Psicanálise e psicopatologia – ciência e clínica
Luiz Eduardo de Vasconcelos Moreira
O presente trabalho é resultado de reflexões advindas da realização da
pesquisa – fruto da cooperação internacional entre o Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo e a Universidade Rennes II – intitulada “Estudo
comparativo internacional das marcas auto-infligidas à luz do laço social
contemporâneo: funções das tatuagens e escarificações na economia psíquica dos
jovens adultos: gênese, relação aos corpos, solução subjetiva”. Esta pesquisa colocase sob o marco referencial da psicanálise, ao mesmo tempo em que se desenvolve sob
duas vertentes principais. Por um lado, ela prevê a realização de uma ou duas
entrevistas, cada uma com aproximadamente 45 minutos de duração, a partir de um
roteiro semi-estruturado, desenvolvido especialmente para este fim e que busca
recolher elementos de anamnese ou biográficos sobre os seguintes tópicos: esboço da
história infantil, vida familiar, modo de vida, modalidades relacionais, pensamentos
íntimos e atividade onírica ou fantasmática; essa entrevista, transcrita em sua
totalidade e marcando os diferentes fenômenos de enunciação, é posteriormente
analisada segundo uma grade de referência, buscando-se a formulação de uma
hipótese estrutural para cada um do entrevistados. Por outro lado – e
concomitantemente à realização de entrevistas – prevê-se a aplicação de um
questionário organizado a partir de eixos semelhantes aos das entrevistas, visando ao
acúmulo de dados para tratamento estatístico e a uma abordagem epidemiológica de
certa população em estudo, a saber, jovens adultos, e de certa pergunta de pesquisa, a
saber, a relação com o corpo como solução subjetiva.
O estudo comparativo internacional divide-se, pois, em duas vertentes: uma
qualitativa, cujo cerne encontra-se na realização de entrevistas, e outra quantitativa,
por meio da aplicação de questionários. Esta segunda vertente, que para alcançar seus
objetivos lança mão de recursos comumente encontrados em outras pesquisas de
caráter epidemiológico – e gostaríamos de salientar que não é essa simples unidade de
instrumentos que a tornaria imediatamente uma pesquisa epidemiológica –, tais como
questionários e tratamento estatísticos dos dados obtidos, parece-nos claramente fora
do campo da psicanálise.
Cada uma delas, por caminhos distintos, suscita questões sobre a prática de
fazer pesquisa em psicanálise e, em um recorte mais específico, sobre essa prática da
pesquisa em psicanálise em um contexto acadêmico. Em um segundo momento dessas
questões, podemos inquirir-nos sobre a relação entre pesquisa em psicanálise e ciência
– afinal, faz-se ciência ao pesquisarmos em psicanálise?
Essas questões não são novas ou inéditas. A história da psicanálise mostra-nos
exatamente o contrário: uma tensão permanente entre psicanálise e ciência e
psicanálise e universidade.
Freud, médico de formação, realizou pesquisas que poderiam ser chamadas
“científicas” em sua Viena fim-de-século e, muito provavelmente, ainda hoje:
trabalhou na dissecação de enguias, ao estudar seu sistema reprodutor; depois
trabalhou com Brücke nas áreas de anatomia e fisiologia. É fato conhecido que
também estudou a cocaína. Freud tinha treinamento em pesquisa científica.
Abandonou a carreira científica e acadêmica em função dos baixos salários, que não
permitiriam que se casasse com Martha Bernays.
Sua grande inovação deu-se fora dos laboratórios, no exercício da clínica,
instado por suas pacientes histéricas: a psicanálise. A intuição clínica de Freud levouo a escutar seus pacientes, a instaurar um campo terapêutico em que o exercício da
clínica se dá por meio da fala e da escuta. O desenvolvimento teórico da psicanálise
deu-se sempre a partir da clínica, e foi marcado por rupturas. Com suas reviravoltas
teóricas, Freud sempre deixou claro a primazia de seus pacientes sobre seus modelos
teóricos.
E, no entanto, Freud preocupava-se com o status científico da psicanálise.
Junto com analogias a diferentes ciências, apostava que muitas de suas descobertas
clínicas seriam comprovadas pelo futuro desenvolvimento da ciência. Sua posição de
que a psicanálise de fato faz parte de uma visão de mundo (Weltanschauung)
científica, e não da religião, da arte ou do socialismo, é cristalina ao longo de sua
conferência XXXV. Curiosamente, não há, ali, nenhuma menção à clínica.
A problemática da cientificidade da psicanálise é retomada por Lacan que, em
determinado momento de sua produção teórica, mostra-se empenhado em que ela seja
a “ciência da linguagem habitada pelo sujeito”. Desde Freud, muita água havia
passado por debaixo da ponte da filosofia e da epistemologia: se, por um lado, o ideal
iluminista de uma ciência objetiva e mecanicista baseada na Razão fora posto em
xeque pelas próprias concepções freudianas, o debate em torno do estatuto da
psicanálise ainda continuava. Em seu esforço nesse sentido, Lacan mostra que a
concepção de ciência precisaria sofrer modificações a fim de acomodar a psicanálise e
a idéia de que a verdade é, ela mesma, uma ficção. Curiosamente, em seu texto sobre
a ciência e a verdade não há, mais uma vez, nenhuma menção à clínica. A
necessidade de que a psicanálise seja reconhecida como ciência parece se impor
mesmo com a introdução dos discursos: a ciência não seria nada mais do que um
discurso entre todos os outros; a ciência seria, também, não mais do que uma fantasia.
Essa imposição parece estar intimamente ligada com o recebimento da
psicanálise no Brasil: a universidade (e não seria demasiado lembrarmos, aqui, da
relação que existe entre o discurso do universidade e o discurso da ciência) abriga
grande parcela da pesquisa brasileira, e a psicanálise encontra-se espalhada pelos mais
diferentes departamentos. Pesquisar e fazer ciência colocam-se, então, como
condições para certo reconhecimento na universidade de que a posição ocupada pela
psicanálise é legítima.
É com esse quadro que queremos retomar nossas reflexões baseadas na
realização da pesquisa sobre marcas corporais em jovens adultos, pois entendemos
que ela nos apresenta exatamente o mal-estar constitutivo da relação entre ciência e
psicanálise, bem como dos problemas em se fazer pesquisa em psicanálise. A
realização de entrevistas e sua posterior análise levaram à necessidade de se formular
uma análise do discurso psicanaliticamente orientada. Este seria o dispositivo que,
mesmo fora de um enquadre clínico, permitiria que a análise das entrevista se situe
dentro do campo psicanalítico e use operadores e conceitos psicanalíticos.
Notadamente, esse dispositivo deve permitir que, ao fim do trabalho com as
entrevistas, seja formulada uma hipótese diagnóstica.
A idéia de uma análise do discurso não é nova, nem constitui per se uma
orientação teórica propriamente dita. Tradicionalmente preocupada com a análise de
textos, diferentes orientações apropriaram-se, de maneira diferente, de concepções
psicanalíticas. Ou seja, também a idéia de uma análise do discurso psicanaliticamente
orientada não é nova, como também não é o estudo de entrevistas transcritas. O
desafio a ser ultrapassado é, insistimos, a possibilidade de, por meio desse dispositivo
e na falta do enquadre clínico, a formulação de uma hipótese diagnóstica. Foi essa
necessidade de se pensar a função das marcas corporais em diferentes estruturas e no
estabelecimento do laço social que marca a especificidade da pesquisa em questão.
É aqui que, acreditamos, as maiores questões se nos colocam. Como dissemos,
parece claro que, ao fazer pesquisa em psicanálise, o enquadre clínico ocupou e ocupa
um lugar privilegiado. A psicanálise, como experiência clínica, coloca-se em
interlocução direta com a psicopatologia e constitui-se como uma diagnóstica que
compartilha com a psiquiatria uma série de termos sem que, não nos enganemos, a
concepção de diagnóstico, das categorias nosográficas e da própria psicopatologia se
confundam. É por isso que podemos afirmar que a clínica psicanalítica constitui-se
como uma práxis específica.
Retomemos a questão das entrevistas em relação ao diagnóstico. Deixemos de
lado a questão de uma possível naturalização de categorias diagnósticas (pois
teríamos aqui um instrumento desenhado em função de categorias, e não aberto à
experiência da escuta clínica). Poderíamos perguntar, por exemplo, quão central é a
idéia de que o diagnóstico, em psicanálise, dá-se na transferência – ou, então, como se
dá o manejo da transferência em uma entrevista semi-estruturada. Ou, ainda, como se
pode fazer uma hipótese de diagnóstico estrutural quando o que está em tela seria um
epifenômeno, a saber, as marcas corporais? As entrevistas já realizadas mostram, sim,
que “material clínico” vem à tona – mas seria essa uma condição suficiente para
permitir a aproximação das situações – entrevista e clínica – e, por conseguinte, o
diagnóstico? Ou, ao contrário, o que se apresenta é uma solução de compromisso a
partir da derivação da noção psicanalítica, digamos, de transferência?
Não podemos enunciar nossa questão de maneira mais clara do que esta: como
podemos fazer pesquisa em psicanálise a partir de um diagnóstico sem, no entanto, o
enquadre clínico? Quanto uma “pesquisa psicanalítica de extração clínica”, sem
enquadre clínico, não esconderia, por sua vez, que a própria especificidade da práxis
psicanalítica é a clínica?
Download

Psicanálise e psicopatologia – ciência e clínica Luiz Eduardo de