Prémio Literário Hernâni Cidade 2000
Câmara Municipal de Redondo
Libertário dos Santos
*
O Lápis Azul
Mesmo à frente deles, do outro lado da estrada, no muro antigo que já nada cerca
ou protege, sombra de outro que já não existe, altivo e ameaçador, cresceram, de um dia
para o outro, parcas mas enormes palavras, formadas por ameaçadoras letras de forma,
negra mancha no muro que fora branco.
Ninguém no acampamento soube dizer quem as tinha escrito ou porquê; também
ninguém se preocupou com isso. Para eles aquelas palavras nada diziam, aliás, nenhuma
palavra escrita lhes falava. Por um breve instante, estremunhados, olharam as palavras,
seguindo-lhes o contorno, avaliando-lhes o tamanho, e voltaram-lhes as costas,
aceitando placidamente o muro assim adornado, indiferentes.
Só uma criança tentou juntar as letras, mastigando-as com esforço, cuspindo-as
lentamente: F-O FO, R-A RA, FO-RA, FORA. A palavra fora. Sorriu, conhecia essa
palavra. Gostava de estar cá fora, andar por fora, por aí fora. “Fora”, gritou com alegria
e saiu a correr atrás da carroça, os pés descalços, esquecidos já das palavras negras.
Na pequena sala rectangular, sentou-se na última fila, junto à porta, sentindo-se
cercado pelas paredes, hostis apesar dos desenhos coloridos que as cobriam. “Hoje li a
palavra fora, alguém a escreveu no velho muro com grandes letras pretas”, disse,
sôfrego, no momento em que a professora passava ao pé de si, “quando voltar vou ler o
resto; amanhã digo-lhe o que está lá escrito; já sei ler muito bem, ninguém lê como eu
no acampamento.” Riu alto e concluiu triunfante, “Sou o melhor”, olhando a professora
como que à espera de confirmação. “Tens de vir mais vezes à escola e trazer livros,
cadernos, lápis e canetas”, advertiu-o ela com um sorriso ríspido no rosto jovem, “Vê se
não te esqueces, está bem?”, completou, examinando-lhe com atenção o cabelo crespo.
No recreio, correu solto, gritando aos colegas, aos pássaros e às arvores. Um
menino atirou-lhe uma pedra que lhe acertou nas costas, produzindo um lamento cavo.
Voltou-se, as lágrimas a assomarem, e viu-o a rir-se, ufano da sua pontaria. Pegou na
vassoura que a empregada deixara encostada à porta e, brandindo-a como um
estandarte, perseguiu o ofensor até à saleta do andar de cima onde as professoras
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Luis Fernando Sequeira da Silva Nogueira
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tomavam chá. Sobressaltadas, levantaram-se subitamente, no meio de finos gritos de
protesto quase histérico.
A criança trigueira, parada ao cimo das escadas, segurava agora a vassoura como
se fosse começar a varrer, e no seu rosto desenhava-se um sorriso contido a custo. “Vais
já para casa de castigo, onde já se viu um comportamento assim! È todos os dias a
mesma coisa. Sempre a causar problemas”, decidiu de pronto a professora, esgrimindo
um dedo austero na sua direcção, enquanto acariciava o cabelo do menino colado às
suas pernas.
Antes de cumprir a ordem, foi à sala de aulas e desarrumou papéis, livros,
cadernos, lápis, borrachas e mais o resto que estava em cima das mesas, espalhando
tudo pelo chão. Numa súbita inspiração, tirou uma folha e um lápis e saiu a correr. Um
colega que ia a passar no corredor, viu o filme todo e fugiu atrás dele, a gritar, logo
seguido por outros, sempre mais, pátio fora, num irado jogo do apanha. “Cobois ‘trás do
índio”, disse o Miguel, disparando balas imaginárias que falharam o alvo, pois o
fugitivo estava já em segurança, para além do muro que transpusera ágil e veloz, sem
largar os seus troféus.
Atravessou o largo num vertiginoso slalom, rodeando o pelourinho, guinando
pela direita dos dois velhos que olharam para trás, inquietos, a ver se vinha perto quem
perseguia o diabo do ciganito; esgueirou-se por entre as três mesas do café à esquina,
perturbando os plácidos jogadores de dominó que lhe atiraram desprendidos, o fito no
jogo, um abafado “cigano dum cabrão”. Só o poeta, atento e sonhador, viu uma criança
pobre, suja, de olhos brilhantes e ávidos, passeando como uma brisa alegre no terreiro
triste.
Ao fim da tarde, cansado de correrias, deitou-se de barriga para baixo, na erva
que cobria o pequeno cabeço erguido sobre a estrada como a crista de uma onda, e
recomeçou a leitura matinal. A primeira palavra era fora, lembrava-se bem, mas leu-a
outra vez com orgulho. A seguir, C-O CO, e depois um M, um mê, CO-MÊ. Mas que
raio era aquilo, estranhou. Come, só podia ser come, mas que porra queria dizer fora
come! Intrigado, coçou a cabeça, pensativo. A professora podia ajudá-lo, concluiu,
olhando o papel e o lápis à sua frente no chão.
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Copiou afincadamente, uma a uma, as letras, as palavras, desenhando-as com
deleite, até a folha de papel conter uma imagem perfeita do mistério do muro. Ainda
mal acabar e eis que o pai o chamou, imperativo; levantou-se de um pulo e correu para
ele, esquecido já da folha onde se podia ler em letras sinuosas, e irregulares a frase
“FORA COM OS CIGANOS”.
Um golpe de vento, repentino, agarrou a folha num arremedo de fuga, o lápis
azul rolou ligeiro, perseguindo-a até ela se imobilizar, o seu voo suspenso, oferecendolhe, submissa, uma superfície imaculada onde ele dançou, álacre e feliz, a palavra
LIBERDADE.
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3º Prémio - 2000 - O lápis azul - Luis Fernando - pt