Sobre a paixão de Cristo
Eloá Muniz
A Paixão de Cristo estreou no Brasil no dia 19 de março,
dando seqüência ao sucesso do filme nas bilheterias norteamericanas. Na primeira semana de exibição 670.000 cinéfilos
em 512 salas de todo o país deram mostra do sucesso de
bilheteria do filme. Na segunda semana já eram mais de dois
milhões os expectadores do polêmico filme dirigido por Mel
Gibson.
A Paixão de Cristo retrata as últimas 12 horas da vida de
Jesus e, segundo afirmação do próprio Gibson, é “um longa-metragem sobre fé, esperança, amor e
perdão (...) acerca do sacrifício de Cristo” em entrevista à rede de TV ABC, no programa Primetime.
Creio que o filme vai além. Ele traz alguns pontos importantes que requerem uma reflexão mais
pontual e com um pouco mais de distanciamento religioso sobre o próprio Cristo e suas circunstâncias.
O Cristo angustiado, vacilante e com medo, surpreende logo nas primeiras cenas. Seu olhar
procura seus discípulos e os encontra em sono profundo. “Não conseguem vigiar nem por uma hora?”
reclama Jesus. “Fiquem aqui. Vigiem. Orem”, diz Jesus impaciente. Este Jesus homem nos choca por vir
de encontro com a imagem romântica existente no imaginário popular.
A androgenia do personagem com olhar vazio, inserida na história sem uma função definida,
evoca sentimentos contraditórios dando conta da dualidade característica da sociedade contemporânea,
mostrando sempre a ambigüidade: medo-confiança, lascividade-castidade, tentação-pecado, paixão-fé,
amor-esperança e morte-ressurreição. O não entender a razão da existência deste personagem instiga e
ao mesmo tempo coloca o expectador numa zona de desconforto. Seria o espelho? Mas, quando Jesus
mata a cobra com o calcanhar alivia a tensão, pois resgata o paraíso perdido por Eva e alimenta de novo o
imaginário.
É surpreendente, sem dúvida, que Maria, mãe de Jesus, não tenha o rosto angelical. É uma
mulher de traços fortes e marcados. Sua beleza reside no olhar firme e determinado.
Jesus Cristo é preso e julgado. Maria acorda no meio da noite sobressaltada como qualquer mãe
que pressente um acontecimento ruim. Quando é avisada já não se surpreende, sai na tentativa de ajudar
seu filho mais velho.
Maria, vestida de preto, vê Cristo acorrentado e sangrando sendo levado ao local do julgamento.
Em vários momentos, durante a exposição de Jesus ao povo, seu olhar encontra o do filho e o estimula a
ser corajoso. Quando Pilatos tentou persuadir o povo a aceitar como punição o castigo físico, Maria
lembrou do filho como um jovem carpinteiro, inovador na construção dos móveis, irreverente nas atitudes e
muito alegre. Jesus é levado ao castigo e seu olhar se fixa nos olhos de Maria. Ela torna a encorajá-lo e diz,
“começou Senhor. Que assim seja”. Ela reza e perambula atônita e resignada.
A brutalidade da cena do castigo choca. Talvez porque é uma forma de punição ainda existente
na sociedade global. Singapura e Nigéria são alguns exemplos. Um Cristo que sente dor, sofre e se
contorce. O mito revelado homem. Ele resiste e é no olhar de Maria que se consola. Seu olhar firme
encoraja Jesus, mas seu sofrimento é interiorizado.
O roteiro do filme aborda clichês do evangelho - Mateus, Marcos, Lucas e João - e sobre isso
não há nada de novo. Se o mundo odiar você, lembra-te que eu fui odiado antes. Nenhum servo é maior do
que seu mestre. As lembranças são estímulos e reforço à fé quando tudo está de cabeça para baixo. O olho
da câmera no filme é o lugar de onde o diretor está vendo a cena. Assim, o olhar às vezes é de Maria, de
Maria Madalena, de Cristo, do público ou de seus inimigos. Mas sempre o olhar.
Pilatos e a esposa, o olhar, o lavar das mãos e a sentença. Crucificação. Cristo acorrentado e
ensangüentado procura o olhar de Maria, sua mãe. Ela quer chegar perto e procura pelas vielas descobrir
um jeito. Encontra. Antes, porém, pensa nele menino brincando, caindo e ela amparando, cuidando. As
lembranças fortalecem seu espírito. Quando Jesus cai com a cruz sobre os ombros é ela que ampara. “Eu
estou aqui”, ela diz. Jesus acaricia seu rosto e diz: “Mãe eu removo todas as coisas”. Levanta e continua
levando a cruz. O soldado pergunta: “Quem é aquela?” “Ela é a mãe do Galileu.”, diz o outro. Amparada pelo
filho Tiago e por Maria Madalena ela segue.
Durante a crucificação Maria mantém o olhar fixo no filho. Cristo repete os clichês. Amem-se uns aos
outros, como eu vos amei. Eu sou o caminho, a verdade e a vida e ninguém irá ao pai senão por mim.
Perdoe Pai! Eles não sabem o que fazem. Este é o meu sangue. Sangue de uma nova aliança que foi
derramado por vós e por muitos outros como perdão dos pecados. Fazei isso em minha memória.
Maria se aproxima da cruz com olhar e passos determinados. O soldado se afasta e ela beija-lhe os
pés e diz, “carne da minha carne. Coração do meu coração. Meu filho deixe-me morrer com você.” A
imagem de Maria mito dá lugar a Maria mãe. Seu último olhar é de amor pelo filho. Morto, Cristo é retirado da
cruz e entregue à Maria. O abraço, o beijo e o olhar agora perdido sublimado pelo sofrimento.
Esta foi, sem dúvida, a maior contribuição do filme de Mel Gibson. O olhar feminino na história da
Paixão de Jesus Cristo.
Sobre a paixão de Cristo, Análise discursiva sobre o filme de Mel Gibson, publicado no Jornal Mulher, Nº 36, p. 16, abril/2004, Porto
Alegre, RS; www.coletiva.net.com.br, (newsletter) em 22/04/2004, Porto Alegre, RS: Newsletter do Tremsurb, em 05/03/2004,
Portal do Governo Federal, Ministério das Cidades, Brasília, DF; Revista Jurídica Consulex, www.consulex.com.br, Ano VIII- Nº
175, em 30/04/2004; A platéia on line em abril de 2004.
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