegal (...) A relação criminosa
existente entre o denunciado L. T. A. e os irmãos C. é evidente, contando assim com
seus serviços para arregimentar ‘laranjas’ e legitimar contratos sociais perante a Junta
Comercial do Paraná, além de possuir uma íntima relação com todos os familiares
(...) Pertinente a S. A. M., tal denunciado foi funcionário da Sigla Câmbio e Turismo
entre 1992 e 2000 e assinava os talonários da Plenus Adm. de Bens e Serviços, em
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conluio com os donos da Sigla, R. C. e D. C. Além disso, confirmou que ainda retirava
os talonários das empresas ‘fantasmas’ Eldorado e Bastilha (que é de propriedade do
denunciado L.) junto às respectivas instituições financeiras, o que demonstra o total
relacionamento existente entre a Sigla e tais empresas (Plenus, Bastilha e Eldorado
– ‘laranjas’ utilizadas para a evasão de divisas) ... Em total unidade de desígnios, os
denunciados dividiram tarefas, profissionalizando-se na prática criminosa, consistentes
no aliciamento de laranjas, na captação de recursos financeiros de proveniência ilícita de
dentro do Brasil, bem como a gerência das respectivas contas em instituições financeiras,
para, através de contas CC-5 remetê-los ao exterior, após dissimularem a sua origem,
em franca desconformidade com os dispositivos da Carta-Circular nº 2.677/96. Tais
denunciados participavam diretamente da administração das contas CC-5 que mantinham em instituições financeiras brasileiras, promovendo o depósito dos recursos em
contas de instituições financeiras estrangeiras, para posterior liquidação das operações.
Cumpre esclarecer que as casas de câmbio e bancos paraguaios, apesar de constituídos
sob a égide da legislação estrangeira, operavam em detrimento das reservas cambiais
brasileiras, aproveitando-se das normas editadas pelo BACEN, de modo que se inserem no conceito de instituições financeiras para fins penais da Lei 7.492/86 (...) Uma
vez abertas as centenas de contas correntes dos ‘laranjas’, os milhares de depositantes
espalhados pelo Brasil injetaram recursos provenientes de outras práticas criminosas,
visando à não identificação, ou seja, dissimulação da sua origem. (...) Verifica-se que
as Casas de Câmbio também são assemelhadas a instituições financeiras, eis que captaram e intermediaram recursos no país para fins de remessa ao exterior, consoante
o art. 1º, parágrafo único, da Lei 7.492/86. Portanto, todos os dirigentes das casas de
câmbio Imperial e Phoenix respondem nos termos da lei por crimes contra o sistema
financeiro nacional. X - DA GESTÃO FRAUDULENTA - Agindo em detrimento do
nível de segurança exigido na condução dos negócios das casas de câmbio, bem como
prestando freqüentes informações fraudulentas ao BACEN, ensejando suspeita sobre
todas as operações realizadas através das contas CC-5 e aproveitando-se da peculiaridade
da região da tríplice fronteira quanto ao comércio existente entre Brasil e Paraguai, os
denunciados (...) geriram fraudulentamente as respectivas Casas de Câmbio Imperial,
Sigla e Phoenix, incorrendo nas sanções do art. 4º, caput, da Lei 7.492/86 (por 3 vezes)
c/c os arts. 29 e 69 do CP, em unidade de desígnios com os demais denunciados que,
na medida de sua culpabilidade, contribuíram para a eficácia do delito. (...) XI - DO
ARTIGO 16 - Fazendo operar as instituições financeiras Casas de Câmbio Imperial,
Sigla e Phoenix, sem a devida autorização, mediante a extrapolação dos fundamentos
para a conversão de moeda nacional em moeda estrangeira através de contas CC-5,
uma vez que captavam recursos financeiros de terceiros para depósitos em contas
de laranjas, os denunciados (...) incorreram nas sanções do art. 16 da Lei 7.492/86,
por três vezes, na forma do art. 69 do CP (cúmulo material). XII - DA EVASÃO DE
DIVISAS E DA QUADRILHA Os denunciados (...) montaram estrutura criminosa que
permitiu a prática de 3.300 (três mil e trezentos) depósitos irregulares (laranjas) nas
contas CC-5 da Casa de Câmbios Imperial, nos anos de 1996 e 1997, totalizando o
260
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valor de R$ 587.476.755,59 (quinhentos e oitenta e sete milhões, quatrocentos e setenta
e seis mil, setecentos e cinqüenta e cinco reais e noventa e nove centavos, conforme
consta do anexo 1 do laudo 1.676/03-Inc. em anexo, pelo que incorreram nas penas
do parágrafo único do art. 22 da Lei 7.492/86, na forma do art. 69 do CP, 3.300 (três
mil e trezentas vezes). Ademais, (...) em conluio, associaram-se em quadrilha (art.
288 do Código Penal) nos anos de 1996, 1997 e 1998 para fins de cometer delitos,
dentre os quais, evasão de divisas, lavagem de dinheiro, falsidade ideológica, gestão
fraudulenta e do art. 16 da Lei 7.492/86. XIII – DA FALSIDADE IDEOLÓGICA.
Conforme já ilustrado na exordial acusatória, os denunciados (...) por 23 vezes (IPls
nos ...) em especial utilizando-se dos serviços prestados pelos contadores Edson e Milton, inseriram elementos inverídicos em diversos documentos, tais como declarações
de rendimentos, de residência e de trabalho, bem como assinaram contratos sociais
corroborando diversas situações falsas, abrindo contas em bancos oficiais e privados,
em detrimento do Banco Central do Brasil, dissimulando ainda a origem dos respectivos recursos, sempre no escopo de evadir divisas ao exterior, incidindo portanto nas
penas do art. 299 do Código Penal c/c art. 69 do mesmo Códex. XIV – DA LAVAGEM
DE DINHEIRO ...” (fls. 02/65)
Os autos receberam o nº 2003.70.00.039532-0, tendo a denúncia sido
acolhida em 08.08.2003. (fls. 66/71)
Na mesma data, o MM. Juiz Federal da 2ª Vara Criminal de Curitiba
decretou a prisão preventiva de R. C., D. C., V. M. D. C. e O. A. C. M.,
“dirigentes de direito ou de fato da Câmbios Imperial SRL, a quem foram
imputadas fraudes que ultrapassam a cifra de quinhentos milhões de
reais (...) como garantia da ordem pública e econômica e para assegurar
a aplicação da lei penal”. (fls. 79/84)
Quanto a D. C., o mandado de prisão foi cumprido em 11.08.2003 (fl.
85). Na audiência de interrogatório, ausentes os demais réus, o ilustre
magistrado a quo determinou o desmembramento do feito em relação
a este acusado, por encontrar-se preso provisoriamente, bem como a
extração de cópia de todas as peças processuais e respectivos apensos,
distribuindo-se por dependência aos autos principais (fl. 89). Este processo foi autuado sob o nº 2003.70.00.043123-3.
Restando indeferido o recolhimento em prisão domiciliar (fl. 98), foi impetrado habeas corpus (fls. 111/28) denegado pela 8ª Turma desta Corte.
À fl. 129, foi prolatado despacho referente à inquirição das testemunhas, e, às fls. 136/51, juntada a transcrição do interrogatório do réu.
Regularmente instruído o feito, sobreveio sentença (fls. 784/804),
julgando parcialmente procedente a denúncia para absolver o denunR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
261
ciado quanto ao crime de lavagem de dinheiro e condenar D. C. a 10
(dez) anos de reclusão, em regime inicial fechado, além de 300 (trezentos) dias-multa à razão unitária de 40 (quarenta) salários mínimos,
pela prática do ilícito insculpido no artigo 4º da Lei 7.492/86 (gestão
fraudulenta) mais 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de reclusão por infração
ao disposto no art. 288 do Código Penal.
Irresignado, o MPF interpôs apelo (fls. 813/24), postulando a condenação do acusado pela prática dos delitos previstos no art. 299 do Estatuto
Repressivo, bem como artigos 16 e 22, § único, da Lei dos Crimes contra
o Sistema Financeiro, em concurso material. (art. 69 do CP)
Também inconformado, apelou o réu (fl. 826), apresentando as contra-razões ao recurso ministerial (fls. 827/42). Nas razões formuladas nesta
instância (fls. 869/916), sustenta, preliminarmente, a nulidade absoluta
do processo, por incompetência do Juízo da 2ª Vara Federal Criminal de
Curitiba e litispendência com ação penal anterior. Ainda, em preliminar,
alega cerceamento de defesa, por ter sido indeferida a transcrição integral
das interceptações telefônicas realizadas no curso das investigações. No
mérito, aduz tese negativa de autoria, pois “ausente prova que desconstitua a versão do apelante, não há como se estabelecer ligação entre a
sua conduta e as supostas fraudes praticadas em nome das empresas
Imperial e Phoenix, porquanto os elementos indiciários constantes dos
autos são insuficientes para tal conclusão. O que se pode examinar, de
fato, são os atos de gestão praticados pelo apelante em nome da empresa
Sigla Câmbio e Turismo Ltda., e aí não se vislumbra qualquer ilicitude
merecedora de reprovação penal”. Defende que “o conflito aparente de
normas entre os crimes de gestão fraudulenta de instituição financeira
e evasão de divisas não foi adequadamente resolvido pela sentença” e,
portanto, na hipótese de ser proferida condenação, teria que ser embasada exclusivamente nos artigos 21 ou 22 da Lei 7.492/86, por força do
princípio da especialidade.
Registra a ocorrência de bis in idem no que pertine ao crime de
quadrilha (art. 288 do CP), bem como a ilegalidade da condenação do
Recorrente em separado dos demais integrantes da suposta organização,
sendo incabível a cisão do processo quanto a esse delito, eis que o concurso necessário de agentes constitui elementar do tipo penal. Por fim,
postula a redução da pena privativa de liberdade e da multa.
262
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
A douta Procuradoria da República, oficiando no feito, opinou pelo
provimento do recurso ministerial e desprovimento do apelo do réu. (fls.
926/49)
Reiterou a defesa o pedido de revogação da custódia, acostando documentos (fls. 981/1093) o que restou indeferido.
É o relatório.
À revisão.
RELATÓRIO COMPLEMENTAR
O Exmo. Sr. Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro: Posteriormente,
já estando os autos conclusos ao eminente Revisor, o patrono do acusado
interpôs agravo regimental (fls. 1106-114), pugnando pela reconsideração
do apontado decisum.
VOTO
O Exmo. Sr. Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro: - Ab initio, no
que pertine ao agravo regimental interposto contra o indeferimento do
pedido para que fosse revogada a prisão do acusado, não vejo motivo
para alterar o entendimento manifestado no despacho de fls. 1101-1102,
redigido nas seguintes letras:
“Cuida-se de pedido de revogação da custódia cautelar imposta a D. C. nestes autos
(fls. 981/90). Em que pesem os doutos argumentos trazidos pela defesa, permanecem
os motivos que levaram à decretação da medida. Por outro lado, a questão relativa à
cardiopatia foi dirimida pelo juízo monocrático, frente ao laudo pericial, concluindo-se
não haver impedimento de ordem médica à manutenção do encarceramento preventivo.
Ainda que assim não fosse, restando proferido decreto condenatório e tendo o acusado
permanecido preso durante toda a instrução criminal, seria contra-senso revogar a prisão
neste momento do processo. Nesse sentido, é pacífica a jurisprudência desta Corte,
bem como do Superior Tribunal de Justiça, conforme se depreende dos Acórdãos a
seguir ementados: PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. DIREITO
DE APELAR EM LIBERDADE. RÉU PRESO PREVENTIVAMENTE DURANTE
O PROCESSO. Não tem direito de recorrer em liberdade o réu que permaneceu
preso preventivamente ao longo do processo, pois a sua manutenção na prisão é, por
ora, conseqüência do próprio decreto condenatório. Ordem denegada. (STJ, HC nº
22.825/MG, 5ª Turma, Rel. Min. Félix Fischer, publ. no DJU em 17.02.2003, p. 313).
PENAL E PROCESSO PENAL. APELAÇÃO. LIBERDADE PROVISÓRIA. RÉU
FORAGIDO. IMPOSSIBILIDADE. A despeito do princípio da presunção da inocência, não tem direito de recorrer em liberdade o acusado que permaneceu ou deveria
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
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ter permanecido preso durante toda a instrução criminal, visto ser um dos efeitos da
sentença condenatória o recolhimento do réu à prisão. Ordem denegada. (STJ, HC nº
21.635/SP, 6ª Turma, Rel. Min. Paulo Medina, publ. no DJU em 04.08.2003, p. 432). A
par disso, devidamente lançado o relatório, o feito está sendo remetido para o Revisor
na presente data, nos termos do regimento interno desta Corte, a fim de ser incluído
em pauta, de modo que não se vislumbram motivos para o Recorrente aguardar em
liberdade o julgamento do apelo. Portanto, indefiro o pedido de fls. 981/90.”
No tocante às questões preliminares suscitadas no apelo da defesa, de
início mister referir que descabe falar em nulidade do decreto condenatório, por suposta incompetência do Juízo da 2ª Vara Criminal Federal de
Curitiba/PR.
A matéria já foi objeto de deliberação por esta Turma nos autos do
Habeas Corpus nº 2003.04.01.037278-8, impetrado em favor de D. C.
(08.10.2003), bem assim no HC 2003.04.01.041096-0, figurando como
paciente R. C. (29.10.2003).
Restou assentado naqueles julgamentos não haver ofensa ao Princípio do Juiz Natural, frente ao disposto nos incisos do art. 5o da CF/88
(XXXVII - não haverá juízo ou tribunal de exceção; LIII - ninguém será
processado nem sentenciado senão pela autoridade competente), pois,
na espécie, não foi criado nenhum juízo de exceção.
Pelo contrário, o ilustre magistrado a quo apenas fez observância ao
ato normativo desta Corte, determinando a especialização da 2a Vara
Federal Criminal de Curitiba para processar e julgar os delitos previstos
nas Leis nos 7.492/86 e 9.613/98, sendo que a presente ação penal teve sua
competência originária firmada em 08 de agosto de 2003, posteriormente
ao advento da Resolução nº 20 deste Regional (26.05.03).
Como é sabido, descabe aos Tribunais a criação de novéis estruturas,
tais como cartórios ou cargos. Isso não acarreta, todavia, impedimento
ao Judiciário para decidir acerca da especialização material de Varas,
porquanto tal prerrogativa é ínsita ao poder de auto-organização inscrito
no artigo 99 da CF.
Nesse sentido, resolveu o Conselho da Justiça Federal editar, em 12
de maio de 2003, a Resolução 314, dispondo que “os Tribunais Regionais Federais, na sua área de jurisdição, especializarão varas federais
criminais com competência exclusiva ou concorrente, no prazo de
sessenta dias, para processar e julgar os crimes contra o sistema financeiro nacional e de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores”.
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(publicada no DJU de 14.05.2003)
Por outro lado, a Lei nº 9.664, de 19.06.98, assim estabelece no seu
art. 3º:
“Caberá ao Tribunal Regional Federal da 4a Região, mediante ato próprio, especializar Varas em qualquer matéria, estabelecer a respectiva localização, competência e
jurisdição, bem como transferir sua sede de um município para o outro, de acordo com
a conveniência do Tribunal e a necessidade de agilização da prestação jurisdicional.”
Objetivando regulamentar o diploma mencionado, a Presidência
desta Corte editou, no dia 20 de maio de 2003, a Resolução nº 20, a qual
preceitua, em resumo, o seguinte:
“O PRESIDENTE DO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO, usando
de suas atribuições legais e regimentais, tendo em vista o decidido no PA nº 03.11.000258, pelo Conselho de Administração, em sessão realizada no dia 26 de maio de 2003, e
CONSIDERANDO a determinação contida na Resolução nº 314, de 12 de maio de 2003,
do Conselho da Justiça Federal, que determina a especialização de Varas federais criminais para processar e julgar crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e de ‘lavagem’
ou ocultação de bens, direitos e valores; CONSIDERANDO que a especialização de
Varas tem se revelado medida salutar, com notável incremento na qualidade e na celeridade da prestação jurisdicional; CONSIDERANDO as dificuldades de processamento
dos delitos referidos, por conta da peculiaridade e complexidade da matéria envolvida;
CONSIDERANDO que os Tribunais Regionais Federais possuem autorização legal para
especializar Varas, de acordo com o disposto nos arts. 11 e 12 da Lei nº 5.010/66 c/c o
art. 11, parágrafo único, da Lei nº 7.727/89, resolve: Art. 1º. Especializar as seguintes
Varas criminais para processar e julgar os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional
e de ‘lavagem’ ou ocultação de bens, direitos e valores: a) 1ª Vara Criminal de Porto
Alegre, Rio Grande do Sul; b) Vara Criminal de Florianópolis, Santa Catarina; c) 2ª
Vara Criminal de Curitiba, Paraná. (...) § 3º. A 2ª Vara Criminal de Curitiba, além da
competência ora atribuída, manterá a competência para os feitos do júri. Art. 2º. Serão
processados perante Vara criminal especializada os crimes previstos no art. 1º, qualquer
que seja o meio, modo ou local de execução. § 1º. As Varas criminais especializadas são
consideradas juízo criminal especializado em razão da matéria e terão competência sobre
toda a área territorial compreendida em cada seção judiciária. § 2º. Serão processados
e julgados perante as Varas criminais especializadas as ações e incidentes relativos a
seqüestro e apreensão de bens, direitos ou valores, pedidos de restituição de coisas
apreendidas, busca e apreensão, hipoteca legal e quaisquer outras medidas assecuratórias, bem como todas as medidas relacionadas com a repressão penal de que trata o
caput deste artigo, inclusive medidas cautelares antecipatórias ou preparatórias. (...)”
A legalidade desse ato normativo já foi expressamente reconhecida
nos precedentes deste Tribunal.
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Veja-se, a propósito, a orientação retratada nos Acórdãos a seguir
ementados:
“PENAL. PROCEDIMENTO CRIMINAL. COMPETÊNCIA. SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL. ‘LAVAGEM’ DE DINHEIRO. RESOLUÇÃO Nº 314/CJF.
RESOLUÇÃO Nº 20/TRF 4ª REGIÃO. 1. Tratando-se de procedimento criminal, a
competência é determinada pela exegese das Resoluções nº 32 do Conselho da Justiça
Federal e nº 20 desta Corte, com a especialização da 2a Vara Criminal de Curitiba/PR
para processar crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e de ‘lavagem’ ou ocultação
de bens, direitos e valores. 2. Negado provimento ao recurso em sentido estrito.” (RSE
nº 2003.72.05.003328-8/SC, Relator Des. Luiz Fernando Wowk Penteado, 8a Turma,
julgado em 27.08.2003)
“PENAL E PROCESSUAL PENAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. JUÍZO
FEDERAL DE CURITIBA E JUÍZO FEDERAL DE FOZ DO IGUAÇU. CRIMES
DE ‘LAVAGEM’ DE DINHEIRO, SONEGAÇÃO FISCAL E EVASÃO DE DIVISAS.
CONTAS CC5. CONTAS DE DOMICILIADO NO EXTERIOR. VARA ESPECIALIZADA. RESOLUÇÃO Nº 20/2003 DESTE TRF 4ª REGIÃO. Tratando-se de inquérito
policial em que se averigua a prática, em tese, de crime de ‘lavagem’ de dinheiro por
meio de contas CC5 e contas de domiciliado no exterior, em conexão com outros delitos
(tais como sonegação fiscal, evasão de divisas e formação de quadrilha) no Estado do
Paraná, a competência para processar e julgar o feito é da 2a Vara Federal Criminal de
Curitiba, nos termos da alínea c do art. 1o c/c art. 6o da Resolução nº 20, de 26.05.2003,
editada pela Presidência deste Regional.” (CC nº 2003.04.01.007588-5/PR, Relator
Des. José Germano da Silva, 4a Seção, decisão de 16.06.2003, publicada no DJU de
25.06.2003, p. 555/556)
Ademais, consoante ressaltado pela douta Procuradoria Regional da República em parecer exarado nos autos do RCCR número
2003.70.01.010030-4:
“O redesenho da competência em tribunais (...) entre outras, é situação corrente nos
dias de hoje, em resposta a imperativos de ordem prática e gerencial da dinamização
das relações judiciárias que desafiam a ortodoxia do juízo natural, mas que vêm sendo
respeitadas pelas instâncias superiores, nas quais não se enxergam abusos, excessos,
desvios ou violações às liberdades fundamentais dos cidadãos. (...) A adoção da Resolução nº 20/03 pelo TRF da 4ª Região esboça mais um desses capítulos de esforço
judiciário, no sentido de dar, com a especialização de varas, uma resposta satisfatória
aos reclamos sociais de uma jurisdição efetiva, capaz de reverter o quadro da impunidade. (...) O mesmo entendimento das razões acima explanadas foi adotado no parecer
exarado pelo Exmo. Sr. Dr. Procurador-Geral da República, nos autos da Representação
PGR nº 1.00.000.006518/2003-52...”
No mesmo sentido, a fim de afastar qualquer dúvida a respeito da
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quaestio, mister trazer à colação a ementa de recente julgado da Terceira
Seção do Superior Tribunal de Justiça:
“CONFLITO DE COMPETÊNCIA. JUÍZOS FEDERAIS CRIMINAIS. PENAL.
CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA E SISTEMA FINANCEIRO. CONEXÃO. RESOLUÇÃO Nº 20/2003 DO TRF DA 4ª REGIÃO. ESPECIALIZAÇÃO DE
VARAS CRIMINAIS. Considerando os termos da Resolução nº 20/2003 do TRF da
4ª Região, que especializou a Vara Federal Criminal de Curitiba/PR, para ‘processar
e julgar os crimes contra o sistema financeiro nacional e de lavagem ou ocultação
de bens, direitos e valores...’ este deve ser o Juízo competente na hipótese, eis que o
referido ato do Conselho da Justiça Federal (Resolução 314) destina-se, à vista da sua
atribuição, a zelar pela eficácia célere da prestação jurisdicional, no âmbito da jurisdição
federal ordinária. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo Federal da 2ª
Vara Criminal de Curitiba, Estado do Paraná, o suscitado.” (CC nº 39.367, Rel. Min.
José Arnaldo da Fonseca, publ. no DJU em 28.10.2003)
De igual forma, desmerece abrigo a tese que busca invalidar o decisum
alegando litispendência, eis que nos precedentes habeas corpus assim
restou decidido:
“In casu, o Paciente responde a duas demandas penais: uma ajuizada perante a 1a
Vara Federal Criminal de Foz do Iguaçu/PR – investigando o possível cometimento
dos delitos inscritos nos artigos 16, 21 e 22 da Lei nº 7.492/86 c/c art. 288 do CP em
virtude da remessa de R$ 607.668,00 (seiscentos e sete mil, seiscentos e sessenta e
oito reais) entre 07.04.97 e 26.06.97, ao Banco Integración, do Paraguai – e outra em
trâmite na 2a Vara Federal Criminal de Curitiba, apurando a prática de idênticas infrações, desta vez pelo provável envio de R$ 631.251.003,53 (seiscentos e trinta e um
milhões, duzentos e cinqüenta e um mil, três reais e cinqüenta e três centavos) entre
1996 e 1998, ao mesmo destino. A mera possibilidade de restar caracterizada parcial
litispendência (relativa ao envio de R$ 80.140,60 via CC-5) não elide, por si só, a custódia preventiva imposta eis que prejudicada a persecução penal de parcela mínima dos
fatos narrados na inicial. Estando em curso a exceção aludida no artigo 110 do CPP,
não resulta razoável se antecipar ao decisum a ser exarado pelo juízo monocrático, sob
pena de indevida supressão de grau jurisdicional. Mostra-se mais adequado aguardar
o trâmite do incidente....”
Consta dos autos que, na referida Exceção de Litispendência, autuada na Vara de origem sob nº 2003.70.00.043994-3 (fl. 444), já foi
prolatada sentença acolhendo parcialmente o pedido, com a seguinte
fundamentação:
“A ação penal nº 2003.70.00.043123-3 tem por objeto remessas fraudulentas
efetuadas a partir de dezenas de contas específicas abertas em nome de ‘laranjas’ e
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cuja responsabilidade foi atribuída, entre outros, ao excipiente. As contas em questão
foram declinadas na inicial e importaram em remessas de R$ 631.251.003,53 através
de depósitos nas contas CC-5 titularizadas pela Casa de Câmbios Imperial SRL. A ação
penal mencionada para configuração da litispendência (Processo 97.101.02388-2, 1ª
Vara Federal Criminal de Foz do Iguaçu) tem, por sua vez, como objeto, tão-somente
as remessas efetuadas, no valor de R$ 607.668,00, a partir de apenas duas contas
titularizadas pelo ‘laranja’ Olmar Gavazzoni e através de depósitos em contas CC-5
titularizadas pela Casa de Câmbio Imperial, Câmbios Plata e Banco Integración. (...)
A ação penal ora proposta é então única. Portanto, afigura-se evidente que não se trata
da mesma ação, tendo ambas objetos bastante diferenciados, o que é ilustrado pela
disparidade de valores das remessas em uma e outra. No caso, porém, deve-se reconhecer litispendência parcial, excluindo-se do objeto da presente ação penal as remessas
efetuadas a partir da conta de Olmar Gavazzoni e através de depósitos na conta CC-5
da Casa de Câmbio Imperial, que totalizaram R$ 80.140,60 (cfe. quadro de fl. 84). Ante
o exposto, acolho parcialmente a exceção de litispendência...”
Tenho que não merece reparos esse entendimento, que aliás transitou
em julgado. Com efeito, o exame detido dos autos demonstra não haver
perfeita identidade de partes, pedido e causa de pedir nas referidas ações
penais, sendo certo que, ocorrendo variação de qualquer destes elementos
entre os dois processos, não é possível reconhecer o alegado bis in idem.
Embora D. C. tenha figurado como réu em ambas as denúncias, tal
não ocorreu com vários outros, que não foram acusados no feito anterior,
mas tão-somente em Curitiba.
Os fatos descritos também não são idênticos. O procedimento em
trâmite na 1ª Vara Criminal de Foz do Iguaçu limita-se aos eventos
relacionados a alguns “laranjas” e gerentes no período entre 04.09.97 e
10.10.97. Os valores relativos a essas operações, segundo a respectiva
peça inicial, importa em aproximadamente seiscentos mil reais. Por
outro lado, a exordial ofertada perante a 2ª Vara Criminal de Curitiba
tem pedido bem mais abrangente, envolvendo inúmeros outros agentes e valores da ordem de seiscentos milhões de reais, cujos depósitos
encontram-se detalhadamente listados no laudo elaborado pelo Instituto
de Criminalística da Polícia Federal, que deu embasamento à denúncia.
Desse modo, observa-se que apenas uma ínfima parcela dos fatos
narrados na última peça acusatória (ou seja, somente os depósitos titulados por Olmar Gavazzoni) foram objeto da ação penal ajuizada em
Foz do Iguaçu.
Assim, caracterizada a coincidência em relação a essa pequena parte
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dos delitos noticiados, tal circunstância, por si só, não se mostra suficiente
para elidir o prosseguimento da ação penal em debate, a qual, como visto,
envolve partes, pedido e causa de pedir diversos.
Por outro lado, inexiste prevenção do Juízo de Foz do Iguaçu para
examinar os delitos supostamente conexos, na medida em que, a partir
do advento da citada Resolução nº 20/03 desta Corte, os inquéritos (e
respectivas denúncias) concernentes a crimes contra o sistema financeiro nacional ocorridos na Seção Judiciária do Paraná devem sempre ser
processados e julgados pela 2ª Vara Federal Criminal da Capital.
Logo, os dois juízos não são igualmente competentes para o exame
da matéria, nos termos do art. 83 do CPP, sendo-o tão-só o de Curitiba/
PR, conforme retromencionado. Cumpre lembrar que, consoante lição
de Julio Fabbrini Mirabete, “evidentemente, não há que se falar em prevenção se em processos diversos os fatos ou as pessoas são diferentes,
quando prevalece o lugar da infração mais grave, ou em que ocorreu
o maior número de infrações”. (Processo Penal, 10ª ed. Atlas, p. 185)
Pelo exposto, tendo em conta que o pedido de apreciação da matéria
foi expressamente renovado nas razões recursais, rejeito as preliminares
de litispendência e incompetência do Juízo.
Quanto ao alegado cerceamento da defesa, em razão do decisum
que, na fase do art. 499 do CPP, indeferiu a transcrição integral das
interceptações telefônicas realizadas (fl. 661), merece ser mantido o
entendimento do ilustre julgador a quo, por seus próprios fundamentos,
devidamente complementados na sentença (fls. 786/7), eis que não se
vislumbra ofensa ao direito questionado.
Conforme apontado pela ilustre agente ministerial em seu parecer (fls.
933/977), a jurisprudência do E. STJ (v.g. HC nº 30.545/PR, Rel. Min.
Félix Fischer) tem corroborado a orientação deste Regional no sentido
de não ser indispensável a degravação de todas as conversas telefônicas
interceptadas, desde que às partes seja franqueado o acesso a seu conteúdo durante a instrução criminal, o que, na hipótese sub judice, de fato
ocorreu.
Na mesma direção, cumpre referir os seguintes precedentes:
“HABEAS CORPUS. ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA. PRESSUPOSTOS DA
PRISÃO PREVENTIVA. ART. 312 DO CPP. DEMONSTRAÇÃO. CARTA PRECATÓRIA. GRAVAÇÕES TELEFÔNICAS. TRANSCRIÇÃO. ORDEM DENEGADA.
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1. A prisão preventiva, embora implique sacrifício à liberdade individual, é ditada por
interesse social, impondo-se a sua decretação por decisão fundamentada sempre que for
suficientemente demonstrada a presença de qualquer dos pressupostos inscritos no art.
312 do CPP. 2. omissis 3. Não compromete a validade da prova o fato da transcrição
das comunicações telefônicas ser apenas parcial e estar acompanhada de comentários
elaborados pela autoridade policial, pois qualquer dúvida quanto à fidedignidade da
transcrição ou à pertinência dos comentários pode ser imediatamente verificada pelo
juízo ou por qualquer das partes mediante acesso aos discos (CDs) que contêm a integralidade das conversações gravadas. 4. Justifica-se a restrição cautelar da liberdade
individual nos casos em que as provas evidenciam que a liberdade do suspeito (ou
condenado) pela prática do ato delituoso põe em risco a instrução criminal e a ordem
pública. Ordem de habeas corpus denegada. (TRF/4ª, HC nº 2003.04.01.028919-8/
PR, Relator Des. SURREAUX CHAGAS, TURMA ESPECIAL, julg. em 29.07.2003,
publ. no DJU em 13.08.2003, p. 144).
TRÁFICO DE ENTORPECENTES. CRIME. ASSOCIAÇÃO. COMPETÊNCIA.
INTERNACIONALIDADE. DENÚNCIA: INÉPCIA. INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA. AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. INUTILIZAÇÃO DAS FITAS MATRIZES.
TRANSCRIÇÃO DAS GRAVAÇÕES. PERÍCIA. TIPO OBJETIVO, ATITUDE DO
JUIZ, PROVA. INDÍCIOS, INTERROGATÓRIO, SILÊNCIO, TESTEMUNHAS
POLICIAIS. 1 a 3. (...). 4. A denúncia que descreve objetiva e minuciosamente todos
os fatos criminosos imputados aos réus, delimitando claramente a conduta atribuída a
cada um deles, de forma a permitir o pleno exercício da mais ampla defesa, não é inepta.
5. Irrepreensível o trabalho de interceptação telefônica realizado pela Polícia com a
devida autorização judicial, sendo absolutamente irrelevante a falta de alvará para o
procedimento num único dia, ao longo de quase três anos de diligências: essa pequena
falha não contamina o restante da prova, regularmente produzida. 6. Sem conseqüência processual a exclusão das passagens que não apresentavam nenhuma relevância
para as investigações, nas gravações dos diálogos interceptados, desde que o material
efetivamente utilizado como prova tenha sido devidamente preservado: fere o senso
comum exigir a conservação de registros totalmente despidos de qualquer interesse
para o processo. 7. Desnecessário que a transcrição das gravações resultantes da interceptação telefônica seja feita por peritos oficiais: tarefa que não exige conhecimentos
técnicos especializados, podendo ser realizada pelos próprios policiais que atuaram na
investigação. 8. A inserção de notas explicativas nas transcrições é providência salutar
e até mesmo indispensável para a compreensão dos diálogos interceptados, tendo em
vista a linguagem propositadamente enigmática empregada pelos traficantes nas suas
conversações telefônicas. 9. a 14 . omissis.” (TRF/4ª, ACR nº 2000.71.04.003642-3/
RS, 8ª Turma, Relator Des. Amir José Finocchiaro Sarti, julg. em 12.11.2001, publ.
no DJU em 16.01.2002, p. 1396).
No mérito, o douto magistrado sentenciante assim resumiu os fatos
descritos na extensa peça acusatória:
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“Narra a denúncia que a empresa paraguaia Casa de Câmbios Imperial S.R.L. mantinha uma conta CC-5 no Banco Araucária S/A em Curitiba, outra no Banco Araucária
em Foz do Iguaçu e ainda outra no Banco do Estado do Paraná – Banestado, também
em Foz do Iguaçu. As referidas contas teriam recebido créditos de R$ 631.251.003,53,
a título de disponibilidades no exterior. O cruzamento dos depositantes com relação de
comunicações de correntistas suspeitos enviadas pelo Banco Central do Brasil – BACEN
revelaria que 98,4%, 86,1% e 56,8% dos recursos depositados nas contas CC-5 mantidas na Agência Foz do Iguaçu no Banco Araucária, na agência de Curitiba do Banco
Araucária e no Banestado, respectivamente, seriam provenientes de contas correntes
comuns titularizadas por pessoas sem capacidade econômica para a realização dos
depósitos, ou seja, ‘laranjas’. Explicita ainda a denúncia dezenas desses laranjas (fls.
12/16). Com tal expediente, a Casa de Câmbios Imperial S.R.L. teria logrado remeter ao
exterior tais valores, burlando a fiscalização do Bacen quanto ao verdadeiro remetente.
Ainda, segundo a denúncia, a referida casa de câmbio teria por sócios Victor Manuel
Decoud Cardenas, O. A. C. M. e C. B. P., mas, de fato, seria controlada por brasileiros,
R. C. e o ora acusado, que também seriam sócios da Sigla Câmbio e Turismo Ltda.,
empresa sediada em Curitiba. D. C. ainda seria sócio da empresa Phoenix Câmbio e
Turismo Ltda.” (fl. 784).
Em face disso, D. C. e outros vinte e seis réus foram acusados da
prática dos delitos insculpidos nos artigos 4º, caput, 16 e 22, todos da
Lei nº 7.492/86; arts. 288 e 299, ambos do Estatuto Repressivo, bem
como no artigo 1º, incisos VI e VII, c/c o art. 4º da Lei nº 9.613/98. A
imputação de lavagem de dinheiro foi afastada na sentença, não tendo
havido insurgência do Ministério Público.
Pelo crime de quadrilha, o réu foi condenado à pena de 2 (dois) anos
e 8 (oito) meses de reclusão. Quanto às demais infrações noticiadas (falsidade ideológica, evasão de divisas e operação de instituição financeira)
foram consideradas absorvidas pela conduta descrita no artigo 4º da Lei
nº 7.492/86 (gerência fraudulenta), resultando o apenamento, frente à
multiplicidade de atos praticados, em dez anos de reclusão.
Daí a irresignação apresentada pelas partes. O Parquet aduz não haver absorção, e sim concurso material, postulando a condenação pelos
crimes do art. 299 do CP, arts. 16 e 22 da Lei 7.492/86, cumulativamente
às reprimendas já fixadas. O réu, a seu turno, sustenta ser incabível o
crime de “quadrilha” e, na hipótese de ser reconhecida a existência de
crime financeiro, tão-só a evasão de divisas, por força do princípio da
especialidade.
Quanto à materialidade delitiva, as evidências são inquestionáveis no
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sentido de ter havido remessa de divisas ao exterior. As provas dos autos,
notadamente os extratos do SISBACEN e o Laudo nº 1676/03 do Instituto
de Criminalística (fls. 3285/3358 do apenso XVII), apontam a existência
de 3.300 (três mil e trezentos) depósitos “irregulares”, provenientes de
contas-correntes tituladas por pessoas sem condições econômicas para
tanto, bem como que, através da Casa de Câmbios Imperial SRL, instituição “paraguaia” mantenedora de contas CC-5 nos Bancos Araucária
e Banestado, tais importâncias foram transferidas para fora do território
nacional, principalmente aos Bancos Integración e Del Paraná, e dali
redirecionadas para contas bancárias mantidas em outros países.
Esse mecanismo, segundo o referido laudo, permitiu a evasão de R$
587.476.755,99 (quinhentos e oitenta e sete milhões, quatrocentos e
setenta e seis mil, setecentos e cinqüenta e cinco reais e noventa e nove
centavos).
No tocante à autoria, alega a defesa, em suma, não haver prova
da ligação do acusado com as supostas fraudes praticadas em nome da
Imperial, sendo que os atos de gestão praticados pelo apelante na condução da empresa Sigla Câmbio e Turismo Ltda. não são merecedores
de reprovação penal.
Entretanto, a própria denúncia tratou de dirimir a quaestio, apontando
minuciosamente todos os fatos e documentos que levaram à conclusão
de serem os irmãos D. C. e R. C. (ou C.) os responsáveis pela gestão da
aludida Casa de Câmbio e, conseqüentemente, pelas remessas ilegais
descritas na peça acusatória. Nos dizeres da exordial:
“Durante as investigações da Polícia Federal nos 23 inquéritos acima referidos,
ficou claro que D. C. (vulgo ‘Pingo’) e R. C., proprietários da empresa Sigla Câmbio e
Turismo, sediada em Curitiba, são sócios de fato da empresa Casa de Câmbios Imperial
SRL. Tais denunciados, com a sucursal paraguaia, tinham o real escopo de facilitar a
respectiva remessa ilegal de valores para o Paraguai e outros países, através de conta
CC5 (de não-residentes). Outrossim, além de D. C. constar como sócio de direito da
empresa Phoenix, veja-se que continuou a gerir tal empresa mesmo após 25.09.98,
juntamente com seu irmão e denunciado R. C. (...) Conforme declarações de Carlos
Alberto de Lima, acostadas no procedimento criminal diverso de nº 2003.70.00.0309245 em trâmite nessa Vara Criminal, ‘O R. C., na realidade, é o proprietário da Casa de
Câmbios Imperial e também quem efetivamente mandava na Phoenix... Raramente o
R. C. comparecia na Phoenix, mas é certo que vinha com mais freqüência de Curitiba,
em aeronave própria ou vôo comercial, para visitar a Casa de Câmbios Imperial, além
de uma tabacaria que também é de sua propriedade e funciona em Ciudad Del Este.’
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R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
(...) Gustavo Luís Melgarejo Samudio disse às fls. 82/90 do procedimento criminal:
‘Tem conhecimento que a Casa de Câmbios Imperial, na realidade, é de propriedade
do cidadão de nome R. C., que utiliza os serviços do cidadão de nome O. C. M., este
figurando como sócio de papel da referida empresa’. (...) Outrossim, foram apreendidos
diversos documentos através da busca e apreensão requerida. Alguns desses documentos
indicam claramente a propriedade da Casa de Câmbios Imperial pelos irmãos R. C. e D.
C., dentre eles um contrato privado de cessão de cotas da referida empresa (fls. 15-17 do
apenso I). (...) Impende ainda asseverar que R. C. assina como Presidente da Imperial
Tabacos e O. A. C. M. (sócio de direito da Casa de Câmbio) assina ações como Diretor,
o que comprova a ligação entre os dois bem como a propriedade de tais empresas.(...)
Em declaração acostada no Inquérito Policial nº 523/97, à fl. 1715, D. C. corrobora o
fato de que O. é apenas um funcionário da empresa Sigla Câmbio e Turismo, sediada
em Curitiba, comprovando o elo entre tais pessoas e suas respectivas empresas. Assim
diz a declaração firmada por D. C.: ‘Declaramos, para os devidos fins, que o Sr. O.
A. C. M. trabalha em nossa empresa, na qual exerce a função de operador de câmbio,
com remuneração no valor de CR$ 1.000.000,00 (um milhão de Cruzeiros Reais) por
mês. Curitiba, 08 de fevereiro de 1994. Ora, tal documento confirma declarações já
transcritas de que O., apesar de constar como sócio de direito da Casa de Câmbios
Imperial, nada mais é do que um longa manus de R. C. e D. C. para fins de evasão de
divisas do Brasil...” (fls. 23/7)
Da mesma forma, o eminente julgador singular tratou com detalhes
a matéria, alicerçando sua convicção em evidências concretas, a partir
dos elementos colhidos durante a instrução processual, todos em concordância com os fatos apurados na fase investigatória.
Portanto, afigura-se impertinente o acusado negar a autoria das
práticas ilícitas, alegando que só era gerente de empresa regular e não
participava das operações da Casa de Câmbios Imperial, versão esta que
não encontra amparo no contexto dos autos. Nesse aspecto, comungo
com as bem-lançadas razões constantes da r. decisão monocrática (fls.
794/99) que deixo de transcrever a fim de evitar indesejável tautologia.
Atenta leitura do conjunto probatório não deixa margem a qualquer
dúvida sobre a efetiva associação de D. C. com seu irmão R. C., bem
como V. M. D. C. e O. A. C. M. (testas-de-ferro, de origem paraguaia),
no intuito de viabilizar a utilização das referidas contas para o expatriamento de recursos, sendo oportuno salientar que contra estes foi expedido
mandado de prisão, encontrando-se atualmente foragidos.
Em suma, depreende-se que o acusado, em conluio com os demais
agentes, valendo-se das facilidades proporcionadas pelo conhecimento
do mercado cambial, eis que dirigia a Sigla Câmbios e Turismo Ltda.,
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R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
efetuou a criação de uma pessoa jurídica com sede no Paraguai e através
da mesma, como instituição financeira estrangeira, abriu contas CC-5 em
bancos nacionais, objetivando a remessa de valores ao exterior, principalmente depositados por “laranjas”, ou seja, ocultando os verdadeiros
titulares das quantias.
No que tange à adequação típica das condutas perpetradas, reside
a questão fulcral do presente feito. Sobre o tema, o MM. Juiz a quo
manifestou-se nas seguintes letras:
“Não se trata de mera atribuição de identidade falsa para a realização de operação
de câmbio (artigo 21 da Lei nº 7.492) mas sim da estruturação de esquema de fraude
para burlar os sistemas de controle a respeito da remessa de divisas ao exterior, ao
arrepio, portanto, das regras definidas na Circular nº 2.677, de 10.04.96, do BACEN.
De outro lado, houve fraude na própria abertura e manutenção das contas CC-5 da Casa
de Câmbios Imperial SRL, pois ela pertencia e era controlada de fato por brasileiros,
sendo apenas na forma empresa domiciliada no exterior. A autorização concedida
pelo BACEN para abertura das contas constitui consentimento expresso para que
tal empresa ‘estrangeira’ operasse no Brasil, o que foi feito através das mesmas.
Desse modo, resta também configurado o crime do artigo 16 da Lei nº 7.492/86, pois
a permissão concedida para operação da instituição financeira foi obtida mediante
declaração falsa quanto aos proprietários da empresa e sua real natureza. Não está
caracterizado o crime da última parte do parágrafo único do artigo 22 da Lei 7.492/86,
pois não há registro nos autos da movimentação financeira da conta mantida pela Imperial no exterior (cfe. item 36, retro). De todo modo, a dimensão da lesão ao Sistema
Financeiro Nacional consistente na remessa ao exterior de R$ 587.365.306,33, bem
como a multiplicidade das fraudes (as remessas perduraram de 1996 a 1998 e teriam
sido efetuadas a partir de centenas de depósitos nas contas CC-5 da Imperial, cf. discriminação do anexo 1 do laudo nº 1.676/03, fls. 3289/3342 do apenso XVII) autorizam a subsunção dos fatos ao tipo penal do artigo 4º, caput, da Lei nº 7.492/86 (gerir
fraudulentamente instituição financeira). Está presente o requisito da multiplicidade
da prática de fraude na condução dos negócios da Casa de Câmbios Imperial SRL e
da Sigla Câmbio e Turismo Ltda., condição necessária para caracterização do referido
tipo penal (...) ‘gestão fraudulenta é aquela em que o administrador utiliza, continuada
e habitualmente, na condução dos negócios sociais, artifícios, ardis ou estratagema,
para pôr em erro outros administradores da instituição ou seus clientes.’ Questão que
se coloca é acerca da absorção ou da existência de concurso entre o crime de gestão
fraudulenta e as fraudes individualizadas. Alguns entendem que há concurso formal
(...) outros que ‘a gestão fraudulenta só se caracteriza se a conduta criminosa repetida não se amoldar a outro tipo penal, combinado com o artigo 71 do CP (...). Ora, o
crime do artigo 4º, caput, configura um plus em relação aos outros delitos autônomos
da Lei 7.492/86. Não é toda continuidade delitiva que caracteriza gestão fraudulenta.
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O crime em questão resta caracterizado apenas quando estiver presente número substancial de atos, possibilitando a valoração da própria gestão da instituição financeira
como fraudulenta, o que ocorre no presente caso. Se cumprida tal condição, o fato se
amolda ao artigo 4º, caput, mais rigorosamente apenado, aliás, do que qualquer outro
delito dessa Lei. Não faria sentido capitular fato mais grave em tipos menos gravosos.
Doutro lado, parece incoerente punir o gestor por cada delito individual e ainda por
delito que tem como elemento essas mesmas condutas individualizadas (...) Além do
mais, por uma simples questão de justiça, as penas mais graves previstas para o crime
do artigo 4º, caput, da Lei 7.492/86 são mais apropriadas e proporcionais para os casos
de cometimento de múltiplas fraudes financeiras (e não mera reiteração) do que as penas
dos tipos autônomos, ainda que estas sob a regra do concurso continuado. Portanto,
o artigo 4º, caput prevalece frente aos outros dispositivos da mesma lei. Certamente,
a multiplicidade de atos fraudulentos absorvidos pela tipificação nesse artigo deve
ser levada em consideração na fixação da pena. Por outro lado, o crime de falsidade
ideológica imputado ao acusado pela abertura de contas em nome de ‘laranjas’ e sua
utilização, resta também absorvido pelo crime de gestão fraudulenta ...” (fls. 798/801)
Com efeito, ao contrário do alegado pela defesa, não há cogitar do
crime previsto no artigo 21 da Lei 7.492/86 (atribuir falsa identidade para
realização de operação de câmbio) que configura hipótese nitidamente
diversa da tratada nestes autos.
Entretanto, no que pertine à subsunção de todos os fatos no art. 4º,
com a devida vênia, tenho que o entendimento do julgador monocrático
não merece acolhida, pois desconsidera o objetivo finalístico da conduta
perpetrada pelo infrator, qual seja, a evasão de divisas, entendendo restar
absorvida pelo tipo penal que visa a punir irregularidades no comando das
instituições financeiras, sem, todavia, observar que os crimes descritos no
artigo 22 e parágrafo único da Lei 7.492/86 constituem tipos especiais.
Vale dizer, há disposição normativa expressa no referido Diploma Legal
tipificando a conduta específica de remeter valores ilicitamente, verbis:
“Art. 22. Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão
de divisas do país. Pena – Reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. Parágrafo único.
Incorre na mesma pena quem, a qualquer título, promove, sem autorização legal, a
saída de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósitos não declarados
à repartição federal competente.”
In casu, mostra-se desnecessário recorrer à interpretação abrangente
do artigo 4º, pois de modo induvidoso o intuito do acusado era promover
a remessa do numerário para o exterior à margem da legalidade, incidindo
assim na infração mencionada no artigo 22, § único, da Lei nº 7.492/86.
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A propósito, transcrevo pertinente comentário de Rodolfo Tigre Maia
(Dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, p. 135/7):
“O parágrafo único tem, na primeira parte, a mesma objetividade jurídica do caput
(proteção à política cambial) ... A prática dos ilícitos deste artigo é utilizada com freqüência para a lavagem de dinheiro (legitimação de sua origem) oriundo do ‘caixa 2’
de empresas e do chamado crime organizado (...) O parágrafo prevê duas modalidades
autônomas de ilícitos. A primeira envolve a remessa ilegal de divisas para o exterior. O
tipo objetivo neste caso incrimina a ação de promover, qual seja, realizar, efetuar ou
pôr em execução, não importando a modalidade de operação utilizada (‘a qualquer
título’) a saída de moeda (numerário nacional ou estrangeiro) ou divisa (ouro, cheques sacados contra praças no exterior, créditos etc.) desautorizada, para o exterior.
Ao contrário do que indica uma leitura superficial do tipo, não se trata aqui de uma
norma penal em branco, não demandando legislação integrativa que fixe os limites
autorizados para a exportação de moeda e divisas. A lei tornou, desde logo, ilícita tal
conduta; as normas permissivas, se editadas, serão apenas causas de exclusão de tal
antijuridicidade, mas a aplicação do tipo independe da existência de tais normas (...)
São inumeráveis as modalidades de fraudes cambiais perpetradas com vistas à evasão
de divisas. Dentre estas destacam-se as do superfaturamento (...) subfaturamento, além
das operações de remessa ilegal através do transporte pessoal de numerário e das denominadas contas CC5. A famosa Carta Circular nº 5, editada pelo BACEN em 1969,
facultou às pessoas físicas ou jurídicas residentes, domiciliadas ou com sede no exterior,
abrir contas-correntes de livre movimentação no país (...) Esclarecendo a dinâmica
geral do crime de evasão de divisas ou remessa ilegal para o exterior (...) o agente,
com o concurso de testas-de-ferro, bancos comerciais e de ‘doleiros’, nas diferentes e
respectivas etapas do plano criminoso, criava nominalmente uma pessoa jurídica em
um paraíso fiscal e esta, por sua vez, na qualidade de empresa estrangeira, abria uma
CC-5 em banco autorizado a operar com câmbio. A seguir, o interessado na remessa
ilegal, geralmente utilizando-se de falsa identidade e documentação forjada, deposita
na CC-5 em moeda nacional, o montante que pretendia trasladar para fora do país, e,
no mesmo dia, ‘recebe um crédito equivalente em dólares no exterior’. Aduza-se que
o numerário expatriado poderia voltar legalmente ao país, já ‘esquentado’ ou ‘lavado’,
através da operação inversa. A CC-5 foi revogada pela Circular BC nº 2.677, em vigor
a partir de 22.04.96...”
A par disso, também entendo não restar configurado, na espécie, o
crime de gestão fraudulenta, porquanto ausente a adequação formal e
material das condutas descritas na denúncia ao referido tipo penal, sendo
a prova dos autos insuficiente para a caracterização desse ilícito.
Cumpre esclarecer que na inicial e alegações finais do Ministério
Público não foram imputadas ao Recorrente ações concretas relacionadas à gerência das empresas Sigla e Phoenix que, em princípio, foram
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R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
regularmente constituídas no Brasil e detinham autorização legal para
funcionar como agências de turismo e operadoras de câmbio.
Segundo se depreende, o fato narrado é que os titulares destas
empresas, notadamente R. C. e D. C., aproveitando-se da conjuntura
amplamente favorável, engendraram a constituição fraudulenta de uma
terceira sociedade, ou seja, a Casa de Câmbios Imperial, como se fosse
instituição financeira estrangeira, sediada no Paraguai, propiciando em
face disso a abertura das guerreadas contas CC-5 e os atos subseqüentes.
Por outras palavras, a narrativa da peça acusatória, embora faça referência àquelas pessoas jurídicas (Sigla e Phoenix), não aponta objetivamente quais atos teriam sido praticados no âmbito da sua administração,
limitando-se a descrever os ilícitos decorrentes da operação, pelos réus,
da Imperial SRL.
Ora, o delito do art. 4º pressupõe, a priori, que o agente seja diretor
ou gerente de uma instituição formalmente legalizada, assim entendida
uma daquelas previstas no artigo 1º da lei de regência, figurando como
sujeito ativo desse crime as pessoas que detêm a condição de administradores e, nesta condição, venham a praticar fraudes.
Diferentemente ocorre, contudo, quando se verifica a criação e operação irregular da própria instituição financeira, como no caso em tela,
evidenciando tratar-se da conduta típica descrita no artigo 16 da aludida
lei, que pune o ato de fazer operar instituição financeira sem autorização
ou mediante autorização obtida com declaração falsa, motivo por que
não se revela correto aplicar a pena de tal dispositivo cumulativamente
com a do crime de gestão.
Há incongruência lógica em imputar-se ao réu a constituição da casa de
câmbio mediante declaração falsa, vale dizer, não possuindo autorização
válida para funcionar como instituição financeira (art. 16) e ao mesmo
tempo acusá-lo de gerir de forma imprópria essa empresa, a qual por si só
já é inidônea, eis que criada através de sócios fictícios (testas-de-ferro),
atuando, portanto, de modo clandestino no mercado.
Nessa direção, peço vênia para transcrever trecho de voto proferido
pelo eminente Des. Luiz Fernando Wowk Penteado, desta 8ª Turma, em
hipótese similar:
“Observo que o dispositivo em exame tem como objetivo a higidez do Sistema
Financeiro Nacional, assegurando, em princípio, a confiança dos usuários/investidores
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(...) O bem jurídico protegido na norma em estudo, o valor elementar da vida comunitária que visa preservar, assim, é supra-individual, vinculado ao funcionamento do
sistema (...) Aliás, ‘o bem jurídico principal dos crimes contra o sistema financeiro é
a ordem pública econômica; secundariamente, podemos considerar o patrimônio do
consumidor (usuários, aplicadores, poupadores, segurados, etc.) também protegidos
pela Lei 7.492/86. (...) Tenho que não se pode conceber a conduta do réu noticiada nos
autos como crime, no contexto relatado, eis que a prova dos autos é de uma empresa –
instituição financeira apenas por ficção e para o fim do artigo 16 da Lei 7.492/86 – não
autorizada a operar no sistema financeiro, atuando com a conivência de expressiva
parcela de uma determinada comunidade, no mercado marginal, insuflada tanto pela
ganância e desapego do seu gestor às normas reguladoras do mercado formal, quanto
também impulsionada pelos interesses obviamente especulativos dos seus ditos investidores. Não há de ser admitido, permissa maxima venia, que a norma em causa proteja
um desvalor jurídico. Ela objetiva preservar o sistema financeiro oficial, não o patrimônio ou a credibilidade de quem opera ou aplica no mercado marginal, desautorizado.
Quem não pode praticar a conduta vedada pelo tipo em questão é o administrador de
instituição financeira regular, que opera devidamente autorizada. Aliás, pertinente se
apontar que, em alguns casos da Lei 7.492/86, ‘o tipo requer a existência de instituição financeira formalmente constituída (arts. 4º, 7º, 10, 11, 12 e 17)’ (in José Carlos
Tortima, Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, Lumen Juris, 2002, pág. 13)
...” (ACR nº 2002.04.01.025946-3/SC, julg. em 27.08.2003)
Concludentemente, o acusado praticou os delitos tipificados nos arts.
16 e 22, parágrafo único, da Lei nº 7.492/86, em concurso material, não
restando nos autos demonstrada, por outro lado, a gestão fraudulenta.
Impõe-se, destarte, a modificação da sentença recorrida nesse ponto.
No tocante à falsidade ideológica (artigo 299 do CP) assim foi descrita
pelo agente ministerial nas razões de apelo:
“Conforme ilustrado na exordial acusatória e repisado em sede de alegações finais,
D. C., em conluio com os demais denunciados (...) inseriu elementos inverídicos em
diversos documentos, tais como declarações de rendimentos, residência e trabalho,
bem como assinou contratos sociais corroborando diversas situações falsas, abrindo
contas em bancos oficiais e privados, em detrimento do Banco Central do Brasil, dissimulando a origem dos respectivos recursos, sempre no escopo de evadir divisas ao
exterior”. (fl. 823)
Em face dessa narrativa, bem como da prova dos autos, impende
considerar que, aqui sim, aplica-se o princípio da consunção, uma vez
que os crimes de falsum constituíram iter necessário à perpetração dos
crimes contra o sistema financeiro supra-referidos.
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Efetivamente, a inserção de dados e elementos inverídicos nos documentos de abertura de contas-correntes, contratos sociais entre vários outros, conforme reconhece o próprio Parquet, tinha por objetivo a remessa
do numerário (art. 22) e, além disso, de forma autônoma, a constituição
da Casa de Câmbios Imperial de forma fraudulenta (art. 16). Logo, tenho
por consumida a falsidade ideológica nas condutas delituosas posteriores,
o que deverá ser objeto de apreciação na dosimetria da pena.
No que pertine ao crime de quadrilha, em que pese ser necessário, para
a configuração do delito previsto no artigo 288 do CP, como circunstância
elementar do tipo, o concurso de mais de três pessoas, entendo ser possível a condenação em separado de apenas um dos integrantes, desde que
comprovada nos autos a existência da organização, com vínculo estável
e permanente, como ocorre na espécie.
Por outras palavras, a separação facultativa do processo contra os
vários membros do bando não impede que um deles seja condenado separadamente, se no feito desmembrado há prova da participação de todos.
Nesse sentido, veja-se a jurisprudência da Suprema Corte, colacionada
por Julio Fabbrini Mirabete:
“STF: A tese de que é impossível condenar-se uma só pessoa em um processo por
delito de quadrilha, por ser crime de concurso necessário, não merece guarida, porquanto o que importa é a existência de elementos nos autos denunciadores da societas
delinquentium. É irrelevante não abranger a condenação os demais componentes do
bando, pois a doutrina entende que, mesmo não sendo possível a identificação de um
ou de alguns dos quatro integrantes, ainda assim o delito não deixa de existir (RTJ
112/1064).” (in: CP Interpretado, p. 1548)
No presente caso, encontrando-se demonstrada a associação para
a prática de ilícitos, bem como perfeitamente identificados os outros
agentes responsáveis pela Casa de Câmbios Imperial SRL, nos termos da
fundamentação expendida, o suposto prejuízo às suas defesas (em face do
alegado julgamento antecipado da causa) não se estende ao Recorrente,
porquanto D. C. foi regularmente denunciado e teve oportunidade de
impugnar a acusação, segundo o devido processo legal.
Ademais, mostra-se correto o desmembramento amparado no artigo
80 do CPP, em razão de apenas o Apelante encontrar-se preso, buscando
conferir maior celeridade ao andamento do feito, bem como evitar possível alegação de excesso de prazo, o que só traz benefício ao próprio
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acusado.
Em vista disso, aliás, nem aos co-réus caberia argüir a aventada
nulidade nos autos principais, pois a cisão decorre também do fato de
estarem foragidos e, assim, não podem beneficiar-se da situação por eles
mesmo criada consoante o princípio expresso no artigo 565 do Diploma
Processual.
Frente ao exposto, tenho que deve ser mantida a sentença em relação
à quadrilha (art. 288 do CP), bem como alterado o decreto condenatório
para absolver o denunciado, com apoio no art. 386, inc. VI, do CPP,
em relação ao crime de gestão fraudulenta (art. 4º da Lei 7.492/86), e
condenar D. C. pelo cometimento dos delitos tipificados nos artigos 16
e 22, parágrafo único, da Lei nº 7.492/86, em concurso material (art. 69
do CP) esse último, evidentemente, em continuidade delitiva. (art. 71
do Estatuto Repressivo)
Passo à dosimetria, analisando globalmente os vetores do artigo 59
do Código Penal.
A culpabilidade do réu é acentuada, merecendo reprovação acima do
normal, pois, como visto, era profissional experiente no mercado financeiro, atuando na área de câmbio e turismo, de quem se deveria esperar
conduta dentro da legalidade. O fato de responder a outra ação penal, foi
desconsiderado pelo magistrado a quo na avaliação dos antecedentes,
motivo por que não merece relevo. Não há registro de conduta social ou
personalidade desabonadora. Os motivos do crime são normais à espécie.
Na análise das circunstâncias e conseqüências do delito, mister considerar a extensão das fraudes perpetradas, com a realização de diversos
atos criminosos preparatórios (falsidades), bem como, principalmente,
a vultosa quantia evadida através das referidas contas.
Nesse particular, adoto os bem-lançados fundamentos do ilustre julgador monocrático, verbis:
“As conseqüências do crime são extremamente graves, importando em remessa
ilegal ao exterior de R$ 587.365.306,33. O dano provocado às divisas nacionais é
irreparável. A ocultação do verdadeiro remetente pode ter propiciado vantagem a
criminosos de diversas espécies. A atividade delituosa perdurou por vários anos e
foi perpetrada através de diversas fraudes, abertura de contas em nome de ‘laranjas’,
realização de centenas de depósitos fraudulentos a partir dessas contas, o que revela
acentuado desprezo pela lei penal. A atividade delitiva ainda implicou no envolvimento de diversas pessoas, muitas delas de forma não totalmente consciente, em fraudes
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cambiais, provocando dissabores em suas vidas. O propósito do crime parece ter sido
apenas o desejo de locupletar-se em prejuízo do sistema financeiro nacional e de toda
a coletividade...” (fl. 802)
Dessa forma, tendo em conta os parâmetros legais cominados (reclusão: de 2 a 6 anos), fixo a pena-base para a evasão de divisas em 03
(três) anos. Sem agravantes ou atenuantes, incide tão-só o acréscimo
da continuidade delitiva (art. 71) em face da prolongada reiteração dos
depósitos e remessas noticiados (3.300 vezes durante os anos de 1996 a
1998) na base de 2/3(dois terços), perfazendo 5 (cinco) anos de reclusão.
Para o crime do artigo 16 da Lei 7.492/86 (1 a 4 anos), prevalece a
avaliação negativa concernente à culpabilidade, circunstâncias e conseqüências da prática delitiva, motivo por que estabeleço a pena de 2 (dois)
anos de reclusão, a qual torno definitiva, ante a ausência de qualquer
causa modificadora.
No tocante à quadrilha, observando as referidas vetoriais, bem como os
limites mínimo e máximo legalmente fixados, reduzo a sanção carcerária
para 2 (dois) anos de reclusão, que entendo suficiente na hipótese para
a prevenção e repressão de tal conduta delituosa.
Aplicando a regra do concurso material expressa no artigo 69 do Estatuto Repressivo, fica a reprimenda definitiva fixada em 9 (nove) anos
de reclusão, no regime inicial fechado. (art. 33, § 2º, a, do CP)
Efetuando o cálculo da multa de forma proporcional às penas privativas de liberdade fixadas, na linha dos precedentes desta Corte, resulta
em 272 (duzentas e setenta e duas) unidades diárias para a evasão de
divisas e 126 (cento e vinte e seis) dias-multa no que tange ao crime do
art. 16 da Lei 7.492/86, sendo que o artigo 288 do CP não prevê sanção
pecuniária.
Embora a sentença tenha estabelecido o total de 300 (trezentos) dias-multa pela condenação como incurso no art. 4º, não há falar em reformatio in pejus, tendo em conta o acolhimento em parte da irresignação
do agente ministerial, que pediu expressamente a condenação do réu
com base nos apontados dispositivos.
Por fim, no tocante ao valor unitário do dia-multa, fixado na sentença
em 40 (quarenta) salários mínimos, com apoio no art. 49, § 1º, do CP, c/c
o art. 33 da Lei 7.492/86 (elevação até o décuplo) merece acolhimento
o pedido da defesa, pois, embora se mostre boa a condição econômica
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
281
do acusado, não há evidências concretas da sua atual situação patrimonial que determine a multiplicação prevista no referido artigo 33,
considerando-se, ainda, que parte das divisas expatriadas pertenciam a
terceiros. Em face disso, afigura-se razoável a redução desse quantum
para 05 (cinco) salários mínimos.
Em suma, fixo a pena definitiva de D. C. em 9 (nove) anos de reclusão, no regime inicial fechado, bem como 398 (trezentos e noventa e
oito) dias-multa no valor de 5 (cinco) salários mínimos, pela prática dos
delitos previstos nos artigos 22, § único, e 16 da Lei 7.492/86, além da
infração ao artigo 288, c/c os arts. 69 e 71 do Código Penal.
Com essas considerações, nego provimento ao agravo regimental e
dou parcial provimento aos apelos, nos termos da fundamentação.
RETIFICAÇÃO DE VOTO
O Exmo. Sr. Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro: - Após as doutas ponderações apresentadas pelo eminente Revisor, peço vênia para
reconsiderar o posicionamento anterior, inicialmente no que pertine ao
delito previsto no artigo 288 do Código Penal.
Com efeito, tendo em conta o ajuizamento de precedente denúncia
(Proc. nº 97.101.02388-2) em trâmite na 1ª Vara Federal Criminal de
Foz do Iguaçu, está configurada a litispendência tão-somente em relação
a esse crime, eis que no tocante aos demais delitos os fatos narrados são
diversos conforme já restou assentado pela Turma. Portanto, em face
do princípio que veda o bis in idem, acolho a preliminar para afastar a
condenação pelo crime de quadrilha.
No que tange à sanção pecuniária, embora tenha me manifestado
pela redução do quantum unitário do dia-multa, cabe retificar o voto
proferido, também nesse ponto, isso porque, consoante bem salientado
pelo ilustre Des. Paulo Afonso Brum Vaz, além do valor significativo das
transações financeiras noticiadas, resultando em expressivo montante de
divisas remetidas ao exterior, as boas condições econômicas do acusado
encontram-se efetivamente demonstradas nos autos, em especial frente
à notícia de que os irmãos C. deslocavam-se em um “jatinho” particular
nas freqüentes viagens entre Curitiba e Foz do Iguaçu.
Pelo exposto, reformulando entendimento anterior, acolho as considerações dos nobres colegas e mantenho o valor unitário do dia-multa
282
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
conforme fixado pelo ínclito julgador monocrático.
Diante disso, a reprimenda fica reduzida para 07 (sete) anos de reclusão, no regime inicialmente fechado, sendo 5 (cinco) anos pela evasão de
divisas em continuidade delitiva (art. 22, § único, da Lei 7.492/86, c/c o
art. 71 do CP) e 2 (dois) anos pela infração ao artigo 16 da Lei dos Crimes
contra o Sistema Financeiro Nacional, além de 398 (trezentos e noventa
e oito) dias-multa, à razão unitária de 40 (quarenta) salários mínimos.
Por outro lado, manifestando-se oralmente, argüiu a defesa estar
prescrito o crime previsto no artigo 16 da Lei 7.492/86, cuja pena restou
fixada em 2 (dois) anos de reclusão.
O tema merece algumas reflexões. Analisando detidamente o caderno
processual, depreende-se que o Ministério Público ofereceu denúncia
pelos delitos de “lavagem” de dinheiro (Lei 9.613/98) além dos praticados em desfavor do Sistema Financeiro Nacional, quadrilha e falsidade
ideológica.
O crime do art. 4º (gestão fraudulenta) foi afastado, em resumo, porque,
embora os réus também fossem titulares da Sigla Câmbio e Turismo Ltda.
e Phoenix Câmbio e Turismo Ltda., não foram descritos pelo Ministério
Público concretamente os “atos de gestão” que teriam sido realizados pelo
réu de forma ilícita no âmbito da administração das referidas empresas,
requisito necessário à configuração do delito em comento. Por isso, o
exame do feito restou limitado à operação no Brasil da Casa de Câmbios Imperial SRL, instituição financeira com sede no Paraguai e que o
conjunto probatório demonstrou ser, de fato, gerida por D. C. e R. C.,
tendo sido perpetrada evasão de divisas da ordem de R$ 631.000.000,00
(seiscentos e trinta e um milhões de reais).
A respeito da infração prevista no art. 16 da Lei nº 7.492/86, o decreto condenatório resulta, em síntese, da conclusão de que a empresa
falsamente constituída (eis que os sócios paraguaios não passavam
de mandatários ou “testas-de-ferro” dos titulares brasileiros) passou a
operar ilicitamente no Brasil, através da manutenção de contas CC-5 de
instituições financeiras estrangeiras, notadamente nos Bancos Araucária
e Banestado, em Foz do Iguaçu e Curitiba.
Portanto, restou logicamente caracterizada a prática de “fazer operar,
sem autorização, ou com autorização obtida mediante declaração falsa,
instituição financeira, inclusive de distribuição de valores mobiliários
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
283
ou de câmbio” prevista no referido artigo 16.
Os verbos nucleares do tipo indicam tratar-se de crime permanente,
vale dizer, enquanto a instituição estiver operando sem autorização ou
mediante documentação falsa, perfectibiliza-se a conduta delituosa, independentemente da evasão de divisas, que constitui crime autônomo.
(art. 22, § único)
Nesse contexto, mister consignar que há nos autos documentos indicando que a operação da Casa de Câmbios Imperial não se limitou aos
depósitos realizados entre os anos de 1996 e 1998, mas que a aludida
instituição continuou funcionando ilegalmente, no mínimo, até abril de
2000.
Com efeito, segundo os documentos trazidos pela própria defesa
(fls. 992/1008) no intuito de comprovar “que a ‘empresa criminosa’ já
estava indubitavelmente ‘desmantelada’ há mais de três anos, quando
foi decretada a prisão preventiva”, a “Diretoria da Câmbios Imperial
Sociedade Anônima reuniu-se em Assembléia Geral Extraordinária no
dia 11 de abril de 2000 e resolveu pela liquidação e dissolução da sociedade”. (fl. 993)
Da mesma forma, consta que o Banco Central do Paraguai publicou
Resolução datada de 21 de setembro de 2000, retirando naquela data a
licença da Imperial para operar como Casa de Câmbio. (fl. 1005)
Corroborando essas informações, existem no processo outros elementos que indicam não terem as operações cessado no ano de 1998.
Na Auditoria Interna do Banestado, realizada em novembro de 1999,
documentos referem a movimentação da conta CC-5 da Casa de Câmbios
Imperial nº 034136-9 (fls. 20/191 – apenso XVI). Nos Apensos XVII e
XVIII, encontra-se documentação noticiando a existência de conta mantida pela Casa de Câmbios Imperial no Banestado em Nova York/USA,
cuja agência foi extinta apenas em março de 1999, onde era recebido o
numerário proveniente de Foz do Iguaçu.
Os laudos periciais realizados pelo Instituto de Criminalística da
Polícia Federal nos diversos inquéritos que embasaram a denúncia, em
especial o Laudo nº 1.392/03 (Apenso XIII), examinaram os registros no
SISBACEN das operações de contas CC-5 realizadas até 31 de janeiro
de 2000, pelas diversas instituições financeiras envolvidas, apurando
detalhadamente os valores movimentados pela Imperial nesse período.
284
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
(fls. 2464/65)
Por fim, no pedido de interceptação telefônica dos réus (Proc. nº
2003.70.00.032148-8), o Parquet faz alusão justamente às operações
realizadas através das Contas CC-5 da Casa de Câmbios Imperial S/A
entre 22.04.96 e 31.01.2000. (apenso XXII)
Forçoso reconhecer que tais peças possuem estreita vinculação com
a presente ação penal, cuja denúncia foi recebida no dia 08.08.2003,
antes, portanto, de haver transcorrido o prazo de 4 (quatro) anos, o que
inviabiliza, desta forma, o alegado lapso prescricional.
Ainda que assim não fosse, cumpre referir que a condenação pelo
crime do art. 16 resulta do julgamento do apelo do MPF por esta Corte,
pois o magistrado de primeiro grau havia declarado a absorção desse
delito pela gestão fraudulenta. (art. 4º da Lei nº 7.492/86)
Desse modo, não tendo sequer ocorrido o trânsito em julgado da
sentença para o Parquet, não há cogitar de prescrição. (art. 110, § 1º,
do CP)
Alega, ainda, a defesa, ter o acusado direito ao regime semi-aberto.
Não obstante, considerando tratar-se de infrações penais praticadas no
âmbito de “organização criminosa”, aplicável à espécie o disposto no
art. 10 da Lei nº 9.034/95, verbis:
“Os condenados por crimes decorrentes de organização criminosa iniciarão o
cumprimento da pena em regime fechado”.
Ademais, sobre o regime de cumprimento da pena, veja-se o disposto
no art. 33 e parágrafos do Estatuto Repressivo:
“Art. 33. (...) § 2º As penas privativas de liberdade deverão ser executadas em
forma progressiva, segundo o mérito do condenado, observados os seguintes critérios
e ressalvadas as hipóteses de transferência a regime mais rigoroso: a) o condenado a
pena superior a 8 (oito) anos deverá começar a cumpri-la em regime fechado; b) o
condenado não reincidente, cuja pena seja superior a 4 (quatro) anos e não exceda a
8 (oito) poderá, desde o princípio, cumpri-la em regime semi-aberto; c) omissis. § 3º.
A determinação do regime inicial de cumprimento da pena far-se-á com observância
dos critérios previstos no art. 59 deste Código.”
Como se vê, o comando da alínea a estabelece uma obrigação (deverá),
enquanto a alínea b do apontado dispositivo atribui uma faculdade ao
julgador (poderá) orientada pelas vetoriais insculpidas no art. 59 do CP.
Logo, mostrando-se desfavoráveis ao réu in casu as referidas circunsR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
285
tâncias judiciais, impõe-se manter o regime inicial fechado.
Quanto à possível progressão, pelo fato de o Apelante estar recolhido
há mais de 10 (dez) meses, trata-se de matéria a ser examinada pelo Juízo
das Execuções Penais, nos termos do art. 112 da Lei nº 7.210/84, com a
redação da Lei nº 10.792, de 1º de dezembro de 2003.
Segundo esse dispositivo, o pedido de transferência de regime será
analisado pelo Juiz da Execução, quando o preso tiver cumprido ao
menos um sexto (1/6) da pena no regime anterior (o que não é o caso
dos autos) e ostentar bom comportamento carcerário comprovado pelo
diretor do estabelecimento, sendo que “a decisão será sempre motivada”, bem como “precedida de manifestação do Ministério Público e do
defensor”. (art. 112, § 1º)
Assim, não cabe a esta Corte manifestar-se sobre a pretensão deduzida,
pois não basta o eventual preenchimento do requisito temporal para a
progressão, devendo ser regularmente observado o procedimento legal,
perante o juízo de primeiro grau competente.
Nesse contexto, agregando ao voto já proferido as presentes considerações, nego provimento ao agravo regimental e dou parcial provimento
aos apelos, nos termos da fundamentação.
RECURSO CRIMINAL EM SENTIDO ESTRITO
Nº 2003.71.00.062833-0/RS
Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz
Recorrente: Ministério Público Federal
Recorrido: C. M. R.
EMENTA
286
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
Penal. Art. 19 da Lei nº 7.492/86. Conceito de financiamento. Competência.
Segundo a doutrina comercialista, financiamento é mútuo com finalidade vinculada (COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial.
5. ed. São Paulo: Saraiva, 1997 e MARTINS, Fran. Contratos e Obrigações Comerciais. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999), não estando
abrangido em seu campo conceitual o contrato de mútuo simples, assim
entendido aquele desprovido de qualquer finalidade empreendedora.
Se alguém obtém, mediante fraude, empréstimo em instituição financeira, sem se obrigar a dar ao dinheiro finalidade específica (desenvolvimento de atividade econômica, aquisição de casa própria etc.), comete,
em tese, o crime de estelionato, e não aquele previsto no art. 19 da Lei
que define os Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional.
Competência estadual reconhecida.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide
a 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade,
negar provimento ao recurso em sentido estrito, nos termos do relatório,
voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente
julgado.
Porto Alegre, 14 de abril de 2004.
Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz, Relator.
RELATÓRIO
O Exmo. Sr. Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz: Cuida-se de recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público Federal contra
decisão monocrática que declinou da competência para o julgamento de
ação penal instaurada em desfavor de C. M. R. pelo cometimento, em
tese, do crime insculpido no art. 19, caput, da Lei nº 7.492/86.
A decisão recorrida adotou como fundamento que “empréstimo” não
se confunde com “financiamento” e, em conseqüência, determinou o
traslado de peças e ulterior remessa ao juízo estadual.
Em suas razões, o recorrente aduz que a noção de financiamento
designa toda operação ativa de instituição financeira em que se fornece
capital, na qual empréstimo e a abertura de crédito são espécies do gêR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
287
nero financiamento. Assim, entende estar configurado o delito contra o
Sistema Financeiro Nacional, de competência da Justiça Federal.
A Procuradoria Regional da República opinou pelo provimento do
recurso.
É o relatório.
VOTO
O Exmo. Sr. Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz: O art. 19, caput,
da Lei nº 7.492/86 vem assim redigido:
“Art 19. Obter, mediante fraude, financiamento em instituição financeira:
Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.”
Consoante dispõe o art. 26 da citada lei, os crimes ali previstos são
de competência da Justiça Federal.
Para fins de fixação da competência, necessária se faz a delimitação do
exato alcance do termo “financiamento”, o qual constitui elemento normativo do tipo, instituto que, nas palavras de Assis Toledo, é constituído
por termos ou expressões que só adquirem sentido quando completados por um juízo de valor preexistente em outras normas jurídicas ou
ético-sociais. (in Princípios Básicos de Direito Penal, 5.ed., São Paulo:
Saraiva, 1997, p. 153)
Fábio Ulhoa Coelho define financiamento como aquele mútuo bancário em que o mutuário assume a obrigação de conferir ao dinheiro
emprestado uma determinada finalidade, como, por exemplo, investir no
desenvolvimento de uma atividade econômica ou adquirir a casa própria.
(Manual de Direito Comercial, 9.ed., São Paulo: Saraiva, 1997, p.435)
Fran Martins, de sua vez, o conceitua como o contrato pelo qual o
banco adianta a certa pessoa uma importância determinada para a execução de um empreendimento (...) (Contratos e Obrigações Comerciais,
14.ed., Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 443)
Ambos os doutrinadores conferem ao termo financiamento o
288
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
sentido de empréstimo vinculado, característica que o diferenciaria
do mútuo, da abertura de crédito, do crédito rotativo etc. Ainda que se
quisesse admitir que a doutrina não é unânime a respeito, o certo é que
a dúvida interpretativa deveria militar em favor do réu. “O princípio in
dubio pro reo, como regra geral interpretativa”, diz Damásio de Jesus, é
inaceitável. “E há mesmo quem o proscreva totalmente como fórmula de
interpretação”. “Os adágios apontados”, prossegue, “não podem servir
de normas gerais interpretativas, uma vez que constituiria erro afirmar, a
priori, que o resultado da interpretação deve ser restritivo, extensivo ou
sempre favorável ao agente. Se a finalidade desta é apontar a vontade da
lei, só depois do emprego de seus meios surgirá o resultado: extensivo, se
aquela for extensiva; restritivo, se restritiva, mas, na dúvida sobre qual
a vontade da norma, após o uso dos meios interpretativos, nada obsta
que os adágios sejam empregados” (in Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 36). A pena do delito previsto no art. 19 da Lei nº 7.492/86
(02 a 06 anos) é mais severa do que aquela estabelecida para o crime de
estelionato (01 a 05 anos).
No caso em tela, narra a denúncia (fl. 03):
“O réu, intitulando-se C. B. G., celebrou com o Banco do Brasil, conforme instrumento da fl. 196, os seguintes contratos de financiamento: contrato de abertura de
crédito, com limite de R$ 400,00 (quatrocentos reais); contrato de emissão e utilização
dos cartões ourocard, com limite de R$ 500,00 (quinhentos reais); contrato de abertura
de crédito rotativo – CDC Automático, com limite de R$ 1.418,00 (um mil, quatrocentos e dezoito reais). As informações falsas constam da proposta de abertura de conta
corrente e de poupança (fl. 197). Ademais, o acusado utilizou identidade (fl.39), cartão
de CPF (envelope fl. 33 e fl. 36), comprovante de endereço (fl. 46) e declaração de
renda (fl. 47/56), todos falsos contendo nome fictício: C. B. G.”
Assim, tomado o termo “financiamento” restritivamente – contrato
em que o empréstimo do capital deve estar, obrigatoriamente, atrelado a
um fim específico, de conhecimento da instituição financeira –, a conduta
perpetrada pelo denunciado não se enquadra no tipo penal do art. 19 da
Lei nº 7.492/86, afastada, por conseguinte, a competência da Justiça
Federal para processar e julgar o feito.
Neste sentido, o seguinte precedente:
“PENAL. COMPETÊNCIA. JUSTIÇA FEDERAL. SISTEMA FINANCEIRO
NACIONAL. LEI Nº 7.492/86. EMPRÉSTIMO. FINANCIAMENTO. FINALIDADE.
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
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FALTA DE VINCULAÇÃO.
1. A teor do art. 109, VI, da Constituição, há competência da Justiça Federal no
tocante aos crimes contra o sistema financeiro nacional.
2. No caso, o acusado se utilizou de identidade falsa para obter operação comercial
com novação de débito anterior composição de dívida com instrumento particular
de confissão) junto ao Banestado, mediante o depósito em conta-corrente do saldo
devedor.
3. Na hipótese vertente, trata-se de empréstimo (operação creditícia sem finalidade
vinculada) ainda que tenha sido concedido mediante restrições (novação de dívida e
forma de depósito), circunstância que afasta a competência da Justiça Federal (arts.
19, parágrafo único, e 26 da Lei nº 7.492/86).” (TRF4, RSE 2003040133447/PR,
17.09.2003, Rel. Des. Fed. Luiz Fernando Wowk Penteado)
Pelo exposto, voto no sentido de negar provimento ao recurso em
sentido estrito.
APELAÇÃO CRIMINAL Nº 2003.71.02.000424-7/RS
Relatora: A Exma. Sra. Desa. Federal Maria de Fátima Freitas
Labarrère
Apelantes:Ministério Público Federal
R. C. O. Réu Preso
Advogado: Defensoria Pública da União – Dr. Fabrício Von Mengden
Campezatto
Apelante:I. S. Réu Preso
Advogado: Dr. Antonio Carlos Barbachan Debreuilh
Apelados: (os mesmos)
EMENTA
Roubo. Receptação. Porte ilegal de armas. Autoria. Efeito extensivo
aos co-réus.
290
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
1. Não há como se considerar o crime de porte ilegal de arma como
meio necessário para prática do roubo, pois, além do nexo de dependência entre as condutas ilícitas, o princípio da consunção diz que ocorre
a absorção de um crime (meio) por outro (fim) quando aquele for meio
necessário para a consecução deste, não se podendo, de forma alguma,
dizer que portar ilegalmente arma de fogo seja meio necessário para a
realização do crime de roubo a banco. Não fosse isso, não há consunção
quando se trata de bens jurídicos diversos.
2. Já decidiu o STF que “o roubo se consuma no instante em que o
ladrão se torna possuidor da coisa alheia móvel, não sendo necessário
que ela saia da esfera de vigilância do antigo possuidor”. (STF, RVCrim
4821, Plenário, DJU 11.10.91, p. 14248)
3. O dolo na receptação deve ser o direto, ou seja, a vontade livre e
consciente de adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar ou influir
para que terceiro adquira, receba ou oculte, sabendo tratar-se de produto
de crime. Conforme a lição de Celso Delmanto, “não basta o dolo eventual, sendo indispensável o dolo direto: que o agente saiba (tenha ciência, certeza) de que se trata de produto de crime.(...) Para a receptação
dolosa, é imprescindível que o agente tenha certeza da origem criminosa
da coisa (STF, mv – rt 599/434; TJDF, ap. 11303, DJU 03.02.93, p. 2105,
in RBCcr 2/241; TJSP, RT 759/592; TACRSP, RJDTACr 20/156; TJMS,
RT 606/396; TARS, RF 263/340; TJRJ, RF 260/326; TJBA, BF 36/157),
devendo a prova a respeito ser certa e irrefutável (TRF da 5a R., Ap. 219,
mv – DJU 20.06.91, p. 14464).” (Código Penal Comentado, 6a edição,
Renovar, 2002, p. 428/429)
4. Na receptação, não havendo provas conclusivas acerca da elementar “produto de crime”, é atípica a conduta. Nessa linha, novamente o
ensinamento de Celso Delmanto: “é necessária a identificação do delito
antecedente, definindo-se com clareza em que consistiria a origem ilícita da coisa (TJRS, RT 780/688). (...) a receptação, tanto dolosa como
culposa, é punível ainda que desconhecido ou isento de pena o autor do
crime de que proveio a coisa receptada, embora não seja imprescindível
a existência de processo penal a respeito (ex.: Caso de menor), é indispensável que haja prova conclusiva da origem da coisa. A absolvição do
autor do crime que é pressuposto não impede a condenação do receptador; impede-a, porém, a absolvição por estar provada a inexistência do
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
291
fato ou por não haver prova da existência do fato criminoso anterior”.
(Código Penal Comentado, 6a edição, Renovar, 2002, p. 429 e 434).
5. Em que pese o art. 580 do CPP se refira a identidade de situações
dos co-réus em um mesmo processo, é aplicável no caso em tela, no que
condiz com a apelação criminal n° 2003.71.02.004107-4, porquanto se
trata de processo desmembrado em razão de decisão judicial determinante
da cisão em decorrência de aditamento da denúncia.
6. Se os crimes foram praticados num mesmo contexto fático contra
mais de uma vítima, há concurso formal.
7. Maus antecedentes, para fins de aplicação da pena-base, são considerados como sendo a existência de ações criminais em curso, sentenças
condenatórias não transitadas em julgado e qualquer sentença condenatória transitada em julgado, desde que não constitua reincidência.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide
a Sétima Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, negar provimento aos recursos dos réus e do Ministério Público
Federal, e por aplicar ex officio o art. 580 do CPP, alterando a quantidade
de pena imposta para ambos os réus, nos termos da fundamentação, nos
termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte
integrante do presente julgado.
Porto Alegre, 11 de maio de 2004.
Desa. Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère, Relatora.
RELATÓRIO
A Exma. Sra. Desa. Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère: R.
C. O. e I. S. apelaram contra sentença que os condenou, respectivamente,
à pena de 13 (treze) anos de reclusão e multa de 210 (duzentos e dez)
dias-multa, no valor de 1/30 do salário mínimo vigente ao tempo do fato
cada dia-multa, pela prática dos crimes descritos no art. 180, caput, e
art. 157, § 2o, I e II, ambos do Código Penal, e art. 10, § 3o, IV, da Lei
9.437/97, em concurso material, e de 09 (nove) anos e 07 (sete) meses de
reclusão e multa de 143 dias-multa, no valor de 1/30 do salário mínimo
vigente ao tempo do fato o dia-multa, pela prática dos crimes previstos
no art. 157, § 2o, I e II, c/c art. 71, todos do Código Penal, e art. 10, § 3o,
292
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
IV, da Lei 9.437/97, em concurso material. Aos réus foi fixado o regime
fechado para o cumprimento da pena privativa de liberdade, assim como
foram condenados ao pagamento das custas processuais em proporção.
(fls. 459/491)
O réu I. S. requereu, em seu apelo, a reforma da sentença no que tange
ao sexto fato descrito na denúncia – roubo da arma do vigia. (fls. 555/557)
Já R. C. O., em seu tempo, alegou ausência de dolo em relação
ao crime de receptação do veículo, absorção do crime porte ilegal de
arma pelo de roubo, bem como que o delito de roubo se deu na forma
tentada. (fls. 565/574)
Houve contra-razões. (fls. 579/595)
O Ministério Público Federal também apelou da sentença, no tocante
à absolvição de R. C. O. da prática dos crimes de receptação dolosa, em
relação ao segundo e quinto fato constante da denúncia, e roubo qualificado, em relação ao sexto fato descrito na peça acusatória; e à absolvição
de I. S. da prática do crime de receptação dolosa, em relação ao primeiro
e segundo fato constante da denúncia. (fls. 459/491)
O apelante alega que há provas de que I. S. tenha concorrido para a
prática do delito de receptação do veículo Fiat Uno utilizado no assalto à
CEF; que há provas de que I. S. e R. C. O. sabiam da origem ilícita das
armas, bem como que não houve absorção do delito receptação pelo de
porte ilegal de arma; que R. C. O. deve ser condenado pela receptação do
cheque; e que R. C. O. também deve ser condenado pelo roubo da arma
do vigia.
I. S. contra-arrazoou às fls. 552/554, ao passo que R. C. O. o fez nas
fls. 560/564.
Em parecer, o MPF opinou pelo parcial provimento do recurso da
acusação, cingindo-se o desprovimento ao crime de receptação das armas
de fogo, entendendo que há absorção da receptação pelo delito do art. 10,
§ 3o, IV, da Lei 9.437/97, bem como pelo desprovimento dos recursos
dos réus. (fls. 600/608)
É o relatório.
À revisão.
VOTO
A Exma. Sra. Desa. Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère:
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
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I – I. S.
1) Roubo da arma do vigia (sexto fato):
Roubo
CP, art. 157: Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem,
mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por
qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência:
Pena – reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
O recorrente irresignou-se quanto ao decisum no que se refere à condenação pelo roubo da arma do vigia Lauro.
Afirma que negou a acusação em todas as oportunidades nas quais
foi inquirido e que já portava a arma, tendo-a levado consigo para a
prática do roubo.
Tal argumento não prospera.
Como bem colocou o magistrado sentenciante:
“Num primeiro momento, cumpre observar que o roubo da arma portada pelo
guarda que prestava serviço na agência da CEF, no momento do assalto, foi objeto de
notitia criminis por parte do gerente da agência da CEF, Jaime Sarda Aramburu, no dia
seguinte ao delito, oportunidade em que também foi especificada a quantia em dinheiro
que não foi recuperada pela polícia quando da prisão dos envolvidos (fl. 365). A arma
subtraída naquela oportunidade era um revólver calibre 38, marca Rossi, registrado
sob n° 203108 em nome da empresa RUDDER SEGURANÇA LTDA., para a qual
trabalha o vigilante Lauro Tadeu (fls. 366 e 371).
De resto, afora o depoimento do funcionário Raul, que trabalhava como caixa da
agência da CEF no momento do assalto, confirmando, já no dia dos fatos, que, afora
o dinheiro, também houve a subtração da arma do vigilante naquela ocasião, fl. 133, o
que também foi confirmado em juízo, fls. 314/315, cumpre destacar os termos do depoimento prestado por Lauro Tadeu Fagundes da Costa que, ratificando a declaração feita
perante a autoridade policial, fls. 363/364, foi peremptório ao afirmar que ‘o outro rapaz
que cuidava das pessoas que estavam no interior da agência, dirigiu-se até o depoente,
no colder, e pegou uma arma que estava na cintura do depoente, arma essa que era um
revólver da marca Rossi, calibre 38’ (fl. 401)”. (fl. 477)
Não fosse a prova testemunhal colhida, a tese do réu não encontra
amparo algum, uma vez que não é de se acreditar que o guarda da CEF
não estivesse armado, situação incompatível com a função de vigia de
estabelecimento bancário, além de nada justificar o interesse do guarda
e da empresa em afirmar que a arma fora roubada.
II – R. C. O.
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R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
2) Ausência de dolo em relação ao crime de receptação do veículo
(primeiro fato):
Receptação: CP, art. 180: Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em
proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir
para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte:
Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa.
O dolo do crime de receptação restou amplamente configurado.
O tipo subjetivo, segundo Celso Delmanto,
“Tanto na receptação própria como na imprópria (1a e 2a partes do caput), é o dolo,
ou seja, a vontade livre e consciente de adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar
ou influir para que terceiro adquira, receba ou oculte, sabendo trata-se de produto de
crime. E o elemento subjetivo do tipo, referido pelo especial fim de agir (‘em proveito
próprio ou alheio’), que deve existir tanto na receptação própria como na imprópria”.
(Código Penal Comentado, Renovar, 2002, p.428)
O conjunto probatório evidencia que o recorrente sabia que o veículo
conduzido por Anderson e que transportou os demais participantes do roubo era produto de crime, sendo que livre e conscientemente o utilizaram.
Acerca do dolo, permito-me, para evitar tautologia, transcrever
excerto da bem-lançada sentença, de lavra do juiz Loraci Flores de
Lima (fls.459/491):
“(...) segundo se depreende dos elementos probatórios constantes dos autos, o roubo
praticado contra a CEF foi planejado no dia anterior aos fatos, no domingo à tarde,
ocasião em que Anderson e R. M. N., em conversa com outro integrante do grupo,
teriam acertado a possibilidade de realizar o crime no dia seguinte, desde que Anderson, o ‘coruja’, conseguisse um automóvel que viabilizasse a empreitada criminosa.
A este respeito, disse R. C. O., fl. 220, quando interrogado, que ‘o assalto praticado
contra a agência da CEF localizada neste prédio da Justiça Federal no dia 10 de fevereiro,
uma segunda-feira, foi acertado entre o interrogando e os co-réus R. M. N. e Anderson
no domingo, ou seja, no dia anterior ao fato, quando os três estavam jogando futebol
num campo situado na própria Vila Progresso. ... Naquele instante o interrogando,
R. M. N. e Anderson, deixaram de certa forma combinado a realização do assalto na
agência da CEF, sendo que Anderson, o Coruja, ficou de conseguir um carro naquela
noite com um amigo dele para que fosse possível a realização do assalto. ... Salienta
que no dia dos fatos, na segunda-feira, por volta das 9 horas da manhã, conversou com
o co-réu Anderson perto da casa dele, ocasião em que Anderson disse que iria conversar
com um conhecido dele para ver se havia conseguido um automóvel que permitisse a
realização do assalto. Anderson ainda pediu para o interrogando fazer contato com R.
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M. N. a fim de que fosse acertado o encontro deles por volta do meio-dia na frente da
Igreja das Dores. Logo em seguida o interrogando procurou R. M. N. e disse para ele
comparecer na frente da Igreja no horário combinado’.
Em idêntico diapasão, tem-se:
‘... no dia anterior ao assalto, no domingo, o interrogando jogou futebol com R. C. O.
e Anderson, sendo que depois de uma conversa com R. C. O. deu a idéia no sentido de
que eles poderiam assaltar a agência da Caixa Econômica Federal situada no prédio da
Justiça Federal. ... Depois da conversa, Anderson ficou de conseguir um carro com um
conhecido dele, a fim de viabilizar o assalto, enquanto que o interrogando e R. C. O.
ficariam no aguardo de outras informações. No outro dia pela manhã, R. C. O. foi na
casa do interrogando e disse que estava ‘tudo na mão’, devendo o interrogando chegar
na frente da Igreja das Dores por volta do meio-dia, aonde iriam se encontrar. Chegando
naquele local por volta do meio-dia e cinco, o interrogando ficou no aguardo dos outros
acusados, sendo que por volta de meio-dia e trinta chegaram juntos os acusados I. S. e R.
C. O., sendo que por volta de meio-dia e quarenta e cinco chegou o acusado Anderson
conduzindo um automóvel Fiat Uno Mille.’ (R. M. N. – fls. 223/224).
‘... naquela conversa ficou acertado que o interrogando tentaria arrumar um carro para
que fosse possível o assalto, enquanto que R. C. O. conversaria com um conhecido deles,
o co-réu I. S., no intuito de conseguir as armas. Naquela mesma noite, o interrogando
foi até um posto de combustível localizado no final da Av. Medianeira, aonde normalmente as pessoas se reúnem para escutar som. Nesse lugar o interrogando encontrou
um conhecido de nome M. ou M., que era de Porto Alegre e que estava acompanhado
de um rapaz do bairro Itacaré e que estava em uma moto. Naquela oportunidade o
interrogando questionou eles sobre a possibilidade de conseguirem um veículo para
ele, o que eles ficaram de ver se efetivamente conseguiam. Mais tarde, por volta das
3h45min, o interrogando encontrou M. no lugar conhecido como ‘pagode’, na Rua
Riachuelo, ocasião em que M. disse que havia conseguido um automóvel, que ‘tava
na mão’. Naquele momento M. perguntou quando o interrogando iria pagá-lo por ter
conseguido o carro, sendo que o interrogando disse que na noite de segunda-feira, após
ocupar o carro, efetuaria o pagamento que ficou acertado em R$ 200,00. O interrogando também combinou com M. que o carro deveria ficar num lugar perto do centro
da cidade, antes do Posto da Polícia Rodoviária Estadual, de sorte que no outro dia
quando o interrogando fosse utilizá-lo não precisasse passar pelo posto ao se deslocar
de Camobi para o centro da cidade. Ficou acertado, então, que M. deixaria o veículo
próximo ao retiro, por volta das 11 horas da manhã seguinte, quando o interrogando
pegaria o veículo naquele lugar. Nesse sentido, na segunda-feira, por volta do meio-dia, o interrogando pegou uma telemoto e veio até o lugar combinado, e ao ver que se
tratava de um automóvel Fiat Uno, de pouca potência, reclamou com M. que talvez não
pudessem realizar o assalto, momento em que M. disse que foi o único carro que havia
conseguido e que se eles deixassem ele participar do assalto não precisariam pagar os R$
200,00. A partir daí o interrogando pegou o veículo e foi com M. até a Igreja das Dores,
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aonde tinha combinado se encontrar com os demais co-réus’. (Anderson – fls. 225/226)
Ressalte-se, por oportuno, que os policiais Milton Godoy, fl. 293, e Cláudio Orlandi, fl. 295, que participaram da perseguição e prisão dos acusados, ouviram destes
o comentário de que o veículo utilizado naquela ocasião havia sido apresentado para
Anderson na manhã dos fatos e ‘que ele não queria aquele carro porque não tinha potência, era um carro muito fraco, daí os outros obrigaram ele a participar e ser motorista
com aquele veículo’.
Ora, se quando do acerto realizado entre os acusados ficou definido que Anderson
teria que conseguir um veículo, naquela noite, que possibilitasse a realização do assalto, o que somente restou confirmado entre eles no dia seguinte, quando Anderson
acabou aceitando o automóvel que um amigo ‘conseguiu’, pelo qual seria pago um
aluguel depois da sua utilização naquele mesmo dia, é evidente que resta perfeitamente
caracterizada a prática do delito de receptação.
A circunstância do automóvel ter sido furtado por outro integrante do grupo, apenas identificado como ‘M.’, que também participava da empreitada criminosa, não
descaracteriza a prática da infração, uma vez que é inegável que Anderson e R. M. N.
efetivamente conduziam em proveito próprio, quando da sua prisão, um automóvel
que tinha sido furtado na noite anterior e cujo fato era, evidentemente, do pleno conhecimento dele.
Tenho, pois, que a utilização do veículo furtado, ainda que por um curto lapso temporal, com vista à concretização do roubo e, logo a seguir, na fuga do local, é suficiente
para ensejar um juízo condenatório sobre a conduta dos réus pela prática da infração
descrita no artigo 180 do Código Penal”.
Ora, o veículo foi “conseguido” especialmente para prática do roubo,
sendo que, inicialmente, seria pago, pelo uso do mesmo, a quantia de R$
200,00 e isso era de conhecimento do denunciado.
3) Absorção do crime porte ilegal de arma pelo de roubo (segundo fato):
Lei n° 9.437/97 – Art. 10: Possuir, deter, portar, fabricar, adquirir,
vender, alugar, expor à venda ou fornecer, receber, ter em depósito,
transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda e ocultar arma de fogo, de uso permitido, sem a
autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos, e multa.
§ 2o. A pena é de reclusão de 2 (dois) anos a 4 (quatro) anos e multa,
na hipótese deste artigo, sem prejuízo da pena por eventual crime de
contrabando ou descaminho, se a arma de fogo ou acessórios forem de
uso proibido ou restrito.
§ 3o. Nas mesmas penas do parágrafo anterior incorre quem:
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IV. possuir condenação anterior por crime contra a pessoa, contra o
patrimônio e por tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins.
O apelante alega que o delito de roubo absorve o delito de porte ilegal
quando praticado com emprego de arma. Diz que aquele é o delito-fim,
ao passo que este é o delito-meio, pois necessariamente o agente deverá
portar a arma para realizar a subtração do objeto.
Quando um fato mais grave absorve outro menos grave, o qual constitui meio de preparação ou execução, temos o Princípio da Consunção.
Não se trata propriamente de um conflito entre normas, mas sim entre
fatos, por ser um mais grave do que o outro. Tal princípio se aplica,
quando a conduta do agente, em vez de realizar a descrição contida em
diversos tipos penais que se excluem entre si, realiza o conteúdo de mais
de um tipo penal não-excludente, mas que, em função de uma conexão
lógica e justa, há de ser considerado absorvido pelo outro.
O Princípio da Consunção apresenta três espécies: progressão criminosa, crime progressivo e crime complexo. A progressão criminosa, em
seu tempo, subdivide-se em progressão criminosa em sentido estrito,
antefactum não punível e post factum não punível.
O fato de o porte ilegal de arma estar absorvido pelo roubo, se verdadeiro, configuraria hipótese de fato anterior não punível, porquanto o
fato antecedente menos grave (porte ilegal de arma) seria considerado
meio necessário para prática de outro fato mais grave (roubo), ficando,
por conseguinte, o primeiro absorvido.
Todavia, não há como se considerar o crime de porte ilegal de arma
como meio necessário para prática do roubo, pois, além do nexo de dependência entre as condutas ilícitas, o Princípio da Consunção diz que
ocorre a absorção de um crime (meio) por outro (fim) quando aquele
for meio necessário para a consecução deste, não se podendo, de forma
alguma, dizer que portar ilegalmente arma de fogo seja meio necessário
para a realização do crime de roubo a banco.
Afasta-se ainda a tese defensiva sob o argumento de que se o roubo
tivesse se dado mediante o uso de arma de fogo de uso permitido e registrada, cujo agente possuía o porte, não haveria de se falar na prática
do crime previsto no art. 10 da Lei 9.437/97, mas continuaria a existir o
roubo qualificado pelo emprego de arma.
Não fosse isso, improcede a tese de consunção por tratar-se de bens
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jurídicos diversos.
Com efeito, no roubo o objeto jurídico é complexo: patrimônio, liberdade individual e integridade física, enquanto no crime de porte ilegal de
arma é a incolumidade pública, a proteção da vida e da integridade física
dos cidadãos.
Nesse sentido:
“PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO. ARTIGOS 6º E 16 DA LEI 7.492/86 E ARTIGO 168, § 1º, III, DO CÓDIGO
PENAL. PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. INAPLICABILIDADE. DENÚNCIA.
CAPITULAÇÃO. ALTERAÇÃO PELO TRIBUNAL. POSSIBILIDADE.
1. Não há concurso aparente de normas a ser solvido pelo princípio da consunção
em relação ao artigo 6º da Lei 7.492/86 e o artigo 168 do Código Penal, visto que
atingidos bens jurídicos diversos e sujeitos passivos distintos, inexistindo progressividade criminosa.
(...)” (TRF – 4a Região, ACR 200104010201766, 7a T., DJU data 09.07.2003, p.
571, Rel. Juiz Vladimir Freitas)
Destarte, não obstante a finalidade da consunção seja suavizar os rigores do concurso de crimes, não pode a categoria jurídica possibilitar,
através de artifícios silogísticos, a impunidade.
Corroborando o entendimento supra, os seguintes julgados:
“PENAL E PROCESSUAL. QUADRILHA ARMADA. ART. 288, PARÁGRAFO
ÚNICO DO ESTATUTO REPRESSIVO. ROUBOS E SEQÜESTROS. ART. 8º DA
LEI Nº 8.072/90. CRIMES HEDIONDOS. PORTE ILEGAL DE ARMAS ESTRANGEIRAS PROIBIDAS. ART. 10º, § 2º, DA LEI Nº 9.437/97. PRELIMINARES
REJEITADAS. INÉPCIA DA DENÚNCIA. EMENDATIO LIBELLI - ART. 383 DO
CPP. ESCUTA TELEFÔNICA. LEGALIDADE. PERÍCIA. PROVAS. AUTORIA E
MATERIALIDADE. BIS IN IDEM. INOCORRÊNCIA. DOSIMETRIA DA PENA.
AGRAVANTES. REGIME INICIAL. PARTICIPAÇÃO. DÚVIDA. ART. 386, INC.
VI, DO CPP.
(...)
7. Não configura bis in idem a condenação por quadrilha armada em concurso
material com porte ilegal de armas (art. 10, § 2º, da Lei nº 9.437/97), pois trata-se de
tipos penais distintos, com objetividade jurídica diversa.
(...)” (TRF-4, Apelação Criminal – 8173, Processo: 200171000039612, 8ª T.,
DJU data: 10.04.2002, p.: 666, DJU data: 01.04.2002, Relator(a) Juiz Élcio Pinheiro
de Castro) (grifei).
“QUADRILHA OU BANDO. CRIME QUALIFICADO PELO USO DE ARMA.
PRETENDIDA ABSORÇÃO DA QUALIFICADORA PELA CONDENAÇÃO POR
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PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO. INADMISSIBILIDADE, POIS INEXISTENTE PROGRESSIVIDADE ENTRE OS CRIMES. DELITOS DISTINTOS E
AUTÔNOMOS, COM OBJETIVOS JURÍDICOS DIVERSOS.
Inexiste progressividade entre os crimes de porte ilegal de arma de fogo e o de quadrilha ou bando armado, de modo a fazer com que o primeiro absorva a qualificadora
do segundo, pois trata-se de delitos distintos e autônomos, com objetivos jurídicos
diversos, em que a primeira figura delitiva atinge a incolumidade pública, protegendo
a vida e a integridade física dos cidadãos, enquanto a segunda visa proteger a paz pública.” (TJSP – Ap. 290.321-3/8-00 – Rel. Hélio de Freitas – j. 10.10.2000 – RT 787/599)
4) Roubo – tentativa (quarto fato):
CP, art. 157: Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem,
mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por
qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência:
Pena – reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
O apelante sustenta que o roubo à CEF se deu na forma tentada,
tendo em vista que os agentes não tiveram a posse mansa e pacífica da
res furtiva.
Sobre tal questão acertadamente decidiu o juízo a quo ao afastar a
tentativa e reconhecer o crime na forma consumada.
Com efeito, o STF já firmou entendimento de que “não é necessário
que a coisa roubada haja saído da esfera de vigilância da vítima, bastando
a fuga, com bem subtraído, para caracterizar a existência de posse, pelo
criminoso.” (Pleno, RCr 113.410, DJU 17.08.90, p. 7870; Pleno, mv, RE
102.490, DJU 16.08.91, p. 10787; HC 69292, DJU 19.06.92, p. 9521 in
Código Penal Comentado, Celso Delmanto, Renovar, 2002, p. 350) e
que basta a “cessação da clandestinidade ou violência para que o poder
de fato sobre a coisa se transforme de detenção em posse” (RECrim
102490, DJU 16.08.91, p. 10787, RT, 677:429 in Código Penal Anotado, Damásio E. de Jesus, Saraiva, 2002, 572). No mesmo sentido: STF,
RvCrim 4821, Plenário, DJU 11.10.91, p. 14248: “o roubo se consuma
no instante em que o ladrão se torna possuidor da coisa alheia móvel, não
sendo necessário que ela saia da esfera de vigilância do antigo possuidor”.
(in Código Penal Anotado, Damásio E. de Jesus, Saraiva, 2002, 572)
III – Ministério Público Federal
5) Condenação de I. S. pela prática da receptação do veículo:
O apelante sustenta que há provas de que o réu I. S. tenha concorrido
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para a prática do delito de receptação do veículo Fiat Uno utilizado no
assalto à CEF.
Tenho, todavia, que o apelo não merece prosperar.
Não há provas nos autos suficientes a ensejar um juízo condenatório.
Em que pese o MPF tenha discorrido acerca da importância dos indícios
para verificação do dolo no delito de receptação, não vejo possível a
condenação com fulcro apenas em conjecturas.
O dolo na receptação deve ser o direto, ou seja, a vontade livre e
consciente de adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar ou influir
para que terceiro adquira, receba ou oculte, sabendo tratar-se de produto
de crime. Conforme a lição de Celso Delmanto,
“Não basta o dolo eventual, sendo indispensável o dolo direto: que o agente saiba
(tenha ciência, certeza) de que se trata de produto de crime.(...) Para a receptação dolosa, é imprescindível que o agente tenha certeza da origem criminosa da coisa (STF,
mv – RT 599/434; TJDF, Ap. 11303, DJU 03.02.93, p. 2105, in RBCCr 2/241; TJSP, RT
759/592; TACrSP, RJDTACr 20/156; TJMS, RT 606/396; TARS, RF 263/340; TJRJ,
RF 260/326; TJBA, BF 36/157), devendo a prova a respeito ser certa e irrefutável
(TRF da 5a R., Ap. 219, mv – DJU 20.06.91, p. 14464).” (Código Penal Comentado,
6a edição, Renovar, 2002, p. 428/429)
Novamente cito trecho da bem-lançada sentença, a qual dispensa reparos:
“No que se refere ao denunciado I. S., entretanto, tenho que não se verificam os
elementos necessários à caracterização do delito.
Com efeito, conforme acima relatado, a participação deste réu nos fatos apontados
na denúncia teve início quando este denunciado recebeu um telefonema do co-réu R.
C. O., no dia dos fatos, pouco antes do início da ação criminosa que culminou com a
realização do assalto contra a agência da CEF localizada na sede deste juízo. Sobre
isso, disse I. S.:
Não conhecia os acusados R. M. N. e A. D. L. No dia dos fatos, 10 de fevereiro, por
volta das 11h30min, o interrogando estava na casa de seus pais quando recebeu um
telefonema de R. C. O., que pediu para o interrogando comparecer na frente da Igreja
das Dores por volta das ‘quinze para uma da tarde’, daquele mesmo dia, levando com
ele um revólver. Em função disso, o interrogando foi até aquele local, levando consigo
um revólver calibre 38, marca Taurus, acabando por encontrar naquele local os outros
três denunciados e um quarto elemento, cujo nome não sabe, porque também não o
conhecia. ... Afirma o interrogando que não concorda com a acusação de receptação
em relação ao automóvel Fiat Uno utilizado no assalto porque na noite em que tal automóvel foi furtado o interrogando encontrava-se recolhido ao Presídio. (fls. 218/219).
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Dentro deste contexto, em guardando, a versão do réu, consonância com as alegações
dos demais acusados, no sentido de que ele, I. S., somente foi procurado por R. C. O.
e acabou se encontrando com os demais agentes pouco antes da empreitada criminosa,
não há como afirma, com segurança, que I. S. tinha conhecimento de que o veículo
conduzido por A. D. L. havia sido obtido através de furto realizado na noite anterior.
Embora se possa dizer, num primeiro momento, que I. S. poderia desconfiar da
possibilidade de A. D. L., ou qualquer dos demais partícipes da ação, possuir um carro
daquela espécie, a ausência de outros elementos seguros de convicção impõe a absolvição de I. S., ante a não-demonstração do elemento subjetivo necessário à tipicidade da
conduta – conhecimento da origem ilícita do veículo utilizado no assalto”. (fls. 471/472)
Ressalto, por oportuno, que não há de se cogitar de receptação culposa, uma vez que vedada a mutatio libelli em 2a instância: Enunciado da
Súmula 453 do STF – “Não se aplicam à segunda instância o art. 384 e
parágrafo único do Código de Processo Penal, que possibilitam dar nova
definição jurídica ao fato delituoso, em virtude de circunstância elementar
não contida, explícita ou implicitamente, na denúncia ou queixa”.
6) Porte Ilegal de Armas e Receptação:
Quanto aos crimes de porte ilegal de armas e receptação, o MPF
alega que há provas de que I. S. e R. C. O. sabiam da origem ilícita das
armas, bem como que não houve absorção do delito receptação pelo de
porte ilegal de arma.
Em relação à receptação das armas, pode-se dizer o mesmo que foi dito
no tocante à receptação do automóvel por I. S.: não há provas nos autos
acerca do elemento subjetivo suficientes a ensejar um juízo condenatório,
não sendo possível a condenação com fulcro apenas em conjecturas.
Como bem referiu o magistrado sentenciante,
“embora demonstrada a ilicitude com que aqueles revólveres foram subtraídos da
posse dos legítimos proprietários, não há elementos concretos que comprovem que
os denunciados I. S. e R. C. O. tinham conhecimento de que ditas armas eram objeto
de furto. Com efeito, embora a natureza daqueles bens pudesse fazer presumir sua
origem ilícita, nas circunstâncias em que cada réu obteve sua arma, não existem nos
autos outras provas que comprovem que eles efetivamente tinham conhecimento do
crime anterior”. (fls. 473/474)
Novamente ressalto, por oportuno, que não há de se cogitar de receptação culposa, uma vez que vedada a mutatio libelli em 2a instância:
Enunciado da Súmula 453 do STF – “Não se aplicam à segunda instância o art. 384 e parágrafo único do Código de Processo Penal, que
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possibilitam dar nova definição jurídica ao fato delituoso, em virtude
de circunstância elementar não contida, explícita ou implicitamente, na
denúncia ou queixa”.
Insurge-se ainda o recorrente contra a parte do decisum que diz estar
o crime de receptação absorvido pelo de porte ilegal de arma, afirmando
o juízo a quo que:
“De qualquer sorte, há que destacar que eventual conhecimento da origem ilícita
da arma não constitui, no caso em comento, delito autônomo, haja vista que tal conduta restaria inevitavelmente absorvida pelo fim maior visado pelos agentes, ou seja,
a posse indevida da arma. Em outras palavras, ainda que os réus tivessem ciência de
que ditas armas haviam sido furtadas, este juízo comunga do entendimento de que tal
circunstância caracterizaria crime único – o porte ilegal de armas”. (fl. 474)
Ora, o magistrado sentenciante apenas explanou sobre a consunção a
título de esclarecimento, de complementação a sua fundamentação, uma
vez que o reconhecimento da ausência de provas do elemento subjetivo
do tipo em exame já basta para prolação do decreto absolutório.
Destarte, mantendo a absolvição dos réus face à ausência de provas
acerca do dolo, desnecessária a análise do concurso aparente de normas,
questão que resta prejudicada.
7) R. C. O. – receptação do cheque:
Igualmente não prospera a pretensão ministerial de ver o denunciado R. C. O. condenado pela prática do delito de receptação, referente
ao cheque emitido por Iolanda Salles de Carvalho, encontrado dentre
os pertences do acusado.
O tipo penal em comento descreve as condutas de “adquirir, receber,
transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa
que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé,
a adquira, receba ou oculte” como caracterizadoras do delito em sua
forma dolosa.
Ocorre que há dúvidas acerca da procedência criminosa da cártula,
tendo em vista que a própria emitente não sabe se sua filha extraviou o
cheque ou se foi furtado no ônibus.
Isso depreende-se dos seguintes depoimentos:
Iolanda Salles de Carvalho:
“J: O que houve com esse cheque?
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T: Esse cheque, a minha menina foi buscar, a esposa dele, que é minha filha, foi
buscar. E ela pegou o ônibus de Santa Maria pro centro, ela mora aqui no centro, eu
moro na Vila Prado, e ela pegou o ônibus e sumiu da carteira dela.
J: Este cheque estava com sua filha?
T: É, ela que foi buscar, né.
J: Da sua casa até ela vir na casa dela, no ônibus ela extraviou ou foi furtado?
T: Ela não sabe, se tiraram da carteira dela ou se ... só sei que ela chegou sem a ...
uma bolsinha, uma pochetezinha pequena ...
J: Ela tinha uma bolsa pequena que não encontrou mais?
T: Que tava dentro da bolsa dela, que ela tirou para pagar a passagem e depois
quando chegou em casa não encontrou nada mais, né.
(...)
Defensor dos réus R. C. O., R. M. N. e A. D. L.: Se ela tem certeza que o cheque
foi extraviado ou se foi furtado.
T: Foi sumido dentro do ônibus.
J: Ela não sabe se foi objeto de furto ou de extravio”. (fls. 308/310)
Jussara Maria Salles Dedeco Buzzatti:
“J: E o que houve com este cheque?
T: A mãe mora lá no Prado e eu peguei o ônibus da Santa Maria ... eu não sei se eu
perdi dentro do ônibus ou se foi na hora que eu tirei os centavos, que o cara me pediu
os centavos ali para mim dar de troco, eu não sei se eu perdi ou se alguém pegou, eu sei
que a pochetezinha, a niquelerinha com moeda não tava dentro da minha bolsa quando
eu cheguei em casa e nem uma agendinha pequenininha, assim de criança.
J: Quer dizer que no trajeto da casa da sua mãe até o centro da cidade a senhora
tinha uma pochete, uma niqueleira, e uma agenda pequena. Essas duas ...
T: E o cheque eu botei dentro da pochetinha, na niquelerinha aquela ...
J: Esses dois objetos sumiram da sua bolsa?
T: Isso, sumiram da bolsa.
J: Nesse trajeto?
T: Isso. Agora, eu não sei se eu perdi ou se me pegaram dentro do ônibus, isso aí
eu não sei”. (fl. 311)
Assim, não havendo provas conclusivas acerca da elementar “produto
de crime”, é atípica a conduta.
Nessa linha, novamente o ensinamento de Celso Delmanto:
“É necessária a identificação do delito antecedente, definindo-se com clareza em
que consistiria a origem ilícita da coisa (TJRS, RT 780/688). (...) A receptação, tanto
dolosa como culposa, é punível ainda que desconhecido ou isento de pena o autor do
crime de que proveio a coisa receptada. Embora não seja imprescindível a existência
de processo penal a respeito (ex.: caso de menor), é indispensável que haja prova
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R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
conclusiva da origem da coisa. A absolvição do autor do crime que é pressuposto não
impede a condenação do receptador; impede-a, porém, a absolvição por estar provada
a inexistência do fato ou por não haver prova da existência do fato criminoso anterior”.
(Código Penal Comentado, 6a edição, Renovar, 2002, p. 429 e 434)
8) R. C. O. – roubo da arma do vigia:
O apelante aduz que o roubo da arma do vigia foi produto do prévio
ajuste de vontades entre os acusados R. C. O. e I. S. e que quem anui
com a prática de crime cometido durante a execução de outro, deve por
ambos responder.
Contudo, não vejo configurado o prévio ajuste dos réus na prática
do delito em questão, nem tampouco qualquer participação de R. C. O.
na execução do roubo da arma do vigia, uma vez que se depreende dos
testemunhos colhidos que, no momento em que I. S. roubou a arma do
vigia, R. C. O. estava na sala ao lado, tentando fazer com que o cofre
fosse aberto.
Nesse sentido, a irretocável decisão de primeira instância:
“No que se refere, todavia, à participação neste delito do réu R. C. O., tenho que
não prospera a denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal.
É que, dentro da previsão contida no artigo 29 do Código Penal, as circunstâncias
em que ocorreu a subtração da arma no caso em comento não autorizam o reconhecimento da participação por parte de R. C. O., pois todos os elementos de convicção
já analisados demonstram que a subtração de dita arma ocorreu no momento em que
I. S. estava sozinho no interior da agência da CEF, mantendo controle sobre clientes,
funcionários e o próprio guarda, enquanto o réu R. C. O. estava numa sala ao lado,
tentando fazer com que o funcionário Raul abrisse o cofre.
Sendo assim, e certo que a intenção dos agentes, na essência, era a realização do
roubo contra a CEF, a iniciativa de I. S. subtrair a arma do vigilante representa uma
conduta isolada durante o iter criminis, que não pode ser atribuída a R. C. O. a título
de co-autoria ou mesmo participação”. (fl. 477)
Destarte, resta o apelo desprovido.
IV – Efeito Extensivo
Dispõe o art. 580 do CPP, que “No caso de concurso de agentes (Código Penal, art. 25), a decisão do recurso interposto por um dos réus, se
fundado em motivos que não sejam de caráter exclusivamente pessoal,
aproveitará aos outros”.
Em que pese a norma legal em comento se refira a identidade de situações dos co-réus em um mesmo processo, entendo aplicável no caso em
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tela, no que condiz com a Apelação Criminal n° 2003.71.02.004107-4,
porquanto se trata de processo desmembrado em razão de decisão judicial determinante da cisão em decorrência de aditamento da denúncia.
Isso se justifica pelo interesse social tutelado pelo dispositivo de lei
supracitado, pois os primeiros cinco fatos contidos na denúncia são
iguais em ambos os processos, retratando situações idênticas entre os
denunciados.
Acerca do interesse social no art. 580 do CPP, a seguinte decisão do
STF:
“Pedido fundado no art. 580 do Código de Processo Penal. O princípio da extensibilidade da decisão favorável a um dos réus ao co-réu, além do interesse particular
deste, justifica-se também pelo interesse social. Há, no entanto, uma limitação legal do
efeito extensivo. Assim, não será possível o efeito extensivo quando a decisão se basear
em motivos exclusivamente vinculados a pessoa do recorrente, indeferimento.” (RC
1233 extensão / CE - CEARÁ, Extensão no Recurso Criminal, Relator(a): Min. Djaci
Falcão, 2ª T., Publicação: DJ Data: 02.12.77, RTJ, vol-00083-03, pp.00698 EMENT
vol-01081-01, pp-00048, Indexação da Revista Trimestral do STF)
Ainda justificando a incidência da norma no caso em concreto, os
julgados a seguir:
“Habeas corpus. Aplicação do artigo 580 do Código de Processo Penal. - Como
esta Turma decidiu no Habeas corpus nº 68.442, o efeito extensivo da decisão, ao qual
aludem o artigo 580 do Código de Processo Penal brasileiro e o artigo 203 do Código
Processual Penal italiano, ‘só aproveita aos não-impugnantes’, razão por que, ‘embora
tenham recorrido todos, mas com extensões objetivas diversas, a decisão favorável a
um cuja impugnação é mais extensa favorece aos outros cuja extensão da impugnação
não abrangeu tal ponto. Com relação a esse ponto não abarcado pelas impugnações dos
demais, são eles obviamente nao-impugnantes, e não fora o efeito extensivo da impugnação mais abrangente, e eles não seriam beneficiados. - Na hipótese em julgamento, a
extensão da desclassificação com a conseqüente impronúncia se impunha em favor do
ora paciente, porquanto ela se dera anteriormente em favor de co-réus pelas circunstâncias objetivas do fato imputado igualmente a todos eles, e ele, não tendo recorrido
nesse ponto, preenchia o requisito de ser não-impugnante exigido para a aplicação do
artigo 580 do Código de Processo Penal. Habeas corpus deferido.” (STF, HC 69099 /
ES - Espírito Santo, Min. Moreira Alves, 1ª T., Publicação: DJ Data: 08.05.92 pp.06267
EMENT. vol. 01660-02, pp. 00390, RTJ vol. 00140-03, pp.00911)
“Extensão em processo desmembrado – STF: ‘Júri. Protesto por novo julgamento –
Deferimento – Pretendida extensão ao co-réu em idêntica situação ainda que se trate de
processo desmembrado – Admissibilidade – Inteligência do art. 580 do CPP. (...) Tendo
sido concedido a um réu o direito de ser submetido a novo júri, não há como negar a
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extensão ao co-réu em idêntica situação, ainda que se trate de processo desmembrado.
CPP, art. 580’ (RT 746/534). STF: ‘Tendo sido concedido a um réu o direito de ser submetido a novo júri, não há como negar a extensão ao co-réu em idêntica situação, ainda
que se trate de processo desmembrado. CPP, art. 580’ (JSTF 234/384). TJSP: ‘No caso
de concurso de agentes em que a acusação que se colocou na denúncia foi absolutamente
a mesma para ambos os réus, a absolvição em recurso interposto por somente um deles,
fundada na atipicidade do fato, aproveitará o outro, ainda que desmembrado o processo,
posto se tratar de motivo de caráter geral e não pessoal’ (RT 692/258). TJAP: ‘Processual Penal. Processo desmembrado. Decisão em recurso em sentido estrito, que anulou
parcialmente o processo a partir da sentença de pronúncia. Efeitos extensivos aos co-réus
que figuram nos autos principais. Preliminar de nulidade acolhida. É de se estender aos
co-réus dos autos principais a decisão que anulou o processo desmembrado, a partir da
sentença de pronúncia, nos termos do art. 580 do CPP. Preliminar de nulidade parcial do
processo que se acolhe’ (RDJ 14/218)”. (Julio Fabbrini Mirabete, Código de Processo
Penal Interpretado, Atlas, 9a edição, p. 1425/1426)
9) Roubo da CEF e roubo da arma por I. S.:
A sentença assim dispôs:
“Finalmente, em reconhecendo a continuidade delitiva nas condutas de I. S., ao
participar do crime de roubo praticado contra a agência da CEF e subtrair o revólver utilizado pelo vigilante que prestava serviço naquela oportunidade, aumento a
pena mais grave acima fixada, de seis anos e seis meses de reclusão, em um sexto,
tornando definitiva a pena, para ambos os crimes, em sete anos e sete meses de
reclusão. Da mesma sorte, a pena de multa resta definitiva em 93 (noventa e três)
dias-multa, no valor de um trigésimo do salário mínimo vigente ao tempo do fato
o dia-multa”. (fl. 488)
Na Apelação Criminal n° 2003.71.02.004107-4, assim foi decidido:
“O denunciado R. M. N. aduz, em suas razões recursais, que o roubo da arma do
vigia e o roubo da Caixa Econômica Federal constituem um mesmo crime, uma vez
que o roubo da arma era necessário para o roubo da instituição financeira, devendo ser
reformada a decisão que entendeu se tratar de crime continuado.
A jurisprudência majoritária é no sentido de que se os crimes foram praticados num
mesmo contexto fático contra mais de uma vítima há concurso formal.
Nessa seara:
‘Crime de roubo, praticado no mesmo contexto fático, contra vítimas diferentes,
constitui concurso ideal e não crime continuado. Precedentes do STF e STJ’ (STJ – 5a
T. – HC 10452 – Rel. Min. Félix Fischer – j. 22.02.2000 – DJU 20.03.2000, p. 84, in
Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, Alberto Silva Franco e Rui Stoco,
RT, 7a edição, v.2, p. 2569).
‘Roubos praticados contra vítimas diferentes, no mesmo contexto fático, mediante
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307
uma única ação desdobrada em vários atos, constituem concurso formal de crimes e não
crime único’ (TJSP – Rev. – Rel. Bittencourt Rodrigues – j. 19.08.97 – RT 750/606, in
Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, Alberto Silva Franco e Rui Stoco,
RT, 7a edição, v.2, p. 2569).
‘ROUBO. CAIXA ECONÔMICA FEDERAL. EMPRESA DE VIGILÂNCIA.
VIGILANTE. CONSUMAÇÃO. CONCURSO FORMAL.
- O roubo está consumado se o ladrão é preso em decorrência de perseguição
imediatamente após a subtração da coisa, não importando assim que tenha a posse
tranqüila desta.
- Ocorre concurso formal quando o agente rouba várias pessoas de uma só vez
(Precedentes do STF).’ (TRIBUNAL - QUARTA REGIÃO, OITAVA TURMA, DJU
DATA:24.07.2002 PÁGINA: 748 DJU DATA: 24.07.2002, Relator(a) JUIZ AMIR
JOSÉ FINOCCHIARO SARTI).
‘Caracteriza concurso formal a atuação do agente que, com uso de arma de fogo,
rouba várias vítimas, pois, embora seja uma única ação, ocorre pluralidade de eventos e
resultados’. (STJ, RT 792/598; TJSP, RT 755/613, in Código Penal Comentado, Celso
Delmanto, Renovar, 2002, p. 351).
No caso em tela, em um mesmo contexto fático houve a subtração, mediante grave
ameaça ou violência a pessoa de R$ 9.890,00 da Caixa Econômica Federal e uma arma
de fogo (revólver, calibre 38, n° AA273084) de propriedade da empresa ‘Rudder Segurança Ltda.’, com o que configurado o concurso formal nos termos do art. 70 do CP.
Considerando-se que a sentença entendeu haver crime continuado, no qual é
aplicada a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços, e que no concurso formal é
aplicada a pena mais grave cabível ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada,
em qualquer caso, de um sexto até a metade, não constituindo, portanto, em reformatio
in pejus a aplicação do concurso formal, reformo a decisão ora recorrida neste aspecto.”
Assim, também a I. S. será aplicado o concurso formal para os delitos
de roubo.
10) Dosimetria da pena de I. S.:
10.1) Roubo da CEF:
Ressalto, como já visto, que apenas as circunstâncias judicias objetivas
podem ser objeto do efeito extensivo.
Na Apelação Criminal n° 2003.71.02.004107-4, restou decidido, com
ressalva no voto-revisor, que, havendo concurso entre majorantes, uma
delas será valorada como causa de aumento e a outra como circunstância
agravante, se prevista nos arts. 61 e 62 do CP, ou como circunstância
judicial.
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R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
A decisão, que aqui se aplicará, foi proferida nos seguintes termos:
“Ademais, o crime ocorreu mediante o uso de arma de fogo, o que por si só já
bastaria para ser desfavorável a culpabilidade do agente.
Saliento, aqui, que o uso de arma de fogo, em que pese previsto como majorante,
não deve e não será valorado na terceira fase de aplicação da pena por haver concurso
entre majorantes (arma de fogo e concurso de agentes).
Entendo que existindo mais de uma causa de aumento prevista na Parte Especial
do CP para um mesmo delito, apenas uma incidirá como causa de aumento. A outra
servirá como circunstância agravante, se prevista nos arts. 61 e 62 do CP, ou como
circunstância judicial.
Corroborando essa tese:
PENAL. ROUBO DUPLAMENTE MAJORADO. EMPREGO DE ARMA. CONCURSO DE PESSOAS. DOSIMETRIA. REGIME DE CUMPRIMENTO DA PENA.
1. Materialidade e autoria comprovadas e, além disso, corroboradas pela confissão
espontânea do Réu.
2. No concurso de duas majorantes do roubo, o juiz deve aplicar somente uma a título
de causa especial de aumento, podendo funcionar a remanescente como circunstância
judicial ou circunstância legal (agravante).
3. Nessa hipótese, a mera existência de duas majorantes não basta para determinar
a exacerbação da pena provisória no percentual máximo de 1/2 (metade).
4. Essa dosagem deve ser pautada pela prudente discricionariedade do Juiz, a qual
deve ter por base os elementos de convicção constantes dos autos, especialmente o
conjunto formado pela análise das circunstâncias judiciais.
(...) (TRIBUNAL - QUARTA REGIÃO - APELAÇÃO CRIMINAL – 4414,
SEGUNDA TURMA, DJU DATA: 29.09.99 PÁGINA: 555, Relator(a) JUIZ
ÉLCIO PINHEIRO DE CASTRO)”.
No tocante aos antecedentes, firmou-se entendimento de que se a pena
é agravada pela reincidência não pode ser aumentada pela presença de
maus antecedentes, face à ocorrência de bis in idem.
Eis os exatos termos daquela decisão:
“O réu não apresenta maus antecedentes, pois, embora possua uma condenação não
transitada em julgado (processo n° 2700224147) e quatro condenações com trânsito em
julgado (processos nos 2701082312, 27388015003, 2700224139 e 2700231761) (fls.
242/245), entendo que se a pena é agravada pela reincidência, não pode ser aumentada
pela presença de maus antecedentes, face à ocorrência de bis in idem. Assim, deixo
de considerar o réu como de maus antecedentes para aumentar a pena na segunda fase
da dosimetria, como agravante genérica”.
Já em relação às conseqüências, esta foi a decisão:
“As conseqüências, todavia, não são desfavoráveis ao agente, uma vez que o monR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
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tante subtraído da instituição financeira (R$ 9.890,00) foi restituído à CEF, conforme
termo de restituição (fl. 132). Não obstante uma testemunha ter referido que o montante
subtraído chegava a R$ 11.000,00 e que cerca de R$ 2.000,00 não foram restituídos (fl.
314), a denúncia refere-se a R$ 9.890,00 e é esse valor que deve prevalecer no processo”.
Ante o exposto, sendo que a pena imposta abstratamente ao crime de
roubo é de reclusão, de quatro a dez anos, e multa, e que restaram consideradas desfavoráveis três das operantes (culpabilidade, circunstâncias
e comportamento da vítima) do art. 59 do CP, entendo que a pena-base
deveria ser fixada em 05 (cinco) anos, 01 (um) mês e 15 (quinze) dias de
reclusão, restando, no entanto, em virtude da vedação da reformatio in
pejus, fixada em 04 (quatro) anos e 06 (seis) meses de reclusão. (fl. 487)
O juízo a quo tornou a pena provisória em 04 (quatro) anos e 04
(quatro) meses de reclusão. (fl. 487)
Na terceira fase de aplicação da pena, a sentença há de ser reformada,
aplicando-se o tratamento destinado aos outros agentes do roubo, em
consonância com o entendimento acima exposto, acerca do concurso de
causas especiais de aumento de pena.
Entendo que não se pode aplicar um entendimento híbrido acerca do
tema, ou seja, ou permite-se o reconhecimento de duas ou mais majorantes
na terceira fase do cálculo da pena e a majoração dar-se-á em função da
quantidade de causas de aumento incidentes no caso concreto, ou, tese
que adoto, havendo concurso entre majorantes, uma delas será valorada
como causa de aumento e a outra como circunstância agravante, se prevista nos arts. 61 e 62 do CP, ou como circunstância judicial, devendo
o acréscimo da pena se dar com base no contexto fático concernente à
própria majorante (ex.: concurso de agentes: o número de agentes – se
forem apenas dois, o aumento ficará no mínimo; uso de arma de fogo:
tipo de arma – não se pode apenar igualmente aquele que assalta usando
um revólver e aquele que assalta usando um fuzil).
Todavia, tendo sido aplicada na AC n° 2003.71.02.004107-4 a última
tese, por ser mais benéfica à defesa e não por seus fundamentos, como
deixou claro o voto-revisão, juntamente com a primeira, no momento
de majorar a pena com base no § 2º do art. 157 do CP, aplico, em homenagem ao Princípio da Isonomia, por ser inadmissível que participantes
de um mesmo fato recebam tratamento distinto, a tese explanada na
decisão referida:
310
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“No entanto, na terceira fase, as sanções estabelecidas para ambos merece ser revista. O art. 157, § 2o, do CP prevê cinco majorantes que autorizam aumento entre um
terço e metade. Na hipótese, incidindo apenas uma destas causas de aumento (concurso
de agentes – inc. II), a majoração deve ser a mínima, ou seja, um terço, restando a
pena, para A. D. L., em 8 anos de reclusão e, para R. M. N., em 5 anos, 9 meses e 10
dias de reclusão. (...).
Por oportuno, destaco que não há impossibilidade de se reconhecer e fazer incidir
duas ou mais das majorantes previstas no art. 157, § 2º, uma vez que o dispositivo traz
limites variáveis de aumento justamente em função disso. Contudo, deixo de considerar
o uso de arma de fogo nesta fase, porquanto a avaliação procedida pela Relatora na
primeira fase da aplicação da reprimenda mostra-se mais favorável à defesa”.
Destarte, com o acréscimo de 1/3, resulta a pena privativa de liberdade
em 05 (cinco) anos, 09 (nove) meses e 10 (dez) dias de reclusão.
Reconhecido o concurso formal, nos termos da fundamentação, entre
os roubos da CEF e da arma do vigia, e considerando-se que o número
de crimes foi dois, aumento a pena no mínimo legal, ou seja, 1/6.
Assim, a pena definitiva resta fixada em 06 (seis) anos, 08 (oito) meses
e 26 (vinte seis) dias de reclusão.
No tocante à pena de multa, tenho que o número de dias-multa é
determinado pela análise das circunstâncias judiciais, motivo pelo qual,
revisadas tais operantes, reviso, ex officio, a quantidade de dias-multa.
Embora tenham sido diminuídas para três as circunstâncias do art. 59
consideradas desfavoráveis para o agente, entendo que a o número de
dias-multa deveria ter sido fixado em 135, restando, porém, inalterado
o arbitramento em 80 dias-multa, consoante o princípio da vedação da
reformatio in pejus.
Aqui, surge um problema.
O art. 72 do CP reza que “No concurso de crimes, as penas de multa
são aplicadas distinta e integralmente”.
O juízo inferior, reconhecendo a continuidade delitiva, não aplicou
o artigo de lei supracitado, procedendo a unificação também na pena de
multa.
Tal decisão é amparada pela jurisprudência:
“CRIME CONTINUADO. PENA PECUNIÁRIA.
- Unificação. Sem embargo das doutas opiniões em contrário, na linha de princípio
odiosa sunt restringenda é correto compreender-se que o crime continuado escapa
a vedação estabelecida pela regra do art. 72 do Código Penal. (STJ, REsp – 63742,
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
311
QUINTA TURMA, DJ DATA:28.08.95 PÁGINA:26657 RSTJ vol.:00081 PÁGINA:352
Relator(a) JOSÉ DANTAS)
PENAL. OMISSÃO DE RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. LEI Nº 8.212/91, ART. 95, ALÍNEA D. PROGRAMA DE RECUPERAÇÃO
FISCAL. LEI Nº 9.964/2000. PARCELAMENTO DO DÉBITO. LEI Nº 9.249/95.
DOLO ESPECÍFICO. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. DOSIMETRIA. CRIME CONTINUADO. PENA DE MULTA. INAPLICABILIDADE DO
ART. 72 DO CP. QUANTIDADE DE DIAS-MULTA. SUBSTITUIÇÃO DA PENA
PRIVATIVA DE LIBERDADE. ART. 44 DO CP. PRESCRIÇÃO.
(...)
5. No crime continuado, em se tratando de delito único, a pena de multa deve ser
unificada, inaplicável o art. 72 do CP. Precedentes do STJ e desta Corte.
6. A quantidade de dias-multa deve ser consentânea com o quantum da pena de
reclusão.
(...)” (TRF4, ACR – Apelação Criminal – 10188, Processo: 200204010386837 UF:
RS, 8ª T., DJU Data:06.08.2003, p. 219, DJU Data:06.08.2003, Relator(a) Juiz Luiz
Fernando Wowk Penteado)
Destarte, a pena de multa pelos crimes de roubo totalizou em 93
dias-multa na razão de 1/30 do salário mínimo vigente ao tempo do fato
cada dia-multa. (fl. 488)
Ora, é evidente que se aplicável o concurso formal a situação do réu,
no que tange à multa, será agravada, pois o art. 72 do CP incidiria na
hipótese.
Assim, não havendo recurso de nenhuma das partes em relação à pena
pecuniária, não vejo como alterar o montante fixado, face à proibição
da reformatio in pejus, com o que mantenho a condenação da pena de
multa, pelos dois crimes de roubo, na forma da sentença.
Saliento, aqui, que a pena de multa na AC n° 2003.71.02.004107-4 se
manteve inalterada, ressalvada forma diversa de cálculo no voto-revisão.
Aplicando-se a regra do concurso material, as penas de I. S., somadas, resultam em 08 (oito) anos, 08 (oito) meses e 26 (vinte seis) dias de
reclusão, e 143 dias-multa, no valor de um trigésimo do salário mínimo
vigente ao tempo do fato o dia-multa.
A pena privativa de liberdade deve ser cumprida em regime fechado,
face ao art. 33, § 2o, a, do CP.
Face ao quantum da pena privativa de liberdade, resta afastada a possibilidade de substituição por penas restritivas de direitos e de suspensão
condicional da pena.
312
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
11) Dosimetria da pena de R. C. O.:
11.1) Roubo da CEF:
Ressalto, como já visto, que apenas as circunstâncias judicias objetivas
podem ser objeto do efeito extensivo.
Na Apelação Criminal n° 2003.71.02.004107-4, restou decidido, com
ressalva no voto-revisão, que, havendo concurso entre majorantes, uma
delas será valorada como causa de aumento e a outra como circunstância
agravante, se prevista nos arts. 61 e 62 do CP, ou como circunstância
judicial.
A decisão, que aqui se aplicará, foi proferida nos seguintes termos:
“Ademais, o crime ocorreu mediante o uso de arma de fogo, o que por si só já
bastaria para ser desfavorável a culpabilidade do agente.
Saliento, aqui, que o uso de arma de fogo, em que pese previsto como majorante,
não deve e não será valorado na terceira fase de aplicação da pena por haver concurso
entre majorantes (arma de fogo e concurso de agentes).
Entendo que existindo mais de uma causa de aumento prevista na Parte Especial
do CP para um mesmo delito, apenas uma incidirá como causa de aumento. A outra
servirá como circunstância agravante, se prevista nos arts. 61 e 62 do CP, ou como
circunstância judicial.
Corroborando essa tese:
PENAL. ROUBO DUPLAMENTE MAJORADO. EMPREGO DE ARMA. CONCURSO DE PESSOAS. DOSIMETRIA. REGIME DE CUMPRIMENTO DA PENA.
1. Materialidade e autoria comprovadas e, além disso, corroboradas pela confissão
espontânea do Réu.
2. No concurso de duas majorantes do roubo, o juiz deve aplicar somente uma a título
de causa especial de aumento, podendo funcionar a remanescente como circunstância
judicial ou circunstância legal (agravante).
3. Nessa hipótese, a mera existência de duas majorantes não basta para determinar
a exacerbação da pena provisória no percentual máximo de 1/2 (metade).
4. Essa dosagem deve ser pautada pela prudente discricionariedade do Juiz, a qual
deve ter por base os elementos de convicção constantes dos autos, especialmente o
conjunto formado pela análise das circunstâncias judiciais.
(...)” (TRF4 – Apelação Criminal – 4414, 2ª T., DJU Data: 29.09.99, p.: 555,
Relator(a) Juiz Élcio Pinheiro de Castro)
No tocante aos antecedentes, firmou-se entendimento de que, se a pena
é agravada pela reincidência, não pode ser aumentada pela presença de
maus antecedentes, face à ocorrência de bis in idem.
Eis os exatos termos daquela decisão:
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
313
“O réu não apresenta maus antecedentes, pois, embora possua uma condenação não
transitada em julgado (processo n° 2700224147) e quatro condenações com trânsito em
julgado (processos nos 2701082312, 27388015003, 2700224139 e 2700231761) (fls.
242/245), entendo que se a pena é agravada pela reincidência, não pode ser aumentada
pela presença de maus antecedentes, face à ocorrência de bis in idem. Assim, deixo
de considerar o réu como de maus antecedentes para aumentar a pena na segunda fase
da dosimetria, como agravante genérica”.
Já em relação às conseqüências, esta foi a decisão:
“As conseqüências, todavia, não são desfavoráveis ao agente, uma vez que o montante subtraído da instituição financeira (R$ 9.890,00) foi restituído à CEF, conforme
termo de restituição (fl. 132). Não obstante uma testemunha ter referido que o montante
subtraído chegava a R$ 11.000,00 e que cerca de R$ 2.000,00 não foram restituídos (fl.
314), a denúncia refere-se a R$ 9.890,00 e é esse valor que deve prevalecer no processo”.
Ante o exposto, sendo que a pena imposta abstratamente ao crime
de roubo é de reclusão, de quatro a dez anos, e multa, e que restaram
consideradas desfavoráveis quatro das operantes do art. 59 do CP
(culpabilidade, motivos, circunstâncias e comportamento da vítima),
entendo que a pena-base deveria ser fixada em 05 (cinco) anos e 06 (seis)
meses de reclusão, montante fixado na sentença, não obstante valoração
diversa das operantes do art. 59 do CP. (fl. 483)
O juízo a quo tornou a pena provisória em 06 (seis) anos de reclusão.
(fl. 483)
Na terceira fase de aplicação da pena a sentença há de ser reformada, aplicando-se o tratamento destinado aos outros agentes do roubo,
em consonância com o que fora acima exposto, acerca do concurso de
causas especiais de aumento de pena e do que fora decidido na AC n°
2003.71.02.004107-4. Assim, em homenagem ao Princípio da Isonomia,
por ser inadmissível que participantes de um mesmo fato recebam tratamento distinto, aplico a tese exposta na decisão referida:
“No entanto, na terceira fase, as sanções estabelecidas para ambos merece ser revista. O art. 157, § 2º, do CP prevê cinco majorantes que autorizam aumento entre um
terço e metade. Na hipótese, incidindo apenas uma destas causas de aumento (concurso
de agentes – inc. II), a majoração deve ser a mínima, ou seja, um terço, restando a
pena, para A. D. L., em 8 anos de reclusão e, para R. M. N., em 5 anos, 9 meses e 10
dias de reclusão. (...).
Por oportuno, destaco que não há impossibilidade de se reconhecer e fazer incidir
duas ou mais das majorantes previstas no art. 157, § 2o, uma vez que o dispositivo traz
314
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
limites variáveis de aumento justamente em função disso. Contudo, deixo de considerar
o uso de arma de fogo nesta fase, porquanto a avaliação procedida pela Relatora na
primeira fase da aplicação da reprimenda mostra-se mais favorável à defesa”.
Resulta, pelo exposto, a pena definitiva, em 08 (oito) anos de reclusão.
No tocante à pena de multa, mantenho o entendimento de que o
número de dias-multa é determinado pela análise das circunstâncias
judiciais, motivo pelo qual, revisadas tais operantes, reviso, ex officio, a
quantidade de dias-multa. Embora tenham sido diminuídas para quatro
as circunstâncias do art. 59 consideradas desfavoráveis para o agente,
entendo que o número de dias-multa deveria ter sido fixado em 180,
restando, porém, inalterado o arbitramento em 100 dias-multa, consoante
o princípio da vedação da reformatio in pejus.
Saliento, aqui, que a pena de multa na AC n° 2003.71.02.004107-4 se
manteve inalterada, ressalvada forma diversa de cálculo no voto-revisão.
11.2) Receptação do veículo:
A pena imposta abstratamente ao crime de receptação é de reclusão,
de um a quatro anos, e multa.
No tocante aos antecedentes, firmou-se entendimento de que, se a
pena é agravada pela reincidência, não pode ser aumentada pela presença
de maus antecedentes, face à ocorrência de bis in idem.
Eis os exatos termos daquela decisão:
“O réu não apresenta maus antecedentes, pois, embora possua uma condenação não
transitada em julgado (processo n° 2700224147) e quatro condenações com trânsito em
julgado (processos nos 2701082312, 27388015003, 2700224139 e 2700231761) (fls.
242/245), entendo que se a pena é agravada pela reincidência, não pode ser aumentada
pela presença de maus antecedentes, face à ocorrência de bis in idem. Assim, deixo
de considerar o réu como de maus antecedentes para aumentar a pena na segunda fase
da dosimetria, como agravante genérica”.
O comportamento da vítima, no caso, também não pode ser desfavorável ao acusado, conforme foi julgado na Apelação Criminal n°
2003.71.02.004107-4:
“Acerca do comportamento da vítima, pode-se dizer, citando Celso Delmanto,
que ‘o comportamento do ofendido deve ser apreciado de modo amplo no contexto da
censurabilidade da conduta do agente, não só a diminuindo, mas também aumentando-a, eventualmente. Não deve ser igual a censura que recai sobre quem rouba as jóias
fulgurantes que uma senhora ostenta e a responsabilidade de quem subtrai os donativos,
por exemplo, do Exército da Salvação’. (Código Penal Comentado, Celso Delmanto,
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
315
Renovar, 6a edição, p. 111)
Sendo o sujeito passivo do crime de receptação o próprio sujeito passivo do crime
que adveio a coisa receptada, ou seja, o proprietário do veículo, tenho que não há nos
autos dados suficientes sobre as condições em que se praticou a subtração do automóvel,
não havendo, portanto, como se sopesar o comportamento da vítima”.
Sendo três as circunstâncias judicias desfavoráveis (culpabilidade,
motivos e conseqüências), entendo que a pena-base deveria ficar em 01
ano, 06 meses e 21 dias de reclusão.
Todavia, ante a vedação da reformatio in pejus, mantenho a pena-base
em 01 (um) ano e 05 (cinco) meses de reclusão.
A pena tornou-se provisória em 01 (um) ano e 09 (nove) meses de
reclusão e definitiva na mesma quantidade.
Embora alterada a análise das circunstâncias judiciais, o número de
dias-multa não deve ser modificado (50 dias-multa), em homenagem ao
princípio que veda a reformatio in pejus, não obstante tenha sido fixado
em quantitativo demasiadamente baixo, levando-se em conta que foram
três das operantes do art. 59 valoradas negativamente ao réu.
Incidente o art. 69 do CP (concurso material), a pena privativa de liberdade resulta em 12 (doze) anos de reclusão, a ser cumprida em regime
inicialmente fechado, consoante o disposto no art. 33, § 2º , a, do CP, e
210 dias-multa, no valor de um trigésimo do salário mínimo vigente ao
tempo do fato o dia-multa.
Face ao quantum da pena privativa de liberdade resta afastada a possibilidade de substituição por penas restritivas de direitos e de suspensão
condicional da pena.
Voto, por isso, em negar provimento aos recursos dos réus e do
Ministério Público Federal, e por aplicar ex officio o art. 580 do CPP,
alterando a quantidade de pena imposta para ambos os réus, nos termos
da fundamentação.
Havendo unanimidade no julgamento, oficie-se ao juízo de primeiro
grau para o imediato cumprimento das penas, salvo as de multa. (Súmula 267 do STJ)
316
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
HABEAS CORPUS Nº 2004.04.01.003975-7/SC
Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal José Germano da Silva
Impetrantes: Neri Trombim e outro
Impetrado: Juízo Substituto da 1ª Vara Federal de Criciúma/SC
Paciente: A. L. S. T.
EMENTA
Habeas corpus. Trancamento ação penal. Lei nº 9.605/98, art. 34,
§ único, inc. II. Ausência de justa causa. Portaria 54-N/99 do IBAMA.
Inocorrência de captura de peixes. Diferença de 01 (um) centímetro na
malha da rede. Irrelevância.
1. A diferença de apenas 1 (um) centímetro entre a malha da rede
apreendida e a malha prevista e autorizada pela Portaria IBAMA 54N/99 é materialmente irrelevante e, aliada às demais circunstâncias do
fato, torna atípica a conduta de pescar, porque a não-incidência daquela
norma deixa o art. 34, parágrafo único, inc. II, da Lei nº 9.605/98, que é
norma penal em branco, sem a necessária complementação.
2. Ordem concedida.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas,
decide a Egrégia 7ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região,
por unanimidade, conceder a ordem para trancar a ação penal, nos termos
do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante
do presente julgado.
Porto Alegre, 23 de março de 2004.
Des. Federal José Germano da Silva , Relator.
RELATÓRIO
O Exmo. Sr. Des. Federal José Germano da Silva: Trata-se de habeas
corpus impetrado por Neri Trombim e A. L. S. T. em favor deste último,
objetivando, liminarmente, a suspensão e, em definitivo, o trancamento
da Ação Penal nº 2002.72.04.001373-2 em trâmite perante o MM. Juízo Federal da 1ª Vara Federal de Criciúma/SC, na qual o paciente foi
denunciado pela prática, em tese, do delito previsto no art. 34, § único,
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317
inc. II, da Lei nº 9.605/98.
Alegam, em síntese, que não há justa causa para a ação penal ao
argumento de que o fato descrito na denúncia não passa de infração
administrativa. Salienta que a diferença entre a malha permitida e a rede
apreendida é de apenas um (1) centímetro, bem como que não houve a
apreensão de nenhum peixe, inexistindo qualquer dano ao meio ambiente. Aduz que a conduta narrada na exordial acusatória (portaria esta que
implementou o tipo penal) é penalmente irrelevante, devendo-se aplicar
ao caso o princípio da insignificância. Refere, ainda, que a Portaria nº 54N/99 emitida pelo IBAMA e citada na denúncia faz referência ao litoral
sul de Santa Catarina, entre os municípios de Laguna e Passo de Torres,
estando excluído o município de Içara no qual se encontrava o paciente
quando da apreensão da rede. Sustenta, também, que o comprimento
de rede permitido na referida portaria é de 100 metros, extensão muito
superior à da rede apreendida que era 25 metros. Por fim, argumentou a
atenuante do art. 14, inc. IV, da referida Lei nº 9.605/98, pelo fato de ter
colaborado com os agentes encarregados da vigilância e controle ambiental, conforme consta da Notícia de Infração Ambiental. (fls. 27/30)
A liminar foi concedida (fl. 74), e as informações foram prestadas.
(fls. 80-81)
O Ministério Público Federal ofertou parecer, opinando pela denegação da ordem. (fls. 85-90)
É o relatório.
VOTO
O Exmo. Sr. Des. Federal José Germano da Silva: Narra, a denúncia,
que no dia 01.07.01, por volta das 12 horas, o paciente pescava na beira-mar da Praia de Barra Velha, no município de Içara/SC, utilizando-se,
para tanto, de petrecho não permitido, ocasião em que foi surpreendido
por policiais militares, incorrendo, portanto, nas sanções do art. 34, §
único, inc. II, da Lei nº 9.605/98, o qual determina:
“Art. 34. Pescar em período no qual a pesca seja proibida ou em lugares interditados
por órgão competente:
Pena - detenção de um ano a três anos ou multa, ou ambas as penas cumulativamente.
Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem:
I - pesca espécies que devam ser preservadas ou espécimes com tamanhos inferiores
318
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
aos permitidos;
II - pesca quantidades superiores às permitidas, ou mediante a utilização de aparelhos, petrechos, técnicas e métodos não permitidos;
III - transporta, comercializa, beneficia ou industrializa espécimes provenientes da
coleta, apanha e pesca proibidas.”
A exordial acusatória refere, ainda, a Portaria do IBAMA nº 54-N/99,
art. 2º, b (também citada na Notícia de Infração Penal Ambiental que
lastreou a denúncia), que assim dispõe:
“Art. 2º. Permitir, no litoral Sul do Estado de Santa Catarina, entre os municípios
de Laguna e Passo de Torres, o uso dos seguintes petrechos de pesca:
a) Redes de emalhar fixas (redes de calão), com no máximo 50m (cinqüenta metros)
de comprimento, utilizando-se para fixação calões móveis, e malha mínima de 70mm
(setenta milímetros);
b) Redes de emalhar derivantes (rede japonesa ou de pandorga), com no máximo
100m (cem metros) de comprimento e malha mínima de 70mm (setenta milímetros);
c) Redes de arrasto de praia (tração manual), com no máximo 1.200m (hum mil e
duzentos metros) de comprimento e malha mínima de 70mm (setenta milímetros).”
Vladimir Passos de Freitas e Gilberto Passos de Freitas (Crimes contra
a Natureza, 6ª ed., Revista dos Tribunais, pág. 104) lecionam que
“no inc. II proíbe-se a pesca de quantidades superiores às permitidas ou mediante a
utilização de instrumentos vedados. Como é intuitivo, a pesca não poderá ser indiscriminada. O excesso na captura, por vezes apenas por prazer e sem destinar o produto à
alimentação, poderá significar diminuição e até mesmo extermínio das espécies. Por
outro lado, métodos nocivos também não podem ser admitidos, eis que causam graves
danos ao meio ambiente. São, entre outros, as redes de malha fina, tarrafas, covões,
espinhéis, joões bobos (armadilhas com bóias que acompanham a água), anzóis de
galho. Todos esses meios são nocivos, pois alcançam grande número de espécies e de
tamanho pequeno. A proibição deve ser objeto de ato da autoridade administrativa.”
Ainda comentando o referido art. 34, os autores supracitados esclarecem que o elemento subjetivo “é o dolo, a vontade consciente de praticar
a pesca através de qualquer das modalidades proibidas, ou mesmo de
beneficiar-se de tal conduta” (ob. cit., pág. 104). Portanto, o tipo penal
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319
ora em exame configura-se apenas com a utilização de instrumento não
autorizado, pouco importando a quantidade de especimens aquáticas
apreendidas.
Além disso, não há se valorar resultado naturalístico - modificação
no mundo exterior - vez que não se trata de delito material, mas sim
de crime estruturalmente formal, não condicionando tal elemento à
consumação, o que, per se, afasta o seu desvalor, visto que a apanha
se revelou mero exaurimento. (Recurso Criminal em Sentido Estrito
nº 2000.71.05.001600-7/RS, Rel. Des. Federal José Germano da Silva,
DJU 25.09.02, p. 798/799)
No que tange à aplicação do princípio da insignificância, deve-se
atentar que este leva em consideração que, além da tipicidade formal,
deve haver uma tipicidade material, ou seja, que, além da adequação do
fato à norma jurídica penal, deve existir também lesividade significativa
ao bem jurídico tutelado. Com efeito, existem atos que não agridem o
bem jurídico tutelado de forma efetiva, embora possam configurar uma
tipificação formal. Tais atos são penalmente irrelevantes, ante a pouca
lesividade da conduta. Mas, da aplicação do princípio da insignificância
não pode defluir equivocada ilação no sentido de quantificar os resultados
de certas condutas e, a partir daí, rotular certos atos de insignificantes.
Por conseguinte, mister se faz verificar qual o bem jurídico tutelado pela
norma penal, a fim de avaliar a existência ou não de lesividade na conduta
do agente. Neste contexto, a quantidade de peixes pescados somente tem
relevância quando a pescaria exceder os limites permitidos (primeira parte
do inciso II do art. 34 da Lei nº 9.605/98), o que não é o caso.
Esclareça-se que a Portaria nº 54-N/99 emitida pelo IBAMA e citada
na denúncia faz referência ao litoral sul de Santa Catarina, entre os municípios de Laguna e Passo de Torres, abrangendo, portanto, o município
de Içara e que a discussão acerca da aplicação da atenuante estabelecida
no art. 14, IV, da Lei nº 9.605/98, é questão que refoge à estreita via do
habeas corpus, devendo ser analisada quando de eventual aplicação da
pena em sentença condenatória.
Entretanto, no caso concreto, verifica-se que a denúncia está calcada no referido art. 34, que é norma penal em branco, dependente de
regulamentação. Tal regulamentação, por seu turno, veio estampada
na Portaria nº 54-N, datada de 09.06.99, que permitiu, no litoral sul de
320
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
Santa Catarina, a pesca com redes de malha mínima equivalente a 70mm
(setenta milímetros).
A Notícia de Infração Penal Ambiental (fl. 27) atesta que a rede de
propriedade do paciente possuía malha de 60mm (sessenta milímetros) ou seja, 1 (um) cm aquém da previsão normativa - o que equivale a uma
diferença de apenas 14% na malha da rede apreendida em relação à malha
permitida. Tal diferença, a meu sentir, aliada às demais circunstâncias
do caso em exame, há que ser tomada como materialmente irrelevante,
o que torna o fato atípico e retira a justa causa da referida ação penal.
Dessa forma, voto no sentido de conceder a ordem para trancar a
ação penal nº 2002.72.04.001373-2, em trâmite perante a 1ª Vara Federal de Criciúma/SC.
HABEAS CORPUS Nº 2004.04.01.012596-0/RS
Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Luiz Fernando Wowk Penteado
Impetrantes: N. N. O. e outros
Advogado: Dr. Celso Werlang Garcia
Impetrado: Juízo Federal da 2ª Vara Federal de Rio Grande/RS
Pacientes: N. N. O. Réu Preso
M. O. Réu Preso
W. O. O. Réu Preso
EMENTA
Habeas corpus. Deportação de estrangeiros. Prisão administrativa.
Lei nº 6.815/80 (Estatuto do estrangeiro). Desnecessidade da custódia.
Cumprimento de normas de comportamento.
1 - A prisão de estrangeiro para aguardar o encerramento do processo
de deportação somente se justifica mediante a apresentação de fundadas
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
321
razões.
2 - A custódia para a efetividade do processo de deportação, por si só
não constitui motivo para tanto.
3 - Verificada a desnecessidade da prisão, deve ser permitida a liberdade vigiada até a definição das normas de comportamento a serem
observadas pelo estrangeiro, cujo descumprimento impõe a revogação
da medida.
4 - Ordem de habeas corpus concedida.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas,
decide a Egrégia 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região,
por unanimidade, conceder a ordem de habeas corpus, nos termos do
relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte do presente
julgado.
Porto Alegre, 2 de junho de 2004.
Des. Federal Luiz Fernando Wowk Penteado, Relator.
RELATÓRIO
O Exmo. Sr. Des. Federal Luiz Fernando Wowk Penteado: Trata-se
de habeas corpus, objetivando a revogação da prisão administrativa a
que estão submetidos os pacientes, que são nigerianos, em processo de
deportação.
O impetrante sustenta que, em razão do “não provimento do recurso
ao Ministério da Justiça contra o indeferimento do pedido de refúgio
junto ao Comitê Nacional para os Refugiados - CONARE e acatando
pedido do Senhor Delegado da Polícia Federal, o Juízo a quo determinou a expedição de mandados de prisão contra os peticionários, com
fundamento legal no artigo 61, parágrafo único, da Lei do Estrangeiro
(6.815/80)” - grifo do original - que não impõe a custódia, mas apenas
faculta. Aduz que os pacientes, em todo o tempo em que estiveram em
liberdade, “jamais demonstraram qualquer atitude que desabonasse sua
conduta social”, tendo inclusive se integrado com a comunidade, o que
afasta a necessidade da prisão, havendo também “um considerável número de pessoas que se dispõem a dar-lhes guarida em suas casas”. Por
fim, postula a cassação da ordem judicial ou, não sendo cabível a soltura,
322
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
o benefício de ir e vir entre 8 e 18 horas, pernoitando na penitenciária,
onde hoje se encontram, nos mesmos termos dos que cumprem pena em
regime aberto.
Nas fls. 18-19, foram prestadas as informações pela autoridade apontada como coatora, sendo juntado na fl. 20, ofício do Delegado da Polícia
Federal em Rio Grande/RS.
Com vista dos autos, o Ministério Público Federal opinou pela denegação da ordem. (fls. 24-27)
É o relatório.
VOTO
O Exmo. Sr. Des. Federal Luiz Fernando Wowk Penteado: Dispõe o
artigo 60 da Lei nº 6.815/80 (Estatuto do Estrangeiro):
“O estrangeiro, enquanto não se efetivar a deportação, poderá ser recolhido à prisão
por ordem do Ministro da Justiça, pelo prazo de sessenta dias.
Parágrafo único. Sempre que não for possível, dentro do prazo previsto neste artigo, determinar-se a identidade do deportando ou obter-se documento de viagem para
promover a sua retirada, a prisão poderá ser prorrogada por igual período, findo o qual
será ele posto em liberdade, aplicando-se o disposto no artigo 72”.
Por sua vez, refere o artigo 72 do mesmo diploma legal:
“O estrangeiro, cuja prisão não se torne necessária, ou que tenha o prazo desta vencido, permanecerá em liberdade vigiada, em lugar designado pelo Ministro da Justiça,
e guardará as normas de comportamento que lhe forem estabelecidas.
Parágrafo único. Descumprida qualquer das normas fixadas de conformidade com
o disposto neste artigo ou no seguinte, o Ministro da Justiça, a qualquer tempo, poderá
determinar a prisão administrativa do estrangeiro, cujo prazo não excederá a noventa
dias”.
Ao decretar a prisão dos pacientes, a autoridade impetrada manifestou-se nos seguintes termos (fl. 08):
“No caso dos autos, houve o decreto prisional no dia 26.09.2003 (fl. 06), cumprido na mesma data (fl. 11), sendo os réus mantidos na Penitenciária Estadual de Rio
Grande até o dia 27.11.2003 (fls. 55-56), tendo transcorrido o prazo de 60 (sessenta)
dias previsto no art. 61 do Estatuto do Estrangeiro.
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
323
Nesse ínterim, por força do pedido de reconhecimento dos réus como refugiados
estrangeiros houve a suspensão do processo de deportação em trâmite na Delegacia
de Polícia Federal desta cidade, conforme ofício do Comitê Nacional de Refugiados
(fls. 128-131).
Com o indeferimento do pedido de reconhecimento necessário se faz a continuidade
do processo de deportação dos vindiços.
Diante disso, DEFIRO o pedido de prisão para deportação, pelo prazo máximo de
60 (sessenta) dias, com base no parágrafo único do art. 61 da Lei nº 6.815/80”.
Provocado o juízo a quo por meio de pedido de revogação da custódia
determinada, fundamentou a negativa conforme segue (fls. 06-07):
“Nada há a questionar quanto ao caráter de faculdade atribuído pela Lei à prisão. De
fato assim o é. Entretanto, nenhuma garantia tem o Juízo de que os réus permanecerão
voluntariamente aguardando o término do processo de deportação.
O convívio social e comportamento idôneo dos réus, alegados como motivadores
para a manutenção dos mesmos em liberdade, não podem ser tidos como bastantes
à revogação da prisão porque durante todo esse período mencionado os estrangeiros
estavam aguardando a decisão de reconhecimento da qualidade de refugiados, ou seja,
não havia razão para que evadissem do território nacional. Afora, com a decisão do
DD. Ministro de Estado da Justiça, inexiste possibilidade da permanência dos mesmos
em nosso país.
Ademais, os alienígenas não possuem familiares ou residência que os acolham
nesta cidade.
Assim, INDEFIRO o pedido de revogação e mantenho o decreto prisional para
garantir a efetividade do processo de deportação”.
Com efeito, a questão a ser enfrentada é verificar a presença da necessidade do encarceramento dos pacientes, uma vez que não se trata
de imposição legal, mas apenas faculdade do juízo frente à situação do
caso concreto.
No presente caso, a douta autoridade impetrada apenas referiu ser
devida a prisão “para a efetividade do processo de deportação”. Ocorre
que, a meu ver, com a vênia devida, isto, por si só, não basta para a decretação da custódia, sendo necessário indícios concretos e objetivos de
que os estrangeiros irão evadir-se caso postos em liberdade.
Afirmou o juiz monocrático que “nenhuma garantia tem o Juízo de
que os réus permanecerão voluntariamente aguardando o término do
processo de deportação”; entretanto, também não existem elementos que
levem a acreditar que não aguardarão. Dessa forma, e tendo em vista
que houve a noticiada boa integração dos pacientes com a comunidade,
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R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
deve prevalecer o status libertatis, uma vez que não restou evidenciada
a necessidade da custódia.
Entretanto, o artigo 72 antes transcrito impõe que os pacientes fiquem
em liberdade vigiada, guardando as normas de condutas que lhe forem
estabelecidas, o que se observará até a conclusão do processo de deportação, que, no presente momento, conforme ofício expedido em 06 de abril
do corrente pelo Delegado da Polícia Federal de Rio Grande, “encontra-se
pendente diligência junto a seguradora responsável pela aquisição das
passagens no sentido de se obter o respectivo itinerário concernente a
viagem a ser realizada (...) estima-se que tal procedimento demandará
cerca de 30 (trinta) dias para ser concluído”. (fl. 20)
Como os estrangeiros encontram-se no albergue da Penitenciária Estadual de Rio Grande (fl. 19), aí devem permanecer até que a autoridade
impetrada especifique as normas de conduta que deverão ser cumpridas
no período de liberdade vigiada. A eventual violação importará na revogação do benefício.
Isto posto, voto no sentido de conceder a ordem de habeas corpus,
nos termos da fundamentação.
QUESTÃO DE ORDEM NO HC Nº 2004.04.01.022247-3/RS
Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Luiz Fernando Wowk Penteado
Impetrantes: Asdrubal Nascimento Lima Junior e outros
Impetrado: Juízo Federal da 1ª Vara Federal de Santa Maria/RS
Paciente: V. J. D. S.
EMENTA
Questão de ordem. Habeas corpus. Crime de formação de cartel.
Postos de combustíveis. Lei nº 8.137/90. Lesão a interesse regional.
325
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
Competência da Justiça Estadual.
1 - Se a suposta prática de crime de formação de cartel atinge interesse
de consumidores de pequena região do Estado-membro, não há se falar
em competência da Justiça Federal para processar a ação penal.
2 - O simples fato de existir eventual ofensa a órgão ou instituição
que preserva coletivamente os interesses da sociedade, como no caso do
CADE, ocorrendo violação da ordem econômica geral e as conseqüentes
relações de consumo, não induz a competência da Justiça Federal.
3 - Questão de ordem acolhida para remeter os autos para a Justiça
Estadual.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas,
decide a Egrégia 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região,
por maioria, vencido o Desembargador Paulo Afonso Brum Vaz, acolher
a questão de ordem para reconhecer a incompetência da Justiça Federal
para a ação penal nº 2004.71.02.002647-8, declarando nulos os atos praticados nesse âmbito, determinando a remessa dos autos à Justiça Estadual
de Santa Maria, prejudicada a análise do presente habeas corpus,nos
termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte
do presente julgado.
Porto Alegre, 9 de junho de 2004.
Des. Federal Luiz Fernando Wowk Penteado, Relator.
RELATÓRIO
O Exmo. Sr. Des. Federal Luiz Fernando Wowk Penteado: Trata-se de
habeas corpus, com pedido de provimento liminar, objetivando o trancamento de ação penal proposta contra V. J. D. S. e outras dez pessoas,
pela prática, em tese, dos delitos previstos nos artigos 4º, inciso II, alínea
a, da Lei nº 8.137/90 (Cartel) e 288 do Código Penal.
Os impetrantes sustentam que, com base em notícias publicadas em
jornal local de Santa Maria/RS, sem as devidas provas de que os postos
de combustíveis estariam praticando preços semelhantes, o Ministério
Público Estadual ofereceu denúncia pela prática de cartel perante a Comarca daquele município, que declinou da competência para a Justiça
Federal. Ratificada a acusação pela Procuradoria da República, fazendo
326
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
incluir o tipo penal previsto no artigo 288 do CP, a inicial foi recebida
pela autoridade impetrada. Aduzem que o paciente está sofrendo coação
ilegal em razão:
1) da ausência de fundamentação do despacho que recebeu a denúncia;
2) da inexistência de condição de procedibilidade, pois “muito antes
que se promova ação penal para julgamento do suposto crime de Cartel,
deveria ter ocorrido o procedimento administrativo junto ao CADE porque é o órgão judicante competente para apreciação de questões dessa
natureza”, conforme “disposições da Lei nº 8.884/94, notadamente com
as modificações da Lei nº 10.149/00”;
3) da inconstitucionalidade da origem da apuração, já que “a denúncia apoiou-se exclusivamente em investigação desenvolvida pelo
próprio Ministério Público, como reconhece em seu preâmbulo, fl. 13,
onde afirma que a investigação foi feita pela 2ª Promotoria de Defesa
Comunitária”, sendo que o Parquet “não tem competência para investigar ilícitos penais, e utilizar sua própria investigação para lastrear a
denúncia”, conforme entendimento do STF;
4) da investigação inconclusa e ausência de justa causa, pois o “inquérito nº 26/02, da 2ª Promotoria de Defesa Comunitária que ensejou
a denúncia, não foi concluído, e mesmo após o oferecimento da peça
acusatória prossegue em atos de investigação, revelando que não havia
na investigação elementos justificadores da ação penal, pois, se compreenderam necessário prosseguir a investigação, é porque não arrecadaram
indícios suficientes para lastrear a acusação”, sendo que as pessoas
investigadas nem foram ouvidas. Acrescentam que a “precariedade da
investigação e a imaturidade da apuração” revelam a carência de justa
causa para a ação penal;
5) da atipicidade da conduta, porque a acusação, que “seria de combinação para a fixação de preços”, admite que haviam diferenças praticadas
pelos postos. Alegam que “se o tipo penal descreve fixação artificial é
porque reconhece que o preço de venda não estará fixado com base na
mera aplicação da margem de negócio ao preço de custo, mas na fixação
artificial de preço que, majorado pela combinação entre comerciantes
de valores que afrontem as relações de consumo, impingindo prejuízo
ao consumidor que estaria pagando preço que segundo as leis naturais
e econômicas deveria ser bem inferior”, acrescentando que “se o preço
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327
fixado (...) decorreu da simples aplicação da margem do negócio ao valor
de custo, seu resultado foi natural e não artificial, sendo evidentemente
atípica a conduta”.
Requerem, liminarmente, a suspensão dos atos processuais em relação
ao paciente, especialmente do interrogatório marcado para o dia 16 de
junho do corrente.
Com base no artigo 37, inciso IV, do RITRF da 4ª Região, submete-se
a presente questão de ordem à Turma para apreciar o pedido formulado.
É o relatório.
VOTO
O Exmo. Sr. Des. Federal Luiz Fernando Wowk Penteado: Antes de
apreciar as alegações dos impetrantes, merece ser examinada a questão
referente à competência da Justiça Federal para julgar a presente ação.
Conforme já referido, a denúncia aponta para a prática do crime de
cartel por postos de combustíveis na cidade de Santa Maria, no Estado
do Rio Grande do Sul, definida na Lei nº 8.137/90 conforme segue:
“Art. 4° Constitui crime contra a ordem econômica:
(...)
II - formar acordo, convênio, ajuste ou aliança entre ofertantes, visando:
a) à fixação artificial de preços ou quantidades vendidas ou produzidas;”
Ofertada a denúncia perante a Justiça Estadual, houve declinação da
competência para a Justiça Federal pelas razões que seguem (fls. 432433):
“É que a Lei 8.884/94 (antitruste), que dispôs sobre as infrações da ordem econômica, atribui ao CADE - Conselho Administrativo de Defesa Econômica, que possui status
de autarquia federal, a competência para o julgamento de condutas que afrontem, entre
outras, a limitação da livre concorrência ou da livre iniciativa (art. 20, I), a fixação de
preços ou condições de venda de bens ou prestação de serviços (art. 21, I), a adoção
de conduta comercial uniforme (art. 212, II).
Então, a conduta criminal atribuída aos ora acusados também caracteriza infração
administrativa, cabendo ao CADE sua apuração, com o que se evidencia seu interesse
na causa.
É bom deixar claro, para que não paire nenhuma dúvida, que o CADE ‘só pode
exigir o cumprimento da sanção através do Poder Judiciário’ (Alberto Silva Franco Leis Penais especiais e sua interpretação jurisprudencial. São Paulo. RT, 2000, p. 67),
bem como que ‘a execução das decisões do CADE será promovida na Justiça Federal
328
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...’ (art. 64 da Lei 8.884/94).
Conclui-se do exposto que, embora a Lei 8.137/90 não determine a competência
da Justiça Federal (inciso VI, do artigo 109), a conduta imputada aos acusados afeta os
‘serviços ou interesses da União ou suas entidades autárquicas’ (CADE), nos termos
do inciso IV, do artigo 109, da Constituição Federal.
Não se pode esquecer, ademais, que estamos diante, em tese, da prática de ‘Cartel’
na venda de combustíveis, cujo refino é monopólio da União. Nesse ponto, destaco
a Lei 9.478/97, em seu artigo 7º, criou a Agência Nacional do Petróleo - Fica instituída a Agência Nacional do Petróleo, entidade integrante da Administração Federal
indireta, submetida ao regime autárquico especial, como órgão regulador da indústria
do petróleo, vinculado ao Ministério de Minas e Energia. A mencionada autarquia
federal tem entre suas competências: Além das atribuições que lhe são conferidas no
artigo anterior, caberá à ANP exercer, a partir de sua implantação, as atribuições do
Departamento Nacional de Combustíveis - DNC relacionadas com as atividades de
distribuição e revenda de derivados de petróleo e álcool, observado o disposto no art.
78 (artigo 9º) (destaquei)” - grifos do original
Em que pesem as razões apresentadas pelo Juízo Estadual, não há
como acolher o entendimento exposto.
A Lei nº 8.884/94, que criou o CADE, em momento algum fixou a
competência da Justiça Federal para julgamento dos casos em que há
violação dos seus preceitos. Contudo, se esse órgão se fizer presente em
lide judicial, tendo a referida lei lhe atribuído o status de autarquia federal, obviamente é perante a Justiça Federal que deverá demandar ou ser
demandado, nos termos do artigo 109, inciso I, da Constituição Federal.
Entretanto, em se tratando de ação criminal, a questão resume-se a
perquirir acerca da existência de lesão praticada contra bens, serviços
ou interesses da União ou das suas entidades autárquicas ou empresas
públicas. (artigo 109, inciso IV, da CF)
Como antes mencionado, a imputação constante na denúncia é da
prática de cartel por postos de combustíveis, num total de onze, na cidade
de Santa Maria. Com efeito, não se evidencia que esta conduta, verificada
no município, atingindo os consumidores da circunscrita região, cause
prejuízo em detrimento da União.
Acerca da questão são os julgados do colendo Superior Tribunal de
Justiça:
“CONFLITO DE COMPETÊNCIA. JUÍZOS FEDERAL E ESTADUAL. PENAL. INQUÉRITO POLICIAL. LEI 8.137/90. ART. 109, I, CF. INTERPRETAÇÃO
EXTENSIVA AFASTADA. INTERESSES COLETIVOS DE CONSUMIDORES.
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COMPETÊNCIA ESTADUAL.
Possíveis crimes praticados contra a ordem econômica, no caso o estipulado pela
Lei nº 8.137/90 deve ser processado pelo juízo estadual, considerando o disposto no
art. 109, I, da CF e não havendo qualquer determinação no sentido de se deslocar a
competência para o juízo federal.
Precedentes análogos.
Conflito conhecido, declarando-se a competência do Juízo de Direito da Vara
Criminal de Apucarana/PR.” – grifado (CC nº 40.165/PR, 3ª Seção, Rel. Min. José
Arnaldo, DJU, ed. 02.02.2004, p. 269)
“HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A ORDEM ECONÔMICA. CARTELIZAÇÃO. LEI Nº 8.137/90. COMPETÊNCIA. INTERESSE NACIONAL. RESTRIÇÃO
À ATIVIDADE PROFISSIONAL EM VÁRIOS ESTADOS. JUSTIÇA FEDERAL.
Inexistindo determinação expressa, os crimes contra a ordem econômica, previstos
na Lei 8.137/90, reclamam a jurisdição estadual ou federal na medida em que restar
comprovado o interesse em jogo, se local ou se nacional.
In casu, ante a figura do crime sobrevindo da prática de cartel, onde a atuação
do agente teve reflexo em vários estados-membros, restringindo o livre exercício da
atividade profissional de transportadores pelo Brasil afora, resta patente o interesse
supra-regional pelo qual se firmam a necessidade de interferência da União e competência da Justiça Federal.
Tal se dá porque, apesar de a conduta ilícita ser oriunda de um núcleo determinado,
a sua propensão ofensiva à ordem econômica se faz sentir em localidades diversas e
em territórios distintos.” – grifado (HC nº 32.292, 5ª Turma, Rel. Min. José Arnaldo
da Fonseca, DJU, ed. 03.05.2004)
Do julgamento daquele Conflito de Competência, extrai-se do voto
do eminente relator:
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DIREITO PREVIDENCIÁRIO
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EMBARGOS INFRINGENTES EM AC Nº 1998.04.01.067435-7/RS
Relator: O Exmo. Sr. Juiz Federal Fernando Quadros da Silva
Relator p/acórdão: O Exmo. Sr. Des. Federal Victor Luiz dos Santos
Laus
Embargante: Instituto Nacional do Seguro Social - INSS
Advogado: Dr. Milton Drumond Carvalho
Embargada: Eronita da Cunha Flores
Advogados: Drs. Jayro Jose Fonseca Dornelles e outro
EMENTA
Previdenciário. Aposentadoria urbana por idade. Perda da
condição de segurado. Carência. Art. 24, parágrafo único, da Lei
8.213/91. Inaplicabilidade. Lei 10.666/03. Jus novum. Incidência
imediata. Precedentes. Marco inicial: benefício e juros moratórios.
Hipótese excepcional.
Em face dos artigos 3º, § 1º, da Lei 10.666/03 e 462 do CPC, revela-se
incabível a exigência contida no artigo 24, parágrafo único, da Lei 8.213/91,
cobrando relevo a hermenêutica que emana do colendo STJ, no sentido da
aplicabilidade imediata (e não retroativa) da norma previdenciária mais
benéfica.
Termos iniciais do benefício e dos juros moratórios que vão, excepcionalmente, assentados a partir da vigência do diploma superveniente
e não da DER e da citação.
ACÓRDÃO
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333
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas,
decide a Egrégia 3ª Seção do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por
maioria, dar parcial provimento aos embargos infringentes, nos termos
do voto do Desembargador Federal Victor Luiz dos Santos Laus e notas
taquigráficas, que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Porto Alegre, 13 de maio de 2004.
Des. Federal Victor Luiz dos Santos Laus, Relator p/acórdão.
RELATÓRIO
O Exmo. Sr. Juiz Federal Fernando Quadros da Silva: Trata-se de
embargos infringentes interpostos pelo INSS contra acórdão da Egrégia
6ª Turma deste Tribunal que decidiu, por maioria, que o direito ao benefício, nos termos do art. 98 da CLPS e do art. 102 da Lei nº 8.213/91,
é incorporado definitivamente ao patrimônio do segurado, se todos os
requisitos legais para a concessão foram preenchidos antes da perda
dessa qualidade e a documental apresentada constitui início razoável
de prova material, evidenciando a efetiva prestação laboral da autora. A
Turma entendeu também que a legislação previdenciária não obriga o
empregado rural a contribuir de forma direta aos cofres da Previdência,
logo não pode dele ser exigido o período de carência previsto no art. 142.
O embargante fundamenta o recurso no voto vencido do Relator,
eminente Juiz Sebastião Ogê Muniz, segundo o qual, o tempo de contribuição da autora não restou suficientemente comprovado, porque a
embargada extraiu sua CTPS em 23.05.95, na qual constam anotações
do período entre 11/84 e 01/91, e a alegação de que perdeu sua CTPS
anterior conforme comunicado à Polícia Civil (fl. 18), por si só, não
prova a existência de relação de trabalho. O voto vencido também
alavancou suas conclusões na apresentação de recibos pela embargada (fls. 11/17) de pagamentos feitos por seu alegado empregador,
que afirmou em depoimento que não fornecia recibos de pagamento
à autora, o que indica que os recibos não são contemporâneos. Além
disso, o voto vencido entendeu que, mesmo que se considerasse que,
entre 1984 e 1990, a autora tenha trabalhado pelo regime celetista, o
fato é que ela perdeu a qualidade de segurada, só vindo a recuperá-la
em 03/93, sendo necessário que ela completasse, pelo menos, 1/3 de 78
contribuições para ter o direito à aposentadoria em 1995, mas atingiu
334
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
somente 23 contribuições.
A embargada apresentou impugnação.
É o relatório. À revisão.
VOTO
O Exmo. Sr. Juiz Federal Fernando Quadros da Silva:
1 – O fato de ter sido confeccionada a nova CTPS somente em
23.05.95, “pouco mais de um mês antes da autora requerer o benefício”,
não deslustra a prova contida em tal documento. Se pretendia comprovar
a sua qualidade de segurada como empregada rural, a emissão de nova
CTPS, na qual colheu a assinatura do seu ex-empregador, é meio lícito e
válido, por ter perdido a CTPS anterior conforme comunicado à Polícia
Civil (fl. 18). Não tivesse ela providenciado o novo documento, a Autarquia Previdenciária alegaria que a prova era rarefeita como argumento
para denegar o benefício pretendido. Além disso, o antigo empregador
não se negou a assinar a nova CTPS com as anotações do tempo de serviço prestado pela embargada, no período de 10.11.84 a 10.01.91. Os
recibos passados pela embargada pelo recebimento do salário mensal
também comprovam a relação empregatícia e, no depoimento que prestou
em audiência, afirmou que assinava a carteira de trabalho da segurada,
somente não recordando a época em que ela parou de trabalhar para o
declarante, em serviços gerais na agricultura, cozinhando e cuidando da
criação de animais.
A assinatura em CTPS no período abrangido pelos recibos emitidos
pela segurada constitui início razoável de prova material, corroborada
pela prova testemunhal do próprio empregador que afirmou que ela foi
sua empregada por largo período, tendo assinado a CTPS dentro do
período abrangido pelos recibos de pagamento emitidos em seu favor
pela empregada. Assim, tenho que o tempo de contribuição da segurada
restou suficientemente comprovado.
Quanto ao aspecto da contemporaneidade dos recibos emitidos, o
empregador não negou sua emissão, e o INSS não alegou qualquer vício
ou irregularidade formal na sua confecção e, no ponto, acompanho o
entendimento do eminente Desembargador Luiz Carlos de Castro Lugon,
que asseverou, com propriedade:
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335
“Ao Juiz descabe ampliar a área de contenciosidade. Em segunda instância, decidir
com base em matéria alheia malfere princípios comezinhos de Direito Processual Civil:
suprime-se uma instância e furta-se a oportunidade de defesa da parte prejudicada pela
inovação”.
Comprovado, assim, o labor exercido pela autora, no período de
10.11.84 a 10.01.91, passa-se à análise da carência.
2 – No caso dos autos, a autora perdeu a qualidade de segurada a partir
de fevereiro/92 e readquiriu essa condição a partir de março/93 por ter
contribuído como autônoma (contribuinte individual) de 03/93 a 01/95,
conforme a dicção legal:
“Art. 142. Para o segurado inscrito na Previdência Social Urbana até 24 de julho
de 1991, bem como para o trabalhador e o empregador rural cobertos pela Previdência
Social Rural, a carência das aposentadorias por idade, por tempo de serviço e especial
obedecerá à seguinte tabela, levando-se em conta o ano em que o segurado implementou
todas as condições necessárias à obtenção do benefício: (...)”.
Destarte, evidencia-se a legalidade da aplicação do art. 142 da Lei
8.213/91, não por força da interpretação que estende essa regra àqueles
que, na data de 24 de julho de 1991, não mais mantinham a condição de
segurado, embora inscritos no sistema em período anterior, mas sim em
face da sua literalidade.
Mas não se pode perder de vista que a autora era empregada rural,
abrangida pelo Programa de Assistência ao Trabalhador Rural – PRORURAL, instituído pela Lei Complementar nº 11, de 25.05.71, até a
unificação da cobertura dos benefícios da Previdência Social pela Lei nº
8.213/91, que assegurou a transição através de tabela de carência prevista
no seu art. 142. O art. 14 da LC nº 11/71 tem o seguinte enunciado:
“Art. 14. O ingresso do trabalhador rural e dependentes, abrangidos por esta Lei
Complementar no regime de qualquer entidade de previdência social não lhes acarretará
a perda do direito às prestações do Programa de Assistência, enquanto não decorrer o
período de carência a que se condicionar a concessão dos benefícios pelo nôvo regime.”
Como visto, o art. 14 da LC nº 11/71 assegura a continuidade da
cobertura dos benefícios do FUNRURAL até que decorra o período de
carência do benefício postulado pelo novo regime. Não concordo com
a tese de que o FUNRURAL não previa carência para a concessão dos
benefícios concedidos sob sua égide. A leitura que faço do art. 27 da
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norma em comento é de que o cumprimento do período de carência é
exigido, ressalvados os direitos daqueles que contribuíram para o INPS
através do ordenamento jurídico anterior, como se vê:
“Art. 27. Fica extinto o Plano Básico da Previdência Social, instituído pelo Decreto-Lei nº 564, de 1º de maio de 1969, e alterado pelo Decreto-Lei nº 704, de 14 de julho
de 1969, ressalvados os direitos daqueles que, contribuindo para o INPS pelo referido
Plano, cumpram período de carência até 30 de junho de 1971.
§ 1º As contribuições para o Plano Básico daqueles que tiverem direito assegurado, na forma dêste artigo, serão recolhidas somente em correspondência ao período a
encerrar-se em 30 de junho de 1971, cessando o direito de habilitação aos benefícios
em 30 de junho de 1972.
§ 2º Caberá a devolução das contribuições descontadas, já recolhidas ou não, àqueles
que, havendo começado a contribuir tardiamente, não puderem cumprir o período de
carência até 30 de junho de 1971.
§ 3º As emprêsas abrangidas pelo Plano Básico são incluídas como contribuintes
do Programa de Assistência ora instituído, participando do seu custeio na forma do
disposto no item I do art. 15, e dispensadas, em conseqüência, da contribuição relativa
ao referido Plano, ressalvado o disposto no § 1º.”
Por sua vez, o art. 55 da Lei nº 8.213/91 estabelece que o tempo de
serviço do trabalhador rural, anterior à data de início de vigência desta
lei e da perda da qualidade de segurado, será computado, independentemente do recolhimento de contribuições, exceto para efeito de carência.
Com isso, ficou estabelecido que somente será considerado o tempo de
serviço anterior à vigência da nova norma e da perda da qualidade de
segurado, se cumprida a carência instituída pelo art. 142. O art. 55 tem
a seguinte inteligência:
“Art. 55. O tempo de serviço será comprovado na forma estabelecida no Regulamento, compreendendo, além do correspondente às atividades de qualquer das categorias
de segurados de que trata o art. 11 desta Lei, mesmo que anterior à perda da qualidade
de segurado:
(...)
V – o tempo de contribuição efetuado por segurado depois de ter deixado de exercer
a atividade remunerada que o enquadrava no art. 11 desta Lei;
(...)
§ 2º O tempo de serviço do Segurado trabalhador rural, anterior à data de início
de vigência desta Lei, será computado independentemente do recolhimento das contribuições a ele correspondente, exceto para efeito de carência, conforme dispuser o
Regulamento.”
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337
Estabelecido que a segurada rural também estava sujeita à carência
para a concessão dos benefícios estendidos pelo FUNRURAL, submete-se ela à carência exigida pela Lei nº 8.213/91.
O benefício da autora foi denegado pelo INSS por falta de carência,
por não ter considerado o período de trabalho de 10.11.84 a 10.01.91.
Como a aposentadoria por idade foi requerida em 1995, seria necessária
uma carência de 78 contribuições. No período acima, em que trabalhou
como empregada rural, a autora contou com 74 meses, não completando
a carência necessária.
Assim posta a questão, é de se entender que à autora deve ser aplicada
a regra de transição, exigindo-se-lhe o cumprimento na nova filiação de
1/3 da carência do benefício, o que permite o aproveitamento das contribuições vertidas anteriormente à perda da qualidade de segurada, nos
termos do art. 24, parágrafo único, da Lei 8.213/91.
Observe-se que em 01.01.95, quando a autora implementou o requisito etário (60 anos), a carência exigida para o benefício era de 78
contribuições. Como a autora perdeu a qualidade de segurada, somente
vindo a recuperá-la em 03/93, seria necessário que ela completasse pelo
menos 1/3 de 78 contribuições. No caso examinado, a autora recolheu
23 contribuições na nova filiação, quando seriam necessárias 26 para ter
o direito de unificar as novas com as antigas contribuições. Com isso,
não adimpliu a carência exigida para o benefício de aposentadoria por
idade, nos termos do art. 142 da Lei 8.213/91.
3 - Face ao exposto, dou provimento aos embargos infringentes.
VOTO-VISTA
O Exmo. Sr. Des. Federal Victor Luiz dos Santos Laus: Pedi vista dos
autos para melhor examinar a tese brandida pelo Juiz Federal Ricardo
Teixeira do Valle Pereira, que, discordando do Relator, afastou o parágrafo único do art. 24 da LB (“Havendo perda da qualidade de segurado,
as contribuições anteriores a essa data só serão computadas para efeito
de carência depois que o segurado contar, a partir da nova filiação à
Previdência Social, com, no mínimo, 1/3 do número de contribuições
exigidas para o cumprimento da carência definida para o benefício a ser
requerido.”), preceito cuja incidência rendeu ensejo a estes infringentes.
338
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
As duas respeitáveis posições podem assim ser sintetizadas:
“Observe-se que em 01.01.95, quando a autora implementou o requisito etário (60
anos), a carência exigida para o benefício era de 78 contribuições. Como a autora perdeu a qualidade de segurada, somente vindo a recuperá-la em 03/93, seria necessário
que ela completasse pelo menos 1/3 de 78 contribuições. No caso examinado, a autora
recolheu 23 contribuições na nova filiação, quando seriam necessárias 26 para ter o
direito de unificar as novas com as antigas contribuições. Com isso, não adimpliu a
carência exigida para o benefício de aposentadoria por idade, nos termos do art. 142
da Lei 8.213/91.” (fl. 102)
“A conclusão é que deixou de ter qualquer relevância a regra do artigo 24, parágrafo único, da Lei nº 8.213/91 para a aposentadoria urbana por idade. Basta apenas o
implemento do requisito etário e o cumprimento da carência, ainda que para isso haja
necessidade de somar contribuições interpoladas. Regulando o parágrafo único do artigo 24 da Lei 8.213/91 situação ligada à perda da qualidade de segurado, não tem ele
aplicação aos casos de aposentadoria por idade pois a concessão do benefício depende
de base meramente atuarial: recolhimento do número mínimo de contribuições (desde
que completada a idade obviamente).” (fl. 108)
Pedindo vênia à relatoria, tenho que, em face dos arts. 3º, § 1º, da
Lei 10.666/03 e 462 do CPC, revela-se sem cabimento ao desfecho
do caso em liça o dispositivo questionado, porquanto ainda que seja
a ele posterior, cobra relevo a hermenêutica que emana do colendo
STJ, no sentido da aplicabilidade imediata (e não retroatividade) da
norma previdenciária mais benéfica.
Com efeito, estimo que a novel disposição, atenta à alteração da forma de cálculo dos benefícios introduzida pela Lei 9.786/99, consoante
destaca o excerto da sua exposição de motivos reproduzido no voto divergente, há de ser tomada como mais uma medida, entre tantas que ao
longo do tempo foram adotadas, voltada a abrandar os requisitos para a
jubilação etária, de modo a garantir ao segurado nesta condição, a fruição com dignidade de sua velhice, dispensando-o do comparecimento
ao posto de trabalho.
Portanto, compreendo não haver vinculação ao precedente desta Seção
na matéria, aprovado por voto de desempate na assentada de 12.02.2003,
ora superado pelo direito superveniente, assim então ementado:
“PREVIDENCIÁRIO. EMBARGOS INFRINGENTES. APOSENTADORIA POR
IDADE. TRABALHADOR URBANO. PERDA DA QUALIDADE DE SEGURADO,
NO REGIME ANTERIOR, ANTES DO IMPLEMENTO DA CARÊNCIA. IMPOSR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
339
SIBILIDADE DE CONCESSÃO.
Nos termos do parágrafo único do art. 24 da LBPS, se houve perda da qualidade
de segurado, as contribuições anteriores a essa data só serão computadas para efeito
de carência depois que o segurado contar, a partir da nova filiação à Previdência Social, com, no mínimo, 1/3 (um terço) do número de contribuições. Na hipótese, não
houve recolhimento de contribuições no regime atual, ocorrendo a perda da qualidade
de segurado na vigência da lei anterior que, em caso de reingresso, previa novo cumprimento dos prazos de carência.” (EIAC 2001.71.01.000287-7, Rel. p/acórdão Des.
Federal Paulo Afonso Brum Vaz, DJU 12.03.2003)
Por outro lado, apenas faço ressalva à pertinência da fundamentação
trazida pela dissidência, no sentido de que o edito ostente nítido caráter
interpretativo, haja vista que, no caso em apreço, a embargada detinha
a qualidade de segurada por ocasião da DER, de modo que me parece
não ser necessário, eis que refoge ao tema em debate, avançar-se na discussão sobre ter a lei em causa (art. 3º, caput) alçado aquele elemento à
categoria de requisito do benefício, cujo atendimento ao lado dos demais
(idade e carência) poderia se dar de maneira não simultânea, é dizer, em
momentos distintos ao do requerimento administrativo.
Quanto àquela idêntica qualificação sobre a discutida dispensa do
recolhimento, ao menos, de uma terça parte das exações após o reingresso, o indigitado parágrafo primeiro, a meu sentir, configura jus novum
e não diploma dirigido a espancar obscuridades e ambigüidades (STF,
RE 120.446-0/PB, 2ª Turma, Rel. Min. Carlos Velloso, DJU 13.12.96),
consabido que atualmente a orientação no âmbito do STJ e deste Tribunal
preconiza o cumprimento da exigência:
“PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA POR IDADE. NORMA TRANSITÓRIA. PERDA DA QUALIDADE DE SEGURADO. CONTRIBUIÇÕES ANTERIORES. CÔMPUTO. REGRA.
(...)
A legislação previdenciária fixou regra acerca do aproveitamento das contribuições
anteriores em caso de perda da qualidade de segurado, exigindo que o beneficiário contribua com, no mínimo, 1/3 do número de contribuições necessárias para o cumprimento
da carência do benefício a ser requerido para que se possa computar as contribuições
efetuadas em filiação anterior.
(...)” (AgRg no REsp 512.592, 6ª Turma, Rel. Min. Paulo Medina, DJU 22.09.2003)
Tenho, portanto, que a embargada faz jus ao acolhimento, em parte, da
sua pretensão, ou seja, a aposentadoria por idade com DIB em 09.05.2003.
340
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
(publicação da Lei 10.666 no Diário Oficial da União)
Finalmente, por força do efeito translativo dos embargos, entendo
que, por se tratar de dívida de valor, a contar daquela data incidirão juros
moratórios de 1% (um por cento) ao mês (STJ, EREsp 230.222/CE, 3ª
Seção, Rel. Min. Félix Fischer, DJU 16.10.2000). Explicito que a correção
monetária observará a variação do IGP-DI (art. 10 da Lei 9.711/98) e que
por “valor da condenação”, base de cálculo dos honorários arbitrados,
compreendem-se apenas as parcelas devidas até aquele julgamento.
Nessas condições, aderindo, mas em menor extensão, à divergência,
dou provimento parcial aos embargos infringentes.
É o voto.
APELAÇÃO CÍVEL Nº 1999.70.09.003682-5/PR
Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal João Batista Pinto Silveira
Apelante: Instituto Nacional do Seguro Social - INSS
Advogada: Dra. Angela Maria de Barros Gregório
Apelada: Eloina de Lourdes Carneiro d’Amico
Advogados: Dr. Silmar Ferreira Ditrich
Dra. Claudia Aparecida Colla
EMENTA
Previdenciário. Concessão de aposentadoria por idade urbana. Inscrição ocorrida até 24 de julho de 1991. Carência reduzida. Segurado
obrigatório. Responsabilidade. Contribuições previdenciárias. Consectários. Omissão no julgado. Honorários advocatícios. Custas processuais.
1. Preenchidos os requisitos do art. 48 da Lei 8.213/91, ainda que não
implementados simultaneamente, é devido o benefício da aposentadoria
por idade. 2. Sendo a autora filiada obrigatória da Previdência Social, à
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341
empresa cabem as obrigações em relação aos encargos sociais de seus
empregados, não podendo a demandante sofrer qualquer prejuízo em
virtude de qualquer omissão da empresa. 3. A correção monetária e
os juros de mora são considerados implícitos no pedido, uma vez que
decorrentes de lei, razão pela qual o Tribunal pode suprir a omissão da
sentença nesse ponto, sem que se configure reformatio in pejus. 4. A
condenação no quantum da verba honorária fixada na sentença deve ser
mantida quando sua adequação ao entendimento desta Corte implicar
reformatio in pejus. 5. O INSS está isento de custas quando demandado
na Justiça Federal.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas,
decide a Egrégia 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região,
por unanimidade, negar provimento ao recurso e dar parcial provimento
à remessa oficial, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que
ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Porto Alegre, 30 de junho de 2004.
Des. Federal João Batista Pinto Silveira, Relator.
RELATÓRIO
O Exmo. Sr. Des. Federal João Batista Pinto Silveira: Cuida-se de
apelação interposta da sentença que, antecipando os efeitos da tutela,
julgou procedente o pedido para declarar a inexistência de relação jurídica
entre a autora e o INSS relativamente às contribuições previdenciárias
do período entre 02/85 e 11/89, condenando o Instituto Previdenciário a:
a) conceder à parte autora o benefício de aposentadoria por idade,
computando-se o período supracitado;
b) arcar com o pagamento dos honorários advocatícios, fixados em
10% sobre o valor da causa;
c) pagar as custas processuais.
Interposto Agravo de Instrumento pelo INSS contra o provimento
antecipatório deferido no julgado, foi dado provimento ao mesmo. (AI nº
2000.04.01.117775-5, DJU de 10.10.2001, Relator Des. Federal Carlos
Eduardo Thompson Flores Lenz, 6ª Turma)
A Autarquia Previdenciária apela, postulando a reforma da sentença,
342
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
argüindo, preliminarmente, litispendência com o Mandado de Segurança
nº 97.0016743-7 impetrado perante a Vara Previdenciária de Curitiba, no
qual se discutia a legalidade da cobrança das contribuições previdenciárias pela autora, nos termos da Lei 9.032/95. No mérito, sustenta que
a autora é responsável pelo recolhimento das contribuições nos termos
do art. 135 do CTN. Argumenta que, tendo o recolhimento natureza de
indenização, o fato gerador da exação é fixado pelo pedido da contagem
de tempo, descaracterizando qualquer alegação de retroação da lei. Por
fim, alega que, tendo a demandante decaído em um de seus pedidos,
deve ser aplicado o art. 21 do CPC no que diz respeito à sucumbência.
Apresentadas contra-razões aos recursos, subiram os autos a este
Tribunal.
É o relatório.
À revisão.
VOTO
O Exmo. Sr. Des. Federal João Batista Pinto Silveira: Sentença sujeita
ao duplo grau de jurisdição, pois proferida quando em vigor a disciplina
contida na MP nº 1.561-1, de 17 de janeiro de 1997, convertida na Lei nº
9.469, de 10 de julho de 1997, a qual estendeu às Autarquias a aplicação
do disposto no art. 475, caput, e inciso II, do CPC.
Inicialmente, deve ser afastada a preliminar de litispendência argüida
pelo INSS, porquanto, para a sua caracterização, torna-se imprescindível
a identidade entre as partes, a causa de pedir e do pedido. Destarte, sendo
diversos os pedidos, não há se falar que a presente ação ordinária, onde
se visa à declaração da inexistência de relação jurídica entre a autora e
o INSS em relação às contribuições previdenciárias no período de 02/85
a 11/89, é repetição do Mandado de Segurança impetrado contra ato de
autoridade que indeferiu a aposentadoria por idade à autora em face de
não ter sido comprovado o recolhimento correto das contribuições previdenciárias no referido período.
Assim, a controvérsia a ser dirimida nos presentes autos diz respeito à obrigação de a empresa na qual laborou a autora, na condição de
sócia-gerente, recolher as contribuições previdenciárias no interregno
supracitado.
Alega o INSS que a responsabilidade pelo pagamento em questão é
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
343
da autora, uma vez que ela era sócia-gerente da empresa Confecções e
Representações Françoise Ltda.
Razão não assiste ao Instituto Previdenciário, porquanto, sendo a
autora filiada obrigatória da Previdência Social, à empresa cabem as
obrigações em relação aos encargos sociais de seus empregados, não
podendo a demandante sofrer qualquer prejuízo em virtude de qualquer
omissão da empresa.
A omissão no recolhimento das contribuições da autora pela empresa
em que trabalhava não produz qualquer efeito na relação do benefício
mantida pela Autarquia Previdenciária com a autora. Essa omissão
deve ser resolvida pelo INSS no plano da relação de custeio, através da
fiscalização previdenciária, sem produzir qualquer prejuízo na relação
de benefício mantida com a autora. A adoção de entendimento diverso
levaria à absurda situação de redirecionamento de uma execução contra
o sócio sem que o interessado - o INSS - tomasse qualquer providência
no sentido de mover uma ação própria de cobrança desses valores - execução fiscal - do verdadeiro devedor - a empresa. Ademais, ainda que ele
o fizesse a matéria refoge à competência previdenciária.
Oportuno, ainda, transcrever os seguintes trechos da bem-lançada
sentença (fls. 95/98);
“De início, para que a discussão não resulte estéril, tenho que algumas questões
devem ser postas de lado, por não se tratar de objeto da presente ação. É que a própria
autora ressalta que a aplicação da Lei nº 9.032/95, no cálculo da contribuição devida,
já foi motivo de discussão em mandado de segurança impetrado junto à Vara Previdenciária de Curitiba (autos nº 97.0016743-7), de modo que a única questão a ser posta
em debate é aquela que se refere à própria obrigatoriedade da autora em providenciar
a prova de seu recolhimento.
Nesse particular, o INSS não recusa a tese de que, efetivamente, trata-se de débito
da empresa. No entanto, dada à condição de sócia-gerente, diz que a autora tem a responsabilidade legal (art. 135 do Código Tributário Nacional) pelo seu recolhimento,
tendo em vista a sua condição de responsável tributário, em decorrência de atos de
sua administração.
De fato, a Lei nº 3.807/60 dispunha que:
‘Art. 5º - São obrigatoriamente segurados, ressalvado o disposto no art. 3º:
(...) III - os titulares de firma individual e diretores, sócios gerentes, sócios solidários, sócios quotistas, sócios de indústria, de qualquer empresa, cuja idade máxima
seja no ato da inscrição de 50 (cinqüenta) anos;
344
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
Por sua vez, o Decreto nº 83.081/79, em seu art. 54, I, a, impôs à empresa o dever
de ‘descontar, no ato do pagamento da remuneração do (...) diretor e sócio, as contribuições e outras importâncias por eles devidas à previdência social’, para, posteriormente,
recolhê-la juntamente com aquelas devidas pela própria empresa (item b).
Isto quer dizer que a legislação substituiu a responsabilidade do sócio, repassando-a
à própria empresa, tal como ocorre atualmente com o segurado empregado (art. 30, I,
a, da Lei nº 8.212/91). E a jurisprudência, à exaustão e com acerto, tem dispensado o
segurado da obrigação de comprovar os recolhimentos das contribuições descontadas
de seus salários, cujo raciocínio deve ser estendido ao sócio-gerente, relativamente à
legislação anterior.
Feijó Coimbra, em seu Direito Previdenciário Brasileiro, assevera que ‘para conhecer a quem cabem as obrigações determinadas pela ocorrência da hipótese legal
de incidência, e contra quem se formam os créditos de contribuições em favor das
instituições de previdência, deve ser apreciado, com atenção, o texto da legislação.
Nos casos de contribuições incidentes no pagamento de remuneração ao trabalhador,
salvo em certos casos, apura-se que o contribuinte é sempre quem efetua o pagamento
da remuneração - a empresa ou empregador. Só ela é compelida ao cumprimento de
uma obrigatio dandi, consistente na obrigação da entrega do conteúdo material da
prestação - a contribuição’ (ob. cit., Ed. Trabalhistas, 1993, p. 283). Desse modo, o
inadimplemento da empresa não pode ser condizente ao indeferimento de benefício
previdenciário de segurado a ela vinculado. Neste sentido, já se manifestou o Tribunal
Regional Federal da 4ª Região:
‘PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA POR TEMPO DE SERVIÇO. COMPROVAÇÃO DE TEMPO DE SERVIÇO. PROVA DOCUMENTAL IDÔNEA, PROVA
DO RECOLHIMENTO DAS CONTRIBUIÇÕES.
1. Satisfeito o requisito da carência e comprovado o tempo de serviço questionado
pelo INSS, por meio de prova documental idônea (certidão da Prefeitura Municipal)
o autor faz jus à aposentadoria por tempo de serviço.
2. Uma vez que as atividades exercidas pelo autor, como sócio-gerente de empresa
urbana, acarretavam a sua filiação obrigatória à previdência, a contagem do tempo de
serviço é assegurada pela legislação previdenciária, não se exigindo a prova do recolhimento das contribuições (AC nº 95.04.62429-4/RS, 6ª Turma, DJ de 21.01.98, p.
535, Rel. Juiz Luiz Carlos Sobrinho).’
Ocorre que o INSS pretende, em vista de sua inércia na exigência das contribuições, em relação à própria empresa, impor à autora o dever de recolhê-las, dada a
sua condição de sócia-gerente. Com isso, promove a execução de créditos tributários
de terceiros, no próprio balcão de concessão de benefícios. (grifei)
É dizer, ao invés de se utilizar dos mecanismos legais para a exigência de todo e
qualquer crédito tributário - o executivo fiscal - opta por via mais cômoda, condicionando a concessão do benefício ao pagamento de tributo que não lhe compete. (grifei)
Obviamente que, após exigir da empresa as contribuições e, verificando o insucesso
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na cobrança, nada impede que, caracterizada a situação do art. 135 do CTN, redirecione
a execução para os responsáveis tributários. Tudo isso, aliás, em conformidade com o
disposto no § 3º do art. 4º da Lei nº 6.380/80:
§ 3º - Os responsáveis, inclusive as pessoas indicadas no § 1º deste artigo, poderão
nomear bens livres e desembaraçados do devedor, tantos quantos bastem para pagar a
dívida. Os bens dos responsáveis ficarão, porém, sujeitos à execução, se os do devedor
forem insuficientes à satisfação da dívida. (grifei)
Afinal, ‘ajuizada execução fiscal contra sociedade por quotas de responsabilidade
limitada, a penhora deve recair em bens do seu patrimônio; só depois de comprovado
que ela não tem bens suficientes para o adimplemento da obrigação pode o processo
ser redirecionado contra o sócio-gerente’ (STJ, REsp nº 36.543/SP, Relator Ministro
Ari Pargendler, in DJ de 14.10.96, p. 38.979).
O que não se pode pretender é, ignorando todas essas condições, impor ao próprio
segurado a condição de devedor principal, sem dirigir qualquer pretensão ao autêntico
devedor - a empresa.
Com isso, fica evidenciado que a autora não é sujeito passivo das contribuições
exigidas, mas sim a empresa. Nem cabe, aqui, a discussão acerca de sua condição de
responsável, pois o tributo nem mesmo foi exigido do devedor principal. (...)”
Veja-se ainda seguinte acórdão assim ementado:
“TRIBUTÁRIO. PREVIDENCIÁRIO. PEDIDO DE APOSENTADORIA. CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS EM ATRASO. EXIGÊNCIA COM FUNDAMENTO EM LEI POSTERIOR. CARACTERIZAÇÃO DE MORA ATUAL. OBRIGAÇÃO IMPOSTA AO SEGURADO E NÃO À PESSOA JURÍDICA. DESCABIMENTO
DE MULTA E JUROS. INAPLICABILIDADE DO § 4º, ART. 45, DA LEI 8.212/91.
1. Ao condicionar o deferimento de benefício de aposentadoria a recolhimento de
parcelas previdenciárias não pagas (período de 18.10.71 a 28.07.98), e aplicar lei posterior a esse interregno para exigi-las (Lei 8.212/91), a autarquia previdenciária optou
por conferir contemporaneidade à obrigação reivindicada, não havendo que se falar
em multa ou juros em razão de mora, senão na simples atualização monetária. 2. Se,
no contexto legal em que se configurou a inadimplência de prestações previdenciárias,
a obrigação era dirigida à pessoa jurídica, não há como, posteriormente, com fundamento em novo diploma legal, transmudar-se essa responsabilidade a segurado pessoa
física, ainda que à época fosse ele sócio-gerente da empresa devedora (...)”. (REsp nº
531331 - PR (Processo nº 2003/0069040-0), Primeira Turma, DJ de 01.12.2003, Relator
Ministro José Delgado)
Dessa forma, claro está que a autora tem direito ao cômputo do
período entre 02/85 e 12/89, uma vez que a responsabilidade pelo recolhimento das contribuições previdenciárias de segurados obrigatórios
do RGPS é da empresa.
346
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
Vencida esta questão, passa-se à análise do pedido de aposentadoria
por idade urbana, requerida administrativamente em 28.07.97. (fl. 67)
São requisitos desta espécie de benefício a idade mínima de 60 anos
para o sexo feminino ou 65 anos para o masculino e a carência exigida
na data em que implementado o requisito etário.
Conforme se depreende da leitura dos autos, o requisito idade está
devidamente cumprido. (fl. 42)
Quanto à carência exigida, observa-se que a parte autora esteve inscrita na Previdência Social no período anterior a 24 de julho de 1991,
aplicando-se, desse modo, o art. 142 da Lei de Benefícios, com a redação
dada pela Lei 9.032/95, em virtude de o requerimento ter sido efetivado
em 1997, que assim dispõe:
“Art. 142 - Para o segurado inscrito na Previdência Social Urbana até 24 de julho
de 1991, bem como para o trabalhador e o empregador rural cobertos pela Previdência
Social Rural, a carência das aposentadorias por idade, por tempo de serviço e especial
obedecerá à seguinte tabela, levando-se em conta o ano em que o segurado implementou todas as condições necessárias à obtenção do benefício: (omissis).” (Grifei)
Dessa forma, a concessão do benefício está vinculada ao ano em que
o segurado alcançou idade mínima, porquanto o mesmo é fator essencial,
conformador do direito à aposentadoria por idade rural e, por conseguinte,
determinante do período de carência a ser implementado.
Assim, completando a demandante 60 anos em 02.01.94 (fl. 42),
deve comprovar o exercício de atividade laborativa em período equivalente a 72 meses.
Conforme se depreende da leitura do resumo de documentos para cálculo de tempo de serviço acostado na fl. 58, verifica-se que a demandante
comprovou vínculo empregatício em períodos intercalados entre 01.08.84
e 30.06.97, demonstrando assim 142 meses de contribuição. Ressalta-se que mesmo que fosse desconsiderado o período em que a autora foi
sócia-gerente da empresa Confecções e Representações Françoise Ltda.,
teria implementado a carência exigida, porquanto o tempo de trabalho
apurado sem este interregno, soma 6 anos, 10 meses e 24 dias (83 meses),
sendo inequívoco, portanto, o implemento da carência exigida.
Desse modo, a sentença concessiva da aposentadoria por idade urbana
não merece qualquer reparo.
Quanto à data de início do benefício, deve ser esclarecido que, em
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
347
face da documentação juntada quando do ingresso do pedido na esfera
administrativa, suficiente a ensejar a concessão do benefício já naquela
oportunidade, e, ainda, em vista do que prevê o disposto no art. 49, II, da
Lei de Benefícios, deve ser a partir da data de entrada do requerimento.
No que pertine à atualização monetária e aos juros de mora incidentes
sobre as parcelas atrasadas, deve ser registrado que o silêncio da sentença,
ou mesmo da inicial, nesse ponto, não impede que esta Corte, em razão
da remessa oficial, inclua os índices de correção monetária e a taxa dos
juros aplicáveis ao presente caso na condenação do Instituto Previdenciário, cumprindo salientar que tal fixação não configura reformatio in
pejus, como já se manifestou o STJ ao julgar os Recursos Especiais nos
104.107 e 297.695, in verbis, respectivamente:
“PROCESSO CIVIL. DESAPROPRIAÇÃO. REMESSA OFICIAL. INCLUSÃO
DE JUROS MORATÓRIOS. ALEGAÇÃO DE REFORMATIO IN PEJUS - CPC,
ARTIGOS 293 E 610. SÚMULAS 70/STJ E 254/STF.
1. A inclusão de juros moratórios na apreciação da remessa oficial, considerados
implícitos no pedido, decorre de lei e podem ser considerados, inclusive nos cálculos
de liquidação, mesmo na hipótese de omissão na inicial ou no título sentencial. Demais,
se a inclusão não malfere a coisa julgada, com maior razão viabiliza-se no reexame
decorrente de obrigatório duplo grau de jurisdição. Desconfiguração da reformatio in
pejus. (...)
PREVIDENCIÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO.
TRABALHADOR RURAL. APOSENTADORIA POR IDADE. PROVA DA ATIVIDADE RURÍCOLA. INÍCIO RAZOÁVEL DE PROVA DOCUMENTAL. SÚMULA
149/STJ. JUROS MORATÓRIOS. ÉPOCA DE FLUÊNCIA. SÚMULA 204/STJ.
(omissis)
A incidência dos índices inflacionários expurgados na atualização monetária do
débito judicial, ainda que não fixados na sentença de primeiro grau, não consubstancia
reformatio in pejus, pois traduz mera recomposição do valor nominal da moeda, em
face do fenômeno da inflação, tampouco na hipótese em que o Tribunal, a despeito
da inexistência de recurso da parte vencedora, supre a patente omissão existente na
sentença, no tocante ao percentual devido a título de juros de mora.(...)”
Assim, a correção monetária deve ser calculada pelo IGP-DI à luz da
Lei nº 9.711/98, devendo incidir desde o vencimento de cada parcela e os
juros de mora, segundo entendimento da Terceira Seção do e. Superior
Tribunal Justiça (EREsp nº 207992/CE, DJ de 04.02.2002), ao qual se
filia esta Turma, são devidos em 12% ao ano, incidindo, para regular a
hipótese, a regra do art. 3º do Decreto-Lei 2.322/87, devidos a contar da
348
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
citação, nos termos da Súmula 03 desta Corte.
Quanto aos honorários advocatícios, cujo pagamento deve ser suportado exclusivamente pelo INSS em face da sua sucumbência, conforme
entendimento pacificado na Seção Previdenciária deste Tribunal (Embargos Infringentes em AC nº 2000.70.08.000414-5, Relatora Desembargadora Federal Virgínia Scheibe, DJU de 17.05.2002, pp. 478-498) e
no Superior Tribunal de Justiça (EREsp nº 202291/SP, 3ª Seção, Relator
Ministro Hamilton Carvalhido, DJU de 11.09.2000, seção I, p. 220), devem ser fixados, em se tratando de ações previdenciárias, em 10% (dez
por cento) sobre o valor das parcelas devidas até a prolação da sentença.
Entretanto, tendo a sentença fixado essa verba em 10% sobre o valor
da causa, deve ser mantida a condenação porquanto a sua adequação
implicaria reformatio in pejus, uma vez que não houve recurso da parte
autora nesse aspecto.
Finalmente, cumpre esclarecer que o INSS está isento de custas a teor
do artigo 8º, parágrafo 1º, da Lei 8.620/93.
Frente ao exposto nego provimento ao recurso e dou parcial provimento à remessa oficial, nos termos da fundamentação.
É o voto.
REMESSA EX OFFICIO EM AC Nº 2002.04.01.008836-0/RS
Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Nylson Paim de Abreu
Parte Autora: Ana Maria Gonçalves Marques
Advogados: Drs. Maria Sirlei Costa de Franceschi e outro
Parte Ré: Instituto Nacional do Seguro Social - INSS
Advogada: Dra. Patrícia Helena Bonzanini
Remetente: Juízo de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Cachoeira
do Sul/RS
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
349
EMENTA
Previdenciário. Restabelecimento de pensão. Novo casamento. Piora
da condição econômica da pensionista. Manutenção do benefício. Súmula
170/TFR. Termo inicial. Data do ajuizamento. Consectários legais.
1. Não se extingue a pensão previdenciária, se do novo casamento não
resulta melhoria na situação econômico-financeira da viúva, de modo a
tornar dispensável o benefício. (Súmula nº 170/TFR)
2. Existindo início de prova material, corroborado por prova testemunhal idônea e consistente, quanto à inocorrência de melhoria na situação
econômica da autora, a partir de seu segundo casamento, justifica-se o
restabelecimento da pensão por morte de seu primeiro esposo.
3. Proposta a presente ação após longo período desde a cessação da
quota de pensão paga à autora, bem como do cancelamento total do benefício face à maioridade dos filhos beneficiários, o termo inicial de seu
restabelecimento deverá ser a data do ajuizamento da demanda.
4. Correção monetária calculada de acordo com as variações do IGP-DI. (Lei nº 9.711/98)
5. Os honorários advocatícios incidem sobre as parcelas vencidas até
a data da prolação da sentença. (EREsp nº 202291/SP, STJ, 3ª Seção,
Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJU, seção I, de 11.09.2000, p. 220)
6. Remessa oficial parcialmente provida.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas,
decide a Colenda 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região,
por unanimidade, dar parcial provimento à remessa oficial, nos termos
do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Porto Alegre, 4 de agosto de 2004.
Des. Federal Nylson Paim de Abreu, Relator.
RELATÓRIO
O Exmo. Sr. Des. Federal Nylson Paim de Abreu: Ana Maria Gonçalves Marques ajuizou ação ordinária contra o INSS, em 09.09.99, objetivando o restabelecimento da pensão por morte de seu primeiro esposo,
350
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
Miguel Andrade Marques, cancelada pela Autarquia em 20.08.88 face à
constatação de seu novo matrimônio, contraído em 20.08.80.
Sentenciando, o MM. Juízo a quo julgou procedente o pedido, condenando o INSS a restabelecer o benefício de pensão à parte autora, desde
a data da sua cessação, e a pagar-lhe as prestações vencidas - observada
a prescrição qüinqüenal - corrigidas monetariamente e acrescidas de
juros legais, mais o pagamento das custas processuais por metade e dos
honorários advocatícios, estes fixados em 5% sobre o valor da condenação. (fls. 58-59)
Decorrido in albis o prazo para interposição de recurso voluntário,
vieram os autos a esta Egrégia Corte, por força do reexame necessário.
É o relatório.
À revisão.
VOTO
O Exmo. Sr. Des. Federal Nylson Paim de Abreu: Trata-se de pensão
por morte recebida por cônjuge, ora autora, que foi cessada em 20.08.80,
por ter a mesma contraído novas núpcias.
À época desse matrimônio, a legislação previdenciária dispunha que,
contraindo segundas núpcias, a pensão por morte recebida pelo cônjuge,
oriunda do casamento anterior, seria cancelada. (artigo 18, VIII, alínea
a, do Decreto nº 83.080/79)
Todavia, a esse respeito pertine observar o que dispõe o enunciado nº
170 da Súmula do extinto Tribunal Federal de Recursos, verbis:
“Não se extingue a pensão previdenciária, se do novo casamento não resulta melhoria
na situação econômico-financeira da viúva, de modo a tornar dispensável o benefício.”
Torna-se relevante, então, verificar se o benefício de pensão deixado
pelo falecido primeiro marido da autora, Miguel Andrade Marques,
passou a ser dispensável a partir de seu novo matrimônio com Sérgio
Moacir Pereira de Carvalho, de quem se divorciou em 10.04.94. (fl. 10)
Consta dos autos Atestado de Pobreza, fornecido pela Secretaria do
Trabalho e Ação Social da Prefeitura de Cachoeira do Sul/RS, declarando que a autora possui baixa renda e integra projeto habitacional desse
município.
As testemunhas Lenir de Lourdes Cabral (fl. 50), Osla Dihl (fl. 50,
verso) e Terezinha Dias de Lara (fl. 51), ouvidas na audiência de instrução
351
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
realizada em 19.06.2001, afirmaram que a demandante é pessoa pobre
e que a sua situação financeira piorou com o seu segundo matrimônio.
Disseram ainda que, atualmente, a autora mora sozinha e não possui
renda, sobrevivendo da venda de doces e bolos, bem como da ajuda
recebida da filha mais velha.
Com efeito, há nos autos razoável início de prova material, corroborado por prova testemunhal idônea e consistente, quanto à inocorrência
de melhoria na situação econômica da autora a partir de seu segundo
casamento, ensejando o restabelecimento da pensão por morte de seu
primeiro esposo.
Assim, mantém-se a sentença que julgou procedente o pedido.
Todavia, proposta a presente ação após transcorridos dezenove anos desde
a cessação da quota de pensão paga à autora, em 20.08.80 (fl.29), e onze
anos desde o cancelamento total do benefício face à maioridade dos filhos
beneficiários, a 20.08.88 (fl. 11), o termo inicial de seu restabelecimento,
no âmbito da remessa oficial, deverá ser a data do ajuizamento da demanda,
em 09.09.99.
As parcelas vencidas devem ser atualizadas monetariamente de acordo
com os critérios estabelecidos na Lei nº 9.711/98 (IGP-DI), desde a data
dos vencimentos de cada uma, em consonância com os enunciados nos
43 e 148 da Súmula do STJ.
Quanto aos juros de mora, verifica-se que a sentença não explicitou o
seu percentual, o qual fica definido neste ato como sendo de 1% ao mês,
a contar da citação, em consonância com o entendimento da Colenda 3ª
Seção do STJ expresso nos seguintes termos:
“PREVIDENCIÁRIO - EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA - AÇÃO PREVIDENCIÁRIA - JUROS DE MORA - APLICABILIDADE - PERCENTUAL DE 1%
- BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO - INCIDÊNCIA DA SÚMULA 204/STJ - INOCORRÊNCIA DE DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL.
- Conforme jurisprudência firmada nesta Corte, os juros de mora, nas ações previdenciárias devem ser fixados à base de 1% (um por cento), ao mês, contados a partir
da citação. Incidência da Súmula 204/STJ.
- Precedentes.
- Embargos de divergência conhecidos, porém, rejeitados.” (EREsp nº 207992/CE,
Rel. Min. Jorge Scartezzini, DJU, Seção I, de 04.022002, p.287)
Ficam mantidos os honorários advocatícios estipulados no patamar de
5%, à míngua de insurgência a esse respeito, esclarecendo-se, porém, que
352
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
a sua incidência é limitada às prestações devidas até a data da prolação
da sentença. (EREsp nº 202291/SP, STJ, 3ª Seção, Rel. Min. Hamilton
Carvalhido, DJU, seção I, de 11.09.2000, p. 220)
Por fim, cumpre anotar que a regra do § 2º do artigo 475 do Código
de Processo Civil, acrescida pela Lei nº 10.352/01, em vigor desde
27.03.2002, não tem aplicação na espécie, porquanto nesta fase do processo não é possível determinar que o valor da controvérsia recursal seja
inferior a sessenta salários mínimos.
Em face do exposto, voto no sentido de dar parcial provimento à
remessa oficial, nos termos da fundamentação retro.
AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 2004.04.01.008406-4/RS
Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Nylson Paim de Abreu
Agravante: Instituto Nacional do Seguro Social - INSS
Advogada: Dra. Sibele Regina Luz Grecco
Agravado: José do Nascimento
Advogados: Drs. Nelmo José Beck e outros
EMENTA
Previdenciário. Antecipação da tutela. Auxílio-doença. Restabe­­
le­cimento.
1. Faz-se presente a verossimilhança do direito ao restabelecimento
do auxílio-doença, se o segurado junta aos autos atestado médico comprovando que está incapacitado para o exercício de atividade laboral em
face da mesma moléstia que ensejou a concessão do benefício na via
administrativa.
2. O periculum in mora decorre da condição de incapacidade da parte
segurada para o exercício de atividade laboratícia remunerada, circunsR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
353
tância geradora de risco de lesão de difícil reparação, porquanto relacionada diretamente com a sua subsistência, a qual, aliás, é o propósito dos
proventos pagos pela Previdência Social, os quais têm caráter alimentar.
3. Agravo de instrumento improvido.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas,
decide a Colenda 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região,
por unanimidade, negar provimento ao agravo de instrumento, nos termos
do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante
do presente julgado.
Porto Alegre, 4 de agosto de 2004.
Des. Federal Nylson Paim de Abreu, Relator.
RELATÓRIO
O Exmo. Sr. Des. Federal Nylson Paim de Abreu: Trata-se de agravo de
instrumento, com pedido de efeito suspensivo, interposto contra decisão
que deferiu liminarmente a antecipação da tutela requerida na petição
inicial de ação previdenciária onde o autor postula o restabelecimento
do benefício de auxílio-doença. (fls. 22-23)
O agravante sustenta que o autor não está incapacitado para o trabalho,
consoante a perícia realizada na via administrativa, sendo inservível o
atestado emitido pela médica particular do segurado. Argumenta, ainda,
que não é cabível a concessão do benefício indeferido em 1998, se o
autor apresentou novo pedido na via administrativa em 2003 e percebeu
benefício durante certo lapso de tempo. Por fim, aduz que não há receio
de dano irreparável e que existe risco de irreversibilidade da medida.
Foi indeferido o pedido de efeito suspensivo. (fls. 44-45)
Fluiu in albis o prazo para resposta.
É o relatório.
VOTO
O Exmo. Sr. Des. Federal Nylson Paim de Abreu: Trata-se de agravo
de instrumento interposto contra decisão que deferiu liminarmente a
antecipação da tutela requerida na petição inicial de ação previdenciária
onde o autor postula o restabelecimento do benefício de auxílio-doença.
354
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
O agravante sustenta que o autor não está incapacitado para o trabalho,
consoante a perícia realizada na via administrativa, sendo inservível o
atestado emitido pela médica particular do segurado. Argumenta, ainda,
que não é cabível a concessão do benefício indeferido em 1998, se o
autor apresentou novo pedido na via administrativa em 2003 e percebeu
benefício durante certo lapso de tempo. Por fim, aduz que não há receio
de dano irreparável e que existe risco de irreversibilidade da medida.
Conforme se verifica dos termos da decisão agravada, o autor juntou
aos autos atestado médico informando que está incapacitado para o trabalho em virtude de moléstia que implica dificuldade para deambular.
(fl. 22)
Tal incapacidade aparenta provir da mesma causa que ensejou a concessão do benefício em abril de 2003, enquadrada sob CID Z54.0 (fl.
25), correspondendo a convalescença após cirurgia.
Destarte, havendo nexo entre a atual inaptidão laboral e a enfermidade
anteriormente constatada pela perícia médica do INSS, é possível o acolhimento do atestado médico particular para fins de antecipação da tutela.
Faz-se presente, pois, a verossimilhança do direito.
O periculum in mora revela-se presente na espécie em face da condição de incapacidade da parte segurada para o exercício de atividade
laboratícia remunerada, circunstância geradora de risco de lesão de difícil
reparação, porquanto relacionada diretamente com a sua subsistência, a
qual, aliás, é o propósito dos proventos pagos pela Previdência Social,
os quais têm caráter alimentar.
Quanto à irreversibilidade da medida, deve ser destacada a lição de
Luiz Guilherme Marinoni:
“Admitir que o juiz não pode antecipar a tutela, quando a antecipação é imprescindível para evitar um prejuízo irreversível ao direito do autor, é o mesmo que afirmar
que o legislador obrigou o juiz a correr o risco de provocar dano irreversível ao direito
que justamente lhe parece mais provável. A tutela sumária funda-se no princípio da
probabilidade. Não só lógica mas também o direito à adequada tutela jurisdicional
exigem a possibilidade de sacrifício, ainda que de forma irreversível, de um direito
que pareça improvável em benefício de outro que pareça provável. Caso contrário, o
direito que tem maior probabilidade de ser definitivamente reconhecido poderá ser
irreversivelmente lesado.” (A antecipação da tutela na reforma do processo civil. 2.
ed. - S. Paulo: Malheiros, 1996, p. 79-80)
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
355
Ainda a respeito do tema, oportuno o ensinamento do eminente processualista e ministro do STJ Teori Albino Zavascki:
“A vedação contida no § 2º do artigo 273 deve ser relativizada, sob pena de eliminar-se, quase por inteiro, o próprio instituto da antecipação. Sempre que houver um
confronto entre o risco de dano irreparável ao direito do autor e o risco de irreversibilidade da medida antecipatória, deverá o Juiz formular a devida ponderação entre os
bens jurídicos em confronto, para o que levará em especial consideração a relevância
dos fundamentos que a cada um deles dá suporte, fazendo prevalecer a posição com
maior chance de vir a ser, ao final do processo a vencedora. Assim, nos casos em que
o direito afirmado pelo Autor seja de manifesta verossimilhança e que seja igualmente
claro o risco de seu dano iminente, não teria sentido algum sacrificá-lo em nome de
uma possível, mas improvável situação de irreversibilidade.” (Antecipação da tutela.
S. Paulo: Saraiva, 1997, p. 88)
Por fim, no tocante à concessão do benefício indeferido em 1998,
356
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
357
358
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 2003.04.01.001989-4/SC
Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Amaury Chaves de Athayde
Agravante: Município de Joinville/SC
Advogado: Dr. Affonso de Aragão Peixoto Fortuna
Agravado: Ministério Público Federal
Interessada: União
Advogado: Dr. Luís Henrique Martins Dos Anjos
Interessado: Estado de Santa Catarina
EMENTA
Administrativo. Processual Civil – Ação civil pública. Tratamento de
saúde. Legitimidade passiva do município.
Os Municípios têm legitimidade à ocupação do pólo passivo de ação
visando assegurar a prestação do adequado atendimento médico-cirúrgico
e o custeio do fornecimento e da implantação de próteses e/ou órteses
a pacientes que delas necessitem para sua reabilitação profissional e
social. Conclusão que deflui do dever de garantir a saúde do cidadão,
imposto aos entes públicos em regime de co-gestão pelo artigo 196 da
Constituição Federal.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide
a 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade,
negar provimento ao agravo de instrumento, nos termos do relatório,
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
359
voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente
julgado.
Porto Alegre, 16 de junho de 2004.
Des. Federal Amaury Chaves de Athayde, Relator.
RELATÓRIO
O Exmo. Sr. Des. Federal Amaury Chaves de Athayde: Trata-se de
agravo de instrumento interposto de r. decisão (fls. 164 a 167) proferida
em ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal que se
processa perante o MM. Juízo da 1ª Vara Federal de Joinville/SC, ao objetivo de assegurar a prestação do adequado atendimento médico-cirúrgico
e o custeio do fornecimento e da implantação de próteses e/ou órteses
aos pacientes que delas necessitem para sua reabilitação profissional e
social. A insurgência é posta contra o deferimento de tutela antecipada
que impõe aos demandados, de forma solidária, o fornecimento gratuito, no prazo de 30 (trinta) dias, à Sra. Cecília Elisa da Silva de todo o
material necessário para o procedimento cirúrgico de implante de uma
prótese de quadril ao qual deve ser submetida, arrolado no documento
expedido pelo Responsável pelo Grupo de Cirurgia do Quadril e Joelho
do Hospital das Clínicas de Curitiba/PR. Fixa multa diária no valor de
R$ 5.000,00 (cinco mil reais), por cada dia de atraso, sem prejuízo das
medidas cabíveis quanto à improbidade administrativa decorrente desse
descumprimento.
Co-réu na ação, o Município de Joinville sustenta que inexiste solidariedade, já que as normas do Sistema Único de Saúde – SUS definem
o que cabe a cada unidade da Federação. In casu, a exigência imposta
extrapola a sua competência, que compreende ações básicas e de baixa
complexidade. Por fim, a multa pelo descumprimento da medida é capaz
de produzir prejuízo incalculável às finanças públicas.
Em exame preambular, indeferi a atribuição de efeito suspensivo ao
recurso. (fl. 175)
Solicitadas, vieram aos autos as informações do MM. Juízo da
causa. (fl. 176)
A parte agravada apresentou resposta. (fls. 178 a 183)
É o relatório. Sem revisão.
360
VOTO
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
O Exmo. Sr. Des. Federal Amaury Chaves de Athayde: O SUS consiste na integração das três esferas de governo, com competência para
as mais variadas ações para o integral atendimento dos pacientes da
rede pública de saúde.
Os Municípios, juntamente com a União, os Estados e o Distrito
Federal são responsáveis pela consecução das atividades inerentes ao
SUS – tal qual o fornecimento de todo o material necessário para o procedimento cirúrgico de implante de próteses de quadril – indispensáveis
à conservação da saúde física e psíquica dos administrados. Em sendo
conjunta a competência dos entes da federação, o autor pode escolher
qualquer um deles para figurar no pólo passivo, ou ainda, pode litigar
mediante a formação de litisconsórcio facultativo, como se dá in casu.
A conclusão deflui do dever de garantir a saúde do cidadão, imposto aos
entes públicos em regime de co-gestão pelo artigo 196 da Constituição
Federal (“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de
doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações
e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”).
A Lei nº 8.080, de 19.09.90, ao dispor sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento
dos serviços correspondentes, também prevê a responsabilidade conjunta
das instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público para
prestar as ações e serviços de saúde (art. 4º). Quanto à responsabilidade
dos Municípios, o mesmo diploma legal estabelece em seu –
“Art. 18. À direção municipal do Sistema de Saúde (SUS) compete:
I - planejar, organizar, controlar e avaliar as ações e os serviços de saúde e gerir e
executar os serviços públicos de saúde;
...
IV - executar serviços:
a) de vigilância epidemiológica;
b) vigilância sanitária;
c) de alimentação e nutrição;
d) de saneamento básico; e
e) de saúde do trabalhador;
V - dar execução, no âmbito municipal, à política de insumos e equipamentos para
a saúde;
...”
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
361
A gerência em sociedade entre a União, Estados e Municípios pelo
atendimento gratuito – aí incluído o fornecimento de material à realização do procedimento em tela – a doentes hipossuficientes e portadores
de doenças graves ou crônicas é entendimento que tem prevalecido no
egrégio Superior Tribunal de Justiça (AGA 246642/RS; Rel. Min. Garcia
Vieira, DJU de 16.11.99; REsp nº 195.159-RS, rel. Min. Milton Luiz
Pereira, DJU de 11.03.02 e AGA nº 253938-RJ, rel. Min. José Delgado,
DJU de 28.02.02), posicionamento que aliás se harmoniza perfeitamente
com o que celebra o Pretório Excelso –
“...
AQUISIÇÃO E FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS - DOENÇA RARA.
Incumbe ao Estado (gênero) proporcionar meios visando a alcançar a saúde, especialmente quando envolvida criança e adolescente. O Sistema Único de Saúde torna
a responsabilidade linear alcançando a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.” (RE nº 195192/RS, 2ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 31.03.00, p. 60)
Ante o exposto, nego provimento ao agravo de instrumento.
É como voto.
AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 2003.04.01.043270-0/SC
Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal João Batista Pinto Silveira
Agravante: Instituto Nacional do Seguro Social - INSS
Advogada: Dra. Mariana Gomes de Castilhos
Agravados: José Francisco Pereira e outro
Advogados: Drs. Werner Isleb e outros
EMENTA
Previdenciário. Processual Civil. Incompetência absoluta. Argüição
não sujeita à preclusão. Competência para o julgamento da ação ordinária. Aplicação dos princípios da instrumentalidade da forma e do
362
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
processo. Cumulação de pedidos em que a competência para o julgamento é de juízos distintos. Impossibilidade.
1. A incompetência absoluta pode ser alegada, em qualquer tempo
e grau de jurisdição (art. 113 do CPC), não estando sujeita à preclusão.
2. Em observância aos princípios da instrumentalidade da forma e do
processo, vencida a questão limite do agravo referente sobre a possibilidade de argüição de competência absoluta em qualquer tempo e grau de
jurisdição, a competência para o julgamento da ação ordinária pode ser
definida no próprio agravo, se constar dos autos elementos suficientes
para tanto. 3. Nos casos de pedido de revisão da renda mensal inicial
do benefício, o valor da causa deve refletir somente a diferença entre
a renda mensal atual e aquela advinda da majoração do percentual de
incidência em seu salário-de-benefício. 4. O § 2º da Lei nº 10.259/2001
é aplicável às demandas que objetivarem, tão-somente, prestações vincendas. 5. Aplica-se o art. 260 do CPC para mensurar o valor da causa
quando o pedido abranger parcelas vencidas e vincendas. 6. É impossível
a cumulação de pedidos na mesma ação, quando a competência para o
julgamento não é do mesmo órgão julgador, incidindo, então, a vedação
prevista no artigo 292, § 1º, inciso II, do CPC.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide
a 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade,
dar parcial provimento ao recurso, nos termos do relatório, voto e notas
taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Porto Alegre, 11 de fevereiro de 2004.
Des. Federal João Batista Pinto Silveira, Relator.
RELATÓRIO
O Exmo. Sr. Des. Federal João Batista Pinto Silveira: Cuida-se de
agravo de instrumento interposto pelo INSS, com pedido de efeito suspensivo, contra decisão que indeferiu argüição de incompetência absoluta
do juízo, sob o fundamento de já ter decidido a respeito da competência,
anteriormente, oportunidade em que o INSS se manteve silente.
Sustenta, em síntese, que, a teor do disposto no art. 113 do CPC, a
argüição de incompetência absoluta pode ser alegada em qualquer tempo
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
363
e grau de jurisdição, não se submetendo ao instituto da preclusão como
o fez a decisão atacada. Entende que, tendo a parte adentrado com seu
pedido no Juizado Especial Federal, estaria desse modo, renunciando
tacitamente aos valores superiores ao limite da competência do juizado,
pois, sendo crédito previdenciário em discussão, requer a aplicação do
art. 128 da Lei 8.213/91, ficando, desse modo caracterizada a renúncia
dos valores excedentes pela parte agravada, fixada a competência do
Juizado Especial Federal.
Alega, ainda, a presença dos requisitos autorizadores do provimento
antecipatório além do perigo de irreversibilidade da medida outorgada,
constituindo-se situação de difícil e incerta reparação.
Deferido o pedido de agregação de efeito suspensivo tão-somente em
relação ao autor Antônio Francisco Pereira (fls. 79/84), transcorreu in
albis o prazo para contraminuta ao agravo. (fl. 87)
É o relatório.
VOTO
O Exmo. Sr. Des. Federal João Batista Pinto Silveira: Cuida-se de
agravo de instrumento interposto contra decisão que indeferiu argüição
de incompetência absoluta do juízo, sob o fundamento de já ter decidido
a respeito da competência, anteriormente, oportunidade em que o INSS
se manteve silente.
De acordo com a decisão initio litis, a matéria foi examinada nos
seguintes termos:
“(...) A decisão hostilizada é trancrita a seguir:
‘A argüição do INSS às fls.215/225 diz respeito a aspectos decididos às fls. 197,
contra os quais não se manifestou oportunamente a autarquia. Destarte, restam mantidos
os termos do referido decisum.
Compulsando os autos verifico que o feito foi ajuizado na Vara do Juizado Especial
Federal de Blumenau sendo remetido à redistribuição para uma das Varas Federais
em função do valor superar os 60 salários mínimos (fls. 39). Acolhida a competência
(fls. 40) pelo Juízo da 3ª Vara Federal de Blumenau, o feito seguiu o procedimento
ordinário. Oportunidade em que o INSS não se manifestou acerca da competência.
Posteriormente, a Autarquia argüiu a incompetência absoluta, daí a decisão agravada.
Na forma do artigo 5º da Lei nº 10.259/2001, nos Juizados Especiais Federais,
somente se admite recurso contra sentença definitiva ou a respeito de medida cautelar.
Igualmente, na forma do disposto no referido diploma legal, a competência dos juizados
364
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
especiais é absoluta (§ 3º do artigo 3º).
De outra parte, conforme afirma o INSS a incompetência absoluta pode ser alegada, em qualquer tempo e grau de jurisdição (art. 113 do CPC), não estando sujeita
à preclusão.
Contudo, não se mostra em concordância com os princípios da instrumentalidade
da forma e do processo, a solução da questão, tão-somente, pela reforma da decisão
atacada, já que o julgador a quo firmaria, novamente, sua competência originando novo
recurso para esta Corte prolongando, desnecessariamente, o feito, quando a competência
para a ação ordinária da questão pode ser definida já neste momento, eis que constam
dos autos elementos suficientes para tanto.
Inicialmente destaco que no pólo ativo da ação referida – correspondendo a parte
agravada neste feito – encontramos os segurados José Francisco Pereira e Antonio
Francisco Pereira.
Pelos documentos constantes dos autos, principalmente, da memória discriminada de cálculos de fls. 33 e 35, realizada pelo Setor de Cálculos do Juizado Especial
Federal Cível, verifico que o valor das parcelas vencidas somado ao valor de 12
parcelas vincendas implica valor bem acima dos 60 salários mínimos fixados como
quantia máxima para exame do feito pelo Juizado Especial Federal no caso do segurado José Francisco Pereira e inferior àquele parâmetro para o segurado Antonio
Francisco Pereira.
Acerca dos critérios para atribuição do valor da causa, manifestou-se, com brilhantismo, o Juiz Celso Kipper, Relator no julgamento do Recurso contra sentença interposto
no Processo nº 2002.72.07.000396-0, na Turma Recursal do Estado de Santa Catarina,
cujo voto transcrevo, na parte em que converge com meu entendimento:
‘1. O valor da causa é a mensuração monetária da pretensão veiculada em juízo,
ou seja, o benefício patrimonial economicamente pretendido. Daí que não me parece
razoável qualquer interpretação da Lei dos Juizados Especiais Federais que exclua do
valor da causa as prestações vencidas, ante a ausência de expressa disposição nesse
sentido. O parágrafo 2º do artigo 3º da Lei 10.259/2001 não teve o escopo de excluir
do valor da causa as prestações vencidas, mas o de limitar a doze, em seu cálculo, as
prestações vincendas, quando for o caso.
2. A interpretação que desconsidera as prestações vencidas na apuração do valor da
causa, quando a pretensão também versar sobre obrigações vincendas, poderia levar a
um absurdo lógico, verificado no seguinte exemplo.
a) A ajuiza ação pleiteando apenas prestações vencidas, no valor de 100 salários
mínimos: a competência, sem sombra de dúvida, é da Vara Federal Comum;
b) B ajuiza ação pleiteando prestações vencidas no mesmo valor de 100 salários
mínimos, cumuladas com obrigações vincendas, sendo que a soma de doze parcelas
equivale a 60 salários mínimos: a prevalecer o entendimento de que somente estas
últimas seriam consideradas para o cálculo do valor da causa, a competência seria dos
Juizados Especiais, apesar de que, neste caso, a toda evidência, tratar-se-ia de pretensão
de valor superior ao anterior.
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
365
3. A desconsideração das prestações vencidas na apuração do valor da causa poderia
levar os Juizados Especiais Federais a julgar causas de valor bem superior a sessenta
salários mínimos – alargando indevidamente a sua competência – tendo em vista que,
via-de-regra, são justamente aquelas que consubstanciam a parcela mais expressiva da
pretensão deduzida em juízo. Se assim fosse, o limite estabelecido no caput do art. 3º
da Lei dos Juizados Especiais Federais seria fictício, eis que não guardaria correspondência com a realidade dos fatos, o que não parece ter sido a vontade do legislador.’
Entendo que o critério a ser aplicado para aferir o valor, para fins de fixação, ou não,
da competência dos Juizados Especiais Federais é a totalidade do pedido, que deve ser
avaliado em sua integralidade.
Observe-se que as demandas previdenciárias versam, em síntese, sobre concessão/
restabelecimento de benefício ou revisão de seu valor. Considerando a peculiaridade
destas ações, nas quais a grande parte busca somente diferenças vencidas (anteriores
à propositura da ação), outras as vencidas e vincendas e um contingente menor só as
vincendas, se o pedido abranger prestações vencidas e vincendas deve a soma destas
ser considerada; se postular somente prestações vencidas a sua soma é o limite e, em
sendo apenas vincendas a soma de doze.
Não se mostra razoável, nem lógico, em havendo um pedido em que são postuladas
parcelas vencidas e vincendas umas sejam consideradas como pertinentes aos Juizados
Especiais Federais e outras para a Vara Federal Previdenciária. A parte deverá, então,
propor duas ações, que tramitarão em ritos diversos, recursos e duração distintos, com
possibilidade de deliberação judicial contendo orientação diversa, sobre matéria idêntica
em claro desprestígio ao Poder Judiciário.
Tal situação afrontaria os princípios da isonomia, da economia e celeridade processual bem como da efetividade.
Assim, para verificar a integralidade do pedido a norma legal que melhor resolve
esta questão é a do art. 260 do CPC:
Art. 260. Quando se pedirem prestações vencidas e vincendas, tomar-se-á em consideração o valor de umas e outras. O valor das prestações vincendas será igual a uma
prestação anual, se a obrigação for por tempo indeterminado, ou por tempo superior a
1 (um) ano; se, por tempo inferior, será igual à soma das prestações.
O legislador não pretendeu afastar a aplicação da regra do art. 260 do CPC dos
Juizados Especiais Federais. Ao dispor no § 2º do art. 3º da Lei nº 10.259/2001 que
‘quando a pretensão versar sobre obrigações vincendas, para fins de competência do
Juizado Especial, a soma de doze parcelas não poderá exceder o valor referido no art.
3º, caput’, apenas repetiu, em parte, o comando da 2ª parte do art. 260 do CPC, ou seja,
são disposições em absoluta consonância.
De outra parte, o art. 7º, III e IV, da Lei Complementar nº 95/98, dispõe:
Art. 7º. O primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de
aplicação, observados os seguintes princípios:
I – omissis;
366
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
II – omissis;
III – o âmbito de aplicação da lei será estabelecido de forma tão específica quanto
o possibilite o conhecimento técnico ou científico da área respectiva;
IV – o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma lei, exceto
quando a subseqüente se destine a complementar lei considerada básica, vinculando-se
a esta por remissão expressa.
Entretanto, não há ofensa ao art. 7º, III e IV, da Lei Complementar nº 95/98, porque
na Lei dos Juizados Especiais Federais o legislador explicitou ‘quando a pretensão versar sobre obrigações vincendas, para fins de competência do Juizado Especial, a soma
de doze parcelas não poderá exceder o valor referido no art. 3º, caput’, repetindo, em
parte, o preceito do art. 260, 2ª parte, do CPC, tanto que a redação do prefalado artigo
inicia com a palavra quando, a indicar que não é a única hipótese a ocorrer.
Assim, não está configurada a hipótese do art. 7º, IV, porque não se trata de duas leis
disciplinando o mesmo assunto. O que se verifica é que a norma da Lei dos Juizados
Especiais Federais nada dispõe sobre o valor da causa quando há parcelas vencidas
ou vencidas e vincendas. Dispõe apenas quando a prestação versar somente parcelas
vincendas. Assim, devem ser aplicadas as normas da Seção II do capítulo VI do CPC
que dispõe sobre o valor da causa quando os pedidos versarem sobre só parcelas vencidas ou vencidas e vincendas. Aplica-se o § 2º do art. 3º da Lei dos Juizados Especiais
Federais quando a prestação versar somente sobre obrigações vincendas. Observado
que a disposição da nova lei está em consonância com o disposto no art. 260 do CPC.
Em suma, entendo que o pedido formulado pela parte deve ser considerado em sua
integralidade para mensuração do valor, que por conseguinte, é o fator determinante
para fixação da competência.
Consoante anteriormente mencionado, se o pedido abranger prestações vencidas e
vincendas deve a soma destas ser considerada; se postular somente prestações vencidas
a sua soma é o limite e, em sendo apenas vincendas a soma de doze.
Na hipótese em tela, são postuladas diferenças vencidas e vincendas e, conforme
se depreende dos documentos de fls. 33/37 o valor das mesmas (em fevereiro/2003),
devidas ao autor José Francisco Pereira ultrapassariam o limite dos sessenta salários
mínimos, enquanto as diferenças devidas a Antonio Francisco Pereira importariam
em valor inferior àquela quantia de salários mínimos. E, tratando-se de litisconsorte
ativo facultativo, os pedidos devem ser considerados individualmente à aferição do
valor da demanda.
Tangenciando a problemática da renúncia ressalto que a parte agravada, à fl. 38,
expressamente, manifestou-se no sentido de não ter interesse em renunciar ao valor
excedente ao limite de competência do JEF.
Assim sendo, pelo constante dos autos não há dúvida de que a competência do JEF
se firma para os pedidos deduzidos pelo autor Antonio, e, no mesmo sentido, firma-se a competência da Vara Federal para os pedidos do autor José. Tudo conforme se
vislumbra do constante nos autos.
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
367
Desta forma, patente a impossibilidade de cumulação dos pedidos na mesma ação,
tendo em vista que a competência para o julgamento dos pedidos não é do mesmo órgão
julgador, incidindo, então, a vedação prevista no artigo 292, § 1º, inciso II, do CPC,
não olvidando da competência absoluta do Juizado Especial e, também, da improrrogabilidade da jurisdição da Vara com as causas afetas ao JEF. Por via de conseqüência,
verifica-se hipótese para indeferimento da inicial em conformidade com o estabelecido
no artigo 295, inciso V, da Lei Adjetiva, tudo porque, o procedimento proposto não
corresponde ao valor da causa e não pode ser adaptado ao tipo de procedimento previsto
no tocante ao autor Antonio.
Frente ao exposto, defiro o pedido de efeito suspensivo tão-somente no tocante ao
segurado Antonio Francisco Pereira, cujos pedidos devem ser, como exposto supra,
deduzidos no Juizado Especial Federal.”
Frente ao exposto, pelos mesmos fundamentos os quais embasaram a
decisão inicial, dou parcial provimento ao agravo, para excluir do feito
o autor Antônio Francisco Pereira, cujos pedidos devem ser deduzidos
no Juizado Especial Federal.
É como voto.
APELAÇÃO CÍVEL Nº 2003.70.00.032783-1/PR
Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores
Lenz
Apelante: Guilhobel Aurelio Camargo
Advogado: Dr. José Cid Campelo
Apelada: União Federal
Advogado: Dr. Luís Henrique Martins dos Anjos
Apelados: Caixa Econômica Federal - CEF
Antelmo Diniz Coelho
EMENTA
Constitucional. Processual Civil. Ação popular. Pressupostos proces368
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
suais para o seu ajuizamento. Doutrina e jurisprudência.
1. Com efeito, no caso dos autos, em nenhum momento da inicial
é apontada pelo autor, concretamente, a ilegalidade e a lesividade ao
patrimônio público.
Em alentado parecer, onde são analisados os pressupostos processuais
que autorizam o ajuizamento da ação popular, leciona o ilustre Ministro
Thompson Flores, ex-Presidente do Supremo Tribunal Federal, verbis:
“(...)
5. A ação em comentário, erigida em garantia constitucional, de alto
destaque na vida democrática da Nação, atribuiu a ‘qualquer cidadão’
como parcela do Povo, de onde provém todo o poder, como é expressa
a própria Lei Maior (art. 1º, § 1º), legitimidade ativa para fiscalizar a
Administração, no pertinente ao patrimônio público que lhe está afeto,
ensejando-lhe, através de meios prontos e eficazes, alcançar judicialmente, a decretação e invalidade dos atos que sejam lesíveis ao Erário,
obrigando os responsáveis ao ressarcimento do mal causado.
Não poderia, como nem seria curial, que instaurasse ele a grave lide,
sem que ‘aparelhado’ estivesse para ela.
6. Por isso, acentuou com propriedade José Afonso da Silva (ob. cit., p.
221, n. 189): ‘(...) A demanda, contudo, deverá ser idônea, para produzir
os efeitos procurados, ou seja, uma decisão de mérito. Para isso há certas
exigências que precisam transparecer na petição inicial que necessita ser
apta ao estabelecimento da relação processual. (...) A demanda popular
propõe-se por petição na forma do art. 158 do CPC, com todos os requisitos ali especificados e mais os que no caso concreto exigir.’
O socorro ao CPC citado deflui do disposto no art. 22 da Lei 4.717/65;
e o invocado art. 158 corresponde ao art. 282 do CPC vigente.
7. Destarte, o libelo inicial deve ser preciso quanto à indicação do fato e
os fundamentos jurídicos do pedido; para a espécie, o ato cuja decretação
de invalidade postula, o vício que o contaminou e em que consistiu sua
lesividade ao patrimônio público da entidade indicada.
É possível que o autor, de início, não disponha de todos os elementos necessários, porque não tenham sido fornecidos pelas entidades em
questão. O remédio está, claramente, assegurado no art. 7º, I, b, e § 2º,
da Lei 4.717.
O certo, porém, é que os fatos, antes da citação devem estar devidaR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
369
mente expostos, bem como os fundamentos do pedido, para que os réus
possam, com base neles, oferecer sua defesa.
(...)”. (In Revista de Processo, 61/221)
Portanto, para que a ação popular seja julgada procedente exige-se
a comprovação, de forma cabal, da lesividade do ato e, também, de sua
invalidade, por ser ele nulo ou anulável.
Nesse sentido, é tranqüilo o entendimento da Suprema Corte, manifestado em inúmeros arestos. (In RTJ 54/95; 71/497; 72/421; 96/1.370
e 103/683)
É o que deflui, igualmente, da redação do art. 5º, LXXIII, da Lei Maior,
bem como da doutrina. (MOREIRA, Barbosa, in Ações Coletivas na CF
de 1988, in Revista de Processo, 61/192)
Incumbe ao autor da ação popular a prova da ocorrência do ato lesivo
ao patrimônio público, de forma efetiva, concreta, e não de meras conjecturas, como se depreende do exame da peça vestibular.
A respeito, claro e preciso o magistério de José Afonso da Silva, verbis:
“É ônus do autor popular provar a ocorrência de ato lesivo ao patrimônio público. Enfim, incumbe-lhe comprovar a efetiva verificação
dos fundamentos de fato (causa petendi próxima) da demanda, para que
possa obter os efeitos pretendidos.” (In Ação Popular Constitucional.
Doutrina e Processo. Ed. Rev. dos Tribs., 1968, n. 199, p. 228)
Nessa mesma orientação é a lição do Ministro Thompson Flores, em
seu já citado parecer, verbis:
“(...)
A propósito, com acerto, afirmou a Procuradoria do Estado, em sua
contestação, firmada pelo ilustre Prof. Almiro do Couto e Silva (fl. 99):
‘Lesivo não é sinônimo de oneroso. Lesivo não é, por conseguinte, o
que custou dinheiro, mas sim o que causou dano, desfalque ou prejuízo.’
No mesmo sentido a lição de José Afonso da Silva. (ob. cit., n. 119,
pp. 149-50, e Enciclopédia Saraiva de Direito, III, 1977, pp. 400-1)
Essa é, também, a conceituação da Suprema Corte como se verifica
do julgamento proferido no RE nº 92.326-SP, já mencionado e posto
em destaque.
Proferindo seu voto, sublinhou, com prioridade, o Relator, o eminente Ministro Rafael Mayer (In RDA - 143/129): ‘Lesivo se há de entender
o ato que, direta ou indiretamente, mas real ou efetivamente, redunde no
370
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
injusto detrimento de bens ou direitos da Administração, representativo
de um prejuízo, de um dano, efetivo ou potencial de valores patrimoniais.
Não faz sentido incluir aí, como pretendeu a instância ordinária, os ganhos que eventualmente tenham resultado à empresa por sua atividade
quase como lucros cessantes da Prefeitura, pois não há relação causal e
jurídica que lhes atribua.’
4.8 Em remate, silente o autor, no traduzir, concretamente, como se
teria caracterizado a lesividade dos contratos que impugnou, indispensável, como causa petendi, proporcionar a defesa dos réus, o que seria
substancial, pois, como assinala Seabra Fagundes, ela - a lesividade - deve
ser examinada caso a caso (Da Ação Popular, in RDA VI, n. 24/18-9;
ob. cit., n. 129, nota 5, p. 366), para sua segura verificação; e, mais, sem
qualquer prova de sua ocorrência, manifesto é que seria de todo inviável
reconhecê-la.” (In Revista de Processo, 61/228)
É exatamente o caso dos autos, eis que o autor não demonstrou,
concreta e efetivamente, como se teria caracterizado a lesividade ao
patrimônio público, ônus que lhes cabia a teor do art. 333, I, do CPC.
O que se constata, de forma evidente, é a inconformidade do autor
com o procedimento da CEF o que, com a devida vênia, não pode ser
objeto de ação popular.
Pertinente, a respeito, a jurisprudência da Suprema Corte, firmada
quando do julgamento do RE nº 42.054-SP, em que foi relator o saudoso
Ministro Barros Barreto, verbis:
“Por sem dúvida, consoante é pacífico, ao Poder Judiciário não é
dado rever os atos administrativos salvo quanto à sua legalidade ou
legitimidade. E, de conseguinte, na ação popular, contra atos lesivos ao
patrimônio público, há de se restringir e apurar - se eles são nulos ou
anuláveis, sem discutir a sua conveniência ou oportunidade, visto que a
função judicial tem por fim a aplicação do direito”. (In RTJ 10/600. Da
mesma forma, Hely Lopes Meirelles, in Ação Popular, 13ª ed., Rev. dos
Tribs., 1989, pp. 89 e 93)
2. Improvimento da apelação e da remessa oficial.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide
a 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimiR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
371
dade, negar provimento à apelação e à remessa oficial, nos termos do
relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante
do presente julgado.
Porto Alegre, 25 de novembro de 2003.
Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, Relator.
RELATÓRIO
O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz: É
este o teor da r. sentença recorrida, a fls. 28/31, verbis:
“Trata-se de ação popular proposta por Guilhobel Aurélio Camargo, com pedido
de concessão de liminar, sob o fundamento de que a CEF não estaria procedendo ao
creditamento de juros e correção monetária dos depósitos referentes a pagamentos de
precatórios judiciais, efetuados pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
Aduz a ocorrência de ofensa a vários princípios constitucionais, tais como a legalidade, eficiência e moralidade administrativa. Afirma, ainda, que o ato praticado pela
CEF e seu gerente geral mostra-se lesivo aos indivíduos, que não recebem integralmente
os juros e correção monetária sobre os depósitos efetuados. Fundamenta sua pretensão,
ainda, no possível ajuizamento de ações de indenização contra os réus, acarretando
prejuízos aos entes públicos.
2. MOTIVAÇÃO
De início, faz-se imprescindível averiguar a possibilidade de veiculação do pedido
inicial em sede de ação popular.
A ação popular detém natureza constitucional, estando regulada pela Lei nº 4.717/65,
cujo artigo 1º delimita os requisitos imprescindíveis para a utilização desse instrumento
processual. Nos termos legalmente estatuídos, destina-se a ação popular à anulação ou
declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio público.
O parágrafo 1º do referido artigo define o patrimônio público como sendo integrado pelos bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico.
‘A ação popular é instrumento de dignidade constitucional de que se utiliza o
cidadão para anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado
participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico
e cultural (CF, art. 5º, LXXIII). Para sua admissibilidade, além dos pressupostos processuais e condições da ação, inscritas nas normas gerais de processo civil, exige-se
a presença de requisitos específicos: ser o autor titular de cidadania (eleitor), ocorrer
efetiva ilegalidade e lesividade em razão do atacado’(TRF 1ª Região, REO 01030995/
RO, 1ª Turma Suplementar, decisão de 10.12.2002, relatada pelo Juiz Francisco de
Assis Betti, g. n.).
Da análise da exordial, não vislumbro qualquer lesão, ainda que potencial, ao
patrimônio público, apta a acarretar a legitimidade da propositura da ação popular.
372
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
A esse respeito, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região já decidiu que: embora
a ação popular, diversamente do mandado de segurança, permita ampla dilação probatória, não exigindo, pois, seja pré-constituída a prova da ilegalidade e lesividade
do ato, necessário se demonstre o autor, ainda que minimamente, a potencialidade da
lesão que indica possibilidade do indeferimento da inicial quando o pedido careça de
suporte mínimo que o viabilize. (TRF 1ª Região, Apelação Cível nº 01115702/DF, 1ª
Turma, decisão de 30.10.2000, relatada pelo Juiz Aloísio Palmeira Lima, g.n.).
O próprio autor afirma à fl. 15 que o ato praticado pela CEF e pelo seu administrador é lesivo à (sic) uma comunidade difusa de indivíduos, pois que não recebem
integralmente sobre os depósitos, juros e correção monetária integral (...). Obviamente,
a falta de recebimento de valores pelos beneficiários do pagamento de precatórios, via
depósito judicial na CEF, não se configura em lesão ao patrimônio público. Idêntica
conclusão é extraída face à alegação de suposto prejuízo aos entes públicos, decorrente
do possível ajuizamento de ações de indenização em face dos requeridos.
A possibilidade de futura discussão judicial e de eventual condenação ao pagamento
de indenizações não pode ser utilizada como fundamento para a caracterização de dano
ao patrimônio público. Para o ajuizamento de ação popular, apesar de ser admissível a
dilação probatória, a lesão ao patrimônio público deve ser apresentada e evidenciada
de forma concreta. Ademais, além de o acesso ao Judiciário estar constitucionalmente
garantido como um direito fundamental (art. 5º, XXXV), o pagamento der indenizações,
em reconhecimento ao direito dos litigantes, não configura lesão ao patrimônio público.
Por outro lado, os possíveis prejudicados pelo não creditamento de juros e correção
monetária em depósitos judiciais são facilmente identificados e determinados. A ação
popular, dada a sua especificidade, não pode ser utilizada para evitar ou reparar lesão
a direitos individuais, objetivo pretendido nestes autos.
Deve-se ressaltar, ainda, que a legitimação ordinária concedida ao cidadão para a
propositura de ação popular deve ser utilizada de maneira responsável e estritamente
baseada no interesse público, pois, do contrário, ausentes os requisitos ou os meios de
prova, configura-se inexcedível prejuízo ao erário o processamento e o prosseguimento
do processo, que, então, deve ser indeferido de plano. (TRF 2ª Região, Apelação Cível
nº 87889/RJ, 6ª Turma, decisão de 27.08.2002, relatada pelo Juiz França Neto).
Diante do exposto, não revelando os fatos articulados na inicial qualquer lesividade ao patrimônio público, a via processual eleita pelo autor mostra-se inadequada,
ensejando o indeferimento da inicial.
Posto isto, julgo extinto o processo, sem julgamento do mérito, com fulcro nos arts.
267, VI, e 295, I, do Código de Processo Civil.”
Interposta a apelação, postula o recorrente a reforma do julgado, onde,
a fls. 41/2, alega, verbis:
“6.1. A AÇÃO POPULAR não só é cabível, como quer a sentença apelada, quando
há prejuízo ao patrimônio público, prejuízo este que se mede em dinheiro.
6.2. A AÇÃO POPULAR também é cabível quando já o prejuízo moral.
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373
6.3. No caso, há o prejuízo moral, de vez que a empresa pública ré, ora segunda apelada, não pagando os juros e correção monetária, de forma integral dos depósitos judiciais
feitos à ordem dos respectivos Juízes Federais, causa o descrédito à própria administração pública. Ofende os princípios da moralidade pública que a CONSTITUIÇÃO
FEDERAL, em seu art. 37, caput, exige dos administradores na prática de seus atos.
6.4. A Lex Legum, ainda, em seu art. 5º, LXXIII, como um dos direitos e garantias
individuais, estabelece: ‘qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular
que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado
participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e
cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus
da sucumbência;’
6.5. Ora, não pagar juros e correção monetária integral nos depósitos judiciais feitos na empresa pública, ofende os princípios da moralidade pública. É que, a empresa
pública, não pagando as rubricas a que qualquer outro estabelecimento bancário ou de
crédito estaria sujeito ao pagamento, estaria ela, se locupletando à custa do particular,
quando ela, ainda que empresa pública, exercendo uma atividade típica do particular,
estaria sujeita às mesmas regras deste. O estabelecimento de crédito particular, em seus
depósitos, conforme opção do usuário, paga juros e correção monetária integral, é dever
moral, que ela – empresa pública – também tenha a mesma obrigação do particular.
6.6. Portanto a ação popular não é só cabível quando haja prejuízo financeiro ao
erário público. É ela cabível, também, quando o ato praticado pelo administrador fere
o princípio da moralidade pública.
6.7. Valo invocar a anotação de THEOTONIO NEGRÃO, in CPC e legislação
processual civil em vigor, 35ª ed., pág. 1.024:
‘São pressupostos essenciais da ação popular, que o ato seja ilegal e que seja lesivo
ao patrimônio público (RT 714/116, maioria), ou a outros interesses tutelados pela
CEF, 5º, LXXIII.’
6.8. São tutelados, pois, outros interesses a que se refere o invocado art. 5º, LXXIII,
da Constituição Federal, incluindo-se a moralidade administrativa.”
O MPF opinou pelo improvimento do recurso.
É o relatório.
VOTO
O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz: Em
seu parecer, a fls. 58/60, anotou, com inteiro acerto, o douto MPF, verbis:
“Penso que o recurso interposto não merece provimento, devendo ser mantida a r.
sentença recorrida.
Nesse sentido, transcrevo as razões invocadas pelo Magistrado a quo, que por
ocasião da prolação da sentença de extinção do feito lapidarmente concluiu (fls. 29-
374
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
30), verbis:
‘Da análise da exordial, não vislumbro qualquer lesão, ainda que potencial, ao
patrimônio público, apta a acarretar a legitimidade da propositura da ação popular.
A esse respeito, o Tribunal Regional da 1ª Região já decidiu que: embora a ação
popular, diversamente do mandado de segurança, permita ampla dilação probatória,
não exigindo, pois, seja pré-constituída a prova da ilegalidade e lesividade do ato, necessário se demonstre que o autor, ainda que minimamente, a potencialidade da lesão
que indica. Possibilidade do indeferimento da inicial quando o pedido careça de suporte
mínimo que o viabilize. (TRF 1ª Região, Apelação Cível nº 01115702/DF, 1ª Turma,
decisão de 30.10.2000, relatada pelo juiz Aloísio Palmeira Lima, g.n.).
O próprio autor afirma à fl. 15 que o ato praticado pela CEF e pelo seu administrador
é lesivo à (sic) uma comunidade de indivíduos, pois que não recebem integralmente
sobre os depósitos, juros e correção monetária integral(...). Obviamente, a falta de
recebimento de valores pelos beneficiários do pagamento de precatórios, via depósito
judicial na CEF não se configura em lesão ao patrimônio público. Idêntica conclusão é
extraída face à alegação de suposto prejuízo aos entes públicos, decorrente do possível
ajuizamento de ações de indenização em face dos requeridos.
A possibilidade de futura decisão judicial e de eventual condenação ao pagamento
de indenizações não pode ser utilizada como fundamento para a caracterização de dano
ao patrimônio público. Para o ajuizamento de ação popular, apesar de ser admissível a
dilação probatória, a lesão ao patrimônio público deve ser apresentada e evidenciada
de forma concreta. Ademais, além de o acesso ao judiciário estar constitucionalmente
garantido como um direito fundamental (art. 5º, XXXV), o pagamento de indenizações,
em reconhecimento ao direito dos litigantes, não configura lesão ao patrimônio.
Por outro lado, os possíveis prejudicados pelo não creditamento de juros e correção
monetária em depósitos judiciais são facilmente identificados e determinados. A ação
popular, dada a sua especificidade, não pode ser utilizada para evitar ou reparar lesão
a direitos individuais, objetivo pretendido nestes autos.
Deve-se ressaltar, ainda, que a legitimação ordinária concedida ao cidadão para a
propositura de ação popular deve ser utilizada de maneira responsável e estritamente
baseada no interesse público, pois, do contrário, ausentes os requisitos ou os meios de
prova, configura-se inexcedível prejuízo ao erário o processamento e o prosseguimento
do processo, que, então, deve ser indeferido de plano (TRF 2ª Região, Apelação Cível
nº 87889/RJ, 6ª Turma, decisão de 27.08.2002, relatada pelo Juiz França Neto).
Diante do exposto, não revelando os fatos articulados na inicial qualquer lesividade ao patrimônio público, a via processual eleita pelo autor mostra-se inadequada,
ensejando o indeferimento da inicial’.
Destaco ainda, nesse mesmo sentido, o entendimento jurisprudencial, verbis:
‘ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. CONCURSO PÚBLICO. EDITAL.
AÇÃO POPULAR. AUSÊNCIA DE REQUISITO LEGAL INADEQUAÇÃO DA VIA
ELEITA. CARÊNCIA DE AÇÃO.
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
375
1. Os fatos articulados na inicial não revelam a ocorrência de lesividade ao patrimônio público, sendo pois, inadequada a via processual (Ação Popular) eleita, pelo
que são carecedores de ação os Suplicantes.
2. Direitos subjetivos dos candidatos, acaso feridos pelas restrições constantes
do edital, ensejariam a propositura de ações individuais próprias, que não podem ser
substituídas por Ação Popular, situação em que também não se enquadrariam os Suplicantes, que não provaram estar inscritos no concurso.
3. De qualquer forma, indeferida a liminar, e realizadas as provas em 1992, sem
objeto restou a ação.
4. Processo extinto conforme art. 267, VI, do CPC.
5. Remessa Oficial improvida’ (TRF 1ª Região, 2ª Turma, REO nº 1995.01.200817/MG, Rel. Juíza ASSUSETE MAGALHÃES, j. 24.02.00, DJ 23.03.00, pág. 100).
Desse modo, na forma das razões anteriormente transcritas, penso que não merece
prosperar a insurgência da recorrente.
Pelo exposto, o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL opina, preliminarmente, pelo
conhecimento do recurso, no mérito, pelo seu improvimento, com a manutenção da r.
sentença recorrida.”
Correto o parecer.
Com efeito, no caso dos autos, em nenhum momento da inicial é
apontada pelo autor, concretamente, a ilegalidade e a lesividade ao patrimônio público.
Em alentado parecer, onde são analisados os pressupostos processuais
que autorizam o ajuizamento da ação popular, leciona o ilustre Ministro
Thompson Flores, ex-Presidente do Supremo Tribunal Federal, verbis:
“(...)
5. A ação em comentário, erigida em garantia constitucional, de alto destaque na vida
democrática da Nação, atribuiu a ‘qualquer cidadão’ como parcela do Povo, de onde
provém todo o poder, como é expressa a própria Lei Maior (art. 1º, § 1º), legitimidade
ativa para fiscalizar a Administração, no pertinente ao patrimônio público que lhe está
afeto, ensejando-lhe, através de meios prontos e eficazes, alcançar judicialmente, a decretação e invalidade dos atos que sejam lesíveis ao Erário, obrigando os responsáveis
ao ressarcimento do mal causado.
Não poderia, como nem seria curial, que instaurasse ele a grave lide, sem que
‘aparelhado’ estivesse para ela.
6. Por isso, acentuou com propriedade José Afonso da Silva (ob. cit., p. 221, n. 189):
‘(...) A demanda, contudo, deverá ser idônea, para produzir os efeitos procurados, ou
seja, uma decisão de mérito. Para isso há certas exigências que precisam transparecer
na petição inicial que necessita ser apta ao estabelecimento da relação processual. (...)
A demanda popular propõe-se por petição na forma do art. 158 do CPC, com todos os
requisitos ali especificados e mais os que no caso concreto exigir.’
376
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
O socorro ao CPC citado deflui do disposto no art. 22 da Lei 4.717/65; e o invocado
art. 158 corresponde ao art. 282 do CPC vigente.
7. Destarte, o libelo inicial deve ser preciso quanto à indicação do fato e os fundamentos jurídicos do pedido; para a espécie, o ato cuja decretação de invalidade postula,
o vício que o contaminou e em que consistiu sua lesividade ao patrimônio público da
entidade indicada.
É possível que o autor, de início, não disponha de todos os elementos necessários,
porque não tenham sido fornecidos pelas entidades em questão. O remédio está, claramente, assegurado no art. 7º, I, b, e § 2º, da Lei 4.717.
O certo, porém, é que os fatos, antes da citação devem estar devidamente expostos, bem como os fundamentos do pedido, para que os réus possam, com base neles,
oferecer sua defesa.
(...)”. (In Revista de Processo, 61/221)
Portanto, para que a ação popular seja julgada procedente, exige-se
a comprovação, de forma cabal, da lesividade do ato e, também, de sua
invalidade, por ser ele nulo ou anulável.
Nesse sentido, é tranqüilo o entendimento da Suprema Corte,
manifestado em inúmeros arestos. (In RTJ 54/95; 71/497; 72/421;
96/1.370 e 103/683)
É o que deflui, igualmente, da redação do art. 5º, LXXIII, da Lei Maior,
bem como da doutrina. (MOREIRA, Barbosa. In Ações Coletivas na CF
de 1988, in Revista de Processo, 61/192 )
Incumbe ao autor da ação popular a prova da ocorrência do ato lesivo
ao patrimônio público, de forma efetiva, concreta, e não de meras conjecturas, como se depreende do exame da peça vestibular.
A respeito, claro e preciso o magistério de José Afonso da Silva, verbis:
“É ônus do autor popular provar a ocorrência de ato lesivo ao patrimônio público.
Enfim, incumbe-lhe comprovar a efetiva verificação dos fundamentos de fato (causa
petendi próxima) da demanda, para que possa obter os efeitos pretendidos.” (In Ação
Popular Constitucional. Doutrina e Processo. Ed. Rev. dos Tribs., 1968, n. 199, p. 228).
Nessa mesma orientação, é a lição do Ministro Thompson Flores, em
seu já citado parecer, verbis:
“(...)
A propósito, com acerto, afirmou a Procuradoria do Estado, em sua contestação,
firmada pelo ilustre Prof. Almiro do Couto e Silva (fl. 99): ‘Lesivo não é sinônimo de
oneroso. Lesivo não é, por conseguinte, o que custou dinheiro, mas sim o que causou
dano, desfalque ou prejuízo.’
No mesmo sentido a lição de José Afonso da Silva (ob. cit., n. 119, pp. 149-50, e
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
377
Enciclopédia Saraiva de Direito, III, 1977, pp. 400-1).
Essa é, também, a conceituação da Suprema Corte como se verifica do julgamento
proferido no RE nº 92.326-SP, já mencionado e posto em destaque.
Proferindo seu voto, sublinhou, com prioridade, o Relator, o eminente Ministro
Rafael Mayer (In RDA - 143/129): ‘Lesivo se há de entender o ato que, direta ou indiretamente, mas real ou efetivamente, redunde no injusto detrimento de bens ou direitos
da Administração, representativo de um prejuízo, de um dano, efetivo ou potencial de
valores patrimoniais. Não faz sentido incluir aí, como pretendeu a instância ordinária,
os ganhos que eventualmente tenham resultado à empresa por sua atividade quase como
lucros cessantes da Prefeitura, pois não há relação causal e jurídica que lhes atribua.’
4.8 Em remate, silente o autor, no traduzir, concretamente, como se teria caracterizado a lesividade dos contratos que impugnou, indispensável, como causa petendi,
proporcionar a defesa dos réus, o que seria substancial, pois, como assinala Seabra
Fagundes, ela - a lesividade - deve ser examinada caso a caso (Da Ação Popular, in
RDA VI, n. 24/18-9; ob. cit., n. 129, nota 5, p. 366), para sua segura verificação; e,
mais, sem qualquer prova de sua ocorrência, manifesto é que seria de todo inviável
reconhecê-la.” (In Revista de Processo, 61/228)
É exatamente o caso dos autos, eis que o autor não demonstrou,
concreta e efetivamente, como se teria caracterizado a lesividade ao
patrimônio público, ônus que lhes cabia a teor do art. 333, I, do CPC.
O que se constata, de forma evidente, é a inconformidade do autor
com o procedimento da CEF o que, com a devida vênia, não pode ser
objeto de ação popular.
Pertinente, a respeito, a jurisprudência da Suprema Corte, firmada
quando do julgamento do RE nº 42.054-SP, em que foi relator o saudoso
Ministro Barros Barreto, verbis:
“Por sem dúvida, consoante é pacífico, ao Poder Judiciário não é dado rever os atos
administrativos salvo quanto à sua legalidade ou legitimidade. E, de conseguinte, na
ação popular, contra atos lesivos ao patrimônio público, há de se restringir e apurar
- se eles são nulos ou anuláveis, sem discutir a sua conveniência ou oportunidade,
visto que a função judicial tem por fim a aplicação do direito” (In RTJ 10/600. Da
mesma forma, Hely Lopes Meirelles, in Ação Popular, 13ª ed., Rev. dos Tribs., 1989,
pp. 89 e 93)
Por esses motivos, conheço da apelação e da remessa oficial, negando-lhes provimento.
É o meu voto.
378
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
QUESTÃO DE ORDEM NO MS Nº 2004.04.01.012496-7/RS
Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Victor Luiz dos Santos Laus
Impetrante: Instituto Nacional do Seguro Social - INSS
Advogada: Dra. Sibele Regina Luz Grecco
Impetrado: Juízo Federal da 1ª Vara do Juizado Especial Federal de
Passo Fundo/RS
Interessada: Ernesta Penna Paim
Advogados: Drs. Auri Alarcony e outro
EMENTA
Processo Civil. Mandado de segurança. JEF. Conflito de competência.
Compete à Turma Recursal do Juizado Especial Federal examinar o
cabimento do mandado de segurança impetrado contra ato de Juiz Federal
no exercício da jurisdição desse último quando se tratar de substitutivo
recursal.
Tendo aquele Colegiado declinado da competência para exame do
mandamus, é de ser suscitado conflito perante o STJ, a teor do disposto
no artigo 105, I, d, da Constituição Federal. (CC 39876, 3ª Seção, Rel.
Min. Laurita Vaz, DJU 19.12.2003)
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas,
decide a Egrégia 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região,
por unanimidade, suscitar conflito negativo de competência perante o
Colendo STJ, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que
ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Porto Alegre, 24 de março de 2004.
Des. Federal Victor Luiz dos Santos Laus, Relator.
RELATÓRIO
O Exmo. Sr. Des. Federal Victor Luiz dos Santos Laus: Trata-se de
mandado de segurança impetrado pelo INSS em face de ato praticado
pelo juízo federal titular do Juizado Especial Federal de Passo Fundo/
RS, que rejeitou embargos declaratórios opostos para ver corrigido erro
material na sentença, expressa nos seguintes termos:
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
379
“A autarquia-ré acima nominada ofereceu Embargos de Declaração à sentença
proferida nestes autos, em que busca, através desta insurgência, ver sanado erro material nela contido.
Ouvida a Contadoria deste Juízo, esta informou que, em que pese os termos desta
peça recursal, não houve erro no cálculo elaborado, porquanto foi respeitada a limitação
da renda ao teto; no entanto, no mês de dezembro de 1998, houve um reajustamento do
teto pela EC nº 20 (R$ 1.200,00), fazendo-se, assim, imprescindível o cotejamento da
renda anterior a essa data, aí desconsiderado o teto anterior, com aquele novo limite-teto.
Ante o exposto, rejeito os presentes declaratórios.” (fl. 85)
Sustenta o impetrante, em síntese, que o erro material pode ser corrigido a qualquer momento por não ser abrangido pela coisa julgada.
Distribuídos os autos à Turma Recursal, a ilustre Relatora determinou
a sua vinda a esta Corte, com base no artigo 3º, parágrafo 1º, inciso I,
da Lei nº 10.259/2001.
É o relatório.
VOTO
O Exmo. Sr. Des. Federal Victor Luiz dos Santos Laus: Como se vê do
Relatório, trata-se de mandado de segurança impetrado perante a Turma
Recursal do JEF no Rio Grande do Sul, a qual declinou da competência
para o seu exame.
Este Colegiado, interpretando o disposto nos artigos 98, I, parágrafo
único, e 108, I, c, ambos da Constituição Federal, firmou entendimento
no sentido de que compete àquele órgão examinar o cabimento do mandado de segurança impetrado contra ato de Juiz Federal no exercício da
jurisdição desse último quando se tratar de substitutivo recursal.
A propósito:
“QUESTÃO DE ORDEM. MANDADO DE SEGURANÇA CONTRA DECISÃO
DE JUIZ FEDERAL DO JUIZADO ESPECIAL FEDERAL. SUBSTITUTIVO RECURSAL. COMPETÊNCIA DA TURMA RECURSAL.
1. Compete à Turma Recursal do Juizado Especial Federal examinar o cabimento
do mandado de segurança impetrado contra decisão de Juiz Federal no exercício da
jurisdição do Juizado Especial Federal, quando substitutivo recursal.
2. Questão de ordem acolhida no sentido de declinar da competência para a Turma
Recursal do Juizado Especial Federal do Rio Grande do Sul.” (TRF4, QO no MS
2003.04.01.036507-3/RS, 6ª Turma, Rel. Des. Federal Nylson Paim de Abreu, DJU
29.10.2003)
No caso em tela, como referido alhures, cogita-se de decisão que
380
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
rejeitou embargos declaratórios, os quais restituem à parte o prazo
para a interposição do recurso próprio (artigo 538 do CPC), caso que à
evidência se subsume naquela inteligência, impondo-se, assim, suscitar
conflito de competência.
Referentemente à atribuição para o seu exame, há precedente da Corte
Especial (CC 2003.04.01.036518-8, Rel. Des. Federal José Germano da
Silva, DJU 1º.10.2003), no sentido de que competiria ao TRF dirimi-lo, tendo em vista que até então o e. Superior Tribunal de Justiça não
pacificara a questão.
Ocorre, porém, que a Terceira Seção do STJ, amparada em decisão
da Suprema Corte, reformulou o entendimento que vinha adotando, sinalizando a sua competência em decisão assim ementada, verbis:
“CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. TURMA RECURSAL E TRIBUNAL DE ALÇADA DO MESMO ESTADO. COMPETÊNCIA DO STJ PARA DIRIMIR
O CONFLITO. INTELIGÊNCIA DO ART. 105, I, d, da CF. DECISÃO PLENÁRIA
DO STF. PRECEDENTES DO STJ. CRIME DE PREVARICAÇÃO. INFRAÇÃO
DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO. ART. 2º, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI
Nº 10.259/01. RECURSO DE APELAÇÃO. JULGAMENTO SOB A ÉGIDE DA LEI
NOVA. NORMA PROCESSUAL. INCIDÊNCIA IMEDIATA.
1. A Eg. Terceira Seção, em consonância com o Plenário da Suprema Corte, consolidou o entendimento de que, por não haver vinculação jurisdicional entre Juízes das
Turmas Recursais e o Tribunal local (de Justiça ou de Alçada) - assim entendido, porque
a despeito da inegável hierarquia administrativo-funcional, as decisões proferidas pelo
segundo grau de jurisdição da Justiça Especializada não se submetem à revisão por
parte do respectivo Tribunal - deverá o conflito de competência ser decidido pelo Superior Tribunal de Justiça, a teor do art. 105, inciso I, alínea d, da Constituição Federal,
que dispõe ser da competência deste Tribunal processar e julgar, originariamente, ‘os
conflitos de competência entre quaisquer tribunais, ressalvado o disposto no art. 102,
I, o, bem como entre tribunal e juízes a ele não vinculados e entre juízes vinculados a
tribunais diversos’.
2. a 4. Omissis”. (CC 39876, 3ª Seção, Rel. Min. Laurita Vaz, DJU 19.12.2003)
Logo, ainda que os órgãos fracionários deste Regional, na forma do
seu Regimento Interno, encontrem-se vinculados às decisões da Corte
Especial, em se tratando de matéria constitucional, não há como desconsiderar a orientação adotada pelo Pretório Excelso.
Em face do exposto, suscito conflito negativo de competência perante
o Colendo STJ, com base no artigo 105, I, d, da Constituição.
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
381
DIREITO TRIBUTÁRIO
384
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
APELAÇÃO CÍVEL Nº 2000.71.13.000183-5/RS
Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Wellington Mendes de Almeida
Apelante: Centrais Elétricas Brasileiras S/A - Eletrobrás
Advogados: Drs. Maria Ester Antunes Klin e outros
Apelante: Guifasa S/A Ind. e Com.
Advogados: Drs. Rudinei Clenio Carvalho e outros
Apelante: União Federal (Fazenda Nacional)
Advogada: Dra. Dolizete Fátima Michelin
Apelados: (os mesmos)
Remetente: Juízo Federal da Vara Federal de Bento Gonçalves/RS
EMENTA
Tributário. Empréstimo compulsório sobre energia elétrica. Legitimidade passiva ad causam da União. Prescrição. Correção monetária.
Índices aplicáveis. Expurgos inflacionários.
1. A União é parte passiva legítima para responder à demanda na qual
se reclamam as diferenças de correção monetária do empréstimo compulsório sobre a energia elétrica, pois, embora o tributo tenha sido instituído
em favor da ELETROBRÁS, a União manteve sob sua responsabilidade
e controle a arrecadação e o emprego dos recursos.
2. O prazo prescricional passa a fluir a partir da data fixada pelo DL
nº 1.512/76 para o resgate do empréstimo compulsório, ou seja, vinte
anos após a aquisição compulsória das obrigações emitidas em favor do
contribuinte.
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
385
3. A conversão antecipada em ações não pode ser considerada como
marco inicial da prescrição, por estar ausente o direito exigível, atual, cuja
violação acarreta o nascimento da ação (actio nata). Mesmo recebendo
o crédito representado pelas ações, o credor não podia dispor livremente
desses títulos, pois o art. 3º, § único, do DL nº 1.512/76 impunha gravame que impossibilitava a transferência dos papéis, até o vencimento
do empréstimo.
4. O entendimento adotado, no âmbito da 1ª Turma, quanto à regra
aplicável à prescrição, é de que incidem as disposições do Decreto nº
20.910/32, em face do litisconsórcio passivo necessário com a União.
5. Embora os créditos posteriores a 1988 ainda não estejam vencidos,
por não ter transcorrido o prazo para sua devolução, não há por que
excluí-los do alcance do provimento jurisdicional, visto que a declaração
da relação jurídica não se destina a reger somente situações passadas,
mas também as que irão se estabelecer futuramente.
6. Desde a Constituição de 1967 o empréstimo compulsório possui
natureza jurídica tributária, estando submetido aos mesmos princípios,
normas gerais em matéria de legislação tributária e limitações do poder
de tributar inerentes aos demais tributos, entre os quais a proibição de
utilizar tributo com efeito de confisco, contida no art. 150, IV, da Constituição de 1988.
7. Se o Estado não devolver ao contribuinte as importâncias tomadas
compulsoriamente com a atualização integral, desde o recolhimento até o
efetivo resgate, estará enriquecendo ilicitamente e confiscando o capital
do contribuinte, valendo-se do seu poder de impor o empréstimo forçado.
8. Incluem-se os expurgos inflacionários previstos nas Súmulas nos
32 e 37 deste Tribunal.
9. Para o cálculo das diferenças relativas à conversão das ações, é
descabida a utilização do valor de mercado, por falta de amparo legal e
não estar evidenciada a finalidade confiscatória.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas,
decide a Egrégia 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região,
por maioria, dar parcial provimento à apelação da ELETROBRÁS e
à remessa oficial e negar provimento à apelação da União, nos ter386
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
mos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte
integrante do presente julgado.
Porto Alegre, 12 de maio de 2004.
Des. Federal Wellington Mendes de Almeida, Relator.
RELATÓRIO
O Exmo. Sr. Des. Federal Wellington Mendes de Almeida: Cuida-se de
apelações contra sentença que julgou parcialmente procedente o pedido,
para o fim de declarar o direito da autora à correção monetária integral
dos créditos relativos ao empréstimo compulsório incidente sobre o consumo de energia elétrica, desde o efetivo pagamento, pela variação da
ORTN/OTN/BTN/INPC/UFIR, observando-se os expurgos inflacionários
previstos nas Súmulas nos 32 e 37 desta Corte, bem como a incidência de
juros de 6% ao ano, previstos no DL nº 1.512/76, após a atualização dos
valores, a partir do período aquisitivo até o seu lançamento em ações.
Foram os réus condenados a pagar os juros mediante compensação nas
contas futuras de energia elétrica e a calcular as diferenças oriundas
da conversão em ações da ELETROBRÁS de acordo com os critérios
preconizados na sentença e utilizando o valor de mercado das ações
na data das efetivas conversões, bem como a arcar com os honorários
advocatícios, arbitrados em 10% sobre o valor da causa, suportados na
proporção de 50% para cada um.
A ELETROBRÁS argúi a prescrição, com fulcro no Decreto nº
20.910/32, e a decadência, com base no CTN. Sustenta a legalidade
do termo inicial para a aplicação da correção monetária e dos índices
de correção utilizados. Alega que inexiste diferença relativa aos juros
de 6% anuais, decorrentes da correção monetária do principal. Salienta
que não houve perda para os contribuintes que tiveram seus créditos
convertidos em ações antecipadamente, porque, após a emissão das
ações, seu valor é regido pelas variações de mercado.
A União aduz a sua ilegitimidade passiva ad causam, a prescrição
qüinqüenal e a legalidade da forma de correção monetária.
Com contra-razões, vieram os autos a esta Corte.
É o relatório.
VOTO
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
387
O Exmo. Sr. Des. Federal Wellington Mendes de Almeida: Inicialmente, suscito a discussão sobre a ausência do interesse de agir, com fulcro
no art. 267, § 3º, do CPC, relativamente aos valores recolhidos entre 1987
e 1993, por se tratar de questão controvertida no âmbito da 1ª Turma.
1 - Ausência de interesse de agir
Embora os créditos posteriores a 1988 ainda não estejam vencidos, por
não ter transcorrido o prazo para sua devolução, não há por que excluí-los do alcance do provimento jurisdicional, visto que a declaração da
relação jurídica não se destina a reger somente situações passadas, mas
também as que irão se estabelecer futuramente. A ação não é propriamente
declaratória; a classificação mais adequada, de acordo com o que propõe
o festejado Professor Agnelo Amorim Filho, é condenatória:
“Convém acentuar, porém, que as sentenças condenatórias e as constitutivas também
têm certo conteúdo declaratório, ao lado do conteúdo condenatório ou constitutivo,
pois toda sentença deve conter, necessariamente, a declaração da existência da relação
jurídica sobre a qual versa. O que as distingue das declaratórias propriamente ditas é
que, nestas, tal conteúdo é total, ao passo que as condenatórias são, simultaneamente,
declaratórias e condenatórias.” (Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis, in RT, v. 49, nº 300, out. 1960, p. 16)
Corrobora essa assertiva o fato de que haverá condenação exeqüível
neste momento, porquanto a ELETROBRÁS deverá alterar seus registros
para que constem os créditos deferidos por esta decisão judicial.
Não há confundir a relação de direito material com a relação de
direito processual. A primeira diz respeito à pretensão, pressupondo a
existência de um direito atual atribuído ao seu titular e a violação desse
direito; a segunda configura o direito de ação, de natureza autônoma (em
relação ao direito subjetivo material) e instrumental (destina-se a obter
o bem jurídico pretendido pelo autor, resolvendo a pretensão de direito
material), conceituado pela doutrina, sucintamente, como o direito de
invocar o exercício da função jurisdicional.
Para que comece a correr a prescrição, obviamente, deve estar presente a actio nata, a pretensão resistida; todavia, cogita-se somente o
nascimento da pretensão de direito material, não do interesse processual.
Nas palavras do ilustre processualista Moacyr Amaral Santos, “o que
move a ação é o interesse na composição da lide (interesse de agir), não
388
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
o interesse em lide (interesse substancial).” (Primeiras Linhas de Direito
Processual Civil, Editora Saraiva, 1º volume, 18ª edição, página 167). A
necessidade e a adequação da prestação jurisdicional solicitada devem
ser aferidas in abstrato, independentemente da lesão concreta ao direito
material invocado. Do contrário, se o interesse processual dependesse da
existência da violação concreta do direito atribuído ao titular, à medida
que fossem vencendo as obrigações do empréstimo compulsório teria o
contribuinte que ajuizar nova demanda, o que se revela absolutamente
oposto aos princípios que norteiam o direito processual.
2 - Legitimidade passiva ad causam da União:
Embora o empréstimo compulsório de que trata a Lei nº 4.156/62
tenha sido instituído em favor da ELETROBRÁS, a União manteve sob
sua responsabilidade e controle a arrecadação e o emprego dos recursos.
O art. 4º, § 3º, dessa Lei ainda determina a responsabilidade solidária da
União, em qualquer hipótese, pelo valor nominal dos títulos correspondentes ao valor das obrigações tomadas pelo consumidor. Em virtude
dessa solidariedade legal, que se sobrepõe à regra do art. 242 da Lei nº
6.404/76, por ser norma especial, é a União legitimada para responder à
demanda, em litisconsórcio passivo necessário. Nesse sentido, o seguinte
precedente desta Corte:
“EMPRÉSTIMO COMPULSÓRIO. ELETROBRÁS. LEI Nº 4.156, DE 1962. LEI
COMPLEMENTAR Nº 13, DE 1972. LEI Nº 5.824, DE 1972. LEI Nº 7.181, DE 1983.
1. A peculiar configuração da relação jurídica decorrente do empréstimo compulsório
em causa - criado em favor da ELETROBRÁS, mas mantido sob absoluto controle
da União no que se refere à arrecadação e aplicação - faz com que a União Federal,
que é responsável solidária pela restituição, se legitime passivamente nas demandas
dela exsurgentes.
2. Recurso provido (AC 94.04.02780-4, 2ª T., Rel. Juiz Teori Albino Zavascki,
unânime, DJU 11.01.95).”
Passo a enfrentar a questão de fundo.
3 - Prescrição
Em conformidade com o art. 2º do Decreto-Lei nº 1.512/76, o montante das contribuições de cada consumidor industrial constituirá o seu
crédito a título de empréstimo compulsório, que será resgatado no prazo
de vinte anos. O prazo para o exercício do direito de ação passa a fluir
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
389
somente a partir da data fixada pelo DL nº 1.512/76 para o resgate do
empréstimo compulsório, em decorrência do princípio da actio nata, ou
seja, vinte anos após a aquisição compulsória das obrigações emitidas
em favor do contribuinte. A jurisprudência do STJ registra:
“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. EMPRÉSTIMO COMPULSÓRIO SOBRE ENERGIA ELÉTRICA.
PRESCRIÇÃO. CORREÇÃO MONETÁRIA. JURISPRUDÊNCIA DOMINANTE.
IMPROVIMENTO.
É entendimento dominante nesta Corte que, nas questões atinentes ao empréstimo
compulsório incidente sobre o consumo de energia elétrica, instituído pela Lei nº
4.156/62 e legislação posterior, a contagem do prazo prescricional tem seu início a
partir de 20 anos após a aquisição compulsória das obrigações emitidas em favor do
agravado. ... (omissis)
Agravo regimental improvido.” (AGA nº 346.547/MG, Rel. Min. Francisco Falcão,
1ª Turma, DJU 27.08.2001, p. 00279)
Cumpre registrar que não concordo com o entendimento de que o
termo a quo da prescrição, quanto aos créditos convertidos em ações, é a
data das Assembléias Gerais Extraordinárias que deliberaram o pagamento antecipado (20.04.88 e 26.04.90), de acordo com o permissivo do art.
3º do DL nº 1.512/76. O nascimento da ação (actio nata) é determinado
pela violação de um direito atual, atribuído a seu titular. Esta é a lição
do Professor Agnelo Amorim Filho, no artigo supracitado:
“Mas há um ponto que deve ficar bem ressaltado, porque interesse fundamentalmente às conclusões do presente estudo: os vários autores que se dedicaram à análise
do termo inicial da prescrição fixam esse termo, sem discrepância, no nascimento da
ação (actio nata), determinado, tal nascimento, pela violação de um direito. Savigny,
por exemplo, no capítulo de sua monumental obra dedicada ao estudo das condições
da prescrição, inclui, em primeiro lugar, a actio nata, e acentua que esta se caracteriza
por dois elementos: a) existência de um direito atual, suscetível de ser reclamado em
Juízo; e b) violação desse direito. Também Câmara Leal afirma, peremptoriamente:
‘Sem exigibilidade do direito, quando ameaçado ou violado, ou não satisfeita sua
obrigação correlata, não há ação a ser exercitada; e, sem o nascimento desta, pela
necessidade de garantia e proteção ao direito, não pode haver prescrição, porque esta
tem por condição primária a existência da ação.’”(p. 18)
A conversão antecipada em ações não pode ser considerada violação
do direito, justamente porque lhe falta o requisito da atualidade. Veja-se
a dicção do art. 3º do DL nº 1.512/76:
“Art. 3º No vencimento do empréstimo, ou antecipadamente, por decisão da As-
390
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
sembléia Geral da ELETROBRÁS, o crédito do consumidor poderá ser convertido em
participação acionária, emitindo a ELETROBRÁS ações preferenciais nominativas de
seu capital social.
Parágrafo único. As ações de que trata este artigo terão as preferências e vantagens
mencionadas no parágrafo 3º, do artigo 6º, da Lei número 3.890-A, de 25 de abril de
1961, com a redação dada pelo artigo 7º do Decreto-ei nº 644, de 23 de junho de 1969 e
conterão a cláusula de inalienabilidade até o vencimento do empréstimo, podendo a
ELETROBRÁS, por decisão de sua Assembléia Geral, suspender essa restrição.” (grifei)
Mesmo recebendo o crédito representado pelas ações, o credor não
podia dispor livremente desses títulos, pois a legislação impunha gravame
que impossibilitava a transferência dos papéis, até o vencimento do empréstimo. Uma vez que foi postergada a total disponibilidade do credor
sobre as ações, não há falar em direito exigível, atual, cuja violação tem
o condão de acarretar o início do prazo prescricional.
Outrossim, a conversão antecipada em ações não tem o efeito de
cumprimento da obrigação, porque os detentores de créditos convertidos
não foram comunicados pessoalmente pela ELETROBRÁS. Segundo o
“Boletim Informativo de Conversão de Créditos do Empréstimo Compulsório em Ações”, a empresa enviou, através das entidades arrecadadoras, os extratos demonstrativos dos créditos convertidos, elaborados
segundo o Código de Identificação do Contribuinte; após a conferência,
o detentor do crédito deveria solicitar a essas entidades os certificados
de ações e o pagamento do saldo não convertido em ações, mediante
preenchimento de formulário. A operacionalização do pagamento antecipado pressupõe o conhecimento e participação do credor, fato que,
todavia, não pode ser presumido, não sendo razoável supor que ocorreu
a efetiva entrega das ações, que consumaria o pagamento (desde que
houvesse a disponibilidade).
Ademais, em se tratando de obrigação alternativa cuja escolha compete
ao devedor, a ausência de notificação do credor a respeito do objeto da
prestação impede o nascimento da ação correspondente para que seja
reclamado o adimplemento integral da prestação, como bem salientado
pelo ilustre Desembargador Antônio Albino Ramos de Oliveira, Relator
para Acórdão na AC nº 1999.71.00.006055-0/RS, julgada em 24.03.2004.
Assim, aos créditos relativos ao empréstimo compulsório pago entre
1977 e 1986, que foram objeto da conversão em ações deliberadas pelas
72ª e 82ª Assembléia Geral Extraordinária, deve ser aplicada a mesma
391
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
regra geral supracitada, contando-se o prazo prescricional passados vinte
anos da aquisição compulsória das obrigações.
Quanto à regra aplicável à prescrição, não obstante a ELETROBRÁS
seja uma sociedade de economia mista, cujo capital foi integralizado
em grande parte com recursos da União, mas não é sustentada integralmente por tributos, recebendo verbas oriundas de tarifas, devendo a ela
ser aplicado o prazo vintenário do art. 177 do Código Civil de 1916,
curvo-me à posição firmada na Primeira Turma desta Corte. Prevaleceu
a posição de que incide o Decreto nº 20.910/32, em virtude da presença
da União no feito, na condição de litisconsorte passiva necessária. (AC
2001.04.01.065066-4/SC, Rel. Desa. Maria Lúcia Luz Leiria, DJU
11.12.2002, página 883, AC 2002.72.08.002002-4/SC, DJU 18.06.2003,
página 527)
Não incidem os dispositivos do CTN, visto que não se trata de ação de
repetição de indébito, mas de cobrança de diferenças impagas de correção
monetária de exação devida conforme a lei. Não se cuida, outrossim, de
prazo decadencial, visto que a pretensão envolve a condenação do réu
a uma determinada prestação, não se destinando a criar, modificar ou
extinguir um estado jurídico.
Considerando que a demanda foi ajuizada em 19.12.2000, inexistem
parcelas prescritas, não merecendo reparos a sentença neste ponto.
4 - Correção monetária e juros
No que concerne ao cerne da controvérsia, assim dispõe o Decreto-Lei
nº 1.512/76, que alterou a Lei nº 4.156/62:
“Art 2º O montante das contribuições de cada consumidor industrial, apurado sobre
o consumo de energia elétrica verificado em cada exercício, constituirá, em primeiro
de janeiro do ano seguinte, o seu crédito a título de empréstimo compulsório que será
resgatado no prazo de 20 (vinte) anos e vencerá juros de 6% (seis por cento) ao ano.
§ 1º O crédito referido neste artigo será corrigido monetariamente, na forma do
artigo 3º, da Lei número 4.357, de 16 de julho de 1964, para efeito de cálculo de juros
e de resgate.
§ 2º Os juros serão pagos anualmente, no mês de julho aos consumidores industriais
contribuintes, pelos concessionários distribuidores, mediante compensação nas contas
de fornecimento de energia elétrica, com recursos que a ELETROBRÁS lhes creditará.”
Por sua vez, o art. 3º da Lei nº 4.357/64 determina:
“Art 3º A correção monetária, de valor original dos bens do ativo imobilizado das
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R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
pessoas jurídicas, prevista no art. 57 da Lei nº 3.470, de 28 de novembro de 1958, será
obrigatória a partir da data desta Lei, segundo os coeficientes fixados anualmente pelo
Conselho Nacional de Economia de modo que traduzam a variação do poder aquisitivo
da moeda nacional, entre o mês de dezembro do último ano e a média anual de cada
um dos anos anteriores.”
O critério de correção monetária e o dies a quo demarcados pela Lei
não preservam o equilíbrio da relação tributária. O crédito é corrigido
pelo mesmo índice adotado para a variação do ativo imobilizado das
pessoas jurídicas, não obstante tenha sido pago em dinheiro. Outrossim,
recebe correção apenas a partir de sua constituição, no primeiro dia de
janeiro do ano seguinte, ficando sem atualização os valores recolhidos
durante o ano em que se verificaram as contribuições.
Desde a Constituição de 1967, o empréstimo compulsório possui
natureza jurídica tributária, estando submetido aos mesmos princípios,
normas gerais em matéria de legislação tributária e limitações do poder
de tributar inerentes aos demais tributos, insculpidos na Constituição e no
Código Tributário Nacional. Dentre estes, a proibição de utilizar tributo
com efeito de confisco, contida no art. 150, IV, da Constituição de 1988.
A correção monetária tem por finalidade e natureza a recomposição
do poder aquisitivo da moeda, recuperando a expressão econômica de
valores expressos em pecúnia. Se o Estado não devolver ao contribuinte as
importâncias tomadas compulsoriamente com a atualização integral, desde
o recolhimento até o efetivo resgate, estará enriquecendo ilicitamente e
confiscando o capital do contribuinte, valendo-se do seu poder de impor
o empréstimo forçado. Inconsistente o argumento de que o empréstimo
compulsório não tem cláusula de preservação do valor real, ante o princípio
de vedação ao confisco.
Neste sentido, colaciono os precedentes do Colendo STJ e desta Corte:
“TRIBUTÁRIO - EMPRÉSTIMO COMPULSÓRIO - CORREÇÃO MONETÁRIA
- TERMO INICIAL - LEI 4.357/64, ART. 3º - DL 1.512/76, ART. 2º.
I - Na interpretação da lei tributária, não se pode fazer tabula rasa da vedação
constitucional ao confisco velado (CF, art. 150, IV).
II - Negar correção monetária a valores arrecadados a título de empréstimo compulsório é utilizar a lei tributária, como instrumento de confisco, em desafio à vedação
constitucional.
III - A conjunção entre o art. 2º do DL 1.512/76 e o art. 3º da Lei 4.357/64
disciplina o tratamento contábil reservado aos valores recolhidos pelos consumiR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
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dores de energia elétrica, a título de empréstimo compulsório. Em homenagem à
vedação de confisco velado (CF, art. 150, IV), tais valores antes de se inscreverem
na rubrica ‘crédito’, devem ser corrigidos monetariamente. Não é lícito ao Estado
colocar os créditos do contribuinte ao largo do tempo e da inflação, como se um e
outra não existissem.” (REsp 194952/SC, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros,
1ª Turma, DJU 29.11.99, p. 00127)
“TRIBUTÁRIO - EMPRÉSTIMO COMPULSÓRIO SOBRE O CONSUMO DE
ENERGIA ELÉTRICA - CONSTITUCIONALIDADE - CORREÇÃO MONETÁRIA DEVIDA DE FORMA INTEGRAL, INCLUSIVE COM UTILIZAÇÃO DOS
ÍNDICES DO IPC DE JANEIRO DE 1989, MARÇO, ABRIL, MAIO DE 1990 E
FEVEREIRO DE 1991.
É legítima a cobrança de empréstimo compulsório incidente sobre o consumo de
energia elétrica, instituído pela Lei 4.156/62, inclusive na vigência da CF-88. Para evitar
o enriquecimento sem causa, deve a correção monetária ser calculada de forma integral
até o momento do efetivo pagamento, com o resgate completo do principal atualizado.
Para tanto, devem ser utilizados no cálculo da correção monetária, inclusive, os índices
de IPC de janeiro de 1989, março, abril de 1990 e fevereiro de 1991. Precedentes no
STJ e no TRF 2ª Região.” (AC nº 96.04.65116-1/PR, 2ª Turma, Rel. Desa. Fed. Tania
Escobar, DJU 10.03.99, p. 874)
Deve incidir, portanto, a atualização monetária plena sobre os valores resgatados ou devolvidos mediante participação acionária, desde o
pagamento até o efetivo resgate, pela variação da ORTN/OTN/BTN/
INPC/UFIR.
Entendo descabida a incidência da taxa SELIC, pois há grande discussão na jurisprudência sobre a sua natureza, que engloba índice de
correção monetária e taxa de juros. Uma vez que a legislação já prevê
juros de natureza compensatória de 6% ao ano sobre as contribuições
a serem devolvidas, a inclusão da SELIC implica incidência de juros
sobre juros, sem autorização legal. Ademais, o art. 39, § 4º, da Lei nº
9.250/95 não se aplica à hipótese presente, regendo somente os casos de
compensação ou restituição de tributo pago indevidamente ou a maior.
Inexistindo substituto legal para a UFIR, cumpre ao Poder Judiciário
suprir a lacuna. Tendo em vista que a UFIR era corrigida com base no
IPCA-E (Índice de Preços ao Consumidor Ampliado-série Especial),
divulgado pelo IBGE, deve ser adotado este indexador, estando em conformidade, ainda, com a Resolução nº 242, de 03.07.2001, do Conselho de
Justiça Federal, que aprova o Manual de Procedimentos para os Cálculos
na Justiça Federal.
394
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
Incluem-se, ainda, os expurgos inflacionários previstos nas Súmulas
nos 32 (IPC de janeiro de 1989) e 37 deste Tribunal. (IPC de março, abril
e maio de 1990 e fevereiro de 1991)
Cumpre salientar que a correção monetária é devida tanto na restituição em dinheiro ou em ações, porquanto a Lei prevê tanto a devolução
em espécie como mediante participação acionária, dependendo de decisão
da Assembléia Geral da ELETROBRÁS. A conversão antecipada em
ações não ilide o direito à diferença decorrente da atualização monetária
aplicada a menor, relativa ao período anterior ao resgate.
Outrossim, o art. 4º da Lei nº 7.181/83 determinou que a conversão
dos créditos do empréstimo compulsório em ações da ELETROBRÁS
poderá ser total ou parcial, conforme decidir a Assembléia Geral, e
que sua conversão será pelo valor patrimonial das ações. O Supremo
Tribunal Federal, no RE nº 146.615-4, considerou recepcionada pela
atual Constituição Federal a conversão do crédito em ações, na forma
determinada pela legislação. Este dispositivo é materialmente compatível
com a Constituição de 1988, apresentando-se o critério escolhido pelo
legislador em consonância com o direito fundamental de propriedade,
encartado no art. 5º, XXII, inexistindo contrariedade, ainda, ao princípio
que veda a estipulação de tributo com efeito de confisco, consagrado no
art. 150, IV.
O valor patrimonial das ações resulta da avaliação de todo o acervo da
empresa, dividido pelo número de ações existentes, ou seja, representa
a correlação entre a situação econômico-financeira global da sociedade
e o número de ações emitidas. Quanto ao valor de mercado, resulta de
diversos fatores, nem sempre diretamente ligados ao desempenho da
empresa; caracteriza-se por ser extremamente volátil, flutuante e sujeito à
especulação, não se revelando um parâmetro seguro para a avaliação do
valor real de uma ação. Não se pode concluir, portanto, que a conversão
pelo valor patrimonial das ações acarreta confisco, pelo simples fato de,
em dado momento, haver descompasso com o valor de mercado.
É de se observar, ainda, que a devolução em ações constitui prerrogativa da ELETROBRÁS, que pode optar pela devolução em pecúnia
ou em participação acionária. A cláusula de inalienabilidade, consoante
o § único do art. 3º do DL nº 1.512/76, somente pode ser afastada por
decisão da Assembléia Geral.
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
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Ressalto que os juros de 6% ao ano, previstos no art. 2º, caput e
parágrafo 2º, do DL nº 1.512/76, também devem fluir sobre o montante
do empréstimo compulsório corrigido integralmente, sob pena de não
ser cumprida de forma plena a restituição. A alteração legal na forma de
pagamento dos juros não tem repercussão no reflexo gerado pela correção
monetária do empréstimo compulsório.
Ante o exposto, voto no sentido de dar parcial provimento à apelação
da ELETROBRÁS e à remessa oficial, para afastar a condenação da
ELETROBRÁS a pagar as diferenças relativas à conversão das ações de
acordo com o valor de mercado, e negar provimento à apelação da União.
VOTO DIVERGENTE
A Exma. Sra. Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria:
Do Mérito
O empréstimo compulsório em favor da Eletrobrás foi instituído em
1962 pela Lei nº 4.156, passando a ser cobrado, mensalmente, nas contas
de consumo de energia elétrica de janeiro de 1964, com a finalidade de
financiar a expansão do setor elétrico.
Quanto ao mérito, a matéria encontra-se sumulada neste Tribunal
conforme enunciado nº 23, com a seguinte redação: “É legitima a
cobrança do empréstimo compulsório incidente sobre o consumo de
energia elétrica, instituído pela Lei 4.156/62, inclusive na vigência da
Constituição Federal de 1988.”
Esta é a orientação do Egrégio Supremo Tribunal Federal, afastando
a inconstitucionalidade em qualquer aspecto, inclusive no que se refere
à devolução dos valores em ações da Eletrobrás:
“EMPRÉSTIMO COMPULSÓRIO. INSTITUÍDO EM BENEFÍCIO DA ELETROBRÁS. LEI Nº 4.156/62. LEGITIMIDADE DA COBRANÇA RECONHECIDA
PELO PLENÁRIO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ALEGADA OMISSÃO
QUANTO À ABUSIVA FORMA DE DEVOLUÇÃO DAS PARCELAS.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 146.615-4, reconheceu que o
empréstimo compulsório, instituído pela Lei nº 7.181/83, cobrado dos consumidores
de energia elétrica, foi recepcionado pela nova Constituição Federal, na forma do art.
34, parágrafo 12, do ADCT.” (Agravo Regimental no RE 194875-3, Relator Min. Ilmar
Galvão, DJU 19.04.95)
396
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
Da Prescrição
Inicialmente, cumpre salientar que os recolhimentos de 1964 a 1973
foram quitados com a entrega de títulos ao portador (Obrigações da
Eletrobrás), com dois prazos de resgate: de 10 anos para as obrigações
emitidas entre 1965 e 1967; de 20 anos para os títulos emitidos entre
1968 e 1974. Já os recolhimentos de 1974 a 1976 foram quitados com a
entrega de títulos ao portador, denominadas Cautelas de Obrigações da
Eletrobrás, resgatáveis em 20 anos.
Com o advento do Decreto-Lei nº 1.512, de 29.12.76, o montante das
contribuições pagas pelo consumidor industrial em cada exercício, a partir
de 1977, passou a constituir, em primeiro de janeiro do ano seguinte, o
seu crédito a título de empréstimo compulsório, resgatável em 20 anos,
em espécie ou mediante conversão do respectivo valor em participação acionária. Desta forma, o prazo prescricional para a ação que visa
cobrar diferenças dos recolhimentos efetuados a partir de 1977 (constituídos após 1978) teria início vinte anos após a aquisição compulsória
das obrigações emitidas em favor do contribuinte. Decorridos estes 20
anos, o prazo prescricional que se inicia obedece à regra do artigo 1º do
Decreto-Lei nº 20.910/32 e é, portanto, qüinqüenal, já que litisconsorte
necessária a União Federal, conforme acima exposto.
Entretanto, não podemos olvidar que, em duas ocasiões, fazendo uso
de prerrogativa legal (art. 3º do DL nº 1.512/76), a Eletrobrás procedeu
à conversão dos créditos do empréstimo compulsório em participação
acionária. A primeira conversão, aprovada pela 72ª Assembléia Geral
Extraordinária, realizada em 20.04.88, abrangeu os créditos constituídos
no período de 1978 a 1985 (relativamente aos pagamentos efetuados
de 1977 a 1984); a segunda, aprovada pela 82ª AGE, realizada em
26.04.90, converteu em ações os créditos constituídos de 1986 a 1987
(pagamentos efetuados de 1985 a 1986). Esta emissão de ações é forma
de resgate antecipado, de pagamento, ou seja, de devolução dos valores
cobrados, correndo, a partir desse ato jurídico, o prazo para pleitear e
apontar possíveis defasagens no pagamento, pois realizado, bem ou mal,
o cumprimento da obrigação bilateral, de empréstimo e restituição, entre
as partes envolvidas. Neste sentido, esta E. Corte já manifestou entendimento, proferido na Apelação Cível nº 96.04.37248-3/SC, no sentido
de que o prazo prescricional para a propositura de ações visando à corR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
397
reção monetária integral dos valores pagos em virtude do empréstimo
compulsório é de 5 anos (aplicável a regra do artigo 1º do Decreto-Lei
nº 20.910/32), contados do dia seguinte à data de realização das Assembléias Extraordinárias da Eletrobrás que decidiu pela conversão do
valor dos empréstimos em ações preferenciais.
Neste contexto, no que tange ao prazo prescricional, podemos concluir
que: a) no tocante às parcelas devolvidas (convertidas em ações) pelas
Assembléias Gerais Extraordinárias nos 72 e 82, o prazo para postular a
revisão judicial da correção monetária aplicada nos créditos constituídos
de 1978 a 1987 (recolhimentos de 1977 a 1986) já se exauriu, uma vez
que a presente demanda foi ajuizada após o qüinqüídio legal; b) quanto
aos valores constituídos após 1988 (recolhidos a partir de janeiro/87),
e ainda não convertidos em ações, porquanto ainda não transcorrido o
período de 20 anos, mostra-se inexigível sua devolução.
A ação declaratória envolve a necessidade de ser resolvida a incerteza
a respeito da existência ou inexistência de relação jurídica, ou, na hipótese
do art. 4º, II, do CPC, da falsidade ou autenticidade de documento. O
interesse de agir envolve “a necessidade, concretamente demonstrada, de
eliminar ou resolver a incerteza do direito ou da relação jurídica” (RTJ
83/934). No caso presente, não estão consumadas nem a devolução,
nem a conversão em ações, com o que não há porque se pronunciar,
antecipadamente, sobre uma relação ainda inocorrente. Somente a partir
do implemento de uma das condições, é que surgirá o interesse de agir.
No caso dos autos, concluo que inexistem diferenças devidas, pois,
quanto às parcelas devolvidas (recolhimentos de 1977 a 1986 convertidos
em ações da Eletrobrás - Assembléias Gerais Extraordinárias nos 72 e
82), a ação para postular a correção monetária está prescrita, e, quanto
aos valores constituídos após 1988 (recolhidos após 1987), estes são
inexigíveis, em face de não ter transcorrido o período de 20 anos previsto
398
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para a devolução.
Isso posto, de ofício, julgo extinto o processo sem julgamento de mérito, nos termos do art. 267, VI, do CPC, quanto aos valores recolhidos
entre 1987 e 1993, dou parcial provimento ao recurso da União e à
remessa oficial e dou provimento ao recurso da Eletrobrás.
APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA
Nº 2000.72.07.000446-3/SC
Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Surreaux Chagas
Apelante: Cia. Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa
Catarina - CIDASC
Advogados: Drs. Arno Gomes e outros
Apelada: Seara Alimentos S/A
Advogados: Drs. Rutineia Bender e outros
Dr. José Morschbacher
Dr. Fernando Gheller Morschbacher
EMENTA
Tributário. Taxa de classificação vegetal. Decreto-Lei 1.899/81.
O Decreto-Lei 1.899/81, ao instituir a Taxa de Classificação de Produtos Vegetais, definiu todos os elementos constitutivos do tributo, não
havendo violação ao princípio da legalidade.
É legítima a fixação do valor de taxa com base em um determinado
valor por tonelagem de produto a ser fiscalizado.
É cabível a atualização mediante portaria de valor de taxa originalmente fixado em lei.
Apelação e remessa oficial providas.
ACÓRDÃO
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
399
Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide
a Segunda Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, dar provimento à apelação e à remessa oficial, nos termos do
relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante
do presente julgado.
Porto Alegre, 10 de fevereiro de 2004.
Des. Federal Surreaux Chagas, Relator.
RELATÓRIO
O Exmo. Sr. Des. Federal Surreaux Chagas: Seara Alimentos S/A.
impetra Mandado de Segurança contra o Representante da Companhia
Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina – CIDASC,
em litisconsórcio passivo necessário com a União Federal, objetivando
afastar a exigência da Taxa de Classificação de Produtos Vegetais sobre
milho importado para consumo industrial no crescimento e engorda de
aves destinadas ao abate para produção de carne processada, prevista no
Decreto-Lei nº 1.899/81.
A exação é depositada judicialmente. (fls.78/80)
A autoridade coatora presta informações.
A União Federal apresenta contestação.
O MM. Juízo, sentenciando, preliminarmente, exclui a União Federal
do pólo passivo. No mérito, concede a segurança. (fls. 134-150)
Inconformada, a Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola
de Santa Catarina – CIDASC interpõe apelação, sustentando a necessidade da classificação dos produtos vegetais que ingressam no país, seja
para comercialização, seja para industrialização, de forma a resguardar
a produção nacional, em face do que a taxa é exigível.
A impetrante apresenta contra-razões.
Regularmente processada a apelação, sobem os autos.
O Ministério Público opina pelo provimento da apelação e da remessa
oficial.
Causa sujeita a reexame necessário.
É o relatório.
VOTO
O Exmo. Sr. Des. Federal Surreaux Chagas: Controverte-se sobre a
400
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
constitucionalidade e a legalidade da Taxa de Classificação de Produtos
Vegetais, tributo decorrente do respectivo serviço de classificação.
A impetrante busca afastar a exigência da Taxa de Classificação de
Produtos Vegetais sobre sorgo importado para consumo industrial no
crescimento e engorda de aves destinadas ao abate para produção de
carne processada.
A segurança foi concedida.
Inicialmente, destaco que o serviço de classificação de produtos vegetais e a retribuição do respectivo serviço foram tratados separadamente
em diplomas diversos, os quais passo a analisá-los.
O serviço de classificação de produtos vegetais
A classificação dos produtos vegetais e de seus subprodutos e resíduos
de valor econômico destinados à comercialização interna foi instituída
pela Lei 6.305/75, que definiu tal serviço como o ato de determinar as
qualidades intrínsecas e extrínsecas de um produto, com base em padrões
oficiais, físicos e ou descritos. (art. 2º)
Nos termos da lei instituidora, a coordenação do serviço compete ao
Ministério da Agricultura, podendo ser executado mediante convênio da
União com os Estados e outras entidades públicas e privadas. (art. 3º)
Posteriormente, a Lei 9.972, de 26.05.2000, revogou a Lei 6.305/75
e deu nova disciplina à classificação de produtos vegetais.
A lei nova, embora mantivesse essencialmente as mesmas bases da
lei anterior (obrigatoriedade da classificação, definição de classificação,
competência, possibilidade de delegação da execução, etc.), alarga as
hipóteses em que a classificação é obrigatória, que deixa de ser exigível
apenas nos casos em que os produtos sejam destinados à comercialização
interna.
Portanto, a obrigatoriedade da classificação de produtos vegetais,
desde a edição da Lei 6.305/75, não sofreu solução de continuidade,
estando hoje a exigência calcada na Lei 9.972/2000.
A retribuição do serviço e do exercício do poder de polícia relativos
à classificação de produtos vegetais
Examinada a evolução legislativa relativa ao serviço de classificação
de produtos vegetais, passo à apreciação da legislação que regula a retribuição do referido serviço e do respectivo exercício do poder de polícia.
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
401
A lei instituidora da classificação vegetal – Lei 6.305/75 – previa a
cobrança de preços públicos como retribuição do serviço de classificação. (art. 6º)
Posteriormente, com a edição do Decreto-Lei 1.899/81, o regime de
preços públicos para a retribuição do serviço de classificação foi abandonado, instituindo-se a Taxa de Classificação de Produtos Vegetais, nos
seguintes termos:
“Art. 1º. Ficam instituídas as Taxas de Classificação, Inspeção e Fiscalização, de
competência do Ministério da Agricultura, relativas a produtos animais e vegetais ou
de consumo nas atividades agropecuárias.”
O Decreto-Lei define como fato gerador da taxa a prestação de serviço
de classificação e o regular exercício do poder de polícia pela União ou
pelas entidades a quem essas atividades tiverem sido delegadas. (art. 3º)
O sujeito passivo é a pessoa física ou jurídica a quem o serviço de
classificação é prestado ou colocado à disposição, ou o paciente do poder
de polícia, quando este seja efetivamente exercido. (art. 4º)
O valor da taxa é fixado em ORTN, em função da tonelagem da mercadoria a ser classificada, nos seguintes termos:
“Art. 2º. O valor das taxas será determinado em função de múltiplos ou frações do
valor nominal de uma Obrigação Reajustável do Tesouro Nacional – ORTN, fixado
para os meses de janeiro e julho de cada ano, na forma seguinte:
(...)
III – pela classificação de produtos vegetais:
a) classificação: 2 (duas) ORTN por tonelada ou fração;
b) reclassificação: 4 (quatro) ORTN, por tonelada ou fração.”
A superveniência da Lei 9.972/2000, que, como vimos acima, alterou em
parte a disciplina do serviço de classificação de produtos vegetais, mas
o manteve em suas linhas gerais, não revogou o Decreto-Lei 1.899/81.
Portanto, a retribuição do serviço e do exercício do poder de polícia
relativo à classificação de produtos vegetais permanece regulada pelo
Decreto-Lei 1.899/81.
Colocados os fundamentos legais da Taxa de Classificação de Produtos Vegetais, enfrento agora os vícios alegados na exação em exame.
Violação ao princípio da legalidade
O Decreto-Lei 1.899/81, que instituiu a taxa em questão, define todos
402
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os elementos constitutivos da exação: o sujeito ativo (art. 1º), o sujeito
passivo (art. 4º), o fato gerador (art. 3º) e a base de cálculo. (art. 2º)
Especificamente quanto à base de cálculo, a lei nem sempre há de
ser exaustiva. Em algumas situações, o legislador é obrigado a editar
normas “em branco”, cujo conteúdo final é deixado para outro poder
regulamentar.
O que importa é que a lei estabelece o valor máximo da taxa de classificação de duas ORTN por tonelada e quatro ORTN na reclassificação.
É legítima a fixação do valor da taxa com base em determinado valor
por tonelagem de produto a ser fiscalizado.
Portanto, estando definidos em lei os elementos essenciais do tributo,
não há que se falar em violação ao princípio da legalidade.
Base de cálculo própria de impostos
A impetrante alega que a base de cálculo da taxa, fixada na lei conforme a tonelagem dos produtos a serem classificados, não guarda qualquer
relação com o custo do serviço a ser prestado pelo Estado, afeiçoando-se
à base de cálculo própria de impostos, violando assim as regras do art. 77
do CTN e também do art. 145, § 2º, da CF/88, segundo a qual as taxas
não poderão ter base de cálculo própria de impostos.
Contudo, a classificação dos produtos vegetais é feita por amostragem
conforme previsto no Decreto 82.110/78. As amostras são retiradas de
modo a representar, com segurança, a qualidade do produto a que se
referem (art. 6º). Ora, se a amostragem é extraída de forma a representar
com segurança o todo, é natural que os custos da classificação sejam diretamente proporcionais à quantidade (ou ao peso) de produtos a serem
fiscalizados.
Assim, está preservado o princípio da retributividade da taxa, havendo
correlação entre os valores exigidos e o custo do serviço prestado.
Concluindo, não há qualquer vício na base de cálculo que macule a
exação em foco.
Fixação do valor da taxa por ato administrativo
O valor da taxa foi fixado na lei instituidora, o Decreto-Lei 1.899/81,
em 2 ORTN por tonelada (art. 2º). O mesmo diploma legal autorizou o
Executivo a, mediante portaria, reduzir até zero o valor das taxas, bem
como de restabelecê-lo no todo ou em parte. (art. 8º)
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403
Inicialmente, ressalto que a delegação nada tem de ilegal ou inconstitucional. A lei instituiu o tributo, definindo todos seus elementos constitutivos e demarcando precisamente os limites em que o administrador
poderia atuar. Não há qualquer competência legislativa indevidamente
delegada.
Com efeito, incabível seria a fixação por portaria de valor da taxa
superior ao determinado na lei. Contudo, no caso de fixação pelo administrador da taxa em valor inferior ao legalmente previsto, estando ele
expressamente autorizado pelo legislador para tanto, a par de não estar
configurada qualquer ilegalidade, o contribuinte não teria nem interesse
de agir, pois estaria sendo patrimonialmente beneficiado.
Outrossim, os atos administrativos que fixam o valor da taxa são mera
atualização do valor fixado na lei instituidora, e que são indispensáveis até
pela extinção do indexador a que foi originalmente vinculada a exação.
Constituindo-se em mera atualização e não em determinação do valor
ou em majoração do tributo, incide o princípio inscrito no art. 97, § 2º,
do CTN (a atualização do valor monetário da base de cálculo, por não
constituir majoração de tributo, independe de lei), não havendo óbice
para sua veiculação por portaria.
No caso, a lei instituidora fixou o valor máximo da taxa, admitindo
sua redução pela Administração nos casos em que entender conveniente.
Assim, a fixação de valores diversos, conforme o tipo de produto a
ser fiscalizado, desde que respeitado o limite previsto na lei, tem amparo
na lei e corresponde exatamente aos ditames nela previstos.
Outrossim, é cabível a atualização mediante portaria de valor de taxa
originalmente fixado em lei.
Inexigibilidade da taxa em relação a produtos que não se destinam
à comercialização interna
A impetrante alega que a classificação no caso não é obrigatória,
pois os produtos teriam sido adquiridos diretamente no exterior pelo
importador e não se destinariam à comercialização interna, mas sim à
utilização pelo próprio importador em seus aviários. Assim, como a lei
prevê a classificação apenas para os produtos destinados à comercialização interna, seria indevida a respectiva taxa.
No regime da lei anterior (Lei 6.305/75), a classificação era exigível
404
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
para produtos vegetais e respectivos subprodutos e resíduos de valor
econômico destinados à comercialização interna.
Contudo, no caso dos autos, essa questão restou superada porque a
exigência está sendo discutida já na vigência da Lei 9.972/2000, que,
como vimos, instituiu a obrigatoriedade da classificação independentemente do produto ser destinado ao mercado interno.
Com efeito, a classificação é obrigatória para os produtos vegetais,
seus subprodutos e resíduos de valor econômico importados, nos termos
do art. 1º, III, da Lei 9.972/2000:
“Art. 1º. Em todo o território nacional, a classificação é obrigatória para os produtos
vegetais, seus subprodutos e resíduos de valor econômico:
(...)
III – nos portos, aeroportos e postos de fronteira, quando da importação.”
Portanto, a classificação de produtos vegetais importados é obrigatória, independentemente deles se destinarem à comercialização interna.
Conseqüentemente, é exigível a respectiva taxa.
Em face do exposto, dou provimento à apelação e à remessa oficial
para denegar a segurança. Custas pela impetrante.
É o voto.
APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA
Nº 2002.70.01.006376-5/PR
Relatora: A Exma. Sra. Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria
Apelantes: Elson Bento de Araujo Fi e outros
Advogada: Dra. Ana Roberta Biazoto
Apelado: Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis - IBAMA
Advogados: Drs. Luciane do Carmo Scheffer de Souza e outros
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
405
EMENTA
Taxa de controle e fiscalização ambiental – Natureza jurídica de
contribuição especial de intervenção no domínio econômico – Constitucionalidade.
1. Conforme o art. 4º do CTN, o fato de o legislador dar à entidade que
cria nome diverso daquele que ela representa não lhe mudará a natureza.
2. Embora a Lei 10.165/2000 referir-se à exação criada como taxa,
veio, na realidade, instituir uma contribuição de intervenção no domínio
econômico, com suporte no art. 149 da CRFB/88, estando tal finalidade
representada pela defesa do meio ambiente, princípio da ordem econômica estampado no art. 170, VI, CRFB/88.
3. É exação vinculada, cobrada com base em atividade estatal de
caráter geral pelo IBAMA: monitoramento de atividade potencialmente
poluidora.
4. O sujeito passivo é a empresa potencialmente poluidora ou utilizadora de recursos naturais, e o fato gerador é o mero exercício desta
atividade. O controle e fiscalização, embora constem na lei como fato
gerador do tributo, são a finalidade para a qual é ele instituído.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas,
decide a Egrégia 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região,
por unanimidade, negar provimento ao recurso de apelação, nos termos
do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante
do presente julgado.
Porto Alegre, 2 de junho de 2004.
Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria, Relatora.
RELATÓRIO
A Exma. Sra. Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria: Trata-se de
recurso de apelação, em mandado de segurança, contra sentença que denegou pedido de declaração de inconstitucionalidade da Taxa de Controle
e Fiscalização Ambiental - TCFA, prevista no § 1º do art. 17-B da Lei
6.938/81, com a redação que lhe atribuiu a Lei 10.165/00, reconhecendo
a propriedade do fato gerador.
406
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
Insurge-se a impetrante, sustentando, em síntese, a inexistência de
poder de polícia para fins de reconhecimento da exigibilidade e constitucionalidade da “taxa de fiscalização e controle ambiental” efetivamente
como taxa. Alega que a exação não configura uma taxa, mas verdadeiro
tributo. Ademais, afirma que cobrança semelhante já era efetuada pelo
SISNAMA, competente para tanto, implicando a ocorrência de bis in
idem. Alega a inconstitucionalidade da Lei 10.165/00.
Com contra-razões, subiram os autos.
Parecer do Ministério Público Federal pelo desprovimento do recurso
de apelação.
É o relatório.
VOTO
A Exma. Sra. Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria: A Lei 9.960/00
foi implicitamente revogada pela Lei 10.165/2000, que, alterando mais
uma vez a redação da Lei 6.938/81, instituiu exação denominada Taxa
de Controle e Fiscalização Ambiental - TCFA, substituindo a TFA. A lei
nova visou a não incorrer nos mesmos erros da Lei 9.960/00 e inseriu
o art. 17-B à Lei 6.938/81, determinando ser o fato gerador o exercício
regular do poder de polícia, conferido ao Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, para controle e fiscalização das atividades potencialmente poluidoras e utilizadoras de recursos
naturais. Assim determina:
“Art. 17-B: Fica instituída a Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental - TCFA,
cujo fato gerador é o exercício do poder de polícia conferido ao Instituto Brasileiro do
Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - Ibama para controle e fiscalização das atividades potencialmente poluidoras e utilizadoras de recursos naturais.”
A ação foi julgada improcedente mediante entendimento do MM.
Juízo de primeiro grau no sentido de que a Lei 10.165/00 criou uma
taxa preenchendo todos os requisitos legais e constitucionais. Tenho
que a decisão deve ser mantida, porém por fundamentos diversos. Para
tanto, faz-se necessário um estudo detalhado sobre a natureza tributária
da TCFA, nos termos do art. 4º do CTN. In verbis:
“Art. 4º: A natureza jurídica específica do tributo é determinada pelo fato gerador
da respectiva obrigação, sendo irrelevantes para qualificá-la:
I - a denominação e demais características formais adotadas pela lei;”
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
407
Os nomes empregados aos tributos criados, por critérios científicos
de segurança e de objetividade, devem corresponder à realidade. Nem
sempre, porém, esta recomendação é seguida. De nada adianta o legislador dar à entidade que cria nome diverso daquele que ela representa,
porque a mera designação não lhe mudará a natureza. É o fato gerador
que lhe demonstrará a natureza e sua respectiva base de cálculo.
Excluo, desde logo, a possibilidade de a exação criada ter natureza
de taxa, conforme foi denominada, ou de imposto.
Quanto à primeira possibilidade, aquela prevista na lei de criação e
adotada pela decisão monocrática, refuto ante o fato de ter sido escolhido
como fato gerador hipótese diversa daquelas constitucionais e legalmente
previstas para seu cabimento. Conforme o art. 17-B da Lei 10.165/00,
o aspecto material da hipótese de incidência da “taxa” é o exercício do
poder de polícia conferido ao IBAMA para controle e fiscalização das
atividades potencialmente poluidoras e utilizadoras de recursos naturais.
Porém, não há a descrição de qual é a ação policial que irá ser exercida,
ou qual será o serviço de utilização efetiva, ou de utilização potencial,
específica e divisível. Não se enquadra, assim, no art. 77 do CTN ou no
art. 145, II, da CRFB/88, pois não se vislumbra como taxa de serviço,
ante seu não-fruimento, nem taxa de polícia, eis que não há concreta
manifestação deste poder, através do efetivo exercício de dada atividade,
nos limites e condições prefixados na CRFB/88. Aqui esbarra a denominação conferida ao tributo.
A espécie também não pode ser tratada como um imposto propriamente dito. Considero, na esteira doutrinária, ser suficiente ao reconhecimento
da espécie da exação instituída identificar a materialidade da hipótese
de incidência e referibilidade de seus elementos constitutivos com a
obrigação. Assim, os impostos se reconhecem por exclusão. Voltando à
lei em tela, o tributo, de acordo com o art. 16 do CTN, conforme alegação da impetrante, teria como fato gerador uma situação independente
de qualquer atividade estatal específica relativa ao contribuinte. Assim,
obedecendo ao art. 154, I, da CRFB/88, para a instituição de um novo
imposto, seria necessário a elaboração de uma Lei Complementar, o que
não ocorreu.
Posto ser evidente o não-enquadramento da exação como contribuição de melhoria ou empréstimo compulsório, exações que exaurem as
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R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
espécies tributárias previstas na Constituição Federal, passo a apreciar a
possibilidade da mesma tratar-se de uma contribuição especial.
Minuciosamente detalhada é a classificação das contribuições especiais esposada por Leandro Paulsen (Direito Tributário - Constituição e
Código Tributário à Luz da Doutrina e da Jurisprudência, Livraria do
Advogado Editora, 2001, p. 38): (1) contribuições especiais do interesse das categorias profissionais - art. 149, CRFB/88, terceira parte; (2)
contribuições especiais de intervenção no domínio econômico - art. 149,
CRFB/88, segunda parte; (3) contribuições especiais sociais, divididas
em (a) gerais - art. 149, CRFB/88, primeira parte; (b) de seguridade
social - art. 195, I, II, III, CRFB/88; (c) de previdência e assistência do
funcionalismo público estadual, municipal e distrital - art. 149, § único,
CRFB/88.
Começo por aquela que me parece mais adequada, presente no art.
149 da Constituição Federal como contribuição de intervenção no domínio econômico, cuja competência resta à União ou pessoa jurídica
da administração pública indireta federal, nos casos em que intervém
necessariamente no sentido da realização dos princípios que informam
a ordem econômica, estampados nos incisos do art. 170 da CRFB/88.
O Estado, assim, executa atividades que lhe são constitucionalmente
designadas em prol da coletividade, de acordo com as competências
constitucionais. À União, no exercício destas atividades, é facultada a
instituição de cobranças. Nada aleatório ou discricionário, mas necessidade especial da qual se vale, sendo um grupo específico que vai pagar
a atuação estatal. Conforme determinação da Lei 10.165/00, o grupo
é o das empresas potencialmente poluidoras e utilizadoras de recursos
naturais, a pagar pela possibilidade de afetar o meio ambiente, protegido
pelo inciso VI do supramencionado art. 170.
A cobrança está vinculada a uma atuação estatal, exercida por meio
de uma autarquia legalmente criada, qual seja o IBAMA, em benefício
do indivíduo, enquanto membro do grupo. O sujeito ativo é o IBAMA,
de forma que não há, então, violação à Lei 6.938/81, in totum, ou incompatibilidade com a atividade exercida pelo SISNAMA ou pelos órgãos
estaduais (como a FEPAM) competentes para fornecer licenciamento
às entidades que exercem atividades potencialmente poluidoras ou utilizadoras de recursos naturais. A instituição da TCFA é compatível com
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409
os artigos 3º; 4º; 6º, e incisos; 8º; 9º, IV; 10º e §§ 3º e 4º; 11 e § 1º, da
Lei 6.938/81.
As contribuições, assim, são vinculadas a uma atuação estatal, apenas e tão-somente, de modo indireto e mediato ao contribuinte. Não há,
também, incompatibilidade com as taxas de licenciamento cobradas
supletivamente pelo IBAMA ou nas hipóteses do § 4º do art. 10 da Lei
6.938/81. A finalidade, por sua vez, é requisito inafastável para a caracterização da contribuição e não deve ser confundida com a destinação.
Vislumbro uma atividade desenvolvida em caráter geral pelo IBAMA
de monitoramento das atividades potencialmente poluidoras. Conforme
se depreende da lei, a pretensa taxa é cobrada semestralmente sem que
a empresa tenha necessariamente sofrido fiscalização específica. Basta,
para a cobrança do valor fixado, estar a empresa operando naquela atividade legalmente prevista, e ter o Instituto ingerência sobre tal matéria.
Ou seja, o sujeito passivo é a empresa potencialmente poluidora, e o
fato gerador, extraído do art. 17-C, é o mero exercício, pelo contribuinte,
desta atividade. O controle e fiscalização destas atividades potencialmente
poluidoras ou utilizadoras de recursos naturais, embora constem na lei
nominalmente como fato gerador do tributo, são, em verdade, a finalidade
para a qual é ele instituído. Entendo que se está diante de uma contribuição especial para cuja instituição tem a União competência. Trata-se
de situação ensejadora da instituição de contribuição de intervenção no
domínio econômico, quando o Estado intervém como agente normativo
e regulador, exercendo, na forma da lei criada, as funções de fiscalização,
incentivo e planejamento, no custeio das metas fixadas na Ordem Econômica. Lá, no art. 170, VI, CRFB/88, está a defesa do meio ambiente.
Quanto aos contribuintes e ao valor da contribuição, guardam adequação à finalidade visada, pois são sujeitos passivos as empresas cujas
atividades estão ligadas diretamente ao ambiente e às quais diz respeito
o monitoramento realizado. Prevê, também, que o valor variará de
acordo com o tamanho da empresa e o potencial de poluição e o grau
de utilização de recursos naturais de cada uma das atividades sujeitas
à fiscalização. Ou seja, a impetrante deve recolher a taxa ao IBAMA, a
partir da vigência da Lei 10.165/00, segundo o grau de risco que impõe
ao meio ambiente, assim previsto na lei. Desta forma, demonstra relação
de pertinência com a atividade estatal a ser desenvolvida no sentido de
410
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
defesa do meio ambiente. Não há violação ao princípio constitucional
do não-confisco.
É contribuição de intervenção no domínio econômico, com suporte
no art. 149 da CRFB/88, estando tal finalidade representada pela defesa
do meio ambiente, princípio da ordem econômica estampado no art.
170, VI, CRFB/88.
Relembro que não se faz necessário o veículo específico da lei complementar para a instituição desta espécie de contribuição, necessidade
restrita às contribuições residuais de seguridade social. Assim o é frente à
previsão específica formulada na CRFB/88, em seu art. 195, § 4º, quando
determina que essa instituição deverá observar a técnica da competência
residual da União prevista no art. 154, I.
Ademais, há que se guardar a obrigação do julgador de preservar as
normas legais, quando há possibilidade de dar-lhes uma interpretação
conforme a Carta Constitucional, ao invés de extirpar-lhe do mundo
jurídico considerando-a completamente inconstitucional. Embora o
tributo criado não venha se enquadrar nos moldes conceituais da taxa,
ele preenche os requisitos da contribuição. Considero, aliás, o nobre objetivo que compreende a Lei nº 10.165/00, posto o efetivo prejuízo das
já combalidas ações de controle e fiscalização ambientais, que, diga-se,
merecem toda atenção e zelo possíveis não somente do Poder Judiciário,
como de toda coletividade, por tratarem de questões diretamente relacionadas com a qualidade de vida, senão com a própria sobrevivência.
Deve a legislação, que vem lhe proteger, receber interpretação conforme
o texto constitucional, de maneira que se afaste qualquer declaração de
inconstitucionalidade que impossibilite o exercício da proteção que o
IBAMA realiza.
Esta decisão não viola os seguintes artigos, que desde já tenho por
prequestionados: 145, II, § 1º; 150, IV; 167, IV, da CRFB/88; 4º; 16; 78,
do CTN; 3º; 4º; 6º, e incisos; 8º; 9º, IV; 10º e §§ 3º e 4º; 11 e § 1º; 17-B;
17-C; 17-D; 17-F; 17-G; 17-H; 17-I e 17-O da Lei 6.938/81, que gozam
de plena constitucionalidade. Ademais, todos os princípios constitucionais foram preservados conforme fundamentação supra.
Ante o exposto, nego provimento ao recurso de apelação.
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APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA
Nº 2002.70.01.015827-2/PR
Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Wellington Mendes de Almeida
Apelante: Cooperativa Agroindustrial Nova Produtiva
Advogados: Drs. Frederico de Moura Theophilo e outros
Apelada: União Federal (Fazenda Nacional)
Advogada: Dra. Dolizete Fátima Michelin
EMENTA
Tributário. Mandado de segurança. PIS. COFINS. CSLL. IRPJ. Atos
cooperativos. Operações da cooperativa com terceiros. Distinção. Lei
5.764/71. Tributação. Revogação da isenção do art. 6º da Lei 70/91
pela Lei 9.430/96. Possibilidade. Lei complementar e lei ordinária.
Hierarquia. Inexistência. IN 23/2001. Legalidade. CIDE. Lei 10.336/01.
Vinculação da receita. Referibilidade. Isonomia. Lei complementar.
Desnecessidade. Alteração da alíquota por ato do executivo. Possibilidade. Invasão à reserva material de competência. Desvio de finalidade
das receitas. Inocorrência. Compensação com tributos de destinação
diversa. Benefício legal.
1. Inexiste inconstitucionalidade na revogação da isenção da COFINS,
prevista na LC nº 70/91, em relação às cooperativas, pela Medida Provisória nº 2.113-27/2001, que resulta da transformação da Medida Provisória
nº 1.858-09/99, consoante a Argüição de Inconstitucionalidade na AMS
nº 1999.70.05.003502-0/PR, Corte Especial, Rel. p/ acórdão Des. Fed.
Fábio Bittencourt da Rosa, DJU 23.01.2002, p. 177.
2. Inexistindo lei complementar oferecendo o adequado tratamento
tributário ao ato cooperativo, preconizado pelo art. 146, III, c, da Constituição, a matéria pode ser regulada por lei ordinária ou medida provisória.
3. A Lei Complementar nº 70/91, ao instituir a contribuição prevista
no art. 195, I, da Constituição, é materialmente lei ordinária, não colhendo o argumento de que seu art. 6º, I, possui status de lei complementar,
porquanto ainda pendente de regulamentação o art. 146, III, c, da CF/88.
O tratamento que vier a ser dado ao ato cooperativo por lei ordinária não
colide com os preceitos da Lei nº 5.764/71, recepcionada pela Constituição com o mesmo status normativo.
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4. As alterações introduzidas na base de cálculo e alíquota da COFINS
pela Lei nº 9.718/98 dispensam a edição de lei complementar, exigida
apenas para a eventual instituição da contribuição prevista no art. 195,
§ 4º, da Constituição.
5. A Lei 5.764/71 diferencia entre ato cooperativo (artigo 79) e operações da cooperativa (artigo 86), considerando como renda tributável a
receita obtida pela venda de mercadorias e serviços a terceiros.
6. A Instrução Normativa 23/2001 não desbordou da competência ao
regular o artigo 74 da Lei 9.430/96, nele encontrando seu fundamento
de validade.
7. O art. 182 do Decreto 3.000/99 prevê não-incidência do IRPJ
sobre as atividades econômicas das sociedades cooperativas, desde que
em proveito comum dos associados. Há que se distinguir, pois, entre a
própria cooperativa e seus sócios componentes.
8. O regramento dispensado à CIDE vertida pela Lei 10.336/01 não
destoa dos preceitos entabulados nos artigos 149, § 2º, e 177, § 4º, da
Constituição Federal.
9. É desnecessária lei complementar para regulamentar o art. 177, §
4º, da CF, eis que a remissão ao art. 146, III, feita pelo art. 149 da Carta
Maior se refere tão-somente a normas gerais de direito tributário, estas
que, na ausência da lei complementar referida, estão contidas no CTN.
10. Apelação improvida.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas,
decide a Egrégia 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região,
por unanimidade, negar provimento à apelação, nos termos do relatório,
voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente
julgado.
Porto Alegre, 30 de junho de 2004.
Des. Federal Wellington Mendes de Almeida, Relator.
RELATÓRIO
O Exmo. Sr. Des. Federal Wellington Mendes de Almeida: Trata-se
de mandado de segurança impetrado por Cooperativa Agroindustrial
Nova Produtiva, almejando obter ordem no sentido de determinar que
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o Delegado da Receita Federal de Londrina/PR se abstenha de exigir a
CIDE cobrada com base na Lei 10.336/01.
Diz-se impossibilitada de efetuar a dedução da CIDE dos valores
devidos ao PIS e à COFINS, de acordo com o art. 8º da referida lei, porque é isenta do pagamento dessas contribuições sociais, porquanto o ato
cooperativo não denote capacidade contributiva. Alterca que o art. 174
da CF não legitima o Estado a estabelecer planos econômicos cogentes
para o setor privado. Entende desrespeitado o princípio da vinculação das
receitas, que participa da definição do tributo. Aponta, ainda, a infringência ao princípio da isonomia, porque a alíquota específica estabelecida
pelo art. 5º da Lei 10.336/01 onera em mesma proporção contribuintes
que se encontram sob situação fática diversa. Esgrime que o art. 9º do
diploma normativo, que prevê a possibilidade de alteração da alíquota
por ato do Poder Executivo, é eivado de inconstitucionalidade. Refere,
outrossim, que a incidência da contribuição sobre idêntica hipótese
material do ICMS fere o princípio da reserva material de competências,
vício que recai sobre o art. 3º, inc. II, da Lei 10.336/01. Por derradeiro,
assesta contra o regime de dedução autorizado pelo já citado art. 8º, dada
a impossibilidade de compensação entre contribuições de vinculação
diversa - a CIDE está destinada à intervenção no domínio econômico, o
PIS ao custeio do salário-desemprego e do abono salarial e a COFINS
ao financiamento da seguridade social. (fls. 02-37)
Regularmente processado o feito, sobreveio sentença denegatória.
(fls. 206-215)
Desapontada, apela a impetrante, dando novo impulso ao intento
inicial. (fls. 216-235)
Contra-razões. (fls. 238-250)
Parecer do MP pelo desprovimento do recurso. (fls. 252-254)
É o relatório.
VOTO
O Exmo. Sr. Des. Federal Wellington Mendes de Almeida:
Das contribuições ao PIS e à COFINS
Importa, para precisar os limites do regime de tributação das cooperativas, definir o que se deve entender por ato cooperativo. Este vem
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conceituado no art. 79 da Lei 5.764/71, nestes termos:
“Denominam-se atos cooperativos os praticados entre as cooperativas e seus associados, entre estes e aquelas e pelas cooperativas entre si quando associados, para a
consecução dos objetivos sociais.
Parágrafo único. O ato cooperativo não implica operação de mercado, nem contrato
de compra e venda de produto ou mercadoria.”
O ato cooperativo não deve implicar operação de mercado. A cooperativa é entidade personificada que atua em substituição aos sócios,
encaixando-se no conceito civil de associação, que pressupõe uma organização de pessoas sem fins econômicos (CC, art. 53). Ocorre que, para
a consecução do seu objeto social, a cooperativa acaba por empreender
atos com significação econômica, ainda que não seja esse o fim colimado
no estatuto. Daí que esses atos, importando operação de mercado, não
se ajustam ao conceito de ato cooperativo, afastando-se, pois, do art.
79 da Lei 5.764/71. Em seu conteúdo há uma expressa manifestação de
riqueza, que atrai a incidência da norma impositiva sem que se ultime
maculado o princípio da capacidade contributiva. A MP 2.158/2001, em
seu artigo 15, estipula as espécies de receita passíveis de exclusão da base
de cálculo do PIS e da COFINS, e já foi objeto de análise pela Segunda
Turma deste Tribunal, conforme decisão assim ementada:
“CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. COOPERATIVA. ATO COOPERATIVO.
CF/88 ART. 174 PAR 2 E ART 146 INC. III ALÍNEA A. EXEGESE. PIS. COFINS. LC
70/91 ART 6º INC I. LEI 9.715/98 ART. 2º INCISO II. LEI 9.718/98, ARTS. 2º E 3º.
MP 2.158-35, ARTS. 13, 15, 93. CONSTITUCIONALIDADE. IRPJ. ATOS NÃO COOPERATIVOS. INCIDÊNCIA. DISTRIBUIÇÃO DE RESULTADO. TRIBUTAÇÃO.
1. A circunstância de a autora ostentar natureza de cooperativa e/ou de praticar
atos cooperativos, em nada a diferencia das demais pessoas jurídicas com fins lucrativos porquanto somente ‘haverão de ter um adequado tratamento tributário, quando
sobrevier a lei complementar programada no texto complementar [art. 146, III, c, da
CF/88]. Nada mais do que isso. Enquanto não foi editada a lei complementar prevista
no art. 146, III, c, da CF de 1988, as sociedades cooperativas permanecem na situação
de qualquer sociedade quanto à imposição de tributos’ (TRF 4ª R, Corte Especial, AMS
1999.70.05.003502-0/PR, RTRF4 nº 43).
2. O art. 93, II, a, da MP 2.158-35, de 24.08.2001, ao revogar isenção da COFINS
sobre ato cooperativo (LC 70/91, art. 6º-I), tão-só extraiu maior eficácia do princípio
da solidariedade no financiamento da seguridade social (CF/88, art. 195, caput), em
nada vulnerando o art. 146-III-c da CF/88.
3. O STF já assentou que a LC 70/71, por ter matriz constitucional no art. 195-I da
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CF/88, versa matéria atinente à lei ordinária razão por que pode ser alterada sem o rito
qualificado da lei complementar.
4. A Lei 9.718/98 não padece de eiva de inconstitucionalidade seja no alargamento da
base de cálculo seja na majoração da alíquota. Entendimento afeiçoado ao do Pleno desta
E. Corte apurado em sede de argüição de inconstitucionalidade nº 1999.04.01.080274-1.
5. A receita da UNIMED oriunda da venda de serviços a pessoas físicas e/ou jurídicas não-cooperadas e prestadas por laboratórios e hospitais também não-cooperados
constituem receita ordinariamente tributada pelo PIS e COFINS por não configurarem
atos cooperativos, ainda que necessários à consecução dos objetivos sociais da cooperativa. Inteligência dos artigos 79 e 86 da Lei 5.764/71.
6. O PIS e a COFINS, nos termos dos artigos 2º e 3º da Lei 9.718/98, incidirão sobre
o faturamento podendo a cooperativa abater, da base de cálculo, os valores repassados aos médicos-cooperados ex vi do disposto no inciso I do art. 15 da MP 2.158-35.
Não se alegue que o inciso I do art. 15, seja endereçado unicamente a cooperativas
agrícolas porque por ‘produtos por eles [cooperados] entregue à cooperativa’ se deve
entender também os serviços posto ser corrente na mídia a utilização do termo produtos
para expressar serviços a exemplo da publicidade veiculada em prol de instituições
financeiras. Conseqüentemente, deduzidas da base de cálculo as parcelas pagas aos
médicos-cooperados, os valores repassados pela Unimed a laboratórios e hospitais ou
outras entidades, ou seja, a não-cooperados, restam ordinariamente tributados pelo
Cofins e pelo PIS. Por força do disposto no artigo inciso I do par. 2º do art. 15 c/c art.
13, caput, todos da MP 2.158-35, incide também contribuição para o PIS, em um por
cento sobre a folha de salários, em havendo dedução da base de cálculo de que trata o
inciso I do artigo 15 da mesma MP precitada.
7. Não poderia o Fisco, com base no § 2º do art. 168 do RIR/94, desclassificar a
Unimed como cooperativa porque a exegese do § 2º leva a conclusão, considerada a
alusão ao § 1º, de que, se distribuído resultado em favor das quotas-partes de capital,
o que é vedado, a penalidade é a tributação desse resultado distribuído nos termos do
que o RIR ordinariamente dispõe - ou seja, tributado é como lucro distribuído.
8. A Secretaria da Receita Federal não tem competência para fiscalizar o cumprimento, pelas sociedades cooperativas, das normas próprias desse tipo societário, com
o fim de descaracterizá-la. Não prevalece o lançamento fundado exclusivamente na
descaracterização da cooperativa.
9. Apelação provida nos termos dos fundamentos.
10. Recurso adesivo improvido.” (AMS 199971000266395/RS, 2ª Turma, j.
26.11.2002, p. DJU 11.12.2002, p. 909, Relator Juiz Alcides Vettorazzi, unânime)
Ademais, a questão aqui vertida foi dirimida no julgamento
da Argüição de Inconstitucionalidade incidente sobre a AMS nº
1999.70.05.003502-0/PR, apreciada por este Tribunal, que, por maioria, houve por bem rejeitar a inconstitucionalidade do art. 56, inciso II,
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alínea a, da Medida Provisória nº 2.113-27/2001. O julgado em referência
restou ementado nos seguintes termos:
“TRIBUTÁRIO. CONSTITUCIONAL. ARGÜIÇÃO DE INCONSTITUCIONA­
LIDADE DA MEDIDA PROVISÓRIA Nº 2.113-27/2001. COOPERATIVAS. HISTÓRICO DO COOPERATIVISMO NO DIREITO COMPARADO E NO BRASIL.
NATUREZA JURÍDICA. NECESSIDADE DE SOBREVIVÊNCIA DOS PEQUENOS
EM FACE DA GRANDEZA DAS SOCIEDADES COMERCIAIS. AUSÊNCIA DE
FINALIDADE LUCRATIVA. SITUAÇÃO TRIBUTÁRIA. EVOLUÇÃO LEGISLATIVA. LEGISLAÇÃO PÁTRIA CONFERIU FAVORECIMENTO ÀS COOPERATIVAS. TRATAMENTO EXPRESSO SOMENTE NA CONSTITUIÇÃO DE 1988.
COOPERATIVAS PRETENDIAM GARANTIR NA CONSTITUINTE AMPLA
IMUNIDADE TRIBUTÁRIA SOBRE ATO COOPERATIVO. CONSTITUINTES
NÃO ATENDERAM EXTENSAS PRETENSÕES AO REDIGIREM O ART. 146,
INCISO III, ALÍNEA C, DA CF/88. HERMENÊUTICA DO ‘ADEQUADO TRATAMENTO TRIBUTÁRIO’. NORMA DE EFICÁCIA REDUZIDA. DEPENDÊNCIA
DE LEI COMPLEMENTAR REGULADORA. PROJETO DE LEI PARALISADO
DESDE 1989. CONSTITUINTE PRETENDEU FAVORECER COOPERATIVAS,
DE ALGUM MODO, EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA. ATOS COOPERATIVOS E
INCIDÊNCIA DE TRIBUTOS. DISTINÇÃO DE ATOS INTERNOS E EXTERNOS.
PRECEDENTE. FAVORECIMENTO DO ATO COOPERATIVO SUJEITO À CONVENIÊNCIA DO PODER TRIBUTANTE ATÉ A EDIÇÃO DE LEI COMPLEMENTAR.
COOPERATIVAS E CONTRIBUIÇÕES SOCIAIS. COFINS. MODIFICAÇÃO DO
SISTEMA DE CUSTEIO DA SEGURIDADE SOCIAL PELA CF/88. PARTICIPAÇÃO UNIVERSAL DO FINANCIAMENTO DA SEGURIDADE SOCIAL, SALVO
ENTIDADES BENEFICENTES DE ASSISTÊNCIA SOCIAL.INEXISTÊNCIA DE
QUALQUER DIREITO À IMUNIDADE OU ISENÇÃO DAS CONTRIBUIÇÕES
DEVIDAS À SEGURIDADE PELAS COOPERATIVAS. COFINS: FATO GERADOR
EXISTENTE NAS ATIVIDADES DAS COOPERATIVAS. MEDIDA PROVISÓRIA
Nº 2113-27/2001 APENAS REDUZIU O FAVOR LEGAL DADO ÀS COOPERATIVAS PELA LEI COMPLEMENTAR Nº 70/91, REVOGANDO A ISENÇÃO MAS
LIMITANDO O ÂMBITO DA BASE DE CÁLCULO. CONFORMIDADE COM O
SISTEMA CONSTITUCIONAL PÁTRIO. OPÇÃO POLÍTICA CUJO CONTROLE
FOGE AO PODER JUDICIÁRIO. REJEITADA A ARGÜIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 56, INC. II, ALÍNEA A, DA MEDIDA PROVISÓRIA Nº
2.113-27/2001.
1. As sociedades cooperativas têm uma grande importância, o que a evolução
histórica e a valorização dos diversos países demonstra, uma vez que assegura a sobrevivência dos pequenos em face da grandeza das sociedades comerciais, mormente
nesta era de profundas modificações motivadas pela globalização.
2. No Brasil, houve uma sucessão de privilégios fiscais em relação a tais entidades.
3. Quando se tratou de elaborar uma nova constituição, foi proposta regra que
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beneficiava amplamente as cooperativas.
4. Somente a atual Constituição tratou expressamente das cooperativas.
5. A pretensão foi satisfeita em extensão bem menor do que a apresentada. Todavia,
a norma era de eficácia reduzida.
6. O termo ‘adequado tratamento tributário’ refere-se à correta adequação dos fatos
decorrentes das atividades cooperativas aos preceitos que criam os tributos.
7. Enquanto não for editada a lei complementar prevista no art. 146, III, c, da CF
de 1988, as sociedades cooperativas permanecem na situação de qualquer sociedade
quanto à imposição de tributos.
8. O que não se pode fazer é tributar em hipóteses em que impossível a incidência, o
que é o caso do lucro, que inexiste no ato cooperativo segundo a própria lei de regência
estabelece. Hipóteses de não-incidência.
9. Da análise do precedente nº 89.04.04242-9/RS é possível estabelecer as distinções
entre os atos cooperativos internos e externos.
10. A modificação do financiamento da seguridade social operada pela Constituição
de 1988 determinou que toda a sociedade deve financiar a Seguridade Social, estando
isentas apenas as entidades de assistência social.
11. As cooperativas têm o dever de se submeter à tributação.
12. Se, por decisão política, forem beneficiadas com preceito legal de isenção, o
mesmo poder terá o direito de revogar tal norma.
13. Nem o art. 146, III, c, nem a norma programática do art. 174, § 2º, da CF de
1988 impedem o legislador ordinário de emitir tal juízo político através da regra cabível.
14. A singularidade da situação fiscal das cooperativas se resume no seguinte: não
tipificam a regra de alguns tributos, porque o ato cooperativo não caracteriza lucro, e
haverão de ter um ‘adequado tratamento tributário’, quando sobrevier a lei complementar programada no texto constitucional. Nada mais do que isso.
15. No estágio atual do sistema normativo brasileiro, especialmente em matéria de
contribuições para a seguridade, constitui um erro imaginar-se que uma lei que revoga
ou diminui o âmbito de isenção tributária ofende algum texto da Carta de 1988.
16. A Medida Provisória nº 2.113-27/2001 apenas reduziu o favor legal dado às
cooperativas pela lei complementar nº 70/91.
17. Não há, portanto, eiva de inconstitucionalidade na Medida Provisória nº 2.11327/2001.
18. Rejeitada a argüição de inconstitucionalidade do art. 56, inc. II, alínea a, da
Medida Provisória nº 2.113-27/2001.” (AMS nº 1999.70.05.003502-0/PR, Corte Especial, Rel. p/ acórdão Des. Fed. Fábio Bittencourt da Rosa, DJU 23.01.2002, p. 177)
Saliento que a Medida Provisória nº 2.113-27/2001 resulta da transformação da Medida Provisória nº 1.858-09/99.
Em suma, inexistindo lei complementar oferecendo o adequado tratamento tributário ao ato cooperativo, preconizado pelo art. 146, III, c,
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da Constituição, a matéria pode ser regulada por lei ordinária ou medida
provisória. Dessarte, não se apresenta inconstitucional a revogação da
isenção da COFINS, prevista no art. 6º, I, da LC nº 70/91, pela MP nº
1.858-09/99, tampouco a alteração no regime legal do PIS.
A Lei Complementar nº 70/91, ao instituir a contribuição prevista no
art. 195, I, da Constituição, é materialmente lei ordinária, não colhendo
o argumento de que seu art. 6º, I, possui status de lei complementar,
porquanto ainda pendente de regulamentação o art. 146, III, c, da CF/88.
Nesse diapasão, o tratamento que vier a ser dado ao ato cooperativo
por lei ordinária não colide com os preceitos da Lei nº 5.764/71 (a qual
define a política nacional de cooperativismo e institui o regime jurídico
das sociedades cooperativas), recepcionada pela Constituição com o
mesmo status normativo.
Por outro lado, a Lei Complementar nº 07/70 foi recepcionada pela
Constituição como lei ordinária, podendo ser modificada por lei de
igual hierarquia.
As alterações introduzidas na base de cálculo e alíquota da COFINS
e do PIS pela Lei nº 9.718/98 dispensam a edição de lei complementar,
ante reiteradas decisões do STF, no sentido de que apenas a eventual
instituição da contribuição prevista no art. 195, § 4º, da Constituição,
exige lei complementar, observando-se a técnica da competência residual da União, não sendo necessária para a criação das contribuições
previstas nos incisos I, II e III do referido artigo. (RE nº 138.284/CE,
Rel. Min. Carlos Velloso, DJU 28.08.92; ADC nº 1, Rel. Min. Moreira
Alves, DJU 01.12.93)
Quanto à aventada afronta ao art. 146, inciso III, alínea c, da CF, vê-se
que o dispositivo em foco fala em “adequado tratamento tributário ao
ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas”, o que não se
confunde com ato da cooperativa praticado com terceiros. Invoque-se,
ademais disso, o conteúdo dos artigos 79, 86 e 111 da Lei 5.764/71, in
verbis:
“SEÇÃO I
Do Ato Cooperativo
Art. 79. Denominam-se atos cooperativos os praticados entre as cooperativas e seus
associados, entre estes e aquelas e pelas cooperativas entre si quando associados, para
a consecução dos objetivos sociais.
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Parágrafo único. O ato cooperativo não implica operação de mercado, nem contrato
de compra e venda de produto ou mercadoria.
SEÇÃO III
Das Operações da Cooperativa
Art. 86. As cooperativas poderão fornecer bens e serviços a não associados, desde
que tal faculdade atenda aos objetivos sociais e estejam de conformidade com a presente lei.
Parágrafo único. No caso das cooperativas de crédito e das seções de crédito das
cooperativas agrícolas mistas, o disposto neste artigo só se aplicará com base em regras
a serem estabelecidas pelo órgão normativo.
CAPÍTULO XVIII
Das Disposições Gerais e Transitórias
Art. 111. Serão considerados como renda tributável os resultados positivos obtidos
pelas cooperativas nas operações de que tratam os artigos 85, 86 e 88 desta Lei.”
Assim, de notar que, conforme a melhor exegese dos dispositivos,
cuidou o legislador de diferenciar entre ato cooperativo, que é realizado
entre a cooperativa e seus associados, e as operações da cooperativa, que
é a prestação de bens e de serviços a terceiros. Também referiu expressamente que as receitas auferidas das transações descritas no artigo 86
seria objeto de tributação.
Dessarte, não há valer a tese da impetrante em relação à não-sujeição
aos tributos em comento, visto não se confundirem, para efeitos de incidência tributária, o ato cooperativo, definido no artigo 79, e as operações
da cooperativa, delineadas no artigo 86 e enquadradas na hipótese do
art. 111, todos da Lei 5.764/71.
Também de remissiva a extensão do conceito de faturamento engendrada pela Lei 9.718/98, do qual não se furtam as relações empreendidas
pela cooperativa com terceiros, no que toca à venda de mercadorias e
serviços. Com efeito, a verba levantada a tal título entra na sociedade
como receita, integrando-se ao faturamento da mesma, desimportando
que seja, depois, endereçada à realização do objeto social da cooperativa.
E, como é auferida a título de resultado positivo, preenche o suporte fático da norma do art. 111 da Lei 5.764/71, constituindo renda tributável.
Não calha, portanto, argüir-se a impossibilidade de dedução da CIDE,
uma vez que as cooperativas contribuem para a Seguridade Social.
Da vinculação das receitas ou referibilidade
420
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Essa Turma vem entendendo que a caracterização constitucional
da contribuição de intervenção no domínio econômico prescinde da
vinculação do produto arrecadado ao custeio da atividade material de
interferência no setor econômico. Em diversos precedentes sobre o
tema, decidiu-se que o destino das verbas granjeadas a título de CIDE
desimporta para sua qualificação jurídica e, bem assim, para o exame
de sua constitucionalidade, porque a própria arrecadação assume vestes
interventivas, em certos casos, tornando despicienda a atuação concreta
do Estado nesse mister, na medida em que preserva o caráter finalístico
que informa a contribuição. Neste sentido: AG 2003.04.01.010960-3/
PR, AMS 2001.70.00.016722-3/PR, AMS 2002.70.00.025746-0/PR.
Sem embargos, não é o que acontece com a CIDE estatuída pela Lei
10.336/01, porque o artigo 1º, em seu § 1º, determina:
“§ 1º. O produto da arrecadação da CIDE será destinado, na forma da lei orçamentária, ao:
I - pagamento de subsídios a preços ou transporte de álcool combustível, de gás
natural e seus derivados e de derivados de petróleo;
II - financiamento de projetos ambientais relacionados com a indústria do petróleo
e do gás; e
III - financiamento de programas de infra-estrutura de transportes”.
Dessa forma, não colhe a insurgência da autora no tangente à destinação das verbas auferidas pela incidência da CIDE em comento.
O art. 5º da Lei 10.336/01 em cotejo com o princípio da isonomia
O art. 149 da CF prescreve que a contribuição de intervenção no
domínio econômico poderá ter alíquota ad valorem ou específica (CF,
art. 149, § 2º, inc. III, alíneas a e b). A Lei 10.336/01, no art. 5º, inc. VII,
escolheu alíquota específica, de acordo com a unidade de medida adotada,
não incorrendo em inobservância da CF, uma vez que o art. 177, § 4º, inc.
I, preconiza que a alíquota poderá ser diferenciada por uso ou produto,
circunstância respeitada, eis que a lei cuidou de diferenciar as operações
envolvendo os vários produtos nela mencionados. Por conseguinte, a
Lei 10.336/01 não extrapolou os limites designados pela Constituição.
O argumento da impetrante foi construído sob a premissa de que a
alíquota específica não serve para tributar de forma isonômica a comercialização de combustíveis, por não refletir a real dimensão econômica
do fato-tipo presuntivo de capital e riqueza. A alíquota traduz o aspecto
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quantitativo da hipótese de incidência, enquanto a comercialização
de álcool etílico combustível representa o aspecto material da norma
impositiva. Quando o legislador recorta da realidade um determinado
fato, tornando-o jurídico e, no passo seguinte, dota-lhe do efeito de
gerar a obrigação de pagar tributo, necessita quantificar esse dever,
dimensionando as conseqüências financeiras que irão atingir o patrimônio do sujeito passivo. Para o desiderato, pode valer-se de duas
técnicas, consistentes na eleição de alíquota específica ou ad valorem,
inexistindo regra jurídica que determine a obrigatoriedade da eleição
do valor monetário da operação como base de cálculo da contribuição,
bastando que este seja expressão de um valor econômico.
No caso da Lei 10.336/01, a cada unidade (m3) comercializada
corresponde um valor determinado de CIDE a ser recolhido (art. 5º),
desconsiderando-se o valor da operação, sem que se configure o descompasso com a regra constitucional.
A igualdade não resta arranhada, na espécie, porque a diferença da
expressão monetária resulta da decisão do contribuinte no momento
em que fixa o preço da operação de venda e não constitui decorrência
direta da norma abstrata que erige o dever tributário. O quadramento
das quantias pecuniárias deflui da venda da quantidade estipulada pelo
legislador, sem que influencie, no caso, o valor da operação.
Tendo em conta o permissivo do art. 149, soa deveras desinfluente
acoimar-se a invalidade do artigo em face da Constituição, pois nela
própria estão contidas a regra-matriz e a compleição normativa da CIDE.
Desnecessidade de Lei complementar
O comando esquadrinhado no artigo 149 faz remissão aos artigos 146,
III, e 150, I e III, todos da Constituição Federal. Assim estão vazados os
dispositivos a que deve obediência a lei instituidora da CIDE:
“Art. 146. Cabe à lei complementar :
(...)
III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente
sobre:
a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos
discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo
e contribuintes;
b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários;
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c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades
cooperativas.
(...)
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado
à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;
(...)
III - cobrar tributos:
a) em relação a fato geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os
houver instituído ou aumentado;
b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu
ou aumentou;”
De plano, cabe rechaçar, por estar alheia à esfera de discussão, a alínea
c do inciso III do artigo 146. Determinou, pois, o legislador constituinte
originário, que a União pudesse instituir contribuição de intervenção no
domínio econômico, desde que observados os preceitos aqui transcritos.
O artigo 146 trata da lei complementar, cujo conceito nos cumpre
destrinçar, doravante.
Seguindo o judicioso tirocínio de Alexandre de Moraes, temos que a
razão de existência da lei complementar
“consubstancia-se no fato do legislador constituinte ter entendido que determinadas
matérias, apesar da evidente importância, não poderiam ser regulamentadas na própria
Constituição Federal, sob pena de engessamento de futuras alterações; mas, ao mesmo
tempo, não poderiam comportar constantes alterações através de um processo legislativo ordinário. O legislador constituinte pretendeu resguardar determinadas matérias
de caráter infraconstitucional contra alterações volúveis e constantes, sem, porém, lhes
exigir a rigidez que impedisse a modificação de seu tratamento, assim que necessário”.
(Direito Constitucional, 13ª ed. São Paulo:Atlas, 2003, pág. 548)
Nesse diapasão, a lei complementar, como o próprio nome assinala, visa a preencher, do ponto de vista do direito positivo, os espaços
específicos deixados pelo legislador constituinte em relação a algumas
matérias cuja relevância não era tal a merecer previsão constitucional
expressa, nem tão desimportante que pudesse ser veiculada por lei ordinária, sujeita, portanto, às inconstâncias legislativas comuns em nosso
ordenamento jurídico.
As matérias destinadas à edição via complementar ostentam a condição de cristalizarem-se em normas cujo tratamento legislativo é diferenciado, repousando aí uma das distinções entre ela e a lei ordinária. A
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outra diferença existente entre as duas espécies normativas tem aspecto
substancial, e diz com a expressa menção constitucional às matérias que
devem ser normatizadas via lei complementar, sobejando um campo
residual de competência atribuído à lei ordinária.
A lei complementar seria um tertium genus, colocada, dentro da
concatenação sistêmica da ordem jurídica positiva, entre a Constituição
e as lei ordinárias.
Assim, resta elucidado o conceito de lei complementar. Cabe verificarmos se a referência expressa da regra-matriz da CIDE ao artigo
146 cuida da exigência de lei complementar que a institua ou apenas
faz menção à lei que estabeleça normas genéricas sobre os tributos,
aplicando-se-lhe tais regras.
O argumento levantado pelos consectários da primeira resposta é o de
que o texto constitucional permite pelo menos duas interpretações sobre
o tema, ambas desembocando na necessidade de lei complementar. A
primeira seria a de que toda e qualquer contribuição de intervenção sobre
o domínio econômico demandaria veiculação pela via mencionada. A
segunda seria a de que, ainda que sua instituição pudesse ser feita mediante lei ordinária, a Constituição exigiria que uma lei complementar
anterior definisse as normas gerais sobre a matéria, não calhando supri-la o Código Tributário Nacional em razão de não conter disposições
específicas sobre a CIDE.
Entretanto, não vemos como assumir postura semelhante. Com efeito,
o artigo 146 erige a competência da lei complementar para o estabelecimento de normas gerais em matéria de legislação tributária, em especial sobre a definição de tributos e de suas espécies, bem ainda quanto
à obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários.
No caso da CIDE, despicienda se faz a lei enfocada para sua definição,
porquanto encontre sua regra-matriz no próprio corpo constitucional,
ou seja, no art. 149.
Ademais disso, é de se observar que ambas as espécies normativas
extraem seu fundamento de validade da própria Constituição. Tal fato
é importante para elucidar que, a despeito de regra hermenêutica, gize-se, com razão, afirmar a impossibilidade de dispositivo de lei ordinária
contrariar dispositivo inserto em lei complementar, esse postulado de
interpretação encontra razão não em regra de hierarquia, senão em regra
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de competência material. Id est, os motivos que fulminam a lei ordinária
contraditória à lei complementar repousam não na hierarquia, mas no
juízo do legislador constituinte que escolheu determinados fatos-tipos,
hipóteses materiais, cuja regulação ficou reservada a esta via legislativa. Em suma, a lei complementar presta-se para regular tema previsto
expressamente na Constituição. Se regular matéria não colacionada no
texto constitucional, é materialmente lei ordinária, apesar de formalmente
complementar, cuja conseqüência mais patente é a possibilidade de sua
revogação por uma lei ordinária.
Vale relembrar que a CIDE é tributo com validação finalística, o que
eqüivale a dizer que sua hipótese de materialidade não é condição para
a deflagração da competência legislativa em relação àquela figura tributária, senão que a validade da norma que a institui se fulcra unicamente
no aspecto teleológico revelado pela situação ensejadora de criação de
contribuição, e que reside, in casu, na necessidade de intervenção do
Estado sobre o domínio econômico, recordando que essa finalidade,
outrossim, é constitucionalmente prevista.
Doutra banda, escorreito é que, se a respeito de definição de tributos
não pode a Lei nº 5.172/66 substituir lei complementar que preveja tal
definição quanto aos tributos naquela não contidos e que não encontram respaldo constitucional, o mesmo não se pode afirmar em relação
à criação de obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência
tributários, porquanto tenha o legislador referido a necessidade de lei
complementar para esse desiderato de forma genérica, cumprindo-o
perfeitamente o CTN.
Nessa esteira, segue que a CIDE pode ser instituída por lei ordinária,
prescindindo da forma complementar para que encontre guarida no ordenamento jurídico pátrio.
Possibilidade de alteração da alíquota por ato do Executivo
No particular, basta repousar o olhar sobre o art. 177, § 4º, inc. I,
alínea b, da CF/88:
“A lei que instituir contribuição de intervenção no domínio econômico relativa às
atividades de importação ou comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural
e seus derivados e álcool etílico combustível deverá atender aos seguintes requisitos:
I - a alíquota da contribuição poderá ser:
(...)
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b) reduzida e restabelecida por ato do Poder Executivo, não se lhe aplicando o
disposto no art. 150, III, b”.
Portanto, o delineamento legal da figura tributária enfocada não se
desalinha do tratamento constitucional que lhe foi expressamente outorgado, sendo possível ao Poder Executivo modificar a alíquota. Veja-se,
ademais, que o dispositivo não permite o aumento da alíquota, senão o
mero deslocamento dentre as margens legais já previstas, ou seja, ajusta-se à natureza extrafiscal que é precípua à CIDE, autorizando a redução
da alíquota e, se for o caso, o restabelecimento ao valor original, desde
que observe o teto estabelecido no art. 5º da Lei 10.336/01. Leia-se o
artigo 9º ora discutido: “O Poder Executivo poderá reduzir as alíquotas
específicas de cada produto, bem assim restabelecê-las até o valor fixado
no art. 5º.”
Dessarte, insubsiste o argumento.
Invasão à reserva material de competência dos Estados (ICMS)
O art. 155, § 3º, da CF/88, com a redação determinada pela EC 33/01,
estabelece que à exceção do ICMS (155, caput, II) e dos impostos de
importação (153, I) e de exportação de produtos nacionais ou nacionalizados (153, II), nenhum outro imposto poderá incidir sobre operações
relativas a derivados de petróleo e combustíveis. Com efeito, a vedação
não alcança as outras espécies tributárias, como as contribuições do
art. 149, dentre as quais a CIDE, pois diz respeito apenas a impostos,
nesse aspecto alcançando o campo de competência material reservado
aos outros entes federativos. Vale dizer, a União e os Municípios não
poderão criar impostos sobre operações envolvendo tais matérias. Como
a competência para criação da contribuição de intervenção no domínio
econômico é exclusiva da União (art. 149), nada obsta a que institua uma
CIDE sobre as operações mencionadas pelo art. 155, sem que tal mister
implique invasão de reserva material, mormente porquanto a própria
Constituição tenha erigido, no art. 177, § 4º, a possibilidade de CIDE
relativa às atividades de importação ou comercialização de petróleo e
seus derivados, gás natural e seus derivados e álcool combustível.
Compensação com tributos de vinculações diversas
No que pertine ao tópico, não há confundir destinação constitucional,
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atrelada ao caráter finalístico que identifica as contribuições do art. 149,
com o benefício estatuído pela Lei 10.336/01, autorizando a dedução
dos valores devidos à CIDE das importâncias vertidas ao PIS e à COFINS. Ora, é certo que nesse Egrégio se vem atentando para os limites
da compensação, nos moldes previstos nas Leis 8.383/91 e 9.430/96,
sedimentando-se o entendimento pelo qual, a autorizar-se judicialmente
o procedimento compensatório, dever-se-ia observar a mesma destinação
constitucional, isso para não arruinar o aspecto finalístico que informa as
contribuições. Ocorre que, no caso, não se cuida de compensação judicial,
havendo lei no sentido formal e material estabelecendo um abatimento
entre tributos, instituído como um benefício aos contribuintes, e não
como uma afronta ao princípio da destinação. Relembre-se que mesmo
o administrador detém a faculdade de, a requerimento do interessado,
deferir pedido de compensação entre tributos diversos (Lei 9.430/96,
art. 74, com a redação dada pela Lei 10.637/02 - “O sujeito passivo que
apurar crédito, inclusive os judiciais com trânsito em julgado, relativo a
tributo ou contribuição administrado pela Secretaria da Receita Federal,
passível de restituição ou de ressarcimento, poderá utilizá-lo na compensação de débitos próprios relativos a quaisquer tributos e contribuições
administrados por aquele Órgão”). Assim, não havendo desvirtuamento
direto da finalidade constitucional, não há óbice à criação de benefício
fiscal que preveja a compensação entre tributos de diferentes espécies.
Do desvio de finalidade das receitas
Também aqui não vinga a tese envergada pela impetrante. O precitado
art. 1º, § 1º, da Lei 10.336/01 apenas reproduziu, textualmente, o que já
vinha escrito no artigo 177, § 4º, inc. II e alíneas, da CF. Vejamos:
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“§ 4º, inc. II - os recursos arrecadados serão destinados:
a) ao pagamento de subsídios a preços ou transporte de álcool combustível, gás
natural e seus derivados e de derivados de petróleo;
b) ao financiamento de projetos ambientais relacionados com a indústria do petróleo
e do gás;
c) ao financiamento de programas de infra-estrutura de transportes”.
Já o art. 1º, § 1º, da Lei 10.336/01:
“§ 1º. O produto da arrecadação da CIDE será destinado, na forma da lei orçamentária, ao:
I - pagamento de subsídios a preços ou transporte de álcool combustível, de gás
natural e seus derivados e de derivados de petróleo;
II - financiamento de projetos ambientais relacionados com a indústria do petróleo
e do gás; e
III - financiamento de programas de infra-estrutura de transportes”.
À vista do exposto, não desbordou o legislador ordinário na regulamentação do art. 177, § 4º, inc. II, da CF/88, apenas cuidando de realocar,
na via legal, preceito material tal qual incrustado na Constituição.
Dispositivo
Do exposto, nego provimento à apelação, nos termos da fundamentação.
APELAÇÃO CÍVEL Nº 2002.72.09.002838-0/SC
Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira
Apelante: Mannes Ltda.
Advogados: Drs. Fabio Girolla e outro
Apelante: União Federal (Fazenda Nacional)
Advogada: Dra. Dolizete Fátima Michelin
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Apelados: (os mesmos)
Remetente: Juízo Substituto da 1ª Vara Federal de Jaraguá do Sul/SC
EMENTA
Tributário - IPI - Insumos não-tributados - Energia elétrica - Creditamento - Impossibilidade.
1 - A regra da não-cumulatividade do IPI, encartada no art. 153, § 3º,
II, da Constituição de 1988, somente alberga a compensação do que for
devido a título de IPI, em cada operação, com o montante do mesmo IPI
cobrado nas anteriores. Só pode haver compensação quando os produtos
ou insumos intermediários são industrializados e, assim, também sujeitos
à incidência do IPI. Os produtos não-tributados, constantes da Tabela
de Incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados - TIPI, são
produtos não-industrializados, não sujeitos à incidência do IPI.
2 - A classificação do produto na TIPI como não-tributável faz presumir que se trata de hipótese de não-incidência do IPI, cabendo ao
contribuinte a prova em contrário.
3 - A energia elétrica não representa insumo ou matéria-prima que
integra o produto final, uma vez que não se aglutina no processo de
transformação do qual resultará o produto industrializado.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas,
decide a Egrégia 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região,
por unanimidade, não conhecer do agravo retido, dar provimento à
apelação da União e à remessa oficial e negar provimento à apelação
da parte autora, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que
ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Porto Alegre, 11 de maio de 2004.
Des. Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira, Relator.
RELATÓRIO
O Exmo. Sr. Des. Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira: Mannes
Ltda. ajuizou ação ordinária, objetivando o reconhecimento do direito aos
créditos do IPI relativos às aquisições de insumos não-tributados, dentre
os quais energia elétrica, gás natural e óleo diesel, que são consumidos
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direta ou indiretamente no processo de industrialização de produtos finais
onerados por este imposto. Requereu, ainda, o reconhecimento do direito
aos créditos referentes aos 10 anos que antecedem a data do ajuizamento
da ação e do direito à correção monetária desses créditos pela UFIR,
com o cômputo dos expurgos inflacionários, e pela taxa SELIC, a partir
de janeiro de 1996.
A União Federal contestou, sustentando a ausência de interesse da
autora, ao argumento de que o valor do IPI é agregado ao preço do
produto e repassado nas operações seguintes, sendo que a empresa não
comprovou estar expressamente autorizada pelos seus consumidores
a receber eventual crédito decorrente de recolhimento indevido, nos
termos do art. 166 do CTN. Alegou, ainda, que a concessão de crédito
presumido depende de lei federal específica e que a autora não pode se
creditar de valores que não pagou.
A União Federal interpôs agravo de instrumento contra a decisão que
deferiu o pedido de tutela antecipada, recurso esse convertido em agravo
retido, com fundamento no inc. II do art. 527 do Código de Processo Civil.
Sobreveio sentença que revogou em parte a tutela antecipada, reconheceu a prescrição qüinqüenal e, no mérito, julgou parcialmente
procedente o pedido “para declarar o direito da autora ao Crédito Presumido do Imposto sobre os Produtos Industrializados - IPI, advindo de
aquisições de ‘insumos’ não-tributados (matérias-primas, materiais de
embalagem, energia elétrica, gás natural e óleo diesel) ainda não-atingidos
pela prescrição qüinqüenal (na forma do Decreto nº 20.910/32), que são
consumidos direta ou indiretamente no processo de industrialização de
produtos tributados”. Diante da sucumbência recíproca, determinou que
cada parte arcasse com o pagamento dos honorários advocatícios de seus
respectivos patronos.
Apelou a autora, sustentando que tem direito aos créditos do IPI
referentes aos 10 anos que antecedem a data do ajuizamento da ação, e
que deve incidir correção monetária sobre esses créditos.
Apelou a União Federal, repisando os argumentos da contestação.
Com contra-razões, vieram os autos a esta Corte.
É o relatório.
VOTO
430
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O Exmo. Sr. Des. Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira:
1 - Inicialmente, nos termos do § 1º do art. 523 do CPC, deixo de
conhecer do agravo retido, pois a União Federal não requereu expressamente sua apreciação nas razões de apelação.
2 - Cumpre ressaltar que a controvérsia cinge-se tão-somente à possibilidade de compensar os valores creditados a título de IPI, decorrentes
da aquisição de insumos não-tributados, dentre os quais energia elétrica,
gás natural e óleo diesel, que são consumidos direta ou indiretamente no
processo de industrialização de produtos finais onerados por este imposto.
3 - É certo que, a teor da jurisprudência do E. Supremo Tribunal
Federal, é admissível o creditamento do IPI relativo a produtos isentos
e sujeitos à alíquota zero. Tal jurisprudência, porém, não pode ser invocada para sustentar também o creditamento em relação a insumos e
produtos intermediários não-tributados, como postulado pela autora e
deferido na sentença.
A regra da não-cumulatividade do IPI, encartada no art. 153, § 3º,
II, da Constituição de 1988, somente alberga a compensação do que for
devido a título de IPI, em cada operação, com o montante do mesmo IPI
cobrado nas anteriores. Parece evidente que só pode haver compensação
quando os produtos ou insumos intermediários são industrializados e,
assim, também sujeitos à incidência do IPI. Ora, os produtos não-tributados, constantes da Tabela de Incidência do Imposto sobre Produtos
Industrializados - TIPI, são produtos não-industrializados, não-sujeitos
à incidência do IPI. Em regra, são produtos primários.
Examinando-se a TIPI, verifica-se, por exemplo, que o primeiro
código - 01 - refere-se a Animais vivos das espécies cavalar, Asinina e
Muar (01.01), Animais vivos da espécie bovina (01.02), Animais vivos
da espécie suína (01.02), Animais vivos das espécies ovina e caprina
(01.04), galos, galinhas, patos, gansos, perus, peruas e galinhas-d’angola (pintadas), das espécies domésticas, vivos (01.05), e outros
animais vivos (01.06). O mesmo ocorre com os peixes vivos (03.01.).
Observe-se que as carnes desses animais, que já sofreram um processo
artificial de transformação em alimentos, são incluídas na TIPI como
sujeitas à alíquota zero (códigos 02 e 03.02/03.03).O leite e o creme
de leite in natura, não-concentrado nem acrescido de açúcar ou outro
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edulcorante, não são tributados (04.01). Mas se o leite e o creme de leite
forem concentrados ou adicionados de açúcar ou de outros edulcorantes
(portanto, artificialmente modificados), passam a ser tributados, embora
à alíquota zero (04.02).
Em regra a TIPI mantém coerência com o art. 46 do CTN, que tem
por industrializado “o produto que tenha sido submetido a qualquer operação que lhe modifique a natureza ou a finalidade, ou o aperfeiçoe para
o consumo”, classificando como não-tributados os produtos primários,
que não sofreram qualquer transformação artificial, e como tributados
os resultantes da interferência humana. Assim, são tributados à alíquota
zero as manteigas, requeijões e queijos (4.5. e 4.6), para cuja obtenção é
necessária intervenção do engenho humano. Não são tributados os ovos
frescos, com casca, de aves (0407); mas são sujeitos à alíquota zero
quando submetidos a qualquer processo de transformação.
É certo que a TIPI pode conter equívocos, classificando como não-tributados produtos industrializados, hipótese que deve ser equiparada à
da alíquota zero, já que não seria caso de isenção, que só a lei pode conceder (art. 150, § 6º, da CF). O inverso pode ocorrer, ou seja, encontrar-se
produto não-tributável classificado entre os sujeitos à alíquota zero. No
entanto, é ônus do contribuinte, que pretende o benefício da compensação
constitucional dos créditos de IPI, demonstrar, caso a caso, tais equívocos.
Portanto, incabível é conceder o pretendido crédito, de forma genérica.
A classificação do produto na TIPI como não-tributável faz presumir que
se trata de hipótese de não-incidência do IPI, cabendo ao contribuinte a
prova em contrário, que não foi feita no caso concreto.
4 - A autora alega que tem direito ao creditamento do imposto pago
432
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sobre a energia elétrica, gás natural e óleo diesel que são consumidos
direta ou indiretamente no processo de industrialização de produtos finais
onerados pelo IPI.
A energia elétrica não representa insumo ou matéria-prima que integra
o produto final, uma vez que não se aglutina no processo de transformação do qual resultará o produto industrializado. Nesse sentido, destaco
os seguintes precedentes deste Tribunal:
“TRIBUTÁRIO. IPI. ENERGIA ELÉTRICA.
-Inexiste direito ao crédito do IPI, relativamente à aquisição de energia elétrica
consumida no processo produtivo.” (AC 2002.72.00.008438-7/SC, 2ª Turma, Rel. Des.
Fed. Dirceu de Almeida Soares, DJU de 17.09.2003, p. 761)
“TRIBUTÁRIO. IPI. ENERGIA ELÉTRICA. CREDITAMENTO. IMPOSSIBILIDADE.
-Não representa a energia elétrica insumo ou matéria-prima propriamente dita, que
se insere no processo de transformação do qual resultará a mercadoria industrializada. Sendo assim, incabível aceitar que a eletricidade faça parte do sistema de crédito
escritural derivado de insumos desonerados, referentes a produtos onerados na saída,
vez que produto industrializado é aquele que passa por um processo de transformação,
modificação, composição, agregação ou agrupamento de componentes de modo que
resulte diverso dos produtos que inicialmente foram empregados neste processo.” (AC
2001.72.01.005155-6/SC, 1ª Turma, Rel. Desa. Fed. Maria Lúcia Luz Leiria, DJU de
01.10.2003, p. 423)
Conseqüentemente, a mesma inteligência se aplica ao gás natural e
ao óleo diesel, porquanto também não integram o produto final.
Em face do exposto, não conheço do agravo retido, dou provimento à
apelação da União Federal e à remessa oficial para julgar improcedente
o pedido e nego provimento à apelação da autora.
Condeno a autora ao pagamento de honorários advocatícios fixados
em 10% (dez por cento) sobre o valor da causa.
É o voto.
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APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA
Nº 2003.70.00.024307-6/PR
Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira
Apelante: Instituto Nacional do Seguro Social - INSS
Advogada: Dra. Sibele Regina Luz Grecco
Apelado: INAP - Instituto Nacional de Administração Prisional S/C
Ltda.
Advogados: Drs. Leonardo Sperb de Paola e outros
Remetente: Juízo Substituto da 10ª Vara Federal de Curitiba/PR
EMENTA
Tributário - Mandado de segurança - Certidão de regularidade fiscal.
1 - A Constituição assegura, independentemente do pagamento de
taxas, o fornecimento de certidões em repartições públicas para esclarecimento de situação de interesse pessoal e defesa de direitos (art. 5º,
XXXIV, b). Essa garantia não se confunde com o direito à obtenção de
certidões negativas de débito, pois a expedição destas está condicionada
à inexistência efetiva de débitos fiscais.
2 - Se o contribuinte apresenta uma justificativa plausível para afastar
o óbice à obtenção da certidão de regularidade fiscal, não é lícito o INSS
recusar o fornecimento do documento sem apontar qualquer motivo razoável para sua recusa. Não é dado à autoridade fiscal furtar-se do dever
de fundamentar suas decisões.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas,
decide a Egrégia 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região,
por unanimidade, negar provimento à apelação e à remessa oficial, nos
termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte
integrante do presente julgado.
Porto Alegre, 1º de junho de 2004.
Des. Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira, Relator.
RELATÓRIO
O Exmo. Sr. Des. Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira: INAP
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R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
- Instituto Nacional de Administração Prisional S/C Ltda. impetrou mandado de segurança, visando à concessão de certidão negativa de débito,
pedido indeferido no âmbito administrativo, sob o argumento de que
existe diferença entre os valores declarados na GFIP e os valores recolhidos a título de contribuição previdenciária, na competência de 12/2002.
A impetrante alega que, somando o valor retido na fonte, pelos tomadores de serviços, com o valor que recolheu em guia própria ao INSS, não
existem débitos a pagar. Aduz, ainda, que tem direito à certidão negativa,
porquanto inexiste crédito formalizado através de lançamento, ato que,
conforme preconiza, compete privativamente à administrativa, a teor do
art. 142 do CTN.
A autoridade impetrada prestou informações, sustentando que a
impetrante possui débitos e, em razão disso, não tem direito à Certidão
Negativa de Débitos.
Sobreveio sentença que concedeu a segurança “para que a autoridade
impetrada expeça Certidão Positiva com Efeitos de Negativa, conforme
requerido, enquanto não forem realizados os respectivos lançamentos
tributários, indispensáveis à constituição do crédito tributário”.
Apelou o INSS, repisando os argumentos das informações prestadas
pela autoridade coatora.
Com contra-razões, vieram os autos a esta Corte, onde, com vista
ao Ministério Público Federal, o seu ilustre representante opinou pelo
improvimento do recurso de apelação do INSS. É o relatório.
VOTO
O Exmo. Sr. Des. Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira:
1 - A autoridade impetrada forneceu certidão positiva de débito à
impetrante, na qual consta o seguinte:
“É CERTIFICADO, NA FORMA DO DISPOSTO NA LEI 8.212/91, E SUAS ALTERAÇÕES, QUE EXISTEM OS SEGUINTES IMPEDIMENTOS À EXPEDIÇÃO
DE CERTIDÃO NEGATIVA DE DÉBITO:
Existe diferença entre GFIP e os valores recolhidos na competência 12/2002”
A jurisprudência deste Tribunal tem entendido que a entrega, pelo
contribuinte, de declarações representativas dos fatos geradores de determinados períodos importa em lançamento tributário. Nessa hipótese,
não recolhido o tributo, as próprias declarações servem de suporte à
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inscrição dos respectivos débitos em dívida ativa, sendo legítima a recusa
à autoridade administrativa em fornecer certidão de regularidade fiscal.
Essa orientação, contudo, não se aplica na hipótese vertente. Com
efeito, considerações mais detidas sobre as peculiariedades do caso se
impõem.
A impetrante alega que a diferença apontada entre os valores declarados e os valores recolhidos, na realidade, não existe. Para exata compreensão de sua justificativa, retiro, da inicial, trecho relevante:
“Sucede que, na última renovação de certidões junto ao INSS, a Impetrante foi
informada que não seria possível conceder-se-lhe certidão negativa ou mesmo positiva com efeitos de negativa, em razão da suposta existência de débito perante aquela
autarquia. Em lugar disso, e a pedido da Impetrante, emitiu-se certidão positiva com
os seguintes dizeres:
‘Inutilmente tentou a Impetrante demonstrar, na esfera administrativa que tinha
honrado suas obrigações. Nesse sentido, apresentou documentos provando que, somado
o valor retido na fonte, pelos tomadores de serviços, com o valor que recolheu em guia
própria ao INSS, verificava-se estar integralmente pago seu débito.
Confira-se:
- valor devido à previdência social - competência 12/02 (declarado em Guia de
Recolhimento do FGTS e Informações à Previdência Social -GFIP) = R$ 119.581,45
(valor incidente sobre a folha do operacional da empresa) + 2.111,37 (valor este declarado em GFIP complementar, correspondente ao INSS incidente sobre a folha da
administração da empresa), num total de R$ 121.692,82;
- valor retido na fonte, em dezembro de 2002, pelos tomadores dos serviços, a
título de antecipação da contribuição previdenciária, nos termos da Lei 9.711/98 =
R$ 198.439,82 (o valor expressivo da retenção deve-se ao fato de que em dezembro
de 2002, foram faturados os serviços prestados em novembro - notas datadas de 2 de
dezembro - e no próprio mês de dezembro - notas datadas de 27 de dezembro);
- valor compensado com a totalidade da contribuição previdenciária incidente sobre
a folha de salários (excluídas as contribuições de terceiros - SESC/SENAC/SEBRAE,
salário-educação, INCRA, não passíveis dessa compensação) no mês de dezembro
(conforme declarado pela Impetrante em Retificação de Dados do Empregador- FGTS/
INSS) = R$ 103.284,74;
- valor recolhido pela Impetrante, relativamente à mesma competência em guia da
previdência social, relacionado às contribuições de terceiros (SESC/SENAC/SEBRAE,
salário-educação, INCRA, que não podem ser compensadas com o valor retido na
fonte) = R$ 18.540,52.
Tem-se, assim, que:
R$ 121.692,82 (total das contribuições correspondentes a dezembro)
R$ 198.439,82 (total retido na fonte em dezembro)
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R$ 103.284, 74 (parte do total correspondente à contribuição previdenciária)
R$ 103.284, 74 (parte do valor retido em notas fiscais e compensado com a contribuição previdenciária)
R$ 95.155,08 (valor retido e não compensado no mês de dezembro, e que foi compensado nos meses subseqüentes)
R$ 18.540,52 (GPS - contribuições de terceiros - note-se que houve recolhimento
a maior correspondente a R$ 132,44)’
Diante dessa singela demonstração, fica claro que a Autoridade Coatora, ao negar
Certidão Negativa de Débitos à Impetrante, incorreu em constrangimento que se verifica ilegal e abusivo, já que não há qualquer pendência real acerca do tributo devido
na competência 12/02.”
Com a inicial, a impetrante juntou cópias das faturas atinentes aos
serviços prestados para a Secretaria de Estado e Segurança Pública do
Paraná, nas quais consta que houve “retenção para a seguridade social”,
na forma da Instrução Normativa 209/99, que regulamenta a retenção
de 11% sobre os valores brutos das faturas dos contratos de prestação
de serviço, pelas empresas tomadoras dos serviços, nos termos do art.
31 da Lei nº 8.212/91, com a redação da Lei nº 9.711/98.
Ao prestar suas informações, a autoridade impetrada assim se manifestou:
“A Autora impetrou o presente writ of mandamus pedindo liminar e segurança para
determinar a expedição de Certidão Negativa de Débito, tendo em vista não haver débito
devidamente constituído através de regular notificação.
O pedido não tem nenhum respaldo jurídico e deve ser indeferido, com a denegação
da segurança.
O INSS possui sistema informatizado que verifica o atraso nos recolhimentos mensais das contribuições, apontando, com certeza, qualquer atraso nos recolhimentos. Ou
seja, mesmo antes da notificação, já se pode apurar se o contribuinte está atrasado com
contribuições previdenciárias.
Havendo débitos, a CND deve ser negada.
No presente caso, o impetrante possui débitos, por sinal, débitos confessados na
inicial do writ, não tendo direito, a impetrante, à Certidão Negativa de Débitos.”
Como se vê, a autoridade impetrada sequer se deu ao trabalho de
verificar se estão corretos os cálculos apresentados pela impetrante.
Simplesmente ignorou as alegações desta.
É certo que a Constituição assegura, independentemente do pagamento de taxas, o fornecimento de certidões em repartições públicas para
esclarecimento de situação de interesse pessoal e defesa de direitos (art.
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5º, XXXIV, b). É certo, também, que essa garantia não se confunde com
o direito à obtenção de certidões negativas de débito, pois a expedição
destas está condicionada à inexistência efetiva de débitos fiscais.
Se o contribuinte apresenta uma justificativa plausível para afastar
o óbice, não é lícito o INSS recusar o fornecimento do documento de
regularidade fiscal sem apontar qualquer motivo razoável para sua recusa. Não é dado à autoridade fiscal furtar-se do dever de fundamentar
suas decisões.
O procedimento da autoridade impetrada, além do mais, está a violentar o princípio constitucional da proporcionalidade, expressamente
adotado pela Lei nº 9.784/99, que regula o processo administrativo no
âmbito da Administração Pública Federal, cujo art. 2º, parágrafo único,
estabelece:
“Art. 2°. A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla
defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.
Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os
critérios de:
...
IV - adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições
e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do
interesse público.”
Não se compatibiliza com o princípio da proporcionalidade a imposição à pessoa jurídica de restrição às suas atividades que importem em
inviabilizá-la, sem que sequer se aponte onde está a necessidade desse
tratamento. Cabe à administração, sim, investigar e coibir a sonegação
fiscal, mas deverá fazê-lo com respeito aos princípios da legalidade,
finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade,
ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e
eficiência, não lhe sendo dado criar, por omissão, sanções de qualquer
espécie, sem suporte em lei.
Vale ressaltar que as pessoas jurídicas necessitam da comprovação da
regularidade fiscal para a habilitação em certames licitatórios.
De se ressaltar, ainda, que a própria alíquota de 11%, a ser aplicada
sobre as notas fiscais ou faturas de prestação de serviços, foi fixada a
partir de cálculos baseados na relação média entre o faturamento e a
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folha de salários das empresas locadoras de mão-de-obra. Isso foi bem
esclarecido por Fernando Osório de Almeida Júnior, em trabalho publicado na Revista Dialética de Direito Tributário nº 45, págs. 55-60, do
qual destaco:
“Afinal, qual a lógica da fixação do montante de 11% sobre o faturamento das
empresas cedentes de mão-de-obra?
Para respondermos a esta questão basta sabermos que o lançamento por arbitramento
de contribuições sociais com base na remuneração dos trabalhadores, que no âmbito do
INSS é chamada de aferição indireta (art. 33, § 6º, da Lei nº 8.212/91), se faz quando,
ante a impossibilidade de se calcular dita contribuição por ausência, insuficiência ou
inidoneidade de documentos pertinentes ao montante de remuneração paga ou devida
aos trabalhadores, a fiscalização arbitra, em regra, esse montante de ‘rendimentos’ em,
no mínimo, 40% do valor dos serviços prestados constantes das faturas emitidas pela
empresa cedente de mão-de-obra.
Trata-se de uma presunção - decorrente da experiência - de que tal percentual do
faturamento representa em média a parcela da receita da empresa que presta serviços
mediante cessão de mão-de-obra e a qual costuma ser absorvida pelo pagamento dos
trabalhadores a seu serviço.
Sobre essa base de cálculo arbitrada, incidirá a alíquota de 20% devida pela empresa
(art. 22, I, da Lei nº 2.212/91), mais 1%, 2% ou 3% (art. 22, II, da citada Lei) a título
de adicional do SAT (Seguro de Acidente do Trabalho), de acordo com o grau de risco
e a atividade preponderante da empresa, e, por fim, a contribuição dos trabalhadores,
que será calculada mediante a aplicação da alíquota mínima (no caso, 8%).
Tomando-se em consideração a alíquota mínima do SAT (1%), em consonância
com o fato de que para a contribuição dos trabalhadores também se considera a alíquota mínima (8%), além do percentual da parte patronal (20%), temos uma alíquota
global de 29% que incidirá sobre a base de cálculo arbitrada correspondente a 40% do
faturamento, pelo que o montante arbitrado a título de contribuições devidas ao INSS
sobre os rendimentos dos trabalhadores [29% (20 + 8 + 1) X 40% do faturamento]
representa 11,6% do faturamento.
Ou seja, eliminando-se os décimos, encontramos 11% do faturamento. Coincidência?
Claro que não. Aliás, deve-se dizer que o próprio INSS confirma o exposto, como
assim já o fez brilhantemente o seu ilustre Coordenador-Geral em Seminário ao qual
nos referimos no início.”
Portanto, se há relação de pertinência entre o percentual de 11% e o
fato gerador e base de cálculo da contribuição sobre a folha de salários,
e estando comprovado nos autos que houve a retenção de 11% sobre os
valores brutos das faturas pela Secretaria de Estado e Segurança Pública
do Paraná, tomadora dos serviços da impetrante, esta tem direito líquido
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e certo à obtenção da certidão negativa de débito.
Ainda que não se tenha certeza absoluta dessa correlação, não se
pode dizer que a situação da impetrante junto ao Fisco é irregular. Nesse
sentido, transcrevo excerto do parecer exarado pelo digno representante
do Ministério Público Federal:
“Nada obstante, o contribuinte afirma ter havido o pagamento integral da contribuição, e o INSS não se deu ao trabalho de ao menos alegar a insuficiência do pagamento.
Não há outro caminho senão presumir verdadeiros os fatos narrados pelo contribuinte,
à míngua de qualquer impugnação da autoridade coatora. Ao menos para os fins deste
mandado de segurança, é de se presumir que o tributo foi pago.”
2 - Em face do exposto, nego provimento à apelação e à remessa
oficial.
É o voto.
APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA
Nº 2003.70.00.032946-3/PR
Relatora: A Exma. Sra. Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria
Apelante: União Federal (Fazenda Nacional)
Advogada: Dra. Dolizete Fátima Michelin
Apelada: Master Imp. Ltda.
Advogados: Drs. Marcelo Arthur Gomes Osti e outros
Remetente: Juízo Substituto da 2ª Vara Federal de Curitiba/PR
EMENTA
Liberação de mercadoria. Regime de entreposto aduaneiro. Interposição fraudulenta de pessoas.
1. A empresa impetrante possuía à época dos fatos um capital social de
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R$ 10.000,00 (dez mil reais) e, apenas nos últimos doze meses, realizou
importações no valor aproximado de US$ 6.600.000,00 (seis milhões e
seiscentos mil dólares).
2. Configuradas as condições necessárias para a adoção do procedimento especial previsto na IN/SRF 228/02, na medida em que a empresa
apelada não possui capital social que comporte as operações de comércio
exterior realizadas.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas,
decide a Egrégia 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região,
por unanimidade, dar provimento à apelação e à remessa oficial, nos
termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte
integrante do presente julgado.
Porto Alegre, 30 de junho de 2004.
Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria, Relatora.
RELATÓRIO
A Exma. Sra. Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria: Trata-se de mandado de segurança impetrado com o objetivo de reconhecer a nulidade
do ato que vinculou a devolução ao exterior da lancha marca Cranchi,
modelo “Mediterranee 50”, importada, à apresentação de garantia equivalente ao valor da mercadoria acrescido de frete e seguro internacional.
Alegou a impetrante na inicial que a lancha pertence à empresa uruguaia Kilkee Corporation S.A., asseverando que requereu a devolução
do bem para o exterior a pedido do exportador. Relata que este pedido
restou indeferido em razão do procedimento especial de fiscalização sob
o qual se encontra. Sustenta que a mercadoria foi admitida em regime
de entreposto aduaneiro, no qual não há transferência de propriedade do
remetente para o beneficiário do regime, não havendo nacionalização
ou importação da mercadoria, inexistindo, por conseqüência, a situação
fática prevista no art. 7º da IN/SRF nº 228/2002.
Foi indeferida a liminar pleiteada.
Requerida por meio da petição de fls. 63/66, foi deferida a reconsideração da decisão que não concedeu a liminar, determinando o prosseguimento do despacho aduaneiro sem a exigência da prestação de garantias.
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A Fazenda Nacional prestou informações às fls. 82/91, sustentando a ausência tanto do periculum in mora quanto do fumus boni iuris
para a concessão da segurança. Alegou que a ação fiscal foi pautada
na estrita legalidade e no atendimento ao interesse público. Referiu a
existência de litispendência em relação ao Mandado de Segurança nº
2003.32.00.003370-5, ajuizado em Manaus. Relata que a) a impetrante registrou a Declaração de Admissão em Entreposto Aduaneiro em
11.03.2003; b) em maio de 2003 foi iniciado o procedimento especial,
visando à comprovação da origem dos recursos utilizados em todas as
operações de comércio exterior realizadas pela empresa; c) após o início
dos procedimentos de apuração de interposição fraudulenta de pessoas, a
impetrante requereu a devolução da lancha para o seu efetivo proprietário;
d) a empresa impetrante possui um capital social de R$ 10.000,00 e importou em 12 meses mercadorias no valor de US$ 6.600.000,00. Refere
a aplicabilidade do inciso V do art. 23 do Decreto-Lei nº 1.455/76, com
a redação dada pelo art. 59 da Lei nº 10.637/02.
Opinou o Ministério Público Federal, em primeiro grau de jurisdição,
pela extinção do processo sem julgamento de mérito, tendo em vista a
perda do objeto em razão da concessão da liminar.
Sobreveio sentença que julgou procedente o pedido formulado na
inicial, concedendo a segurança.
Apela a União, sustentando, preliminarmente, a existência de litispendência com o já mencionado processo nº 2003.32.00.003370-5. No
tocante ao mérito, alega que a empresa apelada está sendo submetida ao
procedimento especial de fiscalização de que trata a IN/SRF 228/02, a
qual autoriza a retenção da mercadoria até a conclusão do procedimento,
salvo quando apresentada garantia em substituição. Assevera a legalidade
do procedimento adotado.
Contra-razões apresentadas às fls. 148/153.
Manifestou-se o Ministério Público Federal, opinando pelo provimento da apelação, para que seja denegada a segurança.
É o relatório.
VOTO
A Exma. Sra. Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria: Inicialmente,
entendo que não há como comprovar a existência de litispendência entre
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o Mandado de Segurança nº 2003.32.00.003370-5 e este processo, tendo
em vista a precariedade de informações acerca daquela ação nestes autos.
Mesmo a pesquisa no sistema de consulta processual nada revela além
da identidade de partes. Assim, afasto a preliminar argüida pela apelante.
No tocante ao mérito, a questão posta para o exame desta Corte
cinge-se à aplicabilidade das disposições contidas na IN/SRF nº 228/02
ao caso em tela.
A referida Instrução Normativa autoriza a adoção de procedimento
especial de fiscalização em relação às operações realizadas por empresas
que revelarem indícios de incompatibilidade entre os volumes transacionados no comércio exterior e a sua capacidade econômico-financeira.
Nestes casos, a empresa será intimada para comprovar seu efetivo funcionamento e a condição de real adquirente ou vendedor das mercadorias,
bem como a origem lícita, a disponibilidade e a efetiva transferência,
se for o caso, dos recursos necessários à prática da operação, sob pena
de condicionamento do desembaraço ou entrega das mercadorias na
importação à prestação de garantia, equivalente ao preço da mercadoria,
até a conclusão do procedimento especial.
Compulsando os autos, verifico que foi juntada ao processo cópia do
contrato social da apelada, onde consta que a empresa impetrante possuía
à época dos fatos um capital social de R$ 10.000,00 (dez mil reais) e, de
acordo com as informações prestadas pela Fazenda Nacional (fl. 86) e
com o parecer oferecido pelo Ministério Público Federal (fl.158), apenas
nos últimos doze meses realizou importações no valor aproximado de
US$ 6.600.000,00 (seis milhões e seiscentos mil dólares).
Ressalto, ainda, que foi acostada a esta ação cópia da tradução de
correspondência recebida pela Receita Federal em 09.06.2003, enviada
pelo Setor de Investigação da Alfândega e Impostos de Sua Majestade,
Londres, Inglaterra (fls. 94/96), cujo teor corrobora as suspeitas de incompatibilidade entre a capacidade econômico-financeira da empresa e
os volumes transacionados no comércio exterior. Transcrevo a seguir os
termos da referida correspondência, grifando alguns trechos.
“SOLICITAÇÃO DE ASSISTÊNCIA ADMINISTRATIVA MÚTUA (AAM)
Prezada Sra. Herica Gomes Vieira
Ref.: FAIRLINE BOATS PLC
A Sra. Ahasan e eu fizemos uma visita à Fairline Boats PLC, Barnwell Road, OunR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
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dle, Peterborough, PE8 5PA, e falamos com o Sr. Derek Carter, Presidente e Diretor
Executivo, e o Sr. James Robinson, Diretor de Vendas e Marketing. Eles nos explicaram
que estavam totalmente cientes dos problemas no Brasil envolvendo seus barcos, e
disseram que haviam sido contatados diretamente pelo Adido da Alfândega Brasileira
em Washington, e pelo serviço da Alfândega dos EUA com relação a esse assunto.
Antes de tratar dos nossos achados, devo informá-la que nem a Sra. nem os Estados Unidos têm qualquer jurisdição no Reino Unido e que, contatando diretamente
a Fairline Boats PLC, os Srs. infringiram todos os acordos, protocolos e tratados
que respaldam e tratam da cooperação internacional. Ainda, qualquer informação
assim obtida seria considerada como obtida ilegalmente e, como tal, seu uso fica
prejudicado no suporte de qualquer ação futura. Não pretendo me aprofundar nesse
ponto, mas existem vias bem estabelecidas de assistência mútua, e a Alfândega e
Impostos (HM Customs and Excise) dedica-se a prestar serviços-irmãos e a atender
outras solicitações de órgãos responsáveis pelo cumprimento da lei no exterior, em
benefício de todos.
Durante nossa visita à Fairline Boats PLC, o Sr. Robinson explicaram que a
Master Importação Ltda., agiu como revendedora dos seus barcos no Brasil, e que
é uma revendedora muito expressiva em termos de vendas em seu país. A Fairline
Boats PLC tem um escritório nos Estados Unidos, o Fairline Boats of N. America,
1000 Main Street, Suite 200B, P.O. Box 21376, Hilton Head Island, SC 29925, que
trata de suas atividades de marketing para América Latina, i.e, vendas, administração
e faturamento. Uma vez recebido um pedido, o barco é construído no Reino Unido e
então exportado para o cliente, de acordo com as instruções deles nos EUA. No caso
da Master Importação Ltda., eles solicitaram, em algum ponto de suas negociações
com a Fairline Boats PLC, que os barcos fossem mandados para o Uruguai e de lá
enviados para o Brasil. Eles também estavam cientes que nesses termos a Finistere
S.A. agia pela Master Importação Ltda. no Uruguai, mas não sabiam qual o papel ou
função da Finistere S.A. em relação às importações, nem estavam cientes do porquê
dos barcos serem enviados via Uruguai em vez de diretamente ao Brasil.
Pedimos para ver a fatura comercial referente à exportação de um barco Phantom
46, número de série GBFLN09824J102, números de série do motor 2071152896 e
20711152897. Dos arquivos e registros da empresa o Sr. Robinson extraiu uma cópia
da fatura, numerada 20143, datada de 12 de novembro de 2001, tirada pela Fairline
Boats of N. America para cobrir a venda. Uma cópia da fatura vai anexa para ‘Fins do
Serviço de Inteligência Somente’.
Mostramos ao Sr. Robinson sua relação de 17 importações de barcos feitas durante
os anos 2000 e 2001, para a qual os Srs. solicitaram cópias autenticadas da declaração
de exportação ou de uma lista de preços. Ele explicou que já havia fornecido essa
informação à Alfândega dos EUA logo depois da visita desta à Fairline Boats of N.
America em 7 de outubro de 2002. Uma cópia da carta e cópias das faturas fornecidas
ao Agente Especial Tony Smith, do Serviço de Alfândega dos EUA, 4401 Belle Oaks
444
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Drive, Suite 400, North Charleston, SC 29405 datadas de 11 de outubro de 2002 nos
foi entregue. O Sr. Robinson explicou que enquanto estava preparando sua resposta,
descobriram que vários dos números da fatura citados eram falsos, mas que foram
fornecidas cópias das faturas para todos os números verdadeiros citados. Uma cópia da
carta e das faturas vão anexas para ‘Fins do Serviço de Inteligência Somente’.
Em 21 de maio de 2003, a Sra. enviou uma solicitação de follow-up referente a um
barco Phanton 4s, número de série GBFLN10035F203, número do barco 88, relativo
à fatura 0023/2003 da Finistere S.A., datada de 19 de janeiro de 2003, e ao Conhecimento de Embarque nº SA004864 da Grimaldi Compagnia di Navigazione one SpA,
datado de 19 de janeiro de 2003. Falei com o Sr. Robinson e ele providenciou para que
uma cópia da fatura da Fairline Boats of N. America, de número 20238, datada de 9 de
setembro de 2002 cobrindo a transação me fosse passada por fax. Comparando as duas
faturas fica aparente que o barco que entrou sob a fatura da Finistere S.A. foi avaliado
bem aquém do valor, em US$ 152,015.21. Uma cópia da fatura vai anexa para ‘Fins
do Serviço de Inteligência Somente’.
Espero ter sanado suas dúvidas. Caso necessite de mais assistência em relação ao
assunto, teremos prazer em ajudar.
Atenciosamente
[Assinatura] John Keep
Funcionário da Alfândega e Impostos”.
Ainda das informações prestadas pela Fazenda Nacional, colho a
notícia de que a apelada somente postulou a devolução da lancha importada para o seu efetivo proprietário após o início dos procedimentos
de apuração de interposição fraudulenta de pessoas.
Ademais, a impetrante não logrou demonstrar o motivo pelo qual foi
requerida a admissão da mercadoria em território brasileiro no regime
de entreposto aduaneiro.
De outro lado, a IN/SRF 228/02 não está em desconformidade com o
regulamento aduaneiro (Decreto nº 4.543/02), que determina a aplicação
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da pena de perdimento da mercadoria estrangeira, na importação ou na
exportação, por considerar dano ao Erário, quando houver ocultação
dos sujeitos da operação de comércio exterior mediante a interposição
fraudulenta de pessoas. Este é o teor do art. 618, inciso XXII, daquele
diploma legal, que transcrevo a seguir:
“Art. 618. Aplica-se a pena de perdimento da mercadoria nas seguintes hipóteses,
por configurarem dano ao Erário
(...)
XXII - estrangeiras ou nacionais, na importação ou na exportação, na hipótese de
ocultação do sujeito passivo, do real vendedor, comprador ou de responsável pela operação, mediante fraude ou simulação, inclusive a interposição fraudulenta de terceiros.
(...)”
Também em consonância com a IN/SRF 228/02 são as disposições
do Decreto-Lei nº 1.455/76, com a redação dada pela MP 2.158-35/01,
o qual determina que os requisitos e condições para a aplicação do regime de entreposto aduaneiro serão estabelecidos pelo Poder Executivo,
competindo-lhe, da mesma forma, definir as hipóteses de suspensão ou
cassação do mencionado regime. É o que se vê da transcrição a seguir:
“Art. 69. Os arts. 9º, 10, 16, 18 e o caput do art. 19 do Decreto-Lei nº 1.455, de 7
de abril de 1976, passam vigor com as seguintes alterações:
(...)
Art. 19. O Poder Executivo estabelecerá, relativamente ao regime de entreposto
aduaneiro na importação e na exportação:
(...)
II - os requisitos e as condições para sua aplicação, bem assim as hipóteses e formas
de suspensão ou cassação do regime;
(...)”
Portanto, tenho que restam configuradas as condições necessárias
para a adoção do procedimento especial previsto na IN/SRF 228/02, na
medida em que a empresa apelada não possui capital social que comporte as operações de comércio exterior realizadas, motivo pelo qual
não vislumbro a existência da certeza do direito alegado, impondo-se a
reforma da sentença com a denegação da segurança.
Diante de todo o exposto, voto no sentido de dar provimento à apelação e à remessa oficial.
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APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA
Nº 2003.70.09.005966-1/PR
Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Surreaux Chagas
Apelante: Coralplac Compensados Ltda.
Advogado: Dr. Luiz Rogério Moro
Apelada: União Federal (Fazenda Nacional)
Advogada: Dra. Dolizete Fátima Michelin
EMENTA
Tributário. Imunidade de contribuições sobre receitas derivadas
de exportação. CF/88, art. 149, § 2º, I, na redação dada pela emenda
constitucional nº 33/2001. Contribuição Social sobre o Lucro.
O Constituinte elegeu o pagamento de salários, a receita ou faturamento e o lucro das empresas como hipóteses de incidência, independentes
e autônomas, de contribuições sociais para a seguridade social.
Assim, se as receitas derivadas de exportações são imunes a contribuições, conforme previsto no art. 149, § 2º, I, da CF/88, na redação
dada pela Emenda Constitucional nº 33/2001, isso não implica que o
lucro advindo dessas receitas também o seja, pois receita e lucro não se
confundem, sendo bases de incidência de contribuições diversas, com
disciplinas legais independentes.
Portanto, a imunidade instituída pela Emenda Constitucional nº
33/2001 não alcança a contribuição social sobre o lucro das empresas
exportadoras.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas,
decide a Egrégia 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região,
por unanimidade, negar provimento à apelação, nos termos do relatório,
voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente
julgado.
Porto Alegre, 4 de maio de 2004.
Des. Federal Surreaux Chagas, Relator.
RELATÓRIO
O Exmo. Sr. Des. Federal Surreaux Chagas: Coralpalc Compensados
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Ltda. impetra Mandado de Segurança contra o Delegado da Receita Federal em Ponta Grossa/PR, objetivando que lhes seja garantido o direito
de exclusão da base de cálculo da Contribuição Social sobre o Lucro
Líquido (CSLL) das receitas decorrentes das exportações efetuadas a
partir da Emenda Constitucional nº 33, de 12.12.2001, bem como as
receitas decorrentes das exportações futuras.
Sustenta que a EC 33/2001 criou a imunidade tributária sobre as receitas de exportação, ao inserir o § 2º ao art. 149 da Constituição Federal;
que, dessa forma, para a apuração da base de cálculo da CSLL, devem
ser excluídas da receita bruta as receitas decorrentes das exportações.
A liminar é indeferida.
A autoridade coatora apresenta informações.
O MM. Juízo, sentenciando, denega a segurança.
Inconformada, a impetrante interpõe recurso de apelação, repisando
os termos da inicial.
Regularmente processado o recurso, sobem os autos.
O Ministério Público Federal opina pelo desprovimento da apelação.
É o relatório.
VOTO
O Exmo. Sr. Des. Federal Surreaux Chagas: A controvérsia centra-se no alcance da imunidade das receitas decorrentes de exportação em
relação a contribuições para a seguridade social e intervenção no domínio
econômico, prevista no art. 149, § 2º, I, da CF/88, na redação dada pela
Emenda Constitucional nº 33/2001, verbis:
“Art. 149. Compete exclusivamente à União instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais e econômicas,
como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas, observado o disposto nos arts.
146, III, e 150, I e III, e sem prejuízo do previsto no art. 195, § 6°, relativamente às
contribuições a que alude o dispositivo.
(...)
§ 2º. As contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico de que trata
o caput deste artigo:
I - não incidirão sobre as receitas decorrentes de exportação;
(...)”
A impetrante sustenta que a imunidade prevista alcançaria também a
contribuição social sobre o lucro relativa à parte do lucro que a empre448
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sa obtém com exportações, ao contrário do entendimento da Fazenda
Nacional.
Inicialmente, há que se referir que não há fundamento na exclusão
das contribuições para a seguridade social da regra da imunidade, sob a
alegação de que estariam elencadas no preceito apenas as “contribuições
sociais, as de intervenção no domínio econômico e as de interesse de
categorias profissionais e econômicas”.
De fato, as contribuições para a seguridade social, disciplinadas
especificamente no art. 195 da Constituição, integram o conceito de
contribuições sociais, genericamente previstas no art. 149 da CF/88,
conforme a consagrada classificação da espécie tributária das contribuições efetuada pelo eminente Ministro Carlos Velloso no julgamento do
Recurso Extraordinário n° 138.284. (DJU de 28.08.92)
Aliás, é de se perceber que a legislação ordinária já exclui a incidência
da COFINS e do PIS-PASEP, contribuições sociais para a seguridade
social, sobre as receitas decorrentes de exportação, em consonância com
a regra constitucional.
Contudo, a questão não se encerra neste ponto. Com efeito, a regra
imunitória refere-se expressamente a receitas decorrentes de exportação,
enquanto a pretensão envolve a contribuição incidente sobre o lucro.
Poder-se-ia argumentar que a questão é apenas terminológica, pois
o lucro decorrente de exportação advém necessariamente de receita de
exportação e, se a receita não pode ser tributada, também não o pode o
lucro que ela produz.
Ocorre que receita e lucro, em que pese serem conceitos econômicos
intimamente imbricados, são diferenciados explicitamente e tratados à
parte enquanto fatos geradores de contribuições sociais para a seguridade
social.
De fato, o art. 195 da CF/88 prevê, em alíneas diversas de seu inciso
I, a contribuição social incidente sobre a receita ou o faturamento (alínea
b) e a contribuição incidente sobre o lucro (alínea c). As contribuições
são diversas, com disciplinas legais independentes, correspondendo a
primeira à COFINS e ao PIS-PASEP e a segunda à CSLL - Contribuição
sobre o Lucro Líquido.
Portanto, receita e faturamento são tributados distintamente. Todas as
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empresas, em geral, devem uma contribuição social para a seguridade
social, devida em decorrência da receita ou faturamento apurados, e outra
incidente sobre o lucro auferido. Assim como todas empresas devem a
contribuição incidente sobre a folha de salários e demais pagamentos
efetuados a pessoas físicas que lhe prestem serviço, a terceira hipótese
de incidência que enseja a obrigação de pagar contribuição à seguridade
social prevista no art. 195 da CF/88, ao lado da receita ou faturamento
e do lucro.
Dessa forma, havendo previsão de tributação autônoma das três dimensões da atividade empresarial - pagamento de salários, faturamento
apurado e lucro auferido -, o fato de existir previsão constitucional ou
legal de não tributar determinadas receitas não implica a não-tributação do
pagamento dos salários necessários para que a receita pudesse ingressar
na empresa, nem do lucro que ela eventualmente possa gerar.
Outrossim, a exoneração da contribuição das receitas advindas da
exportação e não do lucro delas decorrentes está em consonância com a
política econômica de desoneração das exportações, necessária para dar
maior competitividade aos produtos nacionais no mercado internacional.
Com efeito, os incentivos fiscais à exportação - dentre eles a exoneração das contribuições sobre a receita ou faturamento (COFINS e PIS) no
caso de vendas para o mercado externo - permitem melhores condições
para o desempenho das empresas no mercado internacional, excluindo
tributos indiretos que influenciam negativamente na composição dos
preços finais.
Contudo, isso não implica que, incrementadas as vendas para o exterior
em decorrência dos incentivos concedidos, que desoneram a produção
e a comercialização e possibilitam a redução dos preços do produto nacional no mercado internacional, seja o lucro assim auferido e majorado
também exonerado da tributação, criando tratamento desigual em relação
aos demais contribuintes no plano interno da economia.
Portanto, não há fundamento para a imunidade pretendida.
Ante o exposto, nego provimento à apelação.
É o voto.
450
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
APELAÇÃO CÍVEL Nº 2003.72.01.000969-0/SC
Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Dirceu de Almeida Soares
Apelante: Celso Mario Gochs
Advogados: Drs. Carlos Adauto Virmond Vieira e outros
Apelada: União Federal (Fazenda Nacional)
Advogada: Dra. Dolizete Fátima Michelin
EMENTA
Tributário. Imposto de renda. Percepção acumulada de rendimentos.
Incidência sobre a sua totalidade.
1. Não há ilegalidade na retenção do IR sobre a totalidade das parcelas
de benefícios previdenciários recebidos em atraso, pelo Autor, de forma acumulada, pois tal conduta da Autoridade Previdenciária encontra
respaldo legal no art. 12 da Lei 7.713/88, regulamentada pelo art. 56
do Decreto nº 3.000/99. 2. Precedentes desta Corte no sentido de que o
chamado “regime de caixa” não viola as disposições do CTN, também
não havendo falar em ofensa ao princípio da capacidade contributiva
(art. 145, § 1º) ou de efeito confiscatório da exação, pois o art. 12 da Lei
7.713/88 determina que, nas hipóteses de percepção acumulada de rendimentos, serão considerados na sua totalidade, incidindo o IR de forma
proporcional à renda auferida. 3. Em relação à incidência sobre os juros
de mora, tal possibilidade encontra-se albergada no art. 640 do RIR/99.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide
a 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade,
negar provimento ao apelo, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Porto Alegre, 9 de março de 2004.
Des. Federal Dirceu de Almeida Soares, Relator.
RELATÓRIO
O Exmo. Sr. Des. Federal Dirceu de Almeida Soares: Trata-se de
ação de repetição de indébito ajuizada contra a União, objetivando a
restituição do Imposto de Renda Retido na Fonte sobre os valores receR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
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bidos pelo Autor através de precatório, relativamente a diferenças nos
valores da aposentadoria percebida pelo Autor, sustentando, em síntese,
que percebeu várias parcelas acumuladas. Refere, ainda, que a soma das
parcelas ultrapassou o limite legal de isenção para os rendimentos, mas
que, consideradas mensalmente, de forma individual, os valores recebidos
se manteriam dentro da faixa de isenção.
Sobreveio sentença, julgando improcedente o pedido veiculado na inicial, ao fundamento de que o IR adota o “regime de caixa ou financeiro”,
consumando-se o fato gerador com a disponibilidade dos rendimentos
auferidos, no caso, os benefícios atrasados. Condenou o Demandante ao
pagamento de honorários advocatícios, arbitrados em 10% sobre o valor
da causa (R$ 10.000,00).
Insurgiu-se o vencido, sustentando que o pagamento previdenciário
com atraso, acumuladamente, não poderia sofrer desconto a título de imposto de renda. Presentes as contra-razões, subiram os autos a esta Corte.
É o relatório.
VOTO
O Exmo. Sr. Des. Federal Dirceu de Almeida Soares: A retenção contra
a qual se insurgiu o Autor encontra-se prevista em lei, mais precisamente
no art. 12 da Lei 7.713/88, in verbis:
“No caso de rendimentos recebidos acumuladamente, o imposto incidirá, no mês
do recebimento ou crédito, sobre o total dos rendimentos, diminuídos do valor das
despesas com ação judicial necessárias ao seu recebimento, inclusive de advogados,
se tiverem sido pagas pelo contribuinte, sem indenização.” (grifei)
Já o Decreto nº 3.000, de 26.03.99, ao regulamentar tal dispositivo
legal, dispôs:
“Art. 56. No caso de rendimentos recebidos acumuladamente, o imposto incidirá
no mês do recebimento, sobre o total dos rendimentos, inclusive juros e atualização
monetária (Lei nº 7.713, de 1988, art. 12).
Parágrafo único. Para os efeitos deste artigo, poderá ser deduzido o valor das despesas com ação judicial necessárias ao recebimento dos rendimentos, inclusive com
advogados, se tiverem sido pagas pelo contribuinte, sem indenização (Lei nº 7.713,
de 1988, art. 12).” (grifei)
Esta Corte já decidiu que o chamado “regime de caixa” não ofende o
art. 43 do CTN. Vejam-se, a propósito, os seguintes julgados desta Corte:
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R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004
ARGÜIÇÃO DE
INCONSTITUCIONALIDADE
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 453-465, 2004
453
454
R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 453-465, 2004
INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE NA AC
Nº 96.04.28893-8/PR
Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Dirceu de Almeida Soares
Apelantes: Imaribo S/A Ind. e Com. e outro
Advogados: Drs. Christiano da Rocha Kuster Neto e outros
Drs. Geraldo Bemfica Teixeira e outr
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QUARTA REGIÃO - Tribunal Regional Federal da 4ª Região