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OUTUBRO
2009
- OUTUBRO 2009
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C A D E R N O S M A R I S TA S
COVER MULTILINGUA Cahiers 27:Cahiers 26 COVER ING
C A D E R N O S M A R I S TA S
introdução
•
Ir. Michael GREEN, fms
seleção
de artigos, fruto da pesquisa
no Curso do Patrimônio, Roma, 2008
1. Pesquisa relativa a Champagnat
e à época fundacional
• A inteligência emocional e social
do Pe. Champagnat
Ben Consigli, fms
• O relacionamento entre
Marcelino Champagnat e
o Irmão Francisco
Peter Walsh, fms
2. Pesquisa que versa a história
de uma região particular ou
um aspecto do Instituto
• O começo da Província Marista Alemã
Augustin Hendlmeier, fms
• Rev. Irmão John Samuel Metuh,
1926-2007
Elias Iwu, fms
• A tentativa de fusão da Congregação
da Mãe de Deus com os Irmãos Maristas
na China, entre 1909 e 1912
Robert Teoh, fms
• Escritura e busca de identidade
A descoberta da história do Instituto,
escondida em narrativa bíblica
Colin Chalmers, fms
3. Pesquisa primeiramente relacionada
com a aplicação da inspiração original
marista à realidade atual do Instituto
• Terna afeição: uma questão de
interpretação, inspiração e motivação
Christopher Maney, fms
• A opção pelos pobres
na Província Marista da Nigéria
Benedict Umoh, fms
• O carisma e a missão dos Irmãos
Maristas na Costa do Marfim;
uma reflexão pessoal
Vincent de Paul Kouassi, fms
Instituto do Irmãos Maristas
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FMS Cadernos Maristas:
No. 27 – Ano XX – Outubro 2009
Chefe de redação:
Comisão do Patrimõnio
Diretor técnico:
Ir. AMEstaún
Colaboradores neste número:
Irs. Ben Consigli, Colin Chalmers,
Michael Green, Augustin Hendlmeier,
Elias Iwu, Vincent de Paul Kouassi,
Christopher Maney, Robert Teoh,
Benedict Umoh, Peter Walsh
Tradutores:
Ir. Virgílio Balestro
Ir. Gilles Beauregard
Ir. Francisco Castellanos
Ir. Edward Clisby
Ir. Aloisio Kuhn
Ir. Aimé Maillet
Ir. Moisés Puente
Gabriela Scanavino
Diagramação e Fotolitos:
TIPOCROM Srl - Guidonia (Roma)
Redação e Administração:
Piazzale Marcellino Champagnat, 2
C.P. 10250 – 00144 ROMA
Tel.: (39) 06 54 51 71
Fax: (39) 06 54 517 217
E-mail: [email protected]
Website: www.champagnat.org
Edita:
Instituto dos Irmãos Maristas
Casa Generalícia – Roma
Impressão:
CSC GRAFICA Srl - Guidonia (Roma)
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CONTEÚDO
• Introdução
Ir Michael GREEN
3
Seleção de artigos,
fruto da pesquisa no Curso
do Patrimônio, Roma, 2008
1. Pesquisa relativa a Champagnat
e à época fundacional
A inteligência emocional
e social do Pe. Champagnat
Ben Consigli, fms
15
O relacionamento entre Marcelino
Champagnat e o Irmão Francisco
Peter Walsh, fms
47
2. Pesquisa que versa a história
de uma região particular
ou um aspecto do Instituto
O começo
da Província Marista Alemã
Augustin Hendlmeier, fms
63
Rev. Irmão John Samuel Metuh,
1926-2007
Elias Iwu, fms
79
A tentativa de fusão
da Congregação da Mãe de Deus
com os Irmãos Maristas na China,
entre 1909 e 1912
Robert Teoh, fms
89
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Escritura e busca de identidade
A descoberta da história do Instituto,
escondida em narrativa bíblica
Colin Chalmers, fms
115
3. Pesquisa primeiramente relacionada
com a aplicação da inspiração
original marista à realidade atual
do Instituto
Terna afeição:
uma questão de interpretação,
inspiração e motivação
Christopher Maney, fms
127
A opção pelos pobres
na Província Marista da Nigéria
Benedict Umoh, fms
173
O carisma e a missão
dos Irmãos Maristas na Costa
do Marfim; uma reflexão pessoal
Vincent de Paul Kouassi, fms
195
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INTRODUÇÃO
Ir Michael GREEN,
FMS
O número 27 de Cadernos Maristas dedica-se por inteiro a relatar temas
pesquisados pelos membros do Curso de Patrimônio, que se reuniu na Casa Mãe, entre fevereiro e junho de 2008. O mais significativo componente
do curso há de ter sido o Projeto Individual de Pesquisa, PIP, levado a cabo por cada um dos participantes. A pesquisa compreendeu amplo leque
de tópicos; alguns deles constituem escritos muito interessantes. Nesta edição de Cadernos Maristas, os leitores vão ter a oportunidade de ler parcela
importante desta pesquisa. Os leitores podem obter maiores informes com
cada um dos membros do Projeto Individual de Pesquisa, PIP.
Dezenove Irmãos completaram o programa. Não foi curso de formação
ou de renovação, mas programa acadêmico que requereu nível de pós-graduação e pesquisa. Durante cinco meses, orientados pelo Diretor Acadêmico Irmão Aureliano Brambila de la Mora, cada um dos participantes seguiu uma série de leituras, apresentou artigos abreviados e empreendeu
uma pesquisa pessoal caracterizada. No fim do curso, cada Irmão conduziu
um seminário com o tema do seu PIP e apresentou o texto da sua pesquisa. A maioria desses trabalhos é detalhada e extensa, com cerca de vinte ou
trinta mil palavras, alguns muito mais. Ditos trabalhos estão agora guardados nos Arquivos Gerais e estão disponíveis on line. (Ver abaixo)
Na presente edição, não é possível imprimir toda a versão dos PIP. Dos
dezenove trabalhos do PIP logramos espaço para uma versão abreviada de
nove deles. A versão inteira de todos eles, contudo, é acessível no champagnat.org. website. Entre na “Reserved Section” e abra “Patrimony 2008”.
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Aos participantes foi dado distenso leque de possibilidades para a pesquisa. Alguns Irmãos optaram por focalizar o tempo de Champagnat e dos
primeiros Irmãos; muitos se lançaram na investigação de determinado aspecto da história da sua Província ou região; houve quem se dedicasse a intuir nas fontes históricas o que pudesse aplicar-se à realidade presente da
espiritualidade e missão marista. O fruto da pesquisa, posto lado a lado, forma respeitável contribuição ao patrimônio do Instituto.
Segue breve descrição de cada “projeto individual de pesquisa”, com o
nome da Província e do autor, para eventuais contatos do interessado.
1. PESQUISA RELATIVA A CHAMPAGNAT
E À ÉPOCA FUNDACIONAL
4
Título
A compreensão social e emocional do Pe. Champagnat
Autor
Irmão Ben Consigli, Província dos Estados Unidos da América
Contato
[email protected]
Língua; extensão
Inglês; 93 páginas
Resumo
As cartas de Marcelino são visualizadas por lentes contemporâneas. O constructo teórico do social e emocional desenvolvido por escritores modernos, como Howard Gardner, Daniel Goleman e Karl Albrecht aplicam-se à análise de Marcelino Champagnat, como o revelam as suas cartas. Marcelino comparece
dono de competência, madureza, autoconsciência, autonomia
gerencial, judiciosa competência social e de relacionamento.
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INTRODUÇÃO
Título
O Pe. Champagnat, conselheiro e mestre espiritual
Autor
Irmão Godfrey E. Perera, Província da Ásia Sul
Contato
[email protected]
Língua; extensão
Inglês; 67 páginas
Resumo
Mediante a consideração de 13 cartas do Pe. Champagnat e 3 das
suas Circulares, pinta-se o retrato do Fundador: perito conselheiro e guia espiritual. Particulares atributos de Marcelino são
identificados, incluindo estes: habilidade em perdoar e reconciliar, amor e afeição, preocupação com os enfermos, empatia e
compreensão, sábia direção dos Irmãos e senso de humor. Também se aprecia a sua sinceridade e perícia em perceber os sentimentos dos seus subordinados e com eles lidar. A profundeza
da sua introvisão espiritual é revelada. As enaltecidas características da sua orientação espiritual são propostas: subm issão à
vontade de Deus, bom exemplo, confiança na divina Providência, encorajamento espiritual, segurança das orações, humildade, caridade, presença de Deus e aconchego a Maria.
Título
O relacionamento de Champagnat com o Irmão Francisco revelado pelas cartas do Fundador, pelas Circulares do Irmão Francisco sobre Champagnat, e em outros documentos maristas.
Autor
Irmão Peter Walsh, Província de Melbourne
Contato
[email protected]
Língua; extensão
Inglês e Francês; 110 páginas
Resumo
Constitui reflexão crítica das cartas de Paris ao Ir. Francisco (1836
e 1838); das Circulares do Ir. Francisco sobre Champagnat (1840
e 1857) e de outras testemunhas, Pompallier e Jean Baptiste, visando definir a natureza do relacionamento do Fundador com
o seu Sucessor. Faz-se a análise temática dos documentos. Conclui-se que o relacionamento tem estas notas: (1) essencialmente
saudável e funcional, marcado por mútua confiança, interesse,
individualidade, transparência, responsabilidade partilhada; (2)
multifacetado e multiestratificado; (3) evoluiu e amadureceu ao
longo do tempo; (4) era doador de vida da parte de ambos.
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2. PESQUISA QUE VERSA A HISTÓRIA DE UMA REGIÃO
PARTICULAR OU UM ASPECTO DO INSTITUTO
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Título
O começo da Província Marista Alemã
Autor
Irmão Augustin Hendlmeier, Província da Europa Centro Oeste
Contato
[email protected]
Língua; extensão
Inglês e Alemão; 68 páginas
Resumo
A história da fundação alemã se apresenta em quatro fases: (1)
os primeiros anos da autorização de casas na Alemanha, quando
os Irmãos eram formados e viviam fora do país, 1888-1912; (2) a
fundação na Alemanha, 1912-1915; (3) de 1915 a 1945; (4) depois da Segunda Guerra Mundial. A maior porção deste PIP compreende a tradução do francês para o alemão de 27 documentos,
entre cartas e relatórios, guardados nos Arquivos Gerais, referentes à fundação e desenvolvimento dos Irmãos alemães.
Título
Escrita e pesquisa de identidade: em busca da história do Instituto, escondida em narrativa bíblica
Autor
Irmão Colin Chalmers, Província da Europa Centro Oeste
Contato
[email protected]
Língua;extensão
Inglês; 34 páginas
Resumo
Parte de dissertação que visava ao grau de Mestre, este texto examina um período da história do Instituto, como narração deste
período, escondida em descrição bíblica. O texto em questão
abarca o período que medeia os Capítulos Gerais de 1967 e 1985.
Tal interlúdio é chamado “período transformativo”. A narrativa,
de timbre escritural em que se esconde, é proposta como reiterada experiência do povo judeu, por ocasião do “cativeiro da
Babilônia”. Lendo esta história na luz da experiência do Antigo
Testamento, o Instituto pode aprofundar a compreensão do lugar e da ação de Deus na narrativa da própria identidade e formação, esforçando-se em descobrir o que pode ser lido no evento da Escritura; pode-se continuar a aprofundar o apelo e a possibilidade como o povo escolhido por Deus.
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INTRODUÇÃO
Título
Biografia do Irmão Jonas Anaclet Kanyumbi Phiri
Autor
Irmão Auxensio S. Dickson, Província da África Austral
Contato
[email protected]
Língua; extensão
Inglês; 59 páginas
Resumo
No contexto da história da Igreja Católica e dos Irmãos Maristas
no Maláui, relata-se a vida de alguém da primeira geração de
malauianos que se tornaram Irmãos Maristas. O Irmão Anacleto
de 1932 a 1993. Fez-se Irmão Marista como professor, onze anos
depois da chegada dos Irmãos canadenses. Ele exerceu cargos
importantes no seu Distrito: diretor, recrutador de vocações e
mestre de noviços. Imensa foi a sua influência sobre alunos, confrades e outras pessoas.
Título
A pastoral das vocações na África Central de 1958 a 2008
Autor
Irmão Georges Palandre, Província de l’Hermitage
Contato
[email protected]
Língua; extensão
Francês; 97 páginas
Resumo
Resumindo a história das fundações missionárias católicas e maristas na África Central, o relato examina com espírito crítico a promoção das vocações locais. Diversas fases são propostas: (1)
abordagem tradicional, que foi seguida de 1956 a 1966; (2) o vácuo de vocações depois do Concílio e dos eventos de 1968 em
Paris, e as diversas motivações que levaram alguns Irmãos franceses ao país, fase que vai até o meio de 1970; (3) a tentativa de
recuperação, de 1974 a 1982; (4) as várias tentativas com novas
casas de formação inicial, até 2002; (5) a situação de reestruturação da nova Província da África Centro Leste. O autor expressa esperança para o futuro.
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Título
Um simples Irmão que você precisa conhecer: Rev. Irmão John
Samuel Metuh 1926-2007
Autor
Irmão Elias Iwu, Província da Nigéria
Contato
[email protected]
Língua; extensão
Inglês; 38 páginas
Resumo
John Samuel Akwulum-Okwulu Metuh nasceu em família real e
proeminente nesta sua região. Batizado com 13 anos, ele completou a formação de professor antes de ingressar na Congregação de São Pedro Claver. No tempo da sua profissão, este grupo foi incorporado pelos Irmãos Maristas. O Irmão John distinguiu-se como brilhante professor e religioso. Na Província Marista da Nigéria, ele foi promotor vocacional e formador, como
também deu apoio aos leigos maristas na sua vocação. A vida
do Irmão John constituiu um padrão de simplicidade, humildade, modéstia e amor.
Título
O impacto dos Irmãos Maristas no ensino da República Democrática do Congo
Autor
Irmão Henri Bashizi, Província da África Centro Leste
Contato
[email protected]
Língua; extensão
Francês; 95 páginas
Resumo
Abarca-se a história da atividade missionária católica no Congo,
a partir dos primeiros missionários belgas de 1880, até a chegada dos primeiros quatro Irmãos Maristas a Kisangani em 1911,
até os dias atuais. A história do estabelecimento e desenvolvimento de cada uma das fundações maristas no país é relatada,
com descrição das características espirituais e pedagógicas da
missão dos Irmãos. Há uma consideração das dificuldades e desafios que os Irmãos tiveram de enfrentar, incluindo clima, enfermidades, adaptações no período pós-colonial, a nacionalização das escolas, conflitos políticos e tribais, declínio financeiro,
escolas com recursos deficientes, baixo número de vocações e
ensino de baixa qualidade. Propõem-se algumas sugestões para o futuro, incluindo recomendações a respeito de instituições
específicas, e mais propostas gerais de pagamento justo dos professores e de maior envolvimento do laicato mais instruído na
missão da Igreja e da Província.
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INTRODUÇÃO
Título
A tentativa de fusão da Congregação da Mãe de Deus com os Irmãos Maristas na China, entre 1909 e 1912
Autor
Irmão Robert Teoh, Província da Ásia Leste
Contato
[email protected]
Língua;extensão
Inglês, chinês e francês; 24 páginas, mais o apêndice.
Resumo
Dos documentos originais, guardados em Roma, tece-se uma narração crítica acerca da tentativa de amalgamar uma Congregação chinesa local, Irmãos da Mãe de Deus ou Maternistas, com
os Irmãos Maristas, no começo do século XX. Propõem-se razões
pelo ocorrido abandono de fusão; algumas conclusões são desenhadas para as realidades modernas do Instituto, especialmente
aquelas da reestruturação. É de importância a necessidade do respeito recíproco das culturas e cumpre efetivar acomodações para tal escopo, tanto na formação como na vida de comunidade:
aprender a língua do outro, encarar os outros como iguais, assegurando uma genuína união e não mera amalgamação.
Título
A fundação e o começo dos Irmãos Maristas na Coreia do Sul,
1971-2007
Autor
Irmão Juan F. Castro Lenero, Província da Ásia Leste
Contato
[email protected]
Língua; extensão
Inglês, coreano e espanhol; 153 páginas, mais apêndice.
Resumo
Os 35 anos de presença Marista na Coreia do Sul são relatados
em detalhe, a partir da sua fundação por Irmãos mexicanos, até
a formação do Setor Coreano, do estabelecimento do Distrito da
Coréia, até a reestruturação como parte da nova Província da
Ásia Leste. Muitos documentos são usados, traduzidos do coreano e do castelhano para o inglês. Descreve-se o crescimento
do Distrito, a inculturação da vida marista na cultura coreana, as
várias mudanças nas abordagens da formação, as decisões acerca do foco apostólico e da própria retirada dos Irmãos estrangeiros. Alguma reflexão crítica é oferecida à situação presente e
às futuras direções, incluindo os temas vocações e formação, opções apostólicas, e os desafios da internacionalidade para os Irmãos coreanos.
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Título
Os 60 anos dos Irmãos Maristas nas Filipinas.
Autores
Irmãos Niño M. Pizarro e Demosthenes Calabria, Província da
Ásia Leste
Contato
[email protected]; [email protected]
Língua; extensão
Inglês; 134 páginas, mais apêndice
Resumo
As histórias das Filipinas e da Igreja naquele país são relatadas,
como prelúdio da história da fundação e do desenvolvimento
dos Irmãos Maristas aí. Os documentos e eventos acerca das decisões para se estabelecerem nas Filipinas são apresentados, antes do levantamento da história de cada fundação, desde 1948,
e dos Irmãos individualmente, especialmente dos Estados Unidos, que representaram papel chave em tais desenvolvimentos.
A última parte do texto discute as suscetibilidades acerca dos
Irmãos filipinos, que reclamam a sua própria identidade e autonomia e alguns dos desafios e prioridades dos Irmãos nas Filipinas hoje, incluindo prioridades apostólicas, vocações e reestruturação.
Título
Noviciado especial para países africanos de língua francesa, 19941996
Autor
Irmão Pierre Joseph Rasolomanana, Província de Madagascar
Contato
[email protected]
Língua; extensão
Inglês 44 páginas
Resumo
A experiência rara dos Irmãos, especialmente os malgaxes, é recontada: começaram o noviciado em Nyangezi, Congo, em setembro de 1994; daí foram a Bangui, na África Central, em 1995;
após, Notre Dame de l’Hermitage, França, no meio de 1996. O
relato afirma que esse noviciado itinerante de dois anos é contrário aos documentos do Instituto, às Constituições e ao Guia
de Formação, contra algumas Circulares recentes dos Superiores Gerais e contra os contextos maristas em que o se desenvolve, como o ambiente cultural e político. A iniciativa constitui episódio diminuto e único na história do Instituto.
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INTRODUÇÃO
3. PESQUISA, PRIMEIRAMENTE, RELACIONADA COM
A APLICAÇÃO DA INSPIRAÇÃO ORIGINAL MARISTA
À REALIDADE ATUAL DO INSTITUTO
Título
Uma terna AFEIÇÃO : uma questão de interpretação, inspiração e motivação
Autor
Irmão Christopher Maney, Província da Nova Zelândia
Contato
[email protected]
Língua; extensão
Inglês; 64 páginas
Resumo
“Uma terna afeição”, expressão usada por Marcelino na sua Circular de 19 de janeiro de 1836; aqui se propõe uma intuição de
conexão para interpretar muitos escritos de Marcelino e outros
documentos fundacionais, bem como textos contemporâneos,
incluindo recentes Circulares dos Superiores gerais, artigos de
especialistas maristas modernos e as teorias de Maslow e Erikson. As conclusões são trazidas à tona para eventuais aplicações na missão da Província da Nova Zelândia.
Título
Opção pelos pobres na Província Marista da Nigéria
Autor
Irmão Benedict Umoh, Província da Nigéria
Contato
[email protected]
Língua; extensão
Inglês; 54 páginas
Resumo
Alguns elementos essenciais do ensino da Igreja quanto à justiça social e alguns exemplos das intuições de justiça social de
Marcelino são ponderados em análise crítica, no concernente
às opções do ministério do passado e do presente, para cotejo
com os elementos empobrecidos da Província da Nigéria. Algumas necessidades emergentes dos jovens nigerianos são identificadas e propostas à consideração como possível foco futuro
da missão da Província.
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Título
Na encruziliada da espiritualidade marista e melanesiana
Autor
Irmão Herman Boyek, Distrito da Melanésia.
Contato
[email protected]
Língua; extensão
Inglês; 81 páginas
Resumo
Algumas definições de espiritualidade são seguidas da descrição dos elementos característicos da espiritualidade moderna
marista e da espiritualidade tradicional melanesiana. Antecipase um levantamento do estado corrente do Distrito da Melanésia: uma consideração crítica de como as espiritualidades maristas e melanesianas se misturam desde 1840. Conceitos que dificilmente calam no espírito melanesiano incluem a vida no celibato, o foco do céu e da eternidade de preferência ao presente, a oração particular e a reconciliação, a acumulação de posses. Com mais facilidade podem alinhar-se o cristianismo europeu e a espiritualidade tradicional melanesiana, em coisas como a crença em Deus onipotente, a presença permanente de
Deus, a comunhão dos santos, a eficácia de usar os símbolos e
rituais, a importância da narração oral, o serviço do bem comum
e o sentido do Reino de Deus presente aqui e agora.
Título
Discípulos de Marcelino, companheiros a caminho
Autor
Irmão Jean-Pierre Destombes, Província de l’Hermitage
Contato
[email protected]
Língua; extensão
Francês; 90 páginas
Resumo
Vale-se o autor de fontes históricas, que incluem três trabalhos
chaves do Irmão João Batista, isto é, Vida do Pe. Champagnat,
Biografias de alguns Irmãos e Avisos lições e sentenças, e alguma teoria catequética contemporânea, o fundamento lógico e a
experiência catequética para o seu trabalho. A experiência poderia ser oferecida ao Hermitage reformado. A inspiração para o
discipulado e para a missão é retirada das Escrituras e dos primeiros Irmãos, como Lourenço, Boaventura, João Pedro, Doroteu e Cassiano. O método de Marcelino é proposto como pedagogia de iniciação para a juventude hodierna, para assisti-la e para integrar o seu crescimento humano e espiritual. Esta vai ser a
missão empreendida tanto pelos Irmãos como pelos leigos.
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INTRODUÇÃO
Título
O carisma e a missão dos Irmãos Maristas na Costa do Marfim,
reflexão pessoal.
Autor
Irmão Vincent de Paul Kouassi, Distrito da África d’Oeste
Contato
[email protected]
Língua; extensão
Francês; 53 páginas
Resumo
Este trabalho se biparte: primeiro, uma consideração da essência de Marcelino Champagnat, como se revela nas suas cartas,
nos documentos fundacionais, nas Circulares dos Superiores Gerais, nos textos oficiais do Instituto e nos comentários escritos
pelos peritos maristas; segundo, a situação particular da Costa
do Marfim contrasta com a inspiração original. Duas saídas especiais para o país são consideradas: as urgentes necessidades
do tempo atual; as razões da não perseverança de muitos Irmãos
nativos. Propõe-se que o Distrito reconsidere o seu foco apostólico e as prioridades, se ele quiser enfrentar essas questões.
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A inteligência social
e emocional de
são Marcelino Champagnat
Ir Ben CONSIGLI, FMS
Província dos Estados Unidos da América
1. INTRODUÇÃO
Alguns pesquisadores no campo da psicologia definiram inteligência como “capacidade mental genérica que, entre outras coisas, envolve a habilidade de raciocinar, planejar, resolver problemas, pensar abstratamente,
compreender idéias ou situações complexas, aprender expeditamente, aprender da experiência. A inteligência não é mera aprendizagem livresca ou
alguma habilidade acadêmica restrita. Antes, a inteligência parece refletir uma capacidade mais distensa e profunda de compreender o ambiente de alguém, em busca de perceber o sentido das coisas ou avaliar o que
cumpre fazer.”1 Hoje se entende que a verdadeira inteligência não é relacionada ao desempenho acadêmico ou à aquisição de conhecimento por
meio da educação formal.
Marcelino Champagnat, pela sua própria avaliação, não era nenhum mestre intelectual, como definido pelo desempenho acadêmico ou educação
formal. Cumpre lembrar que a educação formal nas áreas rurais da França
nos anos posteriores à Revolução de 1789 tinha pouca presença. Em 1803,
quando dois representantes diocesanos chegaram a Marlhes, em busca de
1
Linda S. Gottfredson, editor de honra. “Apresentação da inteligência e da política social da
inteligência: uma revista multidisciplinar, Volume 24 (1) 1997. Ablex Publishing Company,
Greenwich, CT, 1997, p.1-12.
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candidatos para o seminário, Marcelino tinha catorze anos e era praticamente analfabeto. Antes que pudesse começar o estudo do latim, necessário para o sacerdócio de então, Marcelino teria de aprender a ler e a escrever o francês. Mesmo o pai dele, João Batista, julgava isso como grande obstáculo que Marcelino teria de superar. Ainda assim, doravante a sua decisão estava tomada: pensava apenas em tornar-se sacerdote. 2 Depois de dois
anos de estudo relativamente intenso com Benoit Arnaud, cunhado seu, o
progresso dele era tão diminuto, que Arnaud disse à senhora Champagnat
que Marcelino “tinha muito pouco talento para ter êxito” e demonstrava
pouca capacidade para a educação formal.3
Em novembro de 1805, Marcelino ingressou no seminário de Verrières
para começar o estudo formal do sacerdócio. Estava com dezesseis anos,
alto, pouco acostumado com o francês escrito e oral exigido, na aula não
era academicamente o mais inteligente. Marcelino, em termos modernos,
foi colocado na aula dos principiantes. No fim do ano, os seus resultados
muito fracos fizeram com que fosse avisado de não mais retornar ao seminário. Não obstante isso, a seguir, ele passaria longos anos nos estudos requeridos e superou muitos empecilhos para tornar-se sacerdote. Todos os
companheiros seminaristas pensavam que ele não tinha nem os talentos
nem os recursos necessários para tentar, com alguma esperança de êxito, a
fundação de uma congregação. De acordo com o Pe. Maîtrepierre, colega
seminarista do seu tempo, Marcelino “tinha de fato tudo o que era humanamente necessário para fracassar no seu empreendimento.”4 Apesar disso, muitos consideram que ele está entre os mais brilhantes fundadores na
história da Igreja.5
Assim que é que permitiu a esse simples rapaz da França rural que decidisse fundar uma corporação que provesse aos outros a educação formal de que
ele experimentara a deficiência? O Irmão João Batista responde com clareza:
2
Keith Farrell, Realizações das profundezas, Irmãos Maristas, Drummoyne, NSW, Austrália, 1984, p. 25.
3
Pierre Zind, “O aluno rebelde”, Voyages et Missions, No. 115, Lyon, França, outubro de
1971, p.8.
4
Atribuído a M. Champagnat por Maitrepierre — OM #537. (Coste, J. (S.M.),e Lessard, G.
(S.M.). Origens Maristas (OM): Extratos Concernentes aos Irmãos Maristas. Casa
Generalícia dos Irmãos Maristas; Roma, Itália, 1985.)
5
Alexander Balko, “O Pe. Champagnat e a Confiança.” Cadernos Maristas , #5, maio de
1994, Casa Generalícia dos Irmãos Maristas, Roma, pp.22-38.
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“O Pe. Champagnat deve muito do seu êxito no ministério e na fundação do seu Instituto ao seu caráter brilhante, aberto, amigável e atencioso, à sua habilidade em resolver situações contenciosas. Uma afabilidade
natural, reta e franca impressão de bondade - a irradiar da sua face - ganhavam-lhe todos os corações e dispunham os espíritos a aceitar, sem dificuldade e até com prazer, as suas opiniões, instruções e censuras.” 6
Estudando parte da sua correspondência e revisando alguns dos testemunhos daqueles que o conheceram, creio que Marcelino era dotado com
a inteligência social e emocional que, combinada com a sua extraordinária
fé e confiança em Deus, permitiu-lhe cumprir o que muitos reputavam improvável ou impossível. Para examinar melhor esta premissa, é preferível
começar com o entendimento genérico e a sumária supervisão de um leigo, no concernente à inteligência social e emocional. Não me pretendo perito em psicologia; a minha compreensão de inteligência social e emocional provém das minhas experiências e estudos no campo da educação.
INTELIGÊNCIA SOCIAL E EMOCIONAL
O entendimento da inteligência apenas como a habilidade de ter êxito em
“estruturas educacionais formais”, isto é, escolas, é uma visão limitada de inteligência. Psicólogos e educadores perceberam que a verdadeira inteligência reflete capacidade mais aberta e profunda em compreender o ambiente de alguém e proceder de acordo. Teorista deste padrão é Howard Gadner, professor de Harvard; ele determina que o cociente intelectual, como medida única
de competência, não pode ser defendido. No seu livro de 1983 Estruturas do
Espírito: a teoria da inteligência múltipla, Gardner propôs uma extensão das
competências chaves, o que chamou de inteligência múltipla.7 Com o livro
Inteligência Emocional: Por que pode valer mais que o cociente intelectual (1995), Daniel Goleman popularizou a noção de Gardner e criou generalizado interesse nos Estados Unidos nas possibilidades de desenvolvimento
do modelo da inteligência múltipla no domínio da teoria educacional. Em 2006,
com o livro “Inteligência Social: nova ciência de sucesso, Karl Albrecht
6
Jean-Baptiste Furet, Vida, p. 266
Howard Gardner, Estruturas do Espírito: A teoria da Inteligência Múltipla, Basic Books,
Nova Iorque, 1983, pp 3-11.
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explorou uma dimensão das inteligências múltiplas, que ele definiu como compreendendo tanto a habilidade em dar-se bem com os outros, como um conjunto de habilidades para interagir com sucesso em qualquer cenário.8 A inteligência social e emocional talvez seja mais bem entendida como uma das diversas formas na integral esfera de entrelaçadas competências9. Por mais de
vinte anos, Howard Gardner andou pregando a ideia de que a humana inteligência não é um traço único. De acordo com Gardner, os homens têm sete ou
oito distintas inteligências, ou dimensões primárias de competência.10
O primeiro degrau na compreensão da inteligência social e emocional é colocá-la no contexto das categorias da inteligência múltipla e nos quatro domínios
da inteligência emocional de Daniel Goleman. Gardner prefere nomes científicos sonoros para as suas categorias: logicoverbal, matemáticossimbólica, espacial, cinestética, interpessoal, intrapessoal e musical. Karl Albrecht, no seu livro
Inteligência Social, as recodifica e simplifica conceitualmente.11 Ele torna a classificar as inteligências múltiplas de Gardner em seis categorias primárias12:
CATEGORIA
DESCRIÇÃO
Inteligência abstrata
Raciocínio simbólico
Inteligência social
Lidar com pessoas
Inteligência prática
Fazer as coisas
Inteligência emocional
Autoconsciência e autodomínio
Inteligência estética
Sentido da forma: desenho, música, arte e literatura
Inteligência cinestética
Habilidade do corpo todo: esporte, dança, pilotar jatos militares
Daniel Goleman, no livro Inteligência Emocional, compreende a inteligência emocional em quatro “domínios.” Os quatro domínios têm numerosas
categorias13.
8
Karl Albrecht, Inteligência Social: a nova ciência do sucesso, Wiley Imprint, San Francisco, Califórnia, 2006, pp 28-32.
9
Ibid.
10
Howard Gardner, Estruturas do Espírito, pp 8-11.
11
Karl Albrecht, Inteligência Social, pp 8-9.
12
Ibid., p. 9.
13
Daniel Goleman, Inteligência Emocional : Por que ela importa mais que o QI? Bantam Books, NY, 1995, p.253.
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DOMINIO
CATEGORIA
Autoconsciência
Autoconsciência emocional. Apurada autoavaliação. Autoconfiança.
Autodomínio
Autocontrole emocional. Transparência (Fidedignidade) & Comunicação. Adaptabilidade. Iniciativa & liderança. Otimismo.
Consciência.
Consciência social
Empatia. Consciência organizacional. Orientação de serviço
Destreza de relacionamento Desenvolver & influenciar os outros. Construção de alianças.
Trabalho de equipe e colaboração.
Com essas teorias como estaqueamento, Albrecht construiu um modelo para
descrever, avaliar e desenvolver a inteligência social. Ele caracteriza a inteligência social como combina de básico conhecimento de si e das pessoas, uma espécie de “consciência social estratégica”, e um conjunto de qualidades para interagir com êxito com elas. Uma descrição simples de inteligência social seria esta: a habilidade de lidar com os outros e de conseguir que cooperem com você.14
Albrecht, valendo-se do trabalho de Howard Gardner e Daniel Goleman, sugere cinco dimensões chaves como estrutura descritiva da inteligência social15.
DIMENSÃO DA ABILIDADE CAMPO ENVOLVIDO
Radar Situacional
(Conhecimento)
Habilidade em “ler” situações, em compreender o contexto
social que influencia o procedimento, e em escolher as estratégias de procedimento mais indicadas para ter êxito.
Presença
Também conhecida como “postura,” é o senso externo
individual que os outros percebem: confiança, autorrespeito e autovalor.
Autenticidade
O oposto de ser “falso”, a autenticidade é o modo de proceder que engendra a percepção de que alguém é honesto consigo e com os demais.
Clareza
A habilidade de expressar-se claramente; emprega a linguagem precisa; explica conceitos com clareza; persuade e influencia com ideias.
14
15
Karl Albrecht, Inteligência Social, p. 6.
Ibid, pp 28-32.
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Mais que justo senso de relacionamento ou apreciação da
experiência dos outros, a empatia. Neste contexto, representa a habilidade de criar o sentimento de ligação com os
outros; conseguir que tenham o mesmo comprimento de
onda e convidá-los a agir com você e não distante de você ou contra você.
Em termos gerais, a inteligência emocional aperfeiçoa a efetividade social do
indivíduo. Quanto mais inteligência emocional, melhores relações sociais haverá.
A pessoa de alta inteligência emocional, sobremodo centralmente, pode perceber
emoções, usá-las no pensamento e compreender o seu significado melhor que os
demais. Resolvendo os problemas emocionais, provavelmente, requer-se menos
esforço cognitivo para o indivíduo assim dotado. A pessoa tende a sobressair melhor em inteligência verbal, social e em outras inteligências. Tal pessoa tende a ser
mais aberta e agradável que outras. A pessoa de tal dotação é levada a ocupações
que envolvem interações sociais, como o magistério e o aconselhamento, mais que
ocupações que implicam tarefas administrativas. Cumpre ter isso em mente, quando ponderamos a inteligência social e emocional de Marcelino.
A pessoa com altos dotes de inteligência emocional, relativamente aos outros,
é menos apta a se comprometer com problemas de comportamento, porque ela
evita atuações que impliquem comportamentos autodestrutivos e negativos. Tal
pessoa compreende a si própria, tanto na força como nas limitações. Alguém de
alta inteligência emocional pode supor que seja mais dono do apego sentimental do lar e deve ter mais interações de ordem social; basta pensar em Marcelino
e no Hermitage. Semelhantes indivíduos podem ser mais peritos em descrever
metas e motivações, objetivos e missões.
No traduzir a inteligência emocional em interações efetivas, as habilidades sociais, ou inteligência social, jogam papel chave. A inteligência social tem que ver
com as qualificações necessárias para ter adequadas interações com os demais.
Indivíduos socialmente inteligentes são costumeiramente extrovertidos e se caracterizam pela sua sensibilidade para com os modos, sentimentos, temperamentos e motivações dos outros, ademais da sua habilidade em cooperar em trabalhar como parte de uma equipe. A pessoa socialmente inteligente se comunica com eficácia e demonstra empatia fácil com o que percebe nos outros e, tipicamente, goza com o trabalho consociado. Para o escopo deste trabalho e para
a avaliação da inteligência social e emocional de Marcelino mediante os dados
da sua correspondência e de alguns testemunhos daqueles que o conheceram,
tenho integrado as competências da inteligência emocional com algumas dimensões da inteligência social. Assim, dito isso, entremos no assunto.
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Autoconsciência de Marcelino. Competências:
Consciência de si, Avaliação de si e Confiança
Autoconsciência & autoavaliação
“Nós, que estávamos nos primórdios, somos quais pedras
rudes que se atiram nas fundações; ninguém emprega pedras polidas para isso.”16
Algumas pessoas estão despreparadas para fazer face à verdade sobre si mesmas. Quando o indivíduo conhece quem é, ele pode perceber que é preciso mudar; há indivíduos que não querem mudar, precisamente porque a mudança demanda esforço. A autoconsciência requer honestidade e coragem; precisamos
considerar o que pensamos e sentimos e enfrentar a verdade sobre nós próprios.
Marcelino, como muitas pessoas santas, muitas vezes acreditava ter falhado nos seus ideais. Temos um lampejo disso, porque ele mesmo chama
a atenção a isso, confessando as suas faltas, em particular o seu orgulho e
amor próprio. Em 1812, no seminário menor de Verrières, Marcelino escreve em uma das suas resoluções pessoais.
“Santa Virgem, dirijo-me primeiro a vós; ainda que servo indigno, pedi ao adorável Coração de Jesus que me dê
a graça de me conhecer; e uma vez que me conheça, que
lute e vença o meu amor-próprio e orgulho.”17
Marcelino estava muito alerta quanto às suas “transgressões” que reputava
tão “odiosas” quanto as dos outros. De fato, ele, porque estava consciente do
seu estado pecador e o lamentava; empenhava-se com decisão em corrigir-se.
Com esforço real e sustentado, a consciência de Marcelino acerca dos seus
próprios defeitos e falhas encorajava-o a não ser muito rigoroso no ajuizar os
outros. Isso se vê em uma das primeiras resoluções nos anos de seminário:
16
Atribuído a M. Champagnat…por P. MAYET — OM #438. (Coste, J. (S. M.), and Lessard, G.
(S.M.). Origines Maristes (OM): Extratos Concernentes aos Irmãos Maristas. Casa
Generalizia dei Fratelli Maristi; Roma, Itália, 1985.)
17
“Resoluções de Champagnat,” Cadernos Maristas, # 1, junho de 1990, Casa Generalícia
dos Irmãos Maristas, Roma, pp 75-76.
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“Falarei com todos os meus colegas sem exceção, por mais repugantes que alguns me pareçam, porquanto reconheço agora que é apenas o meu orgulho que me faria agir assim. Por
que eu os desprezei? Seria por causa dos meus talentos? Sou o
último da aula. Por causa da minha virtude? Eu sou orgulhoso. Pelos atrativos do meu corpo? Deus é que me fez; aliás,
bem feitas as contas, não passo de um punhado de pó.”18
Esta autoconsciência constituiu parcela chave da personalidade de Marcelino e, sem dúvida, foi muito útil no seu posterior relacionamento com os
muitos Irmãos do Instituto que ia estabelecer. A sua genuína afeição aos
“Pequenos irmãos de Maria” evidenciava-se nos cumprimentos paternais
com que começava muitas das suas cartas aos Irmãos, como estas: “Meu caríssimo irmão; meu querido amigo; meu caro jovem.” Os Irmãos viam o
amor de Marcelino e a preocupação para com eles; Marcelino foi capaz de
mostrar-lhes tal cuidado em todas as lutas deles, e ele foi grande lutador e
bem compreendia as dificuldades dos Irmãos.
Nos depoimentos das testemunhas para a beatificação de Marcelino, o
Irmão Aidan confessou.
“Era especialmente no confessionário que o zelo dele brilhava. Os avisos eram sempre práticos, adaptados às necessidades de cada um. Aí o penitente sempre encontrava o representante do divino Mestre. Como amoroso médico, sabia como valer-se do azeite e do bálsamo, para restaurar o desanimado ou restituir a confiança, paz e felicidade à alma ferida. Percebíamos que o Pai não tirava as suas palavras amorosas da doutrina, mas do próprio coração do Mestre.” 19
Por certo os anos de estudo no seminário foram difíceis para Marcelino; mas
a sua confiança em Deus aderiu ao seu caráter firme e à sua autoconsciência,
traços que lhe possibilitaram a perseverança. Ele modelou a sua firmeza e determinação em favor dos Irmãos; mas também ele testemunhou com clareza que
o correto conhecimento de si é caminho para conhecer a vontade de Deus.
18
Ibid, pp 77-79.
Depoimentos sobre MARCELINO CHAMPAGNAT: Depoimentos menores (Tomados de Ir.
Leonard Voegtle, FMS, Postulador Geral, “Testemunhos para a beatificação de M. Champagnat”), Irmão Aidan, Testemunhos, p. 4.
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Marcelino conhecia os seus recursos interiores, habilidades e limitações.
Era disposto e aberto para receber orientação e novas perspectivas sobre
si. Olhando as suas notas acadêmicas no fim de 1813, é óbvio que o seu
progresso escolar era modesto, mas as notas de procedimento, caráter e empenho no estudo indicavam melhoramento de atitude geral, o que parece
indicar a aparente fraqueza, apontada pelos instrutores do seminário.
Quanto melhor o homem se conhece, tanta mais capacidade tem para
aceitar-se ou mudar. Estando no escuro sobre si mesmo, pode ser presa das
próprias lutas internas e permitir que forças de fora o moldem. A clareza
com que a pessoa se conhece determina a capacidade de mapear a via do
próprio destino e levar a bom termo o seu potencial.
Marcelino estava motivado pelo desejo de constante aprendizagem e autodesenvolvimento e tinha a habilidade de mirar nas áreas da mudança pessoal, em vista da maior glória de Deus. Esta competência, conhecida como
“orientação de acabamento”, mostra a preocupação com a necessidade pessoal de melhoramento próprio. Nos seus últimos dias de 1840, Marcelino tinha a própria biblioteca com cinqüenta e três livros.20 Diversos desses livros, como a Teologia Moral de Afonso de Ligório, Deus só de Boudon,
Fundamentos da Vida Espiritual de Surin, Introdução à vida Devota de são Francisco de Sales guiaram-no em como viver a sua vida por Cristo. Nos anos de seminário, Marcelino focalizava a vitória sobre o orgulho.
Uma vez mais, dão claro exemplo dos passos que necessitava dar para enfrentar esta sua questão. Em diversos momentos do seminário, Marcelino
prometeu realizar o plano.
“Nunca irei à taberna sem necessidade. Evitar as más
companhias e, numa palavra, nada fazer que contrarie
o meu serviço futuro. Dar bom exemplo; levar a outros,
quanto puder, à prática da virtude; instruir os outros na
divina doutrina. Conversar com todos os meus colegas
sem exceção, por mais que me repugnem alguns deles,
porque reconheço agora que tal atitude procede do meu
orgulho.”21
20
Ir. André Lanfrey, Handout # 2, Bibliotecas Maristas, 20 de maio de 2008, Patrimônio 2008.
“Resoluções de M. Champagnat”, Cadernos Maristas, # 1, junho de 1990, Casa Generalícia
dos Irmãos Maristas, Roma, pp 73-77.
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Na sua resolução para 1815, ele revelou generosa perseverança em agir
onde e quando ele reputava que Deus o queria, com maior ênfase no estudo e na oração. Ele deu atenção à sua falta de contar mentiras e maledicências; empenhou-se a fundo na caridade para com o próximo, tanto no
seminário quanto no retorno a Marlhes nas suas férias. “Sempre que no meu
exame da noite perceber que critiquei alguém, escreveu, vou privar-me do
café da manhã no dia seguinte. Sempre que me veja culpado de mentira ou
mesmo de alguma exageração, rezarei o Miserere para pedir perdão a Deus.”22
Em preparação do sacerdócio, ele “reprimiu o seu ego, dedicou-se a renúncias, à vida de oração, à obediência do regulamento e ao estudo”. Para
cumprir as metas traçadas, apelou com fervor à Santíssima Virgem, “sua Boa
Mãe”, cônscio que estava das suas fraquezas.
O desejo de conhecer-se melhor e, portanto, da vontade de Deus, levouo, uma vez mais, a procurar o conselho do Pe. Philibert Gardette, seu antigo superior no seminário de Lyon. Em carta de maio de 1827, Marcelino escreve a Gardette, sacerdote de prudência, em busca de “algum conselho e
consolação”23, no concernente à situação de l’Hermitage do momento.
Em 1827, estava apenas no seu décimo ano e as suas fundações eram antes fracas. Quando os Irmãos foram enviados às escolas, eram ainda muito
novos e com modesto desempenho profissional. Marcelino, pois, estimou
necessário continuar a formação deles nas próprias comunidades e no seu
apostolado, o que exigia freqüentes visitas dele. No mesmo tempo, enquanto
Marcelino teria de ter um Irmão para mestre de noviços, desejava ter alguns
sacerdotes, de preferência com inclinação marista, para assistir os jovens de
L’Hermitage na formação espiritual, como também para a gerência financeira do Instituto. Neste passo da história do Instituto, Courveille e Terraillon abandonaram Marcelino, que teve de lidar por si com todas essas questões. Marcelino sabia que simplesmente ele não podia “fazer tudo isso sem
que tivesse alguém para partilhar com ele o trabalho.”24 Procurava, portanto, conselho e consolação.
22
Ibid., pp 89-91.
Carta ao Pe. Gardette, maio de 1827, PS 003. (PS é entendido como “cartas de M. Champagnat” tiradas de Cartas de M. J. B. Champagnat, Volume 1, Textos, Editado por Ir.
Paul Sester, Traduzido pelo Ir. Leonard Voegtle, Casa Generalícia dos Irmãos Maristas, Roma
1991.)
24
Ibid.
23
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Temos também um lampejo de como Marcelino via a si, quinze anos depois de sair do seminário. Embora não seja uma autoavaliação direta, Marcelino dá algumas visões interiores quanto ao tipo de sacerdote que deveria vir
ajudá-lo em L’Hermitage, assistindo-o no trabalho com os Irmãos. Em carta ao
arcebispo de Pins, na quaresma de 1835, Marcelino escreve estas linhas:
“Precisamos de alguém capaz de supervisionar, animar
e dirigir cada coisa, alguém que possa travar conhecimento e lidar com aqueles que vêm à casa, alguém que
ame, que considere a importância e os benefícios de tal
posição, um diretor piedoso, esclarecido, experiente, prudente, firme e constante.”25
Aqui Marcelino pinta o retrato do tipo de pessoa necessário para assistir
os Irmãos de L’Hermitage. Sem saber, Marcelino traçou o próprio retrato.
Marcelino era piedoso, esclarecido, experiente, prudente, firme e constante, tanto quanto um homem que ama. Desta última qualidade veremos mais
neste trabalho; mas desejaria, antes, despender algum tempo na autoconfiança de Marcelino.
AUTOCONFIANÇA
No concernente à autoconfiança, na Vida de José Bento Marcelino
Champagnat, o Irmão João Batista descreve Marcelino como “de alta estatura, de postura aprumada e digna, a fronte larga e os aspectos faciais fortemente marcados, a sua compleição de matiz amorenado e a sua fisionomia grave refletiam reserva e seriedade que inspiravam respeito.”26 Com tais
traços, facilmente imaginamos um homem de estatura de impacto.
Falando do “imponente exterior do venerado Pai,“ nas suas Memórias,
o Irmão Silvestre notou a impressão de Marcelino sobre si, com a sua altura
e majestade, com o seu ar de bondade e seriedade ao mesmo tempo. O seu
rosto impunha respeito. As suas bochechas afundadas, os seus lábios algo
25
Carta ao arcebispo Gaston de Pins, Administrador apostólico de Lyon, Rhône; 1835 (Lent);
PS 056
26
Jean-Baptiste Furet, Vida, p. 265.
25
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proeminentes que o faziam aparecer sorridente, os seus olhos penetrantes e
inquisidores, a sua voz forte e sonorosa, o seu discurso de marcada articulação, nem conciso nem tedioso, tudo proporcional.”27 O Irmão Francisco,
muitas vezes, exclamava que Marcelino era “firme, sim, definitivamente; todos tremíamos ao som da sua voz, sob um simples olhar seu.”28
Essas três recordações da presença física de Marcelino oferecem-nos bom
entendimento de como Marcelino visualizava os outros. João Batista, Silvestre e Francisco, cada um dos três homens testemunhou uma vista de perto e prolongada da “presença” de Marcelino. Que se entende aqui pelo termo “presença”? Daniel Goleman toma “presença” com o significado externo de alguém que os outros percebem: confiança, autorrespeito e autovalor. A descrição dessas testemunhas transmitem-nos certo sentimento de
confiança transpirado pela só presença física dele.
Por outro lado, confiança, em geral, descreve-se como o estado de estar
certo, seja que a hipótese ou predição é correta, seja que um escolhido curso da ação é o melhor ou mais efetivo em dadas circunstâncias. A autoconfiança verdadeira provém de uma atitude em que o indivíduo promete a si
próprio que, não importa a bruteza do problema da vida que o atinge, ele
vai tentar, no limite das forças, superar o desafio.
A vida de Marcelino caracterizou-se pela confiança, confiança em Deus
e em Maria, sua Boa Mãe, confiança transformada em autoconfiança que lhe
permitiria cumprir a missão querida por Deus e por Maria, segundo ele acreditava: prover de educação cristã os pobres, no caso os jovens campônios.
Tal confiança evidenciou-se em certas situações e eventos nos primeiros
anos do nosso Instituto. Ponderemos umas poucas situações que se tornam
algumas das maiores provações de Marcelino, mas que revelam também a
enorme fé e confiança no seu Deus.
Quando Marcelino havia começado o seu trabalho, ele estava muito cônscio de que a fonte de Lavalla estava ficando exaurida. Ademais, não era conhecido fora da sua paróquia. O pároco de Marlhes, que havia pedido, ain-
27
As Memórias do Ir. Silvestre, editado pelo Ir. Michael Green, Irmãos Maristas das Escolas,
Drummoyne NSW, Austrália, 2007, traduzido do original francês pelo Ir. Douglas Welsh, p. 74.
28
“Testemunhos sobre M. Champagnat: Irmão Francisco, Memórias do Fundador nos seus
cadernos, Cadernos Maristas, #14, novembro de 1998, p. 111.
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da assim, Irmãos para a sua escola, “não se fazia boa opinião de Marcelino
e nunca enviou jovens que quisessem ser religiosos.”29 Esta diminuição de
vocações, que ameaçavam a própria existência do Instituto, era em verdade uma provação para Marcelino, mas de forma alguma o desencorajava.
Pelo contrário, “isto incitou o seu zelo e intensificou a sua confiança em
Deus. ”30 Deste modo, colocou por inteiro o futuro do seu trabalho nas mãos
da Santíssima Virgem, seu “recurso ordinário”, que tem sempre o seu divino Filho nos braços ou no coração. No começo de 1822, com o noviciado
vazio, Marcelino recorreu a Nossa Senhora da Piedade.
“Se vós nos abandonais, vamos perecer; vamos extinguirnos como lâmpada sem azeite. Mas, se esta obra perece,
não é a nossa obra que perece, senão a vossa, visto que
tudo quanto aqui se fez é obra vossa. ”31
Maria não adiou a resposta à oração de Marcelino. Em fevereiro, Cláudio Fayolle, futuro Irmão Estanislau, ingressou. Em março, chegaram oito
postulantes, um dos quais seria o futuro Irmão João Batista. A confiança de
Marcelino na Providência não ficou frustrada.
Em janeiro de 1826, Marcelino estava seriamente doente, mas sentiu que
poderia contar com os padres Courveille e Terraillon, ambos vivendo em
L’Hermitage, para assistir os Irmãos, se não recuperasse a saúde. No entanto, um ano depois, Marcelino estava sozinho em L’Hermitage com os seus
Irmãos, agora em número de oitenta.
O ano de 1826 veio a ser terrível ano para Marcelino e para o Instituto.
Jean Granjon, seu primeiro recrutado, foi dispensado do Instituto por Marcelino; o Irmão Jean François (Roumesy), Irmão muito competente deixou
a vocação; além disso, “pesadas dívidas preocupavam Marcelino32, a sua
saúde não era nada boa, e o Pe. Courveille estava ficando cada vez mais
inaceitável para os Irmãos de l’Hermitage. A insatisfação de Courveille com
os Irmãos e o devotamento deles para com Marcelino estavam ficando demais para Courveille, que se considerava o real Superior da Sociedade de
29
Irmão Alain Delorme, “Devemos maravilhar-nos: os nossos primeiros Irmãos,” Handout,
Curso do Patrimônio, 2008-04-14.
30
Jean Baptiste Furet, Vida, p. 92.
31
Jean Baptiste Furet, Vida, p. 93.
32
Carta ao Pe. Jean Cholleton, Vigário Geral de Lyon, Rhône; 1833 (08 ó 09); PS 030
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Maria. Ele deixou l’Hermitage e escreveu carta de queixa contra Marcelino
e contra o seu Instituto ao Arcebispo de Pins, administrador da diocese de
Lyon. O Conselho do Arcebispo, na sua vez, enviou o Pe. Cattet, Vigário
Geral para as comunidades religiosas, a l’Hermitage em fevereiro de 1826.
A inspeção de Cattet e o seu relato ao Arcebispo foram muito duros, até
porque Cattet tinha o plano de unir os Irmãos de Marcelino com os Irmãos
do Sagrado Coração, instituto recentemente fundado pelo Pe. Coindre. Cumpre
somar isso à futura saída de Terraillon de l’Hermitage. Assim, as provações
de Marcelino hão de ter sido incríveis e severas.
Seja como for, vemos que em maio de 1827, Marcelino escreveu quatro
cartas, em que se afirma que as várias dificuldades e sensações de abandono de 1826 não haviam destruído o seu objetivo de prover educação cristã
às crianças pobres da região rural. Pelo contrário, tais dificuldades fortaleceram a sua convicção de que esta obra de Deus e de Maria tem de prosseguir. De acordo com registros do Pe. Maîtrepierre, teria dito da oposição
inicial à sua obra o seguinte: “Até agora eu estava em dúvida se estava trabalhando de acordo com os desígnios de Deus; os ataques que acabo de
sofrer começam a dar-me esperança.” 33 Anos mais tarde, Marcelino, de novo em dificuldades e obstáculos, acreditava com maior firmeza que o trabalho a que se dedicara era necessário. Ao Pe. Simon Cattet, Vigário Geral
de Lyon e a pessoa que escrevera o áspero relato, Marcelino assevera: “Ainda creio firmemente que Deus quer esta fundação34 neste tempo em que a
descrença está fazendo tremendo progresso.”35 Neste mesmo tempo, ele escreve “com muita confiança” ao Pe. Joseph Barou, seu formador no seminário menor e agora Vigário Geral da diocese de Lyon, responsável pela designação dos sacerdotes, e afirma que ele “ainda com firmeza crê que Deus
quer esta obra.”36 Os mesmos sentimentos são revelados, quase palavra a
palavra, em carta de maio ao Arcebispo de Pins: “Deus quer este empreendimento, nestes perversos tempos; esta é ainda a minha firme convicção.”37
33
OM #752
A palavra trabalho aqui é usada por Marcelino para significar tanto o da formação contínua dos Irmãos, para educarem os pobres da área rural, quanto o trabalho da administração
da nascente Sociedade de Maria na diocese lionesa. Veja Jean-Baptiste Furet, Vida, p. 192.
35
Carta ao Pe. Simon Cattet, Vigário Geral de Lyon, Rhône; 1827-05; PS 004
36
Carta ao Pe. Jean Joseph Barou; 1827-05 ; PS 007
37
Carta ao arcebispo Gaston de Pins, 1827-05 ; PS 006
34
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Em retrospecto desse tempo, em 1833, Marcelino em carta ao Pe. Jean
Cholleton, Vigário Geral na diocese de Lyon, escreveu.
“Ainda que me encontre sozinho, depois da saída do Pe.
Courveille e a partida do Pe Terraillon, Maria não nos
abandonou. Gradualmente estamos pagando as nossas
dívidas, e outros confrades substituíram os primeiros. Tenho de achar dinheiro para o sustento deles, tudo por
mim mesmo. Maria nos está ajudando, isto basta.”38
Essa evidência da confiança de Marcelino não se revela apenas àqueles
que ele considera os seus superiores eclesiásticos. Muitas vezes, ele escreve aos seus Irmãos, revelando essa mesma confiança. Na sua circular de janeiro de 1828, Marcelino pede que todos os Irmãos rezem pelo sucesso dos
trâmites pelos quais o Arcebispo de Pins pretendia obter a autorização legal do Instituto. No parágrafo inicial, ele revela a sua confiança de que “tudo irá bem” por causa de Deus e da Virgem Maria.
“Deus nos tem amado desde toda a eternidade; ele nos escolheu e nos tirou do mundo. A Santíssima Virgem nos
plantou no seu jardim e ela provê que nada nos falte.” 39
Em julho de 1830, a Revolução dos “Três Gloriosos Dias”, 27, 28 e 29 de
julho, dirigida contra a Igreja e os seus sacerdotes e contra tudo o que recordasse o Velho Regime que Carlos X tentara restaurar, forçou o rei a abdicar e exilar-se. A derrubada de Carlos X foi seguida de uma perseguição
anticlerical, incluindo ataques às igrejas em diversas partes da França: em
Paris a sacristia de Notre Dame foi profanada; comunidades religiosas e instituições foram saqueadas e muitas cruzes de missão nas províncias foram
derrubadas e profanadas. O clero, particularmente nas cidades, só podia
sair de roupa secular daí em diante. Naturalmente, alguns Irmãos ficaram
temerosos do que podia acontecer.40
38
Carta ao Pe. Jean Cholleton, Vigário Geral de Lyon, Rhône; 1833 (08 ó 09); PS 030
Circular, janeiro de 1828; PS 010.
40
Cartas de Marcelino J.B. Champagnat: Textos, Volume 1, p. 23.
39
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Certos Irmãos quiseram tomar precauções, desejando vestir roupa civil. “O
modo correto de se prevenir, disse Marcelino, é não ter medo, ser prudente e
circunspecto nas relações com as pessoas e com as crianças, evitar qualquer
contato político, manter-se unido com Deus, redobrar de zelo pela perfeição
e pela educação cristã das crianças; finalmente, colocar plena confiança em
Deus. O hábito religioso é salvaguarda e não perigo; não vestir roupa secular; ela não preserva do perigo mais do que teia de aranha. ”41
Na circular de 15 de agosto de 1830, Marcelino se dirigiu aos seus Irmãos
com prudência e confiança acerca das preocupações deles.
“Não se assustem; Maria é a nossa defensora. Os cabelos
da nossa cabeça estão todos contados, e nenhum deles
pode cair sem a permissão de Deus. Tenhamos plena convicção de que não temos maior inimigo do que nós próprios.
Somente nós nos podemos ferir; nenhum outro pode. Deus
disse aos maus: Podem avançar até aquele ponto, mas não
mais longe. ’”42
Marcelino tanto confiava na sua convicção e era tão incomovível em face da tempestade política que, no mesmo dia 15 em que escrevera a circular de agosto de 1830, recebeu mais postulantes no Instituto e vestiu-os com
vestes religiosas.43
Ele reiterou esta sua posição de confiança menos de um mês depois, em
carta ao Irmão Antônio e aos Irmãos de Millery.
“Nada temam, caros Irmãos; temos Deus para defendernos. Ninguém nos pode prejudicar, se Deus não lho permite. A despeito da fúria do inferno contra a Igreja, como ela se funda na rocha, nada pode derrubá-la. A Igreja nunca é mais bela do que quando é perseguida. Assim,
abandonemo-nos à sábia e amorosa direção da Divina
Providência.”44
41
Jean-Baptiste Furet, Vida, P. 173.
Circular; 1830-08-15; PS 016
43
Irmão Silvestre, Memórias, p. 53.
44
Carta a Antoine; MILLERY, Rhône; 1830-09-10; PS 017
42
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A confiança de Marcelino também se manifesta nas suas cartas de encorajamento aos seus Irmãos. Em carta dirigida ao Irmão Barthélemy, que está em dificuldades em Saint-Symphorien d’Ozon, Isère, aparentemente deprimido pelos poucos alunos da escola.
“Seja valente, caro amigo. É suficiente que vocês ambos queiram
ensinar a mais alunos. Não se abata pelos poucos alunos de
agora. Deus tem os corações de cada um nas mãos. Ele enviará estudantes, quando julgar adequado. Tudo o que vocês
têm de fazer é evitar que sejam infiéis ao que lhes compete.
Vocês estão onde Deus quis que estivessem, visto que estão onde
os seus superiors quiseram que estivessem. Não tenho dúvidas
de que o Senhor vai recompensá-los com muitas graças.”45
Respondendo ao Irmão Théophile, Marcelino devia estar consciente dos
problemas que Théophile enfrentava. Os Irmãos Paul Sester e Raymond Borne nos informam que Théophile era pouco talhado para o ensino, visto que
tinha pouca instrução, saúde fraca; ademais passar da alfaiataria para o magistério, na idade de vinte e quatro anos, por certo não era transição expedita.46 Ainda assim, Marcelino se dirige a Théophile para animá-lo.
“Tenha coragem, caro amigo. Tudo vai melhorar com o
tempo; ademais, é certo que Deus quer ser a nossa recompensa. Deste modo, por que preocupar-se? Atuemos como
se estivéssemos certos do êxito total, e demos toda a honra
a Jesus e a Maria. ”47
De igual modo, vemos Marcelino confiante em Paris em 1838, quando tentava lograr a autorização legal do Instituto. “Encontro-me com este, visito aquele, com nenhuma idéia de êxito final. Os cansativos recados não terminam.
Apesar disso, tenho plena convicção, caro Irmão, de que conseguiremos o resultado somente quando Deus quiser, nem mais nem menos. Ainda assim,
não negligencio nenhum dos trâmites que possam apressar a nossa causa.”48
45
Carta ao Ir. Barthélemy; Saint- Symphorien d’Ozon, Isère; 1831- 11- 01; PS 024
Cartas de Marcelino J.B. Champagnat, Volume 2, Referências, Editadas pelo Ir. Raymond
Borne & Ir. Paul Sester, Tradução do Ir. Leonard Voegtle, Casa Generalizia dei Fratelli Maristi, Roma, 1992, p.478.
47
Carta ao Ir. Théophile, Marlhes, Loire; 1835-07-12; PS 061
48
Carta ao Ir. Antoine Couturier; Millery, Rhône; 1838-03-24; PS 183
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O Irmão Lourenço, nas suas recordações de Marcelino, afirma o que segue.
“Ele, muitas vezes, nos falava do cuidado que a Divina
Providência toma daqueles que põem nela a sua confiança, como efetivamente estamos fazendo; mas, quando
ele nos falava da bondade de Deus e do amor de Deus por
nós, ele acendia em nós o divino fogo de que ele estava
repleto, de modo que as perturbações, tarefas e misérias
da vida não eram capazes de nos descompor.” 49
A confiança de Marcelino, em Deus, era contagiosa, segundo Lourenço;
“ele acendia em nós o divino fogo, de modo que as turbulências não conseguiam deprimir-nos”.
Ninguém pode olhar para a confiança de Marcelino sem considerar também a sua attitude geralmente otimista para com a vida em geral, a sua crença na bondade básica da pessoa, e as suas interações com aqueles com quem
entrava em contato. Passemos agora a outras competências sociais e emocionais de Marcelino: as suas competências administrativas.
Autocompetências administrativas de Marcelino:
autocontrole emocional, transparência e clareza de comunicação, adaptabilidade,
iniciativa e liderança, otimismo, conscienciosidade
No seu livro Inteligência Emocional, Daniel Goleman declara que as nossas
reações impulsivas e emocionais podem dar causa a que interajamos com os outros de modo tal que as tornemos contraproducentes. Paramos de escutar. Começamos a ver a outra pessoa como errada. O nosso pensar fica rígido e menos aber-
49
Ir. Laurent, Memórias, 1842, p.3. O Ir. Michael Green, tradutor deste texto do original
francês, afirmou: “Esta Memória foi escrita pelo Irmão da primeira comunidade de Lavalla,
Ir. Laurent. Parece ter sido escrita a pedido do Ir. João Batista em 1841, quando ele pediu
aos primeiros Irmãos de porem por escrito as suas recordações do Pe. Champagnat. Obviamente, o Ir. João Batista havia sido encarregado de escrever a biografia oficial do Fundador,
obra publicada depois, em 1856. Por sorte, a resposta ao Ir. João Batista sobreviveu, mas
nenhuma das outras. O valor do trabalho de Laurent, redigido em francês pobre, em cinco
páginas de caderno escolar, é o fato de que foi escrito por um dos primitivos Irmãos do Instituto, alguém que estava em Lavalla em 1817. Provavelmente foi completado em 1842, constitui o mais velho relato que temos da vida do Fundador.”Este texto, até o presente, ainda
não foi publicado em inglês.
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to a influências. Estas respostas comprometem a tomada de decisão e a execução.
Quando esses padrões se reiteram em demasia em relação às mesmas pessoas, o
relacionamento se torna o problema, erodindo o moral e a produtividade de qualquer grupo. O autocomando emocional fala de administrar as emoções de outros;
assim as interações sociais podem ser produtivas. O autodomínio emocional cobre distenso leque de competências: autocontrole emocional, transparência, adaptabilidade, iniciativa, otimismo e conscienciosidade. Para o escopo deste trabalho,
vou cobrir apenas uma destas competências: o autocontrole emocional.
Autocontrole emocional
O autocontrole emocional é a habilidade de a pessoa dominar o sentir impulsivo e as emoções. É a capacidade de restringir as reações negativas, quando provocado, quando enfrenta oposição ou hostilidade dos outros, ou quando trabalha sob pressão. Uma grande força de Marcelino era a sua habilidade
de lidar calmamente com a pressão e permanecer aprumado e positivo, mesmo
em momento de provação. Já vimos como Marcelino lidou com a “crise de vocações” de 1822. Examinemos outras situações e como Marcelino reagiu nelas.
No ano seguinte ao da Revolução de Julho, histórias alarmantes circulavam
em Saint-Etienne: L’Hermitage seria arsenal antirrevolucionário, com adegas
cheias de armas. O Irmão João Batista menciona que alguns do lugar acreditavam que os Irmãos foram vistos em treinos militares de noite. Em março e abril
de 1831, circulou o rumor de que um marquês estava escondido na casa e que
ele era a inspiração atrás do plano contrarrevolucionário dos Irmãos.50 O governo local ordenou uma pesquisa na casa; e um promotor público, acompanhado de policiais, foi a l’Hermitage. Logo que o promotor entrou na casa, os
policiais cercaram a construção. Champagnat, pela sua transparência pessoal
e autocontrole, imediatamente descartou qualquer possível situação de perigo, cumprimentando o promotor público e os seus homens.
“Por certo é muita honra para nós. O senhor não está sozinho,
pelo que vejo. Sei o que o senhor quer. Bem, o senhor deve
efetuar uma profunda pesquisa para descobrir se estamos
abrigando nobres, pessoas suspeitas e armas. Presumo que
ouviu falar de adegas; comecemos por lá.”51
50
51
Ibid., p. 174-175.
Ibid., p. 175.
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O promotor e dois dos seus homens visitaram a adega; mas neste momento o promotor, pelas atitudes de Marcelino e pela sua boa vontade em
colaborar na solicitação, estava convencido de que os relatos que chegaram a ele e ao governo local eram falsos. Ele, pois, queria encerrar a inspeção, mas Marcelino queria que os rumores fossem de todo extintos; insistiu: “Não, o senhor precisa examinar tudo. De outra forma, os rumores
de que nós estamos fora da lei vão persistir.”52 Marcelino levou os investigadores a todos os quartos da casa. Completada a inspeção, Marcelino gentilmente ofereceu ao promoter e aos seus homens alguns refrescos, que eles
aceitaram. De acordo com o relato de João Batista, o promoter se desculpou da desagradável tarefa e disse a Marcelino: “Reverendo, não tenha medo; prometo que esta visita vai trazer-lhe vantagens.”53 A calma e o modo
transparente de Marcelino haviam salvado o dia.
Marcelino lidou com dificuldades e situações desapontadoras com calma, algumas vezes com resignação, mas nunca com alguma insinuação ou
irritação ou rancor. Quando o conselho da cidade de Feurs, Loire, decidiu,
em 1831, que o método do ensino mútuo seria usado e que os Irmãos Maristas eram muito onerosos para os limitados recursos da cidade, Marcelino
escreveu ao senhor Jean-Baptiste Mondon, prefeito de Feurs, o que segue:
“Agradeço-lhe a informação da decisão do seu conselho.
Aceito com resignação e calma a destruição do seu estabelecimento de Irmãos... Aceite, senhor Prefeito, o respeito daquele que tem a honra de ser o mais devotado servidor.”54
Vemos esse senso de calma na sua carta ao Irmão Francisco de 23 de junho de 1838. No tempo da escrita da carta, Marcelino despendeu os últimos
meses nos trâmites da aprovação legal do Instituto e ele está convencido de
que Salvandy, Ministro da Educação Pública, está sempre à cata de novos
modos de arrastar o processo. Na análise final, parece que Salvandy não
quer conceder a Marcelino a solicitada autorização. Assim, Marcelino se prepara para deixar Paris desapontado, mas resignado.
52
Ibid.
Ibid.
54
Carta ao Sr. Jean-Baptiste Mondon; Feurs, Loire; 1831-04; PS 021
53
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“Imagino que você quer saber como o nosso negócio está
indo. Infelizmente, não sei nada sobre ele, ou, se prefere,
eu sei tudo. O que era apenas a minha suspeita hoje tornouse certeza. Estou muito aborrecido, mas não deprimido;
ainda tenho grande confiança em Jesus e Maria.” 55
Esse senso de calma e resignação também se revela na carta de 24 de novembro de 1838 a Jean-Jacques Baude, deputado do governo francês. Marcelino havia escrito esta carta para dissipar o rumor de que os Irmãos Maristas se opunham à Universidade e, portanto, ao próprio governo francês.
Pelo final de 1838, parece mais e mais provável que Marcelino não houvesse tido êxito na obtenção da autorização legal do Instituto; ainda assim,
ele escreve o seguinte.
“O que tenho aprendido do senhor Jovin Deshayes e de
um dos nossos Irmãos, que estava de passagem por Paris,
realmente me perturbou, mas não me desencorajou.”56
Em 28 de dezembro de 1838, na carta ao Irmão Dominique, vemos a calma e firme resposta de Marcelino a este Irmão que, muitas vezes, se queixava do seu destino. Marcelino poderia ter reagido de modo explosivo às
constantes lamúrias de Dominique; em vez disso, porém, vemos uma carta
de entendimento e de animação, de permeio com aviso em proporções exatas.
“Quanto a você, caro amigo, vamos estar sempre pronto
a agradar-lhe, até mesmo a obedecer-lhe. Indique-nos uma
tarefa em que você pode ficar constante e feliz, e nós lha
confiaremos de imediato. É doença muito triste sentir-se
feliz apenas em lugares em que não se está. Constitui também terrível erro ir em busca de qualquer outro modo de
fazer o bem fora daquele que nos foi confiado.” 57
A maneira transparente e autêntica de Marcelino em lidar com outros
também nos dá credencial extra da sua inteligência social e emocional.
55
Carta ao Ir. Francisco, Gabriel Rivat; Notre Dame de l’Hermitage; 1838-06-23; PS 197
Carta ao senhor Jean-Jacques Baude, deputado; Paris; 1838-11-24; PS 228
57
Carta ao Ir. Dominique; Charlieu, Loire; 1838-12-28; PS 234
56
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Extensão das competências de Marcelino quanto à sua consciência social:
empatia, consciência organizacional, serviço de orientação
A consciência social abrange como a pessoa lida com os relacionamentos e
com a consciência dos sentimentos, necessidades e preocupações dos demais. No
conjunto, a consciência social encerra três competências, como segue.
• Empatia: avaliar os sentimentos e perspectivas dos outros, tomando
ativo interesse nas preocupações deles.
• Consciência organizacional: ler as correntes emocionais e os relacionamentos de poder do grupo.
• Serviço de orientação: antecipar-se, reconhecer e encontrar as necessidades dos outros.
Para a finalidade deste trabalho, baste a consideração da empatia de Marcelino.
Empatia
Mais do que mero senso interior de relacionamento ou apreciação das
experiências dos outros, aqui a empatia representa a habilidade de criar um
senso de conexão com os outros, para que sintonizem com você e convidá-los a trabalhar com você e para você e não longe de você ou contra você. A pessoa dotada de empatia é capaz de constantemente colher as sugestões emocionais. Esta pessoa pode apreciar não só o que estão dizendo,
mas igualmente por que o estão dizendo. Tal competência qualifica para a
busca do entendimento dos outros pela habilidade de bem ler as situações.
É a habilidade de escutar e compreender exatamente os pensamentos, sentimentos e preocupações alheias.
Assim, como se apresenta a empatia de Marcelino? Cumpre recordar que
Marcelino sofreu, como menino, a falta de educação regular e estava determinado a prover as crianças da França rural com o ensino de que fora
privado. Estava profundamente convencido da importância da educação.
Decidiu-se a estabelecer um sistema de escolas primárias em que as crianças da região rural pudessem receber boa educação elementar, algo que ele
não tivera; ao mesmo tempo, que elas recebessem a instrução na fé cristã.
Por própria experiência, sabia Marcelino o que representava tal privação
para as crianças. Chegou a partilhar essas recordações do seu caso em carta à Rainha da França Maria Amélia:
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“O que via com os meus próprios olhos nesta nova posição,
com referência à educação dos jovens, lembrava-me as
dificuldades que eu mesmo experimentara em tal idade,
por falta de professores. Assim, levei a termo sem demora
o projeto que já tinha em mente de estabelecer uma associação de Irmãos Professores das vilas da região rural,
muitas das quais, por falta de recursos financeiros, não
podem pagar o ensino dos Irmãos das Escolas Cristãs.” 58
Estas mesmas preocupações foram partilhadas com o rei Luís Filipe.
“Aprendi a ler e a escrever somente depois de tremendos esforços, por falta de professores qualificados. Desse tempo em
diante, compreendi a urgente necessidade de haver uma
instituição que, com modesta despesa, ofereça às crianças
da região rural a mesma boa educação que os Irmãos das
Escolas Cristãs proveem para pobres das cidades.” 59
Marcelino também compreendia os seus Irmãos. Como já vimos, Marcelino conhecia Silvestre “profundamente e muito o estimava pela sua franqueza e docilidade” e o defendeu quando os membros de mais anos da comunidade alegavam que Silvestre “só pensava em si e perturbava a boa ordem da comunidade”. O incidente do carrinho de mão aparentemente causou significativo reboliço na comunidade. Como Marcelino respondeu àqueles Irmãos que se queixavam? Veja em seguida.
Prefiro vê-lo divertindo-se desse modo a vê-lo apático e aborrecido. Não vejo que prejuízo haja causado com o seu carrinho de mão. Vocês também gostavam de alegrar-se, quando
eram jovens. Ao invés de unir-se ao jovem Irmão em algum
brinquedo inocente ou em alguma atividade divertida, auxiliando-o a passar o tempo, vocês o deixam só; vocês se ocupam
no estudo ou em questões sérias; vocês se surpreendem que ele
se divirta com o carrinho? Por favor, não façam disso um crime, menos ainda o abandonem a si mesmo, com o risco de
que se desgoste do seu trabalho e da sua vocação. ”60
58
Carta à Rainha Marie-Amelie, 1835-05, PS 059
Carta ao Rei Louis-Philippe, 1834-01-28; PS 034
60
Jean-Baptiste Furet, Vida, p. 270-271.
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O Irmão Silvestre, nas suas Memórias, descreve diversos exemplos da
bondade de Marcelino para com ele, em particular quando ele lhe perdoou
as mil e duzentas linhas de castigo dadas pelo Mestre de Noviços.
“Durante a leitura spiritual eu fiz algum barulho, deslocando uma estátua da minha estante. O Mestre de Noviços,
algo importunado pela minha falta de cuidado no passado, puniu-me com um castigo de mil e duzentas linhas.
Julguei a punição de todo injusta e fui pedir que o Pe. Champagnat me livrasse dela. Chegado ao quarto dele, disse-lhe
em lágrimas e com grande detalhe, por que o havia consultado. Depois de escutar-me com cuidado, tomou uma
folha de papel da gaveta, gotejou um pouco de cera nela e
aplicou o selo. Então escreveu apenas uma linha, assinou
a folha e ma entregou, pedindo que fosse mais cuidadoso.
O que continha esta única linha? Palavra a palavra, apenas isto: ‘pagamento das mil e duzentas linhas’. ”61
A resposta de Marcelino revela a sua natural e intuitiva compreensão da
adolescência e da vida religiosa. Mas esta intuitiva compreensão não se limitava ao Irmão Silvestre. Segundo o Irmão João Batista, tão logo Marcelino notasse que algum postulante estava perturbado ou duvidava da sua vocação ou experimentava muita saudade da família, mandava-o chamar ou
procurava oportunidade de estar a sós com ele.
“Isto podia ser tomando-o consigo como companheiro de
viagem, para uma saída com ele ou convidando-o a que o
ajudasse em algum trabalho manual. Em qualquer caso,
nunca perdia contato com ele, até que houvesse reforçado
a sua determinação de perseverar no seu santo estado. Marcelino tinha toda uma variedade de abordagens e se valia
de qualquer meio possível para banir as tentações contra a
vocação e infundir coragem naqueles que se assustavam
com as provações ou perturbações da vida religiosa. Ele
fazia que o jovem prometesse ficar por mais alguns dias,
assegurando-o de que o deixaria ir, se a insatisfação não
desaparecesse. A outro podia dar uma posição de confiança,
61
Irmão Silvestre, Memórias, p. 91-92.
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com o lembrete de que contava com ele e estava convencido de que o jovem não ficaria desapontado. Ou podia chamar
o hesitante a fazer uma novena, com a promessa de que,
se as disposições permanecessem as mesmas, ele não poria
obstáculo a que saísse. Um jovem podia ser aconselhado a
ficar mais algum tempo para avançar nos estudos e, enquanto se ocupava nisso, o Fundador lhe inspiraria habilmente algum gosto da vida religiosa e o conduzia à decisão de abraçá-la.”62
A empatia de Marcelino sobe de ponto, quando contemplada no contexto do rigorismo prevalecente na teologia moral, das expectativas da vida religiosa e ainda da prática pastoral do seu tempo. Para o rigorismo, a natureza humana era corrupta e o próprio perdão de Deus era difícil de obter. Jesus Cristo era considerado tão severo Redentor quanto inescrutável.63 Por causa disso, muitas pessoas se afastavam dos sacramentos, especialmente na
França, durante os séculos dezessete e dezoito, ou os recebiam raramente,
sob o pretexto de serem demasiado indignas. Ainda assim, consoante o testemunho do Irmão Callinique, vemos Marcelino como homem de enorme empatia no confessionário. Ele era firme e compassivo simultaneamente.
“Durante o meu noviciado, fiz confissão geral da minha
vida, como a regra sugere. Nada pode descrever a bondade do Fundador no confessionário. Na minha confissão, abraçou-me, como era o seu costume, apertandome contra o coração com todo o afeto. Ele era realmente
o pai do filho pródigo a dar-lhe as boas-vindas. ”64
A sua simpatia o ajudava a ligar-se com as pessoas. Para criar um sentido de união com os seus Irmãos, Marcelino tomava o tempo de conhecêlos e compreendê-los. Para estabelecer tal união, Marcelino queria estar certo de que estava em ligação com os Irmãos.
62
Jean Baptiste Furet, Vida, P. 465-466.
Keith Farrell, Realizações das profundezas, p.4.
64
Testemunhas sobre MARCELLIN CHAMPAGNAT: testemunhas menores, tomadas do Ir. Leonard Voegtle, FMS, Postulador Geral, “para a beatificação M. Champagnat”, Ir. Callinique, p. 7.
63
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É interessante notar que a Regra de 1837 exigia que todos os Irmãos escrevessem ao Superior cada quatro meses.”65 Evidentemente, isso era um meio de
Marcelino conhecer os Irmãos. É por causa desse dispositivo que temos numerosas cartas de Marcelino em resposta aos Irmãos. Muitas dessas cartas revelam as qualidades empáticas de Marcelino, especialmente a sua habilidade
de escutar com atenção os outros. Marcelino escreveu ao Irmão Barthélemy.
“Folgo em ouvir que você está de boa saúde. Também sei
que você tem muitas crianças na sua escola; consequentemente tem muitas cópias das suas virtudes, dado
que as crianças vão modelar-se por você e, por certo, vão
imitar o seu exemplo. ”66
Em outra carta, Marcelino escuta e diz compreender os pensamentos,
sentimentos de preocupação de Barthélemy.
“Estou muito consciente de todos os problemas que todas
as enfermidades dos seus confrades podem criar-lhe. Cuide
bem de si, para que possa superar as dificuldades do seu
cargo. Seja corajoso, caro amigo; pense como são preciosas perante Deus as suas ocupações. Grandes santos e
grandes homens julgavam-se felizes no desempenho de
tarefa que Jesus e Maria valorizam tanto. ‘Deixai que as
crianças venham a mim, porque o céu lhes pertence’.” 67
Possivelmente do exemplo do pai dele, Marcelino aprendera como chegar
a conhecer de perto as pessoas, como juntar-se a elas, como com elas preocupar-se e como desenvolver laços com elas. A tendência natural de Marcelino
era ser relacional. Como prova dessa opinião, é interessante notar que o Irmão
Silvestre diz que muitas viagens de Marcelino em visitar os paroquianos, em
distantes povoados, “não eram apenas para visitar doentes, mas também para restabelecer contato com as famílias, reconciliar os inimigos, ajudar os pobres, consolar os aflitos e trazer de volta às suas obrigações as pessoas delas
afastadas e que até já não falavam caridosamente do seu pároco. Possuía dom
natural para ganhar a confiança e corrigir sem nunca ofender”.68
65
Regra de 1837, capítulo VII, parágrafo 2.
Carta ao Ir. Barthélemy; Ampuis, Rhône; 1830-01-21; PS 014
67
Carta ao Ir. Barthélemy; Ampuis, Rhône; 1831-01-03; PS 019
68
Irmão Silvestre, Memórias, p. 34.
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O relacionamento e a competência administrativa de Marcelino:
desenvolver e influenciar os outros, construindo laços e trabalhando em equipe e cooperação
“As lições e exemplos de Marcelino não foram perdidos; encontramolos nos Irmãos que ele fundou.”69
O relacionamento e as competências administrativas implicam a habilidade do indivíduo em trabalhar com outros, dirigi-los e promover relacionamentos relativos a atividades ou projetos acima da capacidade individual.
Ponderemos especificamente uma dessas competências: desenvolver e influenciar os outros.
Desenvolver e influenciar os outros
Esta competência diz respeito à habilidade em promover a aprendizagem de longo prazo ou o desenvolvimento dos outros. O seu foco incide
no intento e efeito desenvolvimentista antes do que ensino e treino formal.
Tais pessoas que bem se desempenham disso despendem tempo na ajuda
das pessoas e encontram o seu caminho por mediação de retrocarga específica. Orientam e supervisionam as pessoas, sublinhando as forças delas.
Eles têm a habilidade de causar impacto para apoiar algum objetivo particular. No caso de Marcelino, o seu escopo era claro: prover a educação cristã às crianças pobres dos povoados e vilas rurais.
Das muitas imagens empregadas para descrever Marcelino a de mentor
é extremamente adequada. Ele formou os seus primeiros Irmãos de tal modo que eles poderiam um dia assumir os cargos de liderança dentro da comunidade. É o que ele menciona em carta ao Arcebispo de Pins, em 1835.
“É verdade que tenho alguns Irmãos que me ajudam em
várias tarefas: um bom mestre de noviços, um capaz de
dar aula aos Irmãos, outro para os noviços e um administrador.” 70
69
Jean Louis Duplay, Testemunho encontrado nos Anais do Instituto #205
Carta ao arcebispo Gaston de Pins, Administrador apostólico de Lyon, Rhône; 1835 (Lent);
PS 056
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Sabemos também que Marcelino acreditava no desenvolvimento dos seus
Irmãos. Na sua Circular de dois de abril de 1840, fica claro que Marcelino
havia treinado outros para presidir à conferência anual.
“Portanto, de conformidade com a sua última Circular,
a conferência será realizada em… para o estabelecimentos
de … e será presidida pelo nosso Primeiro assistente e, na
sua ausência, pelo Irmão ...”71
Ele aconselhou e orientou Francisco em como exercer a liderança e tomar decisões. Exemplo disso é visto na carta de 10 de janeiro de 1838 a Francisco. Marcelino, em Paris, tentava obter a autorização legal do Instituto e
estava consciente da relutância de Francisco em assumir a liderança na sua
ausência. Ele escreve a Francisco:
“Sempre que tiver um problema, depois de consultar a
Deus e a nossa Mãe comum, consulte o Pe. Matricon. Diga-lhe que eu lhe pedi que o consultasse. Solucione o trabalho com ele e com o Pe. Terraillon, sendo possível. Nos
domingos, em hora costumeira, reúna o secretariado com
Matricon e com os Irmãos de costume. ”72
Marcelino modelava o tipo de tomada de decisão que ele acreditava necessário: consulta dos sacerdotes de L’Hermitage e dos “Irmãos de costume”. Na sua carta ao Pe. Ferréol Douillet, podemos ver o processo da tomada de decisão que, sem dúvida, transmitia aos seus Irmãos.
“A decisão que venho partilhar com você acerca do nosso estabelecimento em La Côte de modo algum foi montado apenas por mim. Após recomendar o tema às orações de todos
os nossos Irmãos e dizer missa nesta intenção, consultei os
meus confrades sacerdotais, os nossos Irmãos, e todos foram
de opinião que não devíamos continuar com a direção da
escola de La Côte, exceto nas condições acordadas e segundo essas mesmas que reivindicamos por toda a parte.”73
71
Circular de 1840-02-04; PS 318
Carta ao Ir. Francisco; N.D. de l’Hermitage; 1838-01-10; PS 169
73
Carta ao Pe. Ferréol Douillet,; La Côte-St.André, Isère; 1838-10; PS 215
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Cabe notar também que, antes da promulgação da Regra de 1837, Marcelino enviou os originais aos Irmãos mais veteranos para consulta e comentários do conteúdo; segundo o Irmão Marie-Jubin. Marcelino procurou
igualmente a sugestão ou opinião de alguns dos Irmãos mais novos.
“O gesto de consultar nunca o embaraçava. Mais de uma
vez achegou-se a mim, jovem Irmão de vinte anos, o que
tanto me surpreeendeu como me edificou. ”74
De igual modo, Marcelino despendia tempo em auxiliar alguns dos Irmãos em “encontrar o seu próprio caminho”, mediante específica recapitulação. Isso já foi visto nas duas cartas dele a Dominique (OS 049 & OS
234); na sua carta ao Irmão Cassien (OS 042); na sua carta ao Irmão Barthélemy (OS 024); na sua carta ao Irmão Denis (OS 168); na sua carta ao Irmão
Théophile (OS 0621); em uma das suas cartas ao Irmão Francisco (OS 197).
Vejam-se uns poucos excertos delas.
Ao Irmão Dominique Marcelino escreveu.
“Um pouco mais de humildade e obediência não prejudicaria nenhuma situação.”
“Quanto a você, querido amigo, sempre estaremos prontos em satisfazê-lo e até em obedecer-lhe. Indique-nos um
emprego em que você fique constante e contente, que nós
lho confiaremos sem detença. Constitui muito triste enfermidade ser feliz apenas em lugares onde não se está.
É também terrível erro estar à caça de outro modo de fazer o bem, afora aquele que nos foi confiado.”
Marcelino consulta o Irmão Cassien:
“…Assim, pois, caro Irmão, que é que pode perturbá-lo? Se
os membros da Sociedade de Maria são demasiado imperfeitos para lhe servirem de modelo, caro Cassiano, então
74
Testemunhas sobre Marcelino CHAMPAGNAT: testemunhas menores, tomadas do Ir. Leonard Voegtle, FMS, Postulador Geral, “Testemunha na beatificação Champagnat”, Ir. MarieJubin, p. 12.
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olhe para aquela que pode ser o modelo de perfeitos e de imperfeitos, ela que a todos ama: ama os perfeitos, porque estes lembram as virtudes e levam os outros a fazer o bem, especialmente em comunidade; ama os imperfeitos, porque é
precisamente em consideração deles que Maria foi elevada
à sublime dignidade de Mãe de Deus.”
Em primeiro de novembro de 1831, Marcelino aconselha o Irmão Barthélemy quanto ao modo de “conquistar” os corações dos seus alunos.
“Diga-lhes quanto Deus os ama e eu também os amo, por
causa de Jesus Cristo, por causa de Nossa Senhora e dos santos, por quem vocês são amados. Diga-lhes: Sabem por que
Deus os ama tanto? É porque vocês foram comprados pelo seu
sangue e vocês, por sua vez, podem ser grandes santos, e com
pouca dificuldade, se vocês se decidirem a sê-lo realmente.”75
Marcelino escreve ao Ir. Denis:
“Se você quiser que eu continue a admoestá-lo das suas falhas, caro amigo, não deve tanto estranhar os meus avisos.”76
Marcelino recomenda ao Irmão Théophile, que está ansioso quanto à situação da sua escola de Marlhes.
“Por que aborrecer-se? Ajamos como se estivéssemos certos
do pleno êxito; e demos toda a honra a Jesus e a Maria.”
A Francisco, temeroso de que os seus talentos e habilidades não fossem
adequados às tarefas de que foi incumbido, Marcelino diz o seguinte:
“Procure apenas fazer bem a sua obrigação e Deus fará
o que você não pode.”
Claramente, Marcelino tinha a habilidade de promover o desenvolvimento dos seus “Pequenos Irmãos”, de modo que também eles pudessem
enfrentar as necessidades dos jovens a eles confiados.
75
76
Carta ao Ir. Barthélemy; Saint- Symphorien d’Ozon; 1831- 11- 01; PS 024
Carta ao Ir. Denis, PS 168.
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CONCLUSÃO
Vamos concluir por onde começamos, com uma reflexão do Ir. João Batista sobre Marcelino:
“O Pe. Champagnat deveu muito do seu êxito no ministério e na fundação do seu Instituto ao seu caráter brilhante, aberto, amigo e atencioso, com a sua habilidade
em resolver situações de discórdia. A sua face irradiava
afabilidade natural, transmitindo uma impressão de bondade e franqueza que conquistava os corações e dispunha as mentes a aceitar, sem dificuldade e até com prazer, as suas opiniões, instruções e as próprias censuras.”
A inteligência de Marcelino tinha as suas raízes nas suas interações com
os outros e com a sua sensibilidade para com os outros, quanto a sentimentos, temperamentos e motivações. Em suma, a inteligência dele jazia na
sua habilidade em compreender os verdadeiros relacionamentos humanos
até nas mínimas coisas. Ele era pessoa dotada com forte inteligência social
e emocional. Tinha a habilidade de “ler” as situações, compreender o contexto social que influencia o procedimento, para formar, desenvolver e inspirar os outros. Marcelino sabia escolher as estratégias que levam ao cumprimento do seu objetivo primordial: dar educação cristã aos jovens pobres.
Por sua correspondência e pelas lembranças daqueles que bem o conheceram, Marcelino irrompe calmo, sereno, aberto, constante e corajoso.
Consciente das suas limitações, ele era dotado de profunda inteligência de
senso prático, e confiava firmemente nas suas convicções. Marcelino sempre preconizou que a qualidade definidora dos seus “Pequenos Irmãos de
Maria” fosse a simplicidade; de muitos modos, este predicado qualificou o
próprio Marcelino. Para Marcelino a simplicidade implicava retidão no relacionamento com os outros, entusiasmo no trabalho do momento e descomplicada confiança em Deus. Ele partilhava esta qualidade com os Irmãos, que desejava que fossem como família.
Temos visto que Marcelino era realmente talentoso no seu relacionamento humano. O seu senso comum e sua compaixão tornavam-no confessor popular, ao longo da sua vida. Era eficiente comunicador; simpatizava facilmente com os outros. Ademais, conhecemos na nossa história ma-
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rista que Marcelino não era homem para escrever tratados espirituais; mas
era homem de determinação e de ação, homem de coração e de afeto. A sua
ênfase era posta no coração e no relacionamento, tanto com Deus como com
o próximo. Isso foi e é a herança chave da nossa espiritualidade e da nossa
pedagogia marista. Foi por meio desse coração e desta afeição para com os
jovens da França rural e daqueles que os educariam que Marcelino teve êxito
no que muitos imaginaram impossível. Este feito, por muitos, reputado
impossível, Marcelino levou a cabo. Tais atributos sociais e emocionais da
inteligência de Marcelino permitiram que realizasse grandes coisas, com o seu
caráter aberto, amigo, obsequioso, com a sua afabilidade natural, franqueza e
impressionante bondade.
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O relacionamento entre
Marcelino Champagnat e
o Irmão Francisco
como se mostra nas cartas de Paris,
dirigidas a Francisco,
e em alguns outros documentos
Irmão Peter WALSH, FMS
Província de Melbourne
INTRODUÇÃO
Esta é versão abreviada de trabalho apresentado no Curso do Patrimônio, em Roma, em 2008. O texto se concentrou no exame das cartas de Marcelino Champagnat, enviadas de Paris ao Irmão Francisco, bem como das
circulares que o Irmão Francisco enviou aos Irmãos sobre Champagnat e de
outros documentos, com o fim de surpreender o que isso nos diz, no atinente ao relacionamento desses dois homens: um, fundador e superior; o
outro, protegido seu, secretário e primeiro sucessor.
Como a existente correspondência constitui, por si, elemento segundo,
lançamos um olhar em quatro circulares que Francisco escreveu aos Irmãos,
três acerca da morte de Champagnat e uma de 1857, ademais de alguns outros documentos menores.
O trabalho foi dividido nas seguintes seções:
I:
II:
III:
Início.
A carta de 1836.
As cartas de 1838.
A: as cartas de 10 e 25 de janeiro e de 4 e 24 de fevereiro
B: as cartas de 7, 12, 13, 15 e 22 de março; e 12 de abril
C: as cartas de 20 de maio; e 7, 20 e 23 de junho.
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IV.
V:
VI:
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Duas circulares aos Irmãos em 6 de junho de 1840;
e 8 de setembro de 1840; uma circular aos Irmãos
da Oceania, em 20 de novembro de 1840;
e a circular de 6 de janeiro 1857.
Outras testemunhas.
Conclusão: Que podemos dizer do relacionamento
de Marcelino Champagnat com o Irmão Francisco?
Neste trabalho atemo-nos a uma breve consideração nas partes do todo.
A CARTA DE PARIS DE 183677
Por volta de 1836, o Irmão Francisco havia estado em l’Hermitage por
dez anos: desde 1831, como secretário privado de Champagnat, encargo a
que foi reconduzido em 1835.
O ano de 1835 foi bom para Champagnat; não logrou a sua autorização,
mas o Pe. Mazelier proveu uma solução, recebendo aqueles Irmãos em idade de recrutamento militar na sua comunidade de St. Paul-Trois-Chateaux.
O Pe. Pompallier foi nomeado Vigário Apostólico da Oceania; o Pe. Matricon foi designado capelão de l’Hermitage; quatro novas escolas foram abertas; os Irmãos chegaram a 140 membros, 80 dos quais nas escolas.78
Em 24 ou 25 de agosto, em companhia do bispo Pompallier e do Pe. Chanut, que estava indo resolver alguns negócios atinentes à missão da Oceania, Champagnat foi a Paris, na esperança de arrancar do governo a assinatura final necessária à autorização da sua Congregação. Daí, em 28 de
agosto de 1836, escreveu ao Irmão a seguinte carta:
Meu caríssimo Irmão,
[01] Após três dias e três noites de viagem79, chegamos a Paris,
77
Cartas de Marcelino J. B. Champagnat (1789-1840), Fundador do Instituto dos Irmãos Maristas, apresentadas pelo Ir. Paul Sester, 1985, traduzidas pelo Ir. Leonard Voegtle, formato
em duas colunas: CEPAM, ao Ir. Francisco, Gabriel Rivat; Notre Dame de l’Hermitage; 183608-28; PS 067; Original: AFM, 111.18; publicadas em: CSG, I, p. 209
78
Veja “Cronologia”, 1976, para o ano de 1835.
79
Por diligência hipomóvel.
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com boa saúde e determinados a fazer tudo o que pudéssemos para realizar os nossos diversos propósitos. Graças a Jesus e a Maria, completei a viagem sem experimentar, como
temia, os diversos incômodos que costumeiramente tenho.
[02] Alojamo-nos no seminário da Sociedade para as Missões Estrangeiras. O digno superior da casa recebeu-nos
com admirável bondade. Estamos em quartos contíguos.
[03] Muito precisamos do auxílio das orações de todos da
casa. Temo nada conseguir, porque o Gabinete foi mudado.80 Seria o novo ministério favorável à nossa causa?
Não tenho a menor ideia. O bispo Pompallier espera entrevistar-se com o rei e com a rainha. Se possível, ele falaria ao rei a favor da nossa causa.
[04] Não se preocupe comigo, sinto-me bem. Encontro as
pessoas de Paris muito educadas; nunca ouvimos palavra
insultuosa. Eu lhe escreverei logo que avance em algum
trâmite, para que você esteja a par de tudo.
[05] Diga aos padres Servant, Matricon e Besson que muito
conto com as missas deles e neles para a supervisão geral. Consulte-os e aos Irmãos Jean-Marie e Stanislas, em
caso de problemas mais espinhentos.
[06] Você deve apressar o negócio relativo à capela81 o
mais que puder, sem estragar nada. Cuide disso. Trabalhe com os sacerdotes Matricon e Besson e com os Irmãos
Jean-Marie e Stasnislas com máximo empenho, cuidando de que nada se estrague. Acima de tudo, peço-lhe que
não deixe ninguém ocioso.
[07] Prepare tudo para o período ferial; não posso saber
quando partirei de Paris. Parece-me que posso ficar aqui
com disposição, visto que vejo tudo extremamente calmo.
[08] Você tem o meu endereço; se necessitar, escreva-me.
Por favor, aceitem todos a certeza da minha terna afeição,
com a qual, caríssimos Irmãos, tenho a honra de ser o
80
Em 25 de agosto o Gabinete Thiers caiu; havia assumido em 22 de fevereiro. Champagnat
não poderia tê-lo conhecido, senão se houvesse chegado a Paris antes. O Gabinete seguinte só foi formado em 6 de setembro; e a instrução pública não mais foi confiada a Pelet mas
a Guizot.
81
A construção da nova capela, no lugar da atual, estava quase completa. Champagnat queria tê-la pronta para o retiro.
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mais devotado e amoroso pai em Jesus e Maria,
Champagnat, Sup. dos Irmãos Maristas.
(09) De Paris, em 28 de agosto de 1836, no Seminário da
Sociedade das Missões Estrangeiras, Rue du Bac. No. 120
Que nos pode dizer esta carta acerca do relacionamento do Pe. Champagnat
com o Irmão Francisco?
No parágrafo de abertura, Champagnat expõe o conhecimento da preocupação de Francisco acerca da saúde do Fundador e a franqueza não apenas em discutir isso com ele, mas de igual modo debater o temor que ele
próprio se fazia da viagem. “Depois de três dias e três noites de viagem,
chegamos a Paris com boa saúde; completei a viagem sem experimentar,
como temia, os incômodos que costumeiramente tenho.“ Há aqui certa intimidade e expectativa de que Francisco estaria ansioso quanto à saúde dele. Champagnat está convencido de que Francisco muito se importa com
seu sofrimento persistente. Partilhar o próprio sofrimento com outrem requer intimidade, que é construída por sólido relacionamento.
De novo, no terceiro parágrafo, Champagnat partilha os seus temores
com Francisco: “Realmente, estou temeroso de que nada logre obter”; e fala de uma incerteza: “Não faço a menor idéia”. Para ser capaz de partilhar
os seus temores e dúvidas com alguém exige certa intimidade e aconchegado relacionamento.
No quarto parágrafo, Champagnat procura de novo assegurar a Francisco
que ele se sente muito bem: “Não se preocupe comigo, sinto-me muito bem”.
Isso implica que Champagnat tem o sentimento de que Francisco se preocupa com ele. Assim, temos que Champagnat, em quatro curtos parágrafos e em
três ocasiões, procurou informar a Francisco que está muito bem de saúde.
Há igualmente a sugestão de que Francisco há de preocupar-se da receptividade que Champagnat podia receber dos parisienses. Ei-la: “Não ouvimos
nenhuma palavra insultuosa”. Quase o todo da primeira metade da carta constitui o cuidado em assegurar a Francisco que ele, Champagnat, está são e salvo. Marcelino conclui este parágrafo com a promessa de escrever e deixar
Francisco a par de “tudo”. O retrato pintado por esta metade de carta é parte íntima e amorosa: Francisco se preocupa com a saúde e bem-estar de Champagnat, enquanto este está consciente de que Francisco se preocupa com ele.
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Ele sai do seu padrão para apaziguar esses temores. Obviamente, isso é mais
que relacionamento profissional entre o Superior e o seu Secretário; semelha
o relacionamento de pai e filho em tema muito íntimo.
Havendo apaziguado, tanto quanto possível, as preocupações de Francisco, Champagnat agora se vira para temas mais práticos. Ele recorda a
Francisco, de modo muito indireto, que ele tem que levar em conta os sacerdotes Servant, Matricon e Besson: “Diga-lhes que muito conto com eles
para que a tudo supervisionem.” De igual forma, sem diminuir a responsabilidade de Francisco, ele lhe recorda que pode aconselhar-se com os Irmãos Jean-Marie e Stanislas, “no caso de problemas mais espinhentos”. Aqui
encontramos em Champagnat o mestre encorajador e desenvolvedor de pessoas em plena ação. Ele é cuidadoso em não diminuir a autoridade e responsabilidade de Francisco, no mesmo tempo em que lhe faz saber que não
está sozinho e que há outros que vão apoiá-lo e aconselhá-lo.
Havendo apaziguado os seus temores, resguardado a sua autoridade e
assegurado o apoio a ele, agora lhe diz, com plena confiança na sua habilidade de agir assim: “Você deve apressar o trabalho da capela tanto quanto lhe for possível, sem nada estragar.” Há riqueza de material nesta frase.
“Você”, porque a responsabilidade é de Francisco, e Champagnat confia nele para que o faça, ponderando que é tarefa difícil, quiçá impossível: “tanto quanto puder”. Não apenas é trabalhoso, mas há riscos inerentes: “sem
estragar nada”.
A despeito das dificuldades, Champagnat confia, até espera que Francisco logre pleno êxito: “Tome cuidado dele”; mas, outra vez, recorda-lhe que
tem pessoas para apoiá-lo: “leve a cabo as tarefas com os padres Matricon e
Besson e com os Irmãos Jean-Marie e Stanislas.” Novamente vemos duplo relacionamento: confiança e fé em Francisco junto com a preocupação de que
esteja pedindo demais. Percebe-se que o coração de Champagnat é exigido
em duas direções, como um pai que tenta desenvolver a autonomia do filho
adolescente: dá-lhe liberdade, mas está ansioso de que tenha êxito.
Então ele pede a Francisco, Superior da casa, que zele para que não deixe
ninguém ocioso e tudo prepare para o período ferial. Ele parece menos ansioso quanto a que Francisco se desempenhe bem dessas tarefas, porquanto
isso ele vem fazendo, há oito ou nove anos.
Champagnat conclui, assegurando a todos os Irmãos, mas talvez mais a Francisco, da sua terna afeição, como o seu devotado e amoroso pai em Jesus e Maria.
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Tenho a impressão de que esta é carta extraordinariamente afetuosa, embora não o sendo abertamente. Nela não há explícita afirmação de afeto, exceto o modo geral do fim da carta. Ainda assim, se for lida com cuidado, está repleta de real preocupação recíproca. Francisco se preocupa com a saúde de Champagnat, como tratam dele em Paris, como se preocupa de si. Na
sua vez, Champagnat demonstra ter fé e confiança em Francisco e, simultaneamente, preocupação em encorajá-lo e apoiá-lo, e alguma ansiedade quanto a estar pedindo-lhe demais.
A CARTA DE 1838
Por volta do início de 1838, Champagnat ainda não lograra a autorização
e decidiu retornar a Paris, onde permaneceu até a Páscoa, quando voltou a
l’Hermitage. Em maio, voltou a Paris. Escreveu cartas ao Irmão Francisco
em 10 e 25 de janeiro, em 4 e 24 de fevereiro, em 7, 12, 13, 15 e 22 de março, em 20 de maio, em 7, 20 e 23 de junho. Uma divisão óbvia seria separar as da segunda viagem, de janeiro a abril, das cartas da terceira viagem,
de maio a junho. Por razões algo arbitrárias - mas algumas se apresentaram
quando eu lia as cartas - eu decidi subdividir as cartas da segunda viagem
em cartas de janeiro e fevereiro e cartas de maio e junho. Assim, separei as
cartas de 1838 nos seguintes grupos:
A. As cartas de 10 e 25 de janeiro e as de 4 e 24 de fevereiro.
B. As cartas de 7, 12, 13, 15 e 22 de março e a carta de 12 de abril.
C. As cartas de 20 de maio e 7, 20 e 23 de junho.
A CARTA DE 24 DE FEVEREIRO DE 1838
A última carta do grupo A, de 24 de fevereiro de 1838, depois de dois meses da estada em Paris, dois turbulentos e frustrantes meses, quando Champagnat está exausto pelos infrutíferos esforços de lograr a autorização.82 Há
exaustão e desapontamento na carta que ele não procura esconder do Irmão
Francisco. Obviamente, em resposta a uma pergunta de Francisco, Champagnat se refere à recusa do reitor da universidade no concernente ao decênio de
82
Veja “Diário de Paris”, do Ir. Chanut, de 15 de janeiro a 5 de março de 1838. Appendix B.
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compromisso militar do Irmão Martin. Ele revela frustração, até mesmo desapontamento a Francisco: “Não sei que tipo de resultados nos espera, tampouco
sei que outro remédio experimentar.” Do mesmo modo, foi-lhe asseverado, a
respeito do Irmão Theodore, que “seria mais difícil obter a sua isenção que a
nossa autorização” legal do Instituto. Na sua frustração ele prossegue: “O agricultor tem de sair”. E então ele avança, para contar ao Irmão Francisco que ele
não respondeu à sua pergunta sobre os preços dos textos. “Eu queria saber o
que você pensava e não respondeu à minha pergunta.” A sua frustração continua a vazar: “Quanto ao nosso negócio principal, quantos trâmites, quantos
recados, quantas visitas, que você nem pode sequer imaginar.”
O parágrafo seguinte conta a Francisco que o Pe. Delebecque está convencido de que a autorização sera lograda em três semanas, mas Champagnat
não está tão certo: “Quem pode saber se vai terminar bem?” Este não é o último dos seus desgostos. Agora sabemos que o último dos seus irmãos sobreviventes havia morrido. Champagnat confidencia a Francisco: “Aqui agora estou completamente só, fora da nossa tenda de família”; e então quase um grito de desespero: “Eu penso que a minha vez não vai tardar.”
Parece-me que no meio desta carta, o Pe. Champagnat desnuda a sua alma
e partilha com Francisco a escuridão e o desapontamente com que está imerso em luta. Neste ponto vemos um companheiro de alma com quem Champagnat sente que pode abrir-se nos momentos mais escuros do seu “desespero”. Caracteristicamente, este sentimento de desesperança não dura e ele, de
imediato, tenta reassegurar a Francisco que ele está OK. “Apesar de tudo, estou muito bem. Raramente tomo alguma água quente. O meu apetite está muito bem.” Duvido de que Francisco teria ficado de alma serena.
Depois de tentar umas poucas notas positivas e apaziguadoras, ele resvala para o seu modo obscuro. “Você pode pensar que temos muito dinheiro;
ele míngua dia por dia; não estamos ganhando nada, como você deve ponderar. “O seu próprio post scriptum é desapontador e mesmo curto: “Não
necessito dizer-lhe quão queridos são todos os Irmãos que nomeei na última carta, ainda que você não tenha mencionado nenhum deles.” Este itálico é meu. Ele continua: “Você dificilmente responde a alguma das minhas
perguntas”. Mas logo adoça a crítica: “Adivinho que você nada tem de consolador a dizer-me em tais tópicos.” Champagnat parece ter perdido o seu
padrão; ele está tão desapontado que quase divaga. Ele termina assim: “Queria dizer-lhe algo mais; porém esqueci o que era.”
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Se a sua carta de lágrimas83 foi o seu ponto mais baixo, então esta carta
deve emparelhar com uma segunda. Na primeira ele se abre ao Pe. Cholleton e aqui, sem levar em conta que o faz, talvez em face da agoniante exaustão, ele escancara o seu desapontamento ao pasmo de Francisco. Dada a
preocupação de Francisco por ele, em 1836, da qual parecia consciente, pode-se apenas imaginar o que Francisco há de ter sentido, quando recebeu
esta carta. Aliás, o Pe. Champagnat parece tão exausto e desapontado que
não se dá conta do que está dizendo, tampouco do impacto que as suas palavras poderiam ter. Exaustão, desapontamento, frustração, até mesmo a
premonição da morte próxima. Infelizmente, como não sobreviveu correspondência do Irmão Francisco, apenas se pode adivinhar o teor da sua resposta, em face do impacto que esta carta há de ter tido nele.
SEÇÃO IV : CIRCULARES DO IRMÃO FRANCISCO
Infelizmente, não temos nenhuma das cartas que o Irmão Francisco escreveu a Champagnat enquanto este estava em Paris; contudo possuímos
algumas Circulares que o Irmão Francisco escreveu sobre Champagnat.84
A primeira Circular, de seis de junho de 1840, informa as comunidades
da morte de Marcelino Champagnat, sacerdote da Sociedade de Maria e Fundador e Superior dos Pequenos Irmãos de Maria. Temos visto, nas cartas de
Marcelino a Francisco, os aspectos do relacionamento pelo lado de Champagnat, com umas poucas atitudes inferidas do Irmão Francisco. Aqui temos a nossa primeira oportunidade de examinar o relacionamento pelo outro lado da sebe. Como Francisco vê Marcelino?
A sua primeira referência é para “o nosso bom Padre Superior”, não apenas ao nosso Padre Superior, senão ao nosso bom Padre Superior. Fora das
conotações costumeiras que associamos com o termo bom, cotejemo-lo com
“a nossa boa Mãe”. Maria foi vista como primeira superiora e como a “soma total dos recursos da nossa sociedade”85; será que podemos dizer que
Francisco está aludindo a Champagnat como ao nosso pai, superior e fonte de todas as nossas realizações, a soma total de quanto somos.
83
PS Cartas 030 ao Pe. Cholleton, agosto ou setembro de 1833
CSG 51.01.01.1840.1 e CSG 51.01.01.1840.2; tradução do Ir. Peter Walsh, fms, CSG 1.333-7,
tradução do Ir. Edward Clisby, fms, e CSG 18570106; tradução do Ir. Peter Walsh.
85
PS. Cartas 194 Champagnat ao Pe. Pompallier, 27.5.1838.
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Ele então convida os Irmãos a “unir conosco as suas lágrimas e as suas
esperanças”, o que implica dizer que Francisco já havia chorado e esperava que o trabalho de Champagnat continuasse por meio deles. Ele os convida a chorar a perda e dá a descrição do que Champagnat tem sido para
eles: “bom pai, valoroso Superior e Fundador, santo sacerdote da Sociedade de Maria, nosso apoio, nosso guia e terno consolador.” Ele prossegue:
“Chorem porque a morte nos tirou aquele que tão bem sabia compartilhar
as nossas lutas e dirigir os nossos passos na via da salvação. Ele terminou
uma vida de sofrimentos, laboriosa e integralmente preenchida com trabalhos de zelo e devoção, de fidelidade em meio a uma longa e cruel enfermidade. A sua morte foi como a sua vida integralmente plena de edificação:
não temos dúvida de que ele tem sido precioso aos olhos de Deus.”
“Cabe-nos agora, diz ele, recordar e seguir cuidadosamente as suas últimas e tão tocantes instruções, para fazê-lo viver em cada um de nós, pela
imitação das virtudes que nele admiramos, e aconchegar-nos mais que nunca à nossa boa e terna Mãe.” Francisco, por último, tem sido tocado e está
determinado a imitar o amado Fundador Pai e mentor.
A segunda Circular, de 8 de setembro de 1840, que convoca os Irmãos ao
retiro anual, começa por recomendar que os Irmãos “vivam como verdadeiros
Irmãos. ”Ele recorda aos Irmãos que “não lhes é dada a alegria como antes,
com a presença do Pe. Champagnat,” mas vão encontrá-lo como “o nosso pastor e pai”, nos monumentos do seu zelo e da sua devoção por nós, na memória das suas piedosas lições, na mútua citação das suas virtudes e do bendito
exemplo.” Claramente, Champagnat estava ainda muito vivo para Francisco.
A terceira Circular, dirigida aos Irmãos da Polinésia, de 20 de novembro
de 1840, vai acompanhar a nova onda de missionários, encorajando-os, e vai
informar àqueles que já estão na Oceania a morte do Pe. Champagnat. “Faz
agora seis meses que o bom Deus o chamou deste mundo para a eterna coroa, assim esperamos, e vai recompensá-lo do seu longo trabalho e dos seus
grandes sofrimentos.” Ele lhes narra que “a sua enfermidade final o deixou
tão exausto e extenuado, que não era mais que esqueleto vivo.” Aqui captamos um lampejo de Francisco que partilhou, por diversos anos, o sofrimento que Champagnat suportou. Já o comprovamos na carta de 1836; e de
novo em algumas das cartas de 1838: Francisco sofria por Champagnat e com
ele. “A sua morte tal qual a sua vida estavam cheias de edificação. Não duvidamos de que ele era precioso aos olhos do Senhor”, ele reitera.
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Ele prossegue: “Não há necessidade de que lhes digamos quanta pena e
tristeza uma tal dolorosa perda deixou nos nossos corações. Trata-se de ferida que leva muito tempo para sarar.” Não se precisa enfatizar quão pessoal
era essa perda, e de quem era sobremodo a ferida em questão. Retorna a
imagem do “bom pai, do guia confiável e do consolador compreensivo”; e
bem sabemos para quem ele era pai, guia e consolador compreensivo.
Em 1857, Francisco escreve outra Circular catalisada pela publicação e difusão da “vida de Champagnat” do Irmão João Batista. A circular leva a data de seis de janeiro e o ano de 1857 como elementos cronológicos; esta Circular, portanto, presume-se tem muito que ver com Francisco. Ele põe diante dos Irmãos o exemplo da vida do Fundador para que eles o imitem.
Francisco lista bom número de sentenças do Pe. Champagnat condizentes com diversos tópicos. Os nove primeiros se reportam aos exercícios cotidianos, como se vê abaixo.
Levantar
“Por mais de vinte anos, ele disse a um Irmão, levanto às
quatro; mas ainda não me acostumei a isso: sempre tem sido sacrifício e luta. Realmente, pensando nisso, tenho pena
dos jovens Irmãos a quem isto custa tanto.”
Oração, meditação
“O Irmão que não sabe como rezar não sabe como praticar
a virtude, nem como fazer o bem entre os alunos. É impossível que ele preencha as suas obrigações religiosas sem verdadeira e sólida piedade.”
Ofício
“O ofício é uma consolação para os Irmãos. Eles não entendem
latim, mas Deus entende, e a sua oração não lhe é menos agradável, se o recitam com boa intenção e motivação.”
Missa, Comunhão
“Para o Irmão com espírito de fé, deve ser grande sacrifício
não poder assistir à missa todos os dias. Quem falta a ela por
própria culpa mostra que carece de zelo pela sua perfeição
e não ama a Jesus Cristo.”
Estudo, trabalho.
“O Irmão deve tornar-se apto para qualquer ofício ou emprego do Instituto; para tanto deve amar o trabalho.”
Aula
“A vasilha de barro retém por longo tempo o gosto e cheiro
do primeiro líquido nela vertido; as crianças que adquiriram
bons hábitos e corretas atitudes na escola primária vão guardá-los por toda a vida.”
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Catecismo
“O Irmão nada deve desejar tanto como ser bom catequista,
visto que é a sua maior função e o escopo da sua vocação.”
Alimento
“Tenho notado sempre que aqueles que pensam muito nos
seus corpos pensam pouco nas suas almas.”
Alegria
“Alegria e felicidade devem constituir a costumeira atitude
do religioso. Esta é a disposição que lhe desejo. Você deve
temer nada mais do que o espírito de tristeza; afora o pecado, não há maior perigo.”
Ele então lista outras vinte sentenças para as relações entre os Irmãos,
para as tentações ordinárias e para a perfeição religiosa. Assim, na sua Circular de 1857, o Irmão Francisco lista vinte e nove sentenças do Fundador,
um como sumário do ensino do Pe. Champagnat e do livro do Irmão João
Batista - “Vida de Champagnat.”
O Irmão Francisco estima que a fidelidade está conectada à imitação do
Pe. Champagnat:
“Se desejamos ser verdadeiros discípulos do nosso piedoso
Fundador, se desejamos sinceramente continuar o seu trabalho na terra e participar do seu mérito e da sua generosidade para a vida celeste, cumpre que caminhemos nas
suas pegadas, imitemos as suas virtudes e conformemos
sempre o nosso procedimento e os nossos pensamentos às
regras e sentenças que ele nos deixou. Em menos palavras,
procedamos de tal maneira em tudo, que nenhuma das
nossas palavras e ações possa ser reprovada por ele, por
aquilo que disse ou fez.”
O Irmão Francisco, verdadeiro Pequeno Irmão de Maria, verdadeiro seguidor de Champagnat, verdadeiro religioso e verdadeiro filho de Champagnat, é alguém que o imitou “tão perfeitamente quanto possível”.
Champagnat despendeu muitos anos na formação do Irmão Francisco. As
suas cartas de Paris contêm muito conselho e encorajamento. Ele deu a Francisco a liberdade de agir por própria iniciativa e para tomar muitas decisões por
si mesmo, mas sempre estava na retaguarda, para aconselhá-lo e encorajá-lo.
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Retira-se muita informação em perceber quanto de Champagnat aparece na
Circular de 1857. Também é muito interessante ver quão forte é o sentimento
que Francisco ainda tem de Champagnat dezessete anos após a sua morte.
SEÇÃO V: OUTRAS TESTEMUNHAS
Em sua carta ao Pe. Pompallier, em 27 de maio de 183886, Champagnat,
em resposta àquela que recebera de Pompallier, diz: “O Irmão Francisco é
o meu braço direito; ele governa a casa na minha ausência, como se eu estivesse presente. Tudo lhe submeto sem nenhum problema.” Assim, temos
aqui informe em primeira mão de Champagnat acerca dos sentimentos e atitudes para com Francisco. Ele, porém, não é apenas o braço direito de Champagnat; é muito mais, ele é como outro Champagnat. Quando Fracisco preside, é como se Champagnat estivesse presente.
Quando o Irmão Francisco foi eleito Diretor Geral dos Irmãos em 1839, reporta-se que o Pe. Champagnat, “no momento da eleição, havia manifestado
uma alegria muito visível”. E, depois da eleição, disse um Irmão, citado na biografia: “Ele se mostrava muito satisfeito com o resultado da votação e disse:
Estou feliz com a escolha; ele é exatamente o homem que eu queria. Deus
abençoou a eleição.”87 Reporta-se ainda que, dias antes da morte, algum Irmão perguntou-lhe quem seria capaz de liderar a Congregação, quando ele
houvesse desaparecido. Ele respondeu: “O Irmão que vocês escolheram para suceder-me vai fazer melhor que eu. ”88
O Irmão João Batista, na sua Vida, escreveu do Irmão Francisco: “Repleto do espírito do piedoso Fundador e pronto em adotar o seu modo de
governar os Irmãos e de fazer o bem, o Irmão Francisco não fez mudança
no que tinha sido feito ou na maneira de fazê-lo. Foi claramente visto, com
grande satisfação, que no novo regime o Padre Champagnat vivia e continuava a agir, por mediação do seu sucessor. ”89
86
PS Cartas 194
Veja ALS 411
88
Veja Furet, Vida de MJB Champagnat, 1989 ed. P. 226
89
Vida, p.252
87
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O Irmão Francisco deixou escrito no seu diário, em nota que se reporta
à recepção do retrato de Marcelino: “Recebido o retrato do Padre Champagnat. Seja a sua imagem viva. ”90
Assim, parece óbvio que Champagnat foi feliz com o homem que ele havia apadrinhado por longo tempo, confiante de que ele havia aprendido
bem as suas lições e que ele tinha a força serena para lograr êxito. É igualmente óbvio que o Irmão Francisco havia muito bem aprendido de Champagnat; atraído a si em idade muito nova, ele sentou aos pés do mestre e
incorporou a sua sabedoria e a sua bondade; tão bem que assumiu a tarefa de tornar-se a sua imagem viva e encorajou todos os Irmãos a agir da mesma forma. Vinte e oito anos depois, era evidente para o observador que ele
ainda mantinha aquela afeição e reverência.
SEÇÃO VI: CONCLUSÃO
No exame de qualquer relacionamento humano há certas expectativas
que gostaríamos de verificar:
• O relacionamento exibe as qualidades de relacionamento sadio ou
não sadio?
• O relacionamento é simples ou complexo?
• O relacionamento evoluiu e amadureceu?
• O relacionamento transmitiu vida para as pessoas?
No exame do relacionamento de Marcelino e Francisco, aferido pela correspondência, devemos formular as mesmas perguntas.
Na procura da resposta dessas perguntas, damos por aceitas as qualidades
de relacionamento sadio ou não sadio e as cotejamos com a seguinte tabela.
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ALS, p. 411 citado em Gabriel Michel, Irmão Francisco, p. 78.
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CARACTERÍSTICAS DO
RELACIONAMENTO SADIO
CARACTERÍSTICAS DO
RELACIONAMENTO NÃO SADIO
Boa comunicação, transparência
comunicação pobre, desonestidade
Confiança, sentimentos partilhados,
intimidade
Intimidação, abuso
Reciprocidade, apoio
Isolamento
Responsabilidade partilhada
Censura, conflito não resolvido
Individualidade
Perda da identidade e da autoestima
Revendo cada uma das seções do nosso trabalho, que características do
relacionamento descobrimos? Na seção “Começos”, encontramos a atração
recíproca: o jovem Gabriel Rivat encontrou um senso de pertença e identidade; o seu senso de personalidade foi alimentado e fortificado; havia recíproca confiança e respeito; havia reciprocidade e partilha de estilos de vida; ambos tinham confiança no outro e respeito por ele; dada a diferença
de idade e responsabilidade, cada qual permitiu que o outro desenvolvesse as suas próprias capacidades e individualidade.
Na carta de 1836, vemos a preocupação de Francisco pela saúde de Champagnat e as inquietudes de Chmpagnat em relação ao Ir. Francisco: reciprocidade e apoio. Francisco está consciente da dor de Champagnat: intimidade. Champagnat expressa os seus temores: transparência. Champagnat estava preparado para permitir que Francisco tomasse as decisões: individualidade. Ambos partilham responsabilidades quanto a l’Hermitage: partilha
de responsabilidade. Obviamente a carta por inteiro revela uma boa comunicação. Não encontramos nela nenhuma característica relacional não sadia.
Nas cartas de 1838, encontramos que Champagnat tinha grande confiança em Francisco, especialmente com relação ao esquecido caderno que ele
se comprometera a deixar guardado fechado a chave ou queimar: responsabilidade partilhada, reciprocidade, confiança. Há discussão acerca da
saúde e dos temores de Champagnat: intimidade; discussão do papel de
Francisco como enfermeiro e conselheiro espiritual e a necessidade de ele
tomar certas decisões; individualidade. Consta aí uma partilha de sentimentos e comunicação aberta e transparente.
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Em lugar algum nos deparamos com características de relacionamento não
sadio. O mais perto disso está na nota singela da carta de 24 de fevereiro de
1838: “Você não respondeu a nenhuma das minhas perguntas”; mas, como vimos, mesmo isso foi abrandado ou estornado com o comentário seguinte: “Eu
adivinho que você nada tinha de consolador que me contar.” É notável que, em
algumas dessas quinze cartas, como vimos, escritas quando Champagnat se mostrava muito desapontado, não encontramos nenhum exemplo de intimidação,
censura, isolamento, desonestidade ou conflito não solucionado. Lastrados na
evidência das cartas, podemos dizer, com alguma certeza, que o relacionamento de Champagnat com Francisco exibe todas as características de um relacionamento sadio e nenhuma característica de relacionamento não sadio.
O relacionamento é simples ou complexo?
O relacionamento entre Champagnat e o Irmão Francisco é de tipo complexo e multifacetado. Poderíamos dizer que, de fato, há muitos relacionamentos. Podemos sumariá-los como na tabela dois.
Relacionamento multifacetado entre Champagnat e o Irmão Francisco
De pai e filho
Irmão maior e Irmão menor
De professor e aluno
Fundador e discípulo
Diretor espiritual e pessoa acompanhada
Administrador e secretário
Líder e sucessor
No exame da correspondência de Marcelino Champagnat, de Paris, dirigida ao Irmão Francisco, temos exemplos de todos esses ‘relacionamentos’.
A Terceira questão que nos cumpre ponderar é esta: estava o relacionamento evolvendo para a maturidade?
O nosso exame das cartas mostrou que o relacionamento começou como de pai e filho; moveu-se para os estágios de professor e aluno, de Irmão
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maior para Irmão menor, de fundador para membro seguidor, de diretor espiritual para a pessoa dirigida, de administrador para secretário, e culminou
no de líder e sucessor. Em recente artigo, o rabino Jonathon Sacks falou sobre o fato de que “enquanto o bom líder forma muitos seguidores, o grande líder forma líderes.” 91 O citado autor continua e assevera: “Grande ingrediente na formação de líderes, parece-me, tem que ver com o fato de
conceder permissões, num contexto e numa cultura em que as pessoas podem florescer e são encorajadas.” Parece-me que, por esta definição, Champagnat pode classificar-se como um grande líder. As suas cartas fornecem
ampla evidência de atmosfera e cultura adequadas a que Francisco tivesse
permissão de ser ele próprio, de confiar no seu julgamento, de tomar decisões, de tornar-se o grande líder que sabemos que foi.
Vamos à nossa pergunta final: Era o relacionamento apto a dar vida aos indivíduos por ele atingidos? Parece-me que sim. Obviamente, como foi visto,
Champagnat permitiu que Francisco crescesse na pessoa que bem conhecemos. Foi nutrido e encorajado, apoiado e licenciado para tornar-se líder de
homens. Champagnat ensinou-o, modelou-lhe as características de um relacionamento sadio e de bom líder. Encontramos ampla evidência disso.
O relacionamento teria sido dador de vida para Champagnat? Creio que
sim, já que era relacionamento recíproco de boa comunicação, transparência, confiança, sentimentos partilhados, intimidade, mutualidade, apoio, responsabilidade partilhada e individualidade. Francisco tornou-se a mão direita de Champagnat, seu confidente, apoiador de confiança, alguém com
quem podia partilhar os mais íntimos sentimentos, os seus temores, os seus
momentos obscuros. Enquanto, por natural propensão, fazer tudo sozinho,
teria sido impossível a Champagnat levar a cabo tudo o que fez. O segundo homem em quem podia confiar tornou isso possível, até mais e melhor
do que faria sozinho. Ademais, há de ter-lhe sido de enorme auxílio alguém
em quem podia confiar os seus mais profundos sentimentos e mesmo temores. Em verdade, o relacionamento era recíproco concessor de vida para Marcelino e para Francisco.
91
Dr. Matthew del Nevo, Broken Bay Institute [email protected]
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O começo
da Província Alemã
Ir Augustin HENDLMEIER, FMS
Província da Europa Centro-Oeste
PREFÁCIO
Este trabalho pode ser considerado apenas o passo inicial no caminho
de um estudo mais completo da história da Província Alemã dos Irmãos Maristas, especialmente quanto às condições da sua fundação e das complicadas negociações com o governo alemão em Berlim, e com os governos da
Província da Prússia, da Vestfália e do reino da Baviera.
Há certos problemas particulares por considerar na estruturação do trabalho.
a. As únicas fontes disponíveis no tempo da pesquisa eram documentos
nos arquivos do Generalato de Roma. Naturalmente estes documentos não são completos e podem mostrar apenas um lado da história
inteira. O outro lado encontra-se nos arquivos de Arlon e nos arquivos provinciais de Beaucamps e nos arquivos provinciais da Província Alemã, em Furth. Os documentos, todos em francês, são publicados aqui pela primeira vez. Esta é uma das principais contribuições
desta pesquisa.
b. Um estudo da história da Província Marista Alemã deve ser escrito em
alemão, dado que há de ser lido primeiro por todos os Irmãos alemães.
Seria tomar a via equivocada redigi-lo em inglês e depois vertê-lo para o alemão.
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Em face desses dois pontos, o presente trabalho pode somente proceder a
um levantemento incompleto ou sumário das condições do início da Província e do seu desenvolvimento nos anos que precederam a fundação. A principal tarefa consistiu na identificação e acesso dos documentos relevantes. A versão deles para o alemão foi outra parte importante do trabalho, versão que não
consta aqui. Assim, fica claro, em face das citadas condições específicas, não
pôde ser levada a cabo uma edição crítica e científica dos documentos.
Afora uns poucos e toscos aspectos da história da Província Alemã, não existe uma história completa publicada até o momento. Em Roma, onde este projeto de pesquisa foi realizado, não há literatura especial disponível sobre este
tema. Desse modo, a única base, como foi dito, são os Arquivos da Casa geral. Nenhuma outra literatura foi consultada.
Todos esses pontos devem ser ponderados para conhecer as circunstâncias
especiais e as condições deste estudo, para entender os seus parâmetros.
1. Documentos nos Arquivos FMS de Roma:
a. 13 cartas do Irmão Raymond Célestin ao Irmão Superior Geral Stratonique, em Grugliasco. 4 cartas manuscritas. Datas: 21.1.1911 (Doc. 612. L.
001, primeira carta) até 27.12. 1913 (Doc. 612. L. 024, última carta).
b. 4 Relatórios
– Relatório sobre a fundação de uma casa para os Irmãos Maristas na
Alemanha, apresentado ao Reverendo Irmão Stratonique, Superior
Geral, em Grugliasco (Itália), 4 páginas. 20. Janeiro, 1911 (Doc. 612.
H. 003).
– Relatório sobre a fundação de uma casa para vocações dos Irmãos
Maristas na Alemanha, apresentado ao Conselho Geral do Instituto,
em Grugliasco. 4 páginas, 20 fevereiro de 1912 (Doc. 612. H. 004).
– Relatório sobre o Distrito da Alemanha, sem data, sem autor, 12 páginas manuscritas (1927?) (Doc. 612. H. 007).
– Informação sobre o Distrito de Furth, 6. Dezembro 1941, Autor: Irmão
Armand Leo Dorvaux, Visitador, 10 páginas (Doc. 612. H. 009).
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OS COMEÇOS DA PROVÍNCIA ALEMÃ
c. 5 cartas do Príncipe de Löwenstein (Membro do Parlamento Alemão,
Partido do Centro) ao Provincial em Arlon : Datas: 6.12.1911, primeira
carta (Doc. 612. L. 003) até 2.11.1913, última carta (Doc. 612. L. 021).
d. Carta ao Governo Real em Münster, Departmento de Cultura e Educação. Autor: Irmão Raymond Célestin. Data: 3 outubro de 1913 (Doc.
612. L. 016).
e. Carta ao Bispo de München Freising dos Irmãos Maristas, incluindo
uma carta do Bispo Michael de München (8. 9. 1919 ) (Doc. 612. H. 006).
f. Carta do Superior Geral ao Santo Padre Pio XI, no concernente à fundação do Distrito da Alemanha Data: 1920 (cópia) (Doc. 612. X. 001).
Todos esses documentos estão em francês e não foram traduzidos ao alemão.
2. Pessoas ligadas à fundação
a. Irmão Raymond-Celestin Koop (Josef Koop) FMS
Lugar do nascimento: Alt-Oer (perto da cidade de Recklinghausen)
District Westfalen
Data do nascimento: 9. 12. 1882
Noviciado. 1899 em Arlon (Bélgica)
Voto de obediência: 14. 9. 1901
Data da morte: 3. 11. 1957
1903-1913: Arlon (professor)
1914-1922: Recklinghausen
1922-1945: Professor em San Mauro (Itália) Noviciado internacional
1945-1947: Bairo, Carmagnola (Itália)
1947-1953: Vaduz (Liechtenstein)
1953-1956: Mindelheim
1957: Recklinghausen
Ele pode ser considerado como o fundador da Província Marista da
Alemanha, dado que preparou a fundação da primeira casa com grande habilidade e severidade. Esteve à testa de todas as negociações com
a diocese de Münster, do governo da Vestfália e do governo de Berlim e com o próprio prefeito de Recklinghausen. Estava sempre em
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contato com o Superior Geral e com o seu Conselho. Ele foi também
o recrutador da Alemanha. A sua constância e confiança em Deus fêlo superar todas as dificuldades. Ele andou nas pegadas de Champagnat.
b. Irmão Josef Verius Porta (Adam Porta) FMS
Lugar de nascimento: Welmünster, distrito de Sarreguemines, Lorena
Data de nascimento: 9 de junho de 1872
Noviciado: 1889 em Arlon
Voto de obediência: 15. 8. 1891
Data da morte: 8 de janeiro de 1950 em Montevidéu
1893-1901: Arlon
1910-1909: Gohisssant (Diretor)
1910-1911: Grugliasco (Itália)
1911-1914: Arlon (Mestre de noviços)
1914-1920: Furth (Diretor)
1920-1929: Furth (Visitador)
1929-1937: Furth (Diretor)
1937: Budapest
1937: Graz/ Áustria (Diretor)
1938-1950: Montevideo (Visitador e Diretor)
Como primeiro visitador do Distrito da Alemanha, teve grande influência no desenvolvimento dos Irmãos e na missão da Alemanha.
Também pode ser considerado o fundador dos Irmãos Maristas no Uruguai.
c. Irmão Armand Leo Dorvaux (Léon François Dorvaux)
Lugar de nascimento: Bolchen, Department Moselle (Lorena)
Data de nascimento: 21 de fevereiro de 1879
Noviciado: 1896 em Arlon
Voto de obediência: 1899
Data da morte: 14 de setembro de 1959
1899-1909: Arlon (Professor )
1909: Grugliasco ( Itália )
1910-1915: Arlon ( Diretor )
1915-1920: Furth (Diretor)
1920-1926: Stein an der Traun (Diretor de juvenato)
1926-1929: Mindelheim (Diretor de Juvenato)
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1929-1939:
1939-1945:
1945-1952:
1952-1959:
Furth (Visitador)
St. Gingolph/ Suíça (Visitador)
St. Gingolph (Diretor)
Furth (Submestre de Noviciado)
Como Visitador do Distrito da Alemanha no tempo do regime nazi
(1939-1945), teve de desempenhar-se de cargo muito difícil; pela sua
grande habilidade e talento de liderança, logrou muito bom resultado. Em companhia do Irmão Josef Verius Porta, foi o construtor da Província da Alemanha e o guia de um desenvolvimento de muito êxito
de 1915 a 1939
d. Alois, Príncipe de Löwenstein (1871-1952)
Membro do Parlamento Alemão em Berlim, pelo Partido Católico
de Centro, Diretor da Comissão das Missões Católicas Estrangeiras, valeu-se da sua influência e conexões políticas em favor da Igreja Católica e especialmente em prol dos religiosos. Cópias de algumas das
suas cartas ao governo alemão constam nos arquivos de Roma. Membros da sua família, hoje ainda, estão em atividade política.
e. Dr. Wilhelm Solf (1862-1936)
1900 – 1911: Governador de Samoa Alemã
Foi moderado em política. Preconizou uma solução pacífica para a
revolta contra os alemães em Samoa, em 1904. Muito se interessou pelo melhoramento da educação das crianças de Samoa. Ele queria ter
bons professores, também Irmãos Maristas, mas estes tinham de ter a
formação na Alemanha. O seu plano era este: uma casa de formação
para os Irmãos, mas apenas para preparar Irmãos das Colônias alemãs.
Assim, ele está na origem dos Irmãos Maristas, na Alemanha, mesmo
se era por razões pessoais e sem conhecer o verdadeiro contexto. Havia também muitos imigrantes alemães, em Samoa. Vinte anos depois
de que o período alemão terminou, os habitantes de Samoa consideravam o governo Solf como a sua idade de ouro. O seu modo de operar o colonialismo foi dito “colonialismo benevolente”.
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3. Passos no caminho da fundação na Alemanha
Os Irmãos alemães antes da fundação na Alemanha
a. Irmãos alemães em Arlon (Bélgica)
1888: Fundação de Arlon (Província Marista de Beaucamps, França).
1889: Primeiro noviço alemão em Arlon (Ir. Josef-Verius Porta).
1898: Primeiros Irmãos alemães na escola normal em Arlon (com aprovação do Estado Belga)
1914: 80 noviços alemães e postulantes e 140 juvenistas em Arlon; muitos Irmãos alemães partiram para as missões na China, Brasil,
África do Sul e outros países. Houve também quem trabalhasse
no juvenato e no noviciado de Arlon.
b. Irmãos alemães no irromper da I Guerra Mundial
1914: Quando começou a Guerra, muitos Irmãos tiveram de ingressar
no exército. Os noviços e jovens candidatos foram mandados para casa. Os outros Irmãos foram obrigados a deixar a Bélgica.
1914: Procura de novos estabelecimentos na Baviera
O processo de fundação
a. Negociações entre o Instituto e os governos alemães de Berlim
e de Münster e da diocese de Münster
25. 1. 1907: Solicitação ao governo Bávaro, sem sucesso.
Janeiro de 1912: o Conselho Geral decide começar uma casa na Alemanha.
De janeiro a fevereiro de 1912: Negociações entre o Irmão Raymond
Celestin e a diocese de Münster acerca do Seminário menor de Recklinghausen, que foi oferecido ao Instituto. Ele havia ficado vazio, por alguns anos. A diocese
queria vender a casa.
Fevereiro de 1912: O Príncipe de Löwenstein se entrevista com o Ministro da Educação, em Berlim.
b. Condições do governo em Berlim
Apenas Irmãos com nacionalidade alemã na casa.
Os Irmãos que ensinaram na Bélgica tiveram licença no começo; mas
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OS COMEÇOS DA PROVÍNCIA ALEMÃ
depois foi exigido um diploma especial.
Só se aceitam negociações com o Irmão Diretor da casa, não com o
Instituto ou com o Provincial da Bélgica.
A Missão de Samoa tem de ser servida.
Todos os anos, as estatísticas dos Irmãos têm de ser aprovadas pelo
governo.
c. 2. 10. 1913: Autorização do governo para abrir uma casa para a formação de professores destinados às Colônias Alemães.
d. 1913: Compra de casa e propriedade da diocese de Münster.
e. Fevereiro de 1914: Começo do juvenato em Recklinghausen:
Seis Irmãos e o Irmão Raymond Célestin como diretor; durante a Guerra a casa foi utilizada como hospital militar. Os Irmãos trabalharam como enfermeiros; houve cerca de sete mil prisioneiros de Guerra na casa até 1918.
Desenvolvimento do Distrito Alemão de 1915 a 1945
a. Fundação em Furth em 11.1.1915; mais tarde Casa Provincial.
A Baronesa Philomena of Hornstein oferece a sua vila em Furth, Baviera,
aos Irmãos para juvenato e postulado, com oficinas, cervejaria e fazenda.
Os primeiros Irmãos eram Josef-Verius Porta e Armand-Leo Dorvaux.
b. Desenvolvimento no período entre as duas guerras mundiais:
muitas fundações.
Novas fundações depois da fundação de Furth: na Alemanha, 20; na
Áustria, 3; na Suíça, 2; na Dinamarca, 2; em Liechtenstein, 1; na Holanda, 2; na Polônia e na Itália, uma cada.
Fundação do Uruguai: 6 escolas no Uruguai e uma casa na Argentina
de 1936, a 1941.
Desenvolvimento depois de 1945
a. 1945: Os Irmãos alemães tinham 31 casas. Oito foram fechadas em
1937 pelos nazistas. Cinco casas foram fechadas antes de 1937. Duas
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casas na Holanda, três casas na Dinamarca, três na Áustria, casas que
não foram reabertas depois da guerra. Além disso, uma casa no Liechtenstein, Vaduz; uma casa na Suíça, St. Gingolph.
b. 1937: 400 Irmãos alemães
1947: 156
2007: 40
c. A Alemanha se tornou Província em 1946
d. A situação dos Irmãos alemães em 2008
A Alemanha é parte da nova Província Europa Centro-Oeste.
Há quatro escolas diocesanas; apenas três Irmãos trabalham nas escolas.
4. Documentos nos Arquivos Maristas de Roma
relativos à fundação da Província Marista Alemã
e ao seu desenvolvimento até 1945
a. Dois documentos ilustrarão a situação antes da fundação:
Relatório do noviciado em Arlon, 21 de junho de 1914
(Original em francês, autor desconhecido, provavelmente o mestre dos
noviços).
Doc. 613 .002. 31
Introdução
O relatório trata da formação dos Irmãos no noviciado de Arlon. Contém
importante informação sobre os primeiros Irmãos alemães e no que concerne ao programa de formação do noviciado, no período antes de 1914.
1. A maioria dos jovens candidatos e dos noviços provém da Alemanha.
2. Eles vêm do Palatinado e da Baviera.
3. O recrutamento é feito primeiramente por meio de anúncios em jornais.
4. Há também recrutadores viajantes de tempo em tempo.
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5. Agora se necessita de recrutador de tempo integral
6. A idade ordinária dos noviços está entre 15 e 18 anos.
7. O programa de formação do noviciado é o mesmo daquele do século XIX.
8. Há práticas especiais para estimular o zelo dos noviços.
9. Alguns Irmãos perdem a vocação porque são enviados ao trabalho
apostólico logo após o noviciado.
10. Infere-se, portanto, que se deve abrir um escolasticado de três anos.
Recrutamento
O recrutamento do nosso noviciado é feito primeiro pelo Juvenato do Sagrado Coração de Jesus, que nos enviou 35 postulantes dos 46 que tínhamos este ano. Todos os nossos novos candidatos são de nacionalidade alemã, provindos do Palatinado e da Baviera. Quase todos foram preparados
por pais cheios de zelo, cujo único desejo é o melhor para os seus filhos e o
melhor para as missões católicas. Temos de agradecer à Divina Providência a escolha dos jovens que se digna enviar-nos. Todos vêm de boas famílias, têm boa saúde e em geral são muito dotados para enfrentar os estudos com êxito.
Até agora, empregamos como meio de recrutamento apenas alguns anúncios nos mais importantes jornais do país para dar a conhecer a nossa Congregação, também o boletim do juvenato e, de quando em vez, enviando
um Irmão a perambular nesta ou naquela parte da Alemanha para conseguir informações dos padres das paróquias, acerca das vocações de jovens que desejamos para fazer o trabalho de Deus, vestidos com o humilde hábito dos Irmãos Maristas.
Nesse meio tempo, vendo que o nosso trabalho podia perecer por falta de
vocações, constatou-se serem esses meios insuficientes. Seria mais que desejável que algum Irmão se dedicasse por inteiro ao recrutamento das vocações.
As Congregações religiosas estabeleceram-se em Arlon em grande número. Todas elas contam com recrutador especial, que perambula regularmente pelas nossas regiões e logra grande colheita de vocações. Seria de
grande necessidade criar, tão cedo quanto possível, o cargo e função de recrutador. Periodicamente, ele visitaria a Província belga de Luxemburgo,
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o ducado de Luxemburgo, a Lorena, o Palatinado e a Baviera. Deus abençoaria o seu trabalho e o nosso noviciado veria nova era de prosperidade.
Postulado
Agora os nossos postulantes somam 28; estão divididos em duas classes. A
primeira tem 16, todos de lingua francesa, todos eles vem do juvenato. Os 12
da segunda classe, que entraram no noviciado diretamente, estão aprendendo primeiro o francês e ficam entre oito e dez meses no postulado.
O programa do postulado inclui o catecismo de perseverança e a Perfeição Cristã, aquele que é usado nas escolas normais da Bélgica. Por uns
dois anos, o Irmão Visitador estabeleceu três competições por ano entre os
postulantes de Arlon e de Pommeroeul, na primeira classe do juvenato de
Arlon e o outro de Pitthem. Estas competições logram os melhores resultados de emulação, entre os professores e alunos, provocando progresso nos
estudos.
Noviciado
O nosso noviciado compreende 37 noviços repartidos em dois grupos para a tomada de hábito. Afora dois, com mais de vinte anos, todos os demais estão entre 15 e 18 anos, o que comporta a melhor idade para uma
boa formação do religioso e para incutir sólidas convicções.
Em geral, afora uma hora, o tempo inteiro é dedicado à instrução religiosa: Perfeição Cristã, Constituições, Diretório Geral, Catecismo de perseverança, votos evangélicos, a vida dos santos e a história da Igreja, o livro
de ouro e os livros do Instituto. Para estimular o zelo e para facilitar o progresso do espírito religioso e o espírito do santo fundador, temos estabelecido a confissão semanal, a comunhão diária, a recoleção mensal, a prática do tesouro do Sagrado Coração e o exame de consciência duas vezes
por dia. Praticamos também o exercício da culpa e a direção cada quinze dias e a penitência pública voluntária. No conjunto, cremos que podemos assegurar que os nossos jovens fazem realmente o seu noviciado e temos a consolação de vê-los todos contentes e felizes pelo fato de pertencerem à grande família da Santíssima Virgem.
Para encerrar este curto relatório, permitimo-nos expressar o desejo que
também é o de todos os sacerdotes em favor da nossa Congregação. De acordo com as nossas Constituições, o noviciado dura um ano. Torna-se visível
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que, em tempo tão minguado, não se pode assegurar aos nossos jovens Irmãos uma completa formação religiosa. Mal e mal têm eles o tempo de apreciar adequadamente a bênção de ser chamado por Deus à vida religiosa.
O trabalho da sua perfeição está apenas superficialmente realizado, a
sua virtude apenas desponta e eles são lançados à vida ativa; infelizmente,
nos trabalhos nem sempre eles encontram as circunstâncias necessárias para serem encorajados na prática das virtudes religiosas e na consolidação
da sua vocação. Como muitas vezes eles entram em contato com o mundo,
e perdem o espírito que tão generosamente haviam mostrado no começo do
seu noviciado e mais vezes temos que deplorar a perda da vocação, a qual,
se eles tivessem tido o tempo de robustecer, seria hoje a honra do Instituto.
Dessa maneira, o nosso grande desejo é que se garanta a todos os nossos
jovens Irmãos o favor de passarem dois anos no escolasticado, depois de terminar o noviciado. Desso modo, eles seriam capazes de robustecer a sua vocação por meio da prática continuada das nossas santas regras. Eles teriam
a ocasião de conhecer melhor o nosso Instituto e, em conseqüência, amá-lo
mais. Também obteriam maior cultura profana, hoje necessária para conseguir algum êxito no trabalho da educação cristã. Sem nenhuma dúvida,
podemos assegurar também que, se dois anos de formação extra implicam
novos sacrifícios para a nossa Congregação, por outro lado, poderiam aumentar a solidez das vocações cheias de esperança: eles seriam treinados para o êxito, sem muito medo de falhar na batalha entre o bem e o mal.
Carta ao Superior geral
Autor: Irmão Raymond Célestin. Data: 21 de outubro de 1913,
Documento: 612. L. 019.
Introdução
Nesta carta, como em algumas outras, o Irmão Raymond Célestin, encarregado pelo Assistente geral de cuidar da fundação na Alemanha, procura convencer o Superior geral da importância de estabelecer uma casa na Alemanha.
Eis os principais argumentos:
1. A fundação de um estabelecimento na colônia alemã de Tsingtau, na
China, seria muito útil para obter a aprovação de abrir uma casa na
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Alemanha, porque na colônia seriam necessários professores alemães.
2. O Príncipe Alois de Löwenstein, grande benfeitor dos Irmãos e membro do Parlamento, defenderia a causa deste projeto no Ministério em
Berlim.
3. Os Irmãos alemães que trabalhassem na colônia ficariam dispensados
do serviço militar, porquanto todos os Irmãos que exercem funções
em alguma colônia alemã são legalmente isentos.
4. A casa de Arlon está celebrando o seu aniversário XXV. O Superior Geral vai tomar parte nas celebrações.
V.J.M.J.
Arlon, 21 de outubro de 1913
Reverendíssimo Irmão Superior Geral,
Permita-me que lhe recomende a questão da fundação de uma escola
de Irmãos Maristas na colônia alemã de Tsingtau, na China.
No ano passado reportou-se que o processo da fundação desta escola foi
lançado. Dois Irmãos alemães, um deles provindo de Arlon, foram escolhidos para esta fundação. Como não havia dúvida da abertura de tal escola, a revista marista alemã ”Marienstimmen”, Voz de Maria, publicou
reportagem sobre o novo campo de ação dos Irmãos Maristas nos territórios germânicos. O Príncipe de Löwenstein empenhou-se com devotamento na sustentação desta causa ante o Ministério em Berlim; e esta não é a
menor das razões em favorecer a autorização do nosso estabelecimento na
Alemanha.
Estranhei profundamente que esta fundação não se tenha levado a efeito; colhi esta informação do Irmão Provincial da China, a quem havia escrito para que tomasse cuidado com a pendência do serviço militar de um
dos Irmãos alemães.
Permita-se-me dizer-lhe, Reverendo Irmão Superior Geral, que esta escola oferece diferentes vantagens que vão ser apreciadas ainda mais, por-
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que a Alemanha oferece muitos Irmãos. O projeto desta fundação já foi
apoiado e estará apoiando o nosso estabelecimento na Alemanha. Seria de
máxima utilidade para a dispensa do serviço militar dos Irmãos alemães.
Todos os Irmãos alemães que trabalham nas colônias alemãs ficam isentos do serviço militar.
No futuro deve-se ter em conta uma nova lei de emigração, a qual vai
probir o ato de emigração para trabalhadores das minas de carvão. A colônia de Tsingtau, pelo jeito, é muito próspera e os Irmãos vão poder fazer
muito bem.
Estou certo de que Vossa Reverência tomou conhecimento do grande desejo de todos os Irmãos de Arlon em ter a sua presença nas grandes celebrações em dezembro pela passagem do aniversário XXV da sua fundação.
Se me é permitido expressar o desejo, este seria que viesse à Alemanha depois, para ver a casa proposta para a fundação. Vossa reverência veria a
região, a situação e a simpática população.
No aguardo da sua resposta, Reverendo Irmão Superior Geral, com profundo respeito e total submissão, sou o seu muito humilde e devotado
Irmão Raymond Célestin
b. Documentos nos Arquivos da Casa Generalícia relativos à fase
inicial da Província Marista da Alemanha
26 documentos, listados em ordem cronológica
1: Relatório sobre a fundação de uma Casa dos Irmãos Maristas da Alemanha. Data: 20 de janeiro de 1911. Doc. 612. H. 003. Autor: Irmão
Raymond Célestin
2: Carta ao Superior Geral. Data: 21 de janeiro de 1911. Doc. 612. L.
001. Autor: Irmão Raymond Célestin
3: Carta ao Superior Geral. Data: sem data. Doc. 612. L. 002. Autor: Irmão Raymond Célestin
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4: Carta ao provincial. Data: 6 de dezembro de 1911 Doc. 612. L.003.
Autor: Alois, Príncipe de Löwenstein
5: Carta ao Superior Geral. Data: 12 de dezembro de 1911. Doc . 612.
L. 005. Autor: Irmão Raymond Célestin
6: Carta ao Superior Geral. Data: 18 de dezembro de 1911. Doc. 612.
L. 004. Autor: Irmão Raymond Célestin
7: Carta ao Superior Geral. Data: 20 de janeiro de 1912. Doc. 612. L.008.
Autor: Irmão Raymond Célestin
8: Carta ao Superior Geral. Data. 23 de janeiro de 1912. Doc. 612. L.
009. Autor: Irmão Raymond Célestin
9: Carta ao provincial. Data: 8 de fevereiro de 1912. Doc. 612. L. 010.
Autor: Alois, Príncipe de Löwenstein
10: Relatório sobre a fundação de uma casa de recrutamento dos Irmãos Maristas na Alemanha. Data : 12 de fevereiro de 1912. Doc.
612. H.004. Autor : Irmão Raymond Célestin
11: Carta ao Superior Geral. Data: 6 de julho de 1912. Doc. 612. L.011.
Autor: Irmão Raymond Célestin
12: Carta ao provincial. Data: 19 de janeiro de 1813. Doc. 612. L.0. Autor: Alois Príncipe de Löwenstein
13: Carta ao provincial. Data: 13 de maio de Doc. 612. L.014 Autor: Alois
Príncipe de Löwenstein
14: Carta do Governo Real Münster. Data: 3 Outubro de 1913. Doc. 612.
L. 016
15: Carta ao Superior Geral. Data: 6 de outubro de 1913. Doc. 612. L.
017. Autor. Irmão Raymond Célestin
16: Carta ao Assistente Geral. Data: 11 de outubro de 1913. Doc. 612.
L. 018. Autor: Irmão Raymond Célestin
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17: Carta ao Superior Geral. Data: 21 de outubro de 1913. Doc. 612. L.
019. Autor: Irmão Raymond Célestin
18: Carta ao Superior Geral. Data: 30 de outubro de 1913. Doc. 612.
L.020. Autor: Irmão Raymond Célestin
19: Carta ao provincial. Data: 2 de novembro de 1913 Doc. 612. L.021.
Autor: Alois, Príncipe de Löwenstein
20: Carta ao Assistente Geral. Data: 6 de novembro de 1913. Doc. 612.
L.02 . Autor: Irmãos Ferdinandus (Diretor de Arlon)
21: Carta ao Superior Geral. Data: 29 de novembro de 1913. Doc. 612.
L.023. Autor: Irmão Raymond Célestin
22: Carta ao Assistente Geral. Data: 27 de dezembro de 1913. Doc 612.
L.024. Autor: Irmão Raymond Célestin
23: Rascunho de uma carta ao Bispo de Munich, incluindo uma carta
do Bispo. Data: 31 de outubro de 1919. Doc. 612. H.006. Autor: Os
Irmãos Maristas
24: Relatório: Distrito da Alemanha. Data: sem data ( 1927? ). Doc. 612.
H.007. Origem e progresso
25: Extrato dos Anais da Casa Provincial de Furth/ Baviera. Data: 1950.
Doc. 612. 01004
26: Carta ao Santo Padre. Data 1920. Doc. 612. X.001. Autor: Superior
Geral
27: Alemanha: Lista de todas as fundações entre 1914 e 1949. Data: 20
de julho 1995.
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A Vida
de um simples Irmão
John Samuel Metuh, fms
(1926-2007)
Irmão Elias IWU, FMS
Província da Nigéria
Fico muio grato ao meu Irmão Provincial e ao seu Conselho e ao Conselho Geral pela oportunidade a mim oferecida
de participar, em Roma, do Curso do Patrimônio Marista.
Antes de tal curso, pensava, equivocadamente, que eu sabia
muito do Padre Champagnat e não havia razão de repetir o
que eu fizera no Postulado e Noviciado. Pouco eu sabia do
que vai além daquilo, já que tem que ver com os primórdios
da vida e da história dos Irmãos Maristas e da família
marista. De fato, o Curso do Patrimônio Marista diz respeito
ao passado, ao presente e ao futuro das nossas vidas como
Irmãos Maristas.
Cheguei à constatação de que é incompleto falar somente do
nosso santo Fundador Champagnat, sem mencionar os
primeiros Irmãos Maristas que lidaram e labutaram com ele.
Nas vidas destes Irmãos que nos precederam, vemos o “evangelho vivo”. Pessoalmente, percebo que a maioria dos Irmãos
os imitaram e continuam a imitá-los hoje. É sobre este ponto que decidi expor a vida de um deles, na Província da
Nigéria; é o Irmão João Samuel Metuh, FMS, morto em 21 de
junho de 2007, depois de 54 anos na vinha do Senhor.
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Introdução e origem da família
“A vida dos crentes é a celebração do que Deus tem feito
na vida deles, particularmente quando se veem pela eterna liturgia, em que eles, em ação de graças, celebram a
intervenção indelével de Deus nas suas vidas” (Bispo AyoMaria Atoyebi O.P., Opúsculo de Lembranças: “Marist Brothers in Nigeria at 50”, 19 de dezembro 1999, p.11B).
“Confrontando o mistério do mal, há o mistério do bem;
embora os poderes das trevas pareçam prevalecer, o crente
sabe que o mal e a morte não têm a última palavra”
(Irmão Roger de Taizé, ‘Escolha o Amor’ p.113).
O Reverendo Irmão John Samuel Akwulum-Okwulu Metuh nasceu em
maio de 1926. Ele nasceu em Eze Ana, em Nnewi; o pai dele era Chief Ibenegbu Metuh, o segurador do mais alto ‘Ozo’ (Alteza) título no clã Anaedo.
O nome da mãe dele era Madam Nwogwugwu Grace Ojukwu, filha de EzeOdumegbu Nwosu de Obino Otolo Nnewi. A linhagem do Irmão João está
diretamente ligada com a família real Nnewi. Ele nunca se fez clara idéia do
pai, porque este morreu quando João tinha seis anos. O Irmão João proveio
de uma família poligâmica. Viveu sob a tutela de um dos seus primos, senhor Augustine Metuh, que era então largamente respeitado professor da
escola católica Santa Teresa, em Okigwe.
Ele não teve a oportunidade de receber o batismo em criança, por causa
da sua parentela pagã; mas foi admitido na Igreja Católica aos treze anos.
Foi batizado em 1939, recebeu a santa comunhão em 1940 e, dois anos depois, o sacramento da confirmação. Ele viveu vida simples. O Irmão João
era homem de oração, maravilhoso catequista, grande formador, músico,
professor humilde, amigo da juventude e dos pobres. A despeito das dificuldades e ameaças postas pela sua parentela pagã, demonstrou-nos quanto os seres humanos são capazes de superar os problemas que lhes criamos;
de igual modo, demonstrou que as palavras do evangelho são primordiais
na nossa vida comum.
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A VIDA DE UM SIMPLES IRMÃO: JOHN SAMUEL METUH, FMS (1926-2007)
Educação
O Irmão João começou a educação primária em 1937 em Nnewi e a completou, em 1943 na Escola Primária Santa Teresa, em Okigwe, no Estado de
Imo. Os seus estudos foram brilhantes; foi um dos melhores alunos da região de Okigwe, no seu exame para a obtenção do diploma de final de curso. Foi recompensado com bolsa de estudo e admissão automática no Colégio St. Anthony, em Onitsha, em 1944, onde os professores eram formados. Ele completou os estudos com sucesso em 1945. Ensinou em diversas
escolas primárias, entre 1946 e 1952, quando obteve o Certificado de Professor Grau II. Levou a cabo a sua formação superior na Universidade nigeriana de Nsukka, onde se diplomou em Estudos Religiosos; em 1979, diplomou-se Bacharel em Artes.
O Irmão João desenvolveu apaixonado interesse pela música. Foi autorizado a procurar admissão numa instituição superior, para seguir o seu forte interesse; mas as exigências requeridas para estudar música numa instituição superior fê-lo optar pela graduação em Artes e Estudos Religiosos.
Ainda assim, não se deteve no seu amor pela música; ficou conhecido como músico de autoformação. Tornou-se organista, compositor, mestre de
coro. Ofereceu-se, com as suas habilidades nessas funções, para quem dele necessitasse.
Vocação de Irmão
“Quando Cristo nos disse de segui-lo, não era que precisasse do nosso serviço, mas ele
queria conferir-nos a salvação” (S. Ireneu). “Marist Brothers in Nigeria at 50, 19 de dezembro de 1999, pp. 12-13).
O Irmão João, nos seus sete anos de professor leigo, ouviu o apelo, não
do bíblico Eli, mas do Senhor que o convidou a abraçar a vida dos Irmãos
de São Pedro Claver, em Uturu. Então ele deixou o seu último posto na escola de Amichi, e o seu lar na cidade de Otolo, Nnewi e se dirigiu, serenamente, a Uturu, para estar certo de que era o Senhor que o chamava e não
Eli. João chegou a Uturu, terreno familiar, onde ele havia estudado e vivido
com o seu primo. Foi aceito de pronto no postulado, que ele cursou de janeiro a dezembro de 1953. Ele então completou com sucesso o programa
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dos dois anos de noviciado; foi admitido aos primeiros votos em 7 de janeiro de 1956.
Notável acontecimento transpirou naquele mesmo ano: os Irmãos religiosos de São Pedro Claver foram incorporados pelo Instituto dos Irmãos
Maristas das Escolas, na Nigéria. A Congregação de São Pedro Claver pertencia ao vicariato de Onisha e Owerri; havia sido fundada em 16 de janeiro de 1944. Em 1946, o Arcebispo Charles Heery expressou a esperança de
que os Irmãos Maristas da Província da Grã-Bretanha pudessem vir à Nigéria em auxílio dos Irmãos de São Pedro Claver, mas não foi possível por falta de pessoal. Tão logo Owerri se separou de Onisha, em 1948, o novo Bispo J. B. Whelan escreveu outra carta à Província da Grã-Bretanha. Depois
de alguma negociação, os Irmãos Maristas chegaram à Nigéria, em 15 de dezembro de 1949. A incorporação da Congregação de São Pedro Claver pelos Irmãos Maristas se realizou depois do retiro anual, pregado pelo seu primeiro Diretor, Monsenhor J. Nwanegbo em 1956.
Durante o retiro, eles renovaram os seus votos de pobreza, castidade e
obediência como Irmãos Maristas. Isso marcou o ponto de transição do Irmão João e dos seus confrades, de São Pedro Claver para Irmãos Maristas
das Escolas.
Zelo apostólico
Antes do seu apelo ao serviço na vida religiosa, o Irmão João provou, além
de toda a dúvida, que a vida futura que Deus punha diante dele não era mero capricho, uma vez que já se havia equipado com os instrumentos da evangelização. Ele tinha ensinado em muitas escolas. Era muito apreciado nas aulas e nas escolas pelos seus alunos. A comunidade e os arredores testemunharam a simplicidade que o jovem professor leigo exibia. Pouco sabiam eles
que o Pe. Champagnat se valeria do jovem professor leigo para ensinar sobremodo o que era mais negligenciado. Ele era professor inteligente, eficiente
e bem organizado; as crianças gostavam de serem ensinadas por ele em qualquer hora, como muitos testemunharam. Na Escola Primária da Santa Cruz,
ele deixou marca indelével na vida dos seus alunos e na dos seus pais. A fama estendeu-se a tal ponto que a maioria dos pais começou a se perguntar
que tipo de milagre havia ocorrido que fazia com que os seus pupilos cabeçudos começassem a escutá-los e cumprir as obrigações de casa.
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A VIDA DE UM SIMPLES IRMÃO: JOHN SAMUEL METUH, FMS (1926-2007)
Mais tarde, em 1981, o Irmão João foi enviado a abrir a primeira Comunidade Marista em Onisha, Nigéria, onde ele havia ensinado no Colégio de
Formação de Professores São Carlos. A Comissão Educacional do Estado de
Anambara nomeou-o supervisor da Educação religiosa e moral das escolas
católicas na Arquidiocese de Onisha, de 1981 a 1984. Por três anos, ele trabalhou na Arquidiocese de Onisha, sob as ordens então do Arcebispo, agora cardeal Francis Arinze. O Irmão João ajudou a levantar o estandarte da
educação, na Arquidiocese e no Estado. Os seus constantes compromissos
de vida espiritual, vida moral, Maria, Champagnat e a juventude levaramno à casa de formação em Orlu, para trabalhar como formador. A presença
do Irmão João em Orlu foi verdadeira bênção para toda a comunidade. Estabeleceu um ramo do Movimento da Família Marista, um como braço dos
Associados Leigos Maristas e da Legião de Maria. Ele estava tão envolvido
nas atividades da sociedade que, então, o Bispo católico de Orlu, Sua Excelência D. Gregory Ochiaga o designou como coordenador diocesano. O
Irmão João viu esta incumbência como grande desafio e comprometimento
de bem honrar as expectativas, até 1999, quando deixou a diocese.
Animador de vocações
“Todos os Irmãos da Província empenham-se no despertar
de vocações. O mais persuasivo convite de seguir a Cristo
vem do testemunho dado pela nossa consagração e de nossa vida simples e alegre numa comunidade solidária com
os pobres. Convidamos os jovens a descobrirem nossa vida
de Irmão e de apóstolo e a assumi-la” (Constituições, 94).
Conheci o Irmão João pela primeira vez no Centro de Formação Marista
de Orlu. Cheguei a Orlu como um rapaz vibrante e questionador, em busca
da minha real vocação. Estava interessado em conhecer e aprender muitas
coisas. Uma delas era música, que o Irmão João praticava, no cargo de diretor da casa do Postulado. Não perdi tempo; acheguei-me mais a ele, porque, como disse, tinha interesse em música. Quando entrei no Postulado
pela primeira vez, fiquei muito surpreso em encontrar um homem idoso, no
fim da década de setenta, tocando música e contando canções com muita
energia e feliz. Não pude esconder a minha admiração por ele. Para logo
concluí que se eu perseverasse nesse tipo de vida, talvez vivesse até mais e
seria feliz como ele.
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Enfermidade e morte
“Ouse dar a sua vida pelos outros que, assim, vai encontrar sentido para a sua existência” (Irmão Roger de Taizé,
Deus é só amor, Continuum, Londres, 2003, p. 79).
O Irmão João era fisicamente forte e foi agraciado por Deus com boa saúde. Antes da sua morte, ele costumava visitar o seu médico pessoal em Enugu para exames médicos. A sua visita de junho de 2007, que ele imaginava
de rotina, não foi como esperava. Consultou o doutor duas vezes em Enugu, como paciente. Quando se percebeu que a sua saúde piorava, na manhã de 21 de junho de 2007, foi levado às pressas ao hospital para consulta do seu médico; este o submeteu a tratamento intensivo. Deus decidiu chamá-lo; foram inúteis todos os esforços dos médicos e enfermeiros do ‘Níger
Foundation Hospital’, em Enugu. O nobre espírito do Irmão João Samuel
Metuh partiu para o Senhor no mesmo dia 21 de junho de 2007: morreu com
Cristo para ressuscitar com Ele.
ATITUDES PROEMINENTES
A sua devoção a Maria
“Dando-nos o nome de Maria, Champagnat desejou que
vivêssemos o seu espírito. Ele estava convencido de que ela
tudo fizera entre nós; ele chamou-a o nosso recurso ordinário e a nossa primeira Superiora” (Constituições e Estatutos. Nº 54).
Como valoroso seguidor de Champagnat, o Irmão João era muito devotado a Maria, a ponto de estabelecer a Legião de Maria e o Movimento Champagnat da Família Marista, onde quer que ele estivesse atuando. Ele nunca
deixou de rezar o rosário. “Desde o tempo de Marcelino, os seus discípulos
tornaram Maria conhecida e amada. Hoje continuamos convencidos de que
seguir a Jesus nas pegadas de Maria é privilégio e o modo de conseguir que
a nossa estrada cristã seja plena. Com coração cheio de compaixão, partilhamos esta experiência e convicção com as crianças e jovens, ajudandoos a experimentar a face maternal da Igreja” (“A água da Rocha”, p. 28).
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Os funcionários, empregados e postulantes foram os beneficiários da sua
piedade, já que lhes ensinava como rezar com Maria. Eles o estimulavam.
Sabedor de que algum Irmão ia viajar, o Irmão João lhe dava uma pequena
oração que o viajor podia rezar, em honra de Nossa Senhora das Mercês.
Coração caridoso e generoso
O Irmão João era muito caridoso e generoso. Devotou a maior parte do
tempo a prestar serviços desinteressados às pessoas. Sempre que via alguém
sofrendo, não podia descansar o espírito até que descobrisse a forma de aliviar os seus problemas. Tal atitude fê-lo muito bom amigo dos pobres e das
crianças.
A maioria das pessoas que passaram sob os seus cuidados na casa de formação testemunharam as suas palavras de caloroso conforto, em tempos de
confusão emocional e sempre que pensavam que haviam chegado ao termo de sua caminhada vocacional.
Brother John carta para mim
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Uma coisa muito característica do Irmão João era o modo como ele nunca
falhava em estender o seu coração generoso aos seus confrades. Na verdade,
ele demonstrava o que Champagnat nos solicitava com instância: viver de tal
modo que as pessoas ao redor possam dizer: “Vejam como eles se amam”. Ele
costumava deslocar algum dinheiro do seu magro bolso mensal destinado à
compra do seu sabão e outras necessidades pessoais, para comprar “O Líder
Católico”, jornal que ele levava aos Irmãos idosos da Comunidade de São José, de Uturu. Ele nunca deixava de dar-me a quantia necessária para comprar
cada mês o citado jornal. Consta aqui um bilhete enxuto do fato. É a última
carta que ele me escreveu, em junho de 2007; há de ser o último autógrafo
dele antes de partir para juntar-se ao santo Fundador. Versão literal do bilhete: 4-6-07. “Meu caro Elias, as cem moedas para o seu costumeiro serviço para os nossos Irmãos idosos. Muito obrigado. Irmão John.”
Ainda que a maioria das pessoas possa pensar que a quantia que ele destinava à tal compra caridosa era muito pequena, o mais importante é o espírito de amor, o cuidado, a dedicação, o zelo, a gentileza do coração e o serviço de desapego que as suas atitudes comportavam.
HOMENAGENS E DEPOIMENTOS DAQUELES QUE O CONHECERAM
Irmãos Maristas
“Que não mais, nesta terra, possa vê-lo, eis o que é penoso contemplar. Aquele primeiro encontro, em janeiro de 1953, na Escola Primária da Santa Cruz,
em Urutu, marcou o começo de uma amizade que durou toda a vida, espiritual e socialmente gratificante para nós ambos. Você ainda recorda aquela
providência que nos aconchegou mais, em 1954, com os Irmãos de São Pedro
Claver, quando você era noviço do primeiro ano e eu era postulante. Em 1977,
nós ficamos ‘ejima’, isto é, gêmeos, quando emitimos o nosso voto de estabilidade juntos. Irmão João, a nossa amizade floresceu ainda mais, quando, de
novo, nos encontramos juntos, primeiro na comunidade de Okpala e, depois,
na de Azaraegbelu. Diz-se que foi em Azaraegbelu que você finalmente disse
o seu “amém” aos seus 54 anos de serviço na vinha do Senhor; “amém” à vontade do Senhor Onipotente e “amém” ao conquistador de todos os mortais. Ainda assim, Irmão João, permita-se-me perguntar: Quem agora vai bater na mi-
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A VIDA DE UM SIMPLES IRMÃO: JOHN SAMUEL METUH, FMS (1926-2007)
nha porta, às preces da manhã? Quem vai tocar o sino para o rosário da tarde? Quem vai sentar ao meu lado para o conselho amigo nos meus momentos
obscuros? Bem, a nossa fé no Senhor Onipotente permanece inconcussa, porque sabemos que ele tem a resposta para quaisquer problemas. Irmão João, caro ejima, você combateu o bom combate e ganhou a corrida. Avance para o
seu Celeste Pai e reivindique a sua coroa de glória”. (Irmão Pius Ijeomah, FMS)
“Ninguém tem dúvidas de que a vida do Irmão João Metuh foi de religioso
autêntico. Deixou tremendo impacto em cada comunidade em que esteve e estendeu a sua influência nas pessoas dos arredores”. (Irmão Andrew Iwuagwu,
FMS, delegado Provincial).
Movimento do Leigo Marista Associado
“Ardente seguidor de Jesus e tenaz devoto de Maria e de são Marcelino
Champagnat”.
Meu caro e bom amigo, Reverendo Irmão João Metuh, estou escrevendo
em nome dos membros dos Associados Leigos Maristas da Nigéria, para
agradecer a Deus o amor e os talentos que lhe outorgou. O seu amor por
Jesus era manifesto em todas as suas palavras e ações. A sua devoção a Maria e a são Marcelino sempre o manteve ativo, como no estabelecimento da
sociedade da Legião de Maria e do Movimento Champagnat da Família Marista, onde quer que você tenha estado. Quantas noites, roubadas ao sono,
você despendeu em compor hinos e cantos em honra de Jesus, Maria e Champagnat? Irmão João, é homem de muita sorte, você respondeu generosamente com amor ao amor de Deus; não há dúvida de que você foi transportado ao reino celeste. Cumprimente a Jesus, Maria, Champagnat e a todos os santos Irmãos Maristas. Um belo dia, vamo-nos encontrar com você
para sempre. Sempre o teremos nas nossas preces. Adeus, Irmão João; adeus,
Irmão Marista fiel.
Realeza
‘Um tributo ao valoroso Rev. Irmão João Metuh’
“Eu, em nome de Sua Real Grandeza, senhor Eze, Dr. Charles A. Onuoha, KSJ, Isiyi, Comunidade Autônoma, desejo consolar a Congregação dos
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Irmãos Maristas das Escolas, Província da Nigéria, pela passagem para a
eternidade do Rev. Irmão João Metuh. Ficamos chocados com a notícia da
morte deste grande herói, que sacrificou a sua vida no serviço de Deus e
da humanidade, como educador, músico e extraordinário mestre de coro.
Ele foi membro fundador dos Irmãos Maristas na Nigéria; trabalhou incansavelmente pelo crescimento de Uturu e da Nigéria em geral.
Membros da família
“O relato da vida religiosa do Irmão João precisaria ser longo; assim,
cumpre seja tarefa para outrem escrever. Ainda assim, como sumário da
sua vida religiosa se pode dizer que ele viveu em plenitude e morreu como
batalhador espiritual católico” (Professor Ikenga-Metuh)
CONCLUSÃO
A vida do Irmão João constituiu um compêndio de simplicidade, humildade, modéstia e amor. Ele fez tudo o que estava na sua possibilidade para
abraçar o Reino de Deus. Como a maioria das testemunhas expressou nos
seus depoimentos, ninguém duvida de que cumpriu uma vida de autêntico
religioso. Ordinariamente, a sua parentela pagã há de ter oposto não pequena ameaça à sua vocação de Irmão religioso; mas ele superou qualquer
obstáculo e persistiu em responder ao apelo de Deus, entrando para o seu
serviço. Ele tinha muita razão em concorrer com são Francisco Xavier. Este
ousadamente se expressou: ‘Eu penso que não poderei evitar o inferno, se
não for pregar o Evangelho ao Japão’ (Irmão Leonardo Voegtle, FMS, Opiniões, Conferências, Sentenças e Instruções de Marcelino Champagnat, p.
180). Ele preencheu plenamente a vida e morreu feliz como Irmão religioso Marista. Ele pronunciou o voto de estabilidade em 1977 e celebrou o jubileu de ouro em 2006..
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A tentativa de fusão
da Congregação dos Irmãos
da Mãe de Deus com
os Irmãos Maristas, na China,
entre 1909- 1912
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Irmão Robert TEOH, FMS
Província da Ásia Leste
Introdução
Na história do nosso Instituto, houve inúmeras propostas de fusão com outras Congregações. Algumas destas propostas provieram de pessoas responsáveis por outras Congregações ou da parte dos Bispos das dioceses, onde estávamos trabalhando; algumas entraram em vigor ainda em vida do nosso Fundador, outras ocorreram depois da sua morte. Pelo que se registrou, nem todas foram aceitas, como nem todas terminaram de forma feliz. O ano de 2009
assinala o centenário da tentativa de fusão de uma Congregação local, Congregação da Mãe de Deus ou,
em chinês, Irmãos da Mãe de Deus ou
Maternistas, com o nosso Instituto. Todos os membros eram chineses, ao passo que os nossos, naquele tempo, eram predominantemente europeus. Era interessante aventura, merecedora de estudo, uma vez que significava um grupo missionário de estrangeiros entrando em fusão com um grupo autóctone
de cultura e língua muito diferentes.
No “Pequeno histórico primordial da Província da China”, que abarca o
meio século de 1891 a 1941, o autor Irmão Jean Emile dedica menos de uma
página à descrição deste acontecimento. Foi escrita em 1941, cinquenta anos
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Nos documentos, os termos fusão, incorporação e união empregam-se um pelo outro. Como a proposta se valeu do termo fusão, este foi adotado no presente trabalho.
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depois da fundação marista da China e vinte e nove anos depois do fim de
tal experimento de fusão congregacional. Em 1966, o Irmão André Gabriel
Robbe retomou o tema histórico da Província da China, numa obra de dois
volumes. No volume 1, Les Frères Maristes en Chine, Petit historique de leurs
œuvres de 1891 à 1941, ele dedicou um capítulo inteiro ao acontecimento,
porque ele via o tema merecedor de narração mais detalhada: a distância
dos acontecismentos em cerca de meio século facilitava maior objetividade
quanto ao evento. Em 2009, quase transcorrido um século, é possível examinar o evento com melhor entendimento, em face dos documentos disponíveis, na luz daquela luta política e da situação local da Igreja.
Essa tentativa de fusão acordada previa o prazo prévio de cinco anos,
mas durou apenas três anos. Um provincial, um bispo e o superior dos missionários jesuítas se envolveram no momento das negociações. A história se
repete, diz o ditado: este incidente pode servir de boa lição para similares
tentativas no futuro. Antes de bem ponderar este incidente histórico, conviria ter consciência, tanto da situação política como da história da Igreja,
na China daquele momento.
Antecedentes politicos e históricos
Os conquistadores Manchus do nordeste da China derrubaram a dinastia
Ming em 1644, criaram nova dinastia chamada Qing, e governaram a China até
1911. Eles demoraram vinte anos para ultimarem e consolidarem o seu poder.
Seguiu-se longo período de prosperidade e expansão. A Mongólia exterior e
a Mongólia interior, o Turquistão e o Tibet foram incorporados.
Ainda assim, o aumento da população, a carestia de alimento e de terra, juntamento com a corrupção das altas autoridades do governo e os pesados gastos
das campanhas militares não demoraram em enfraquecer o governo. O frequente
contato com o Ocidente, de força militar mais avançada, na segunda metade do
século dezenove, apressou a queda da dinastia Qing , ocorrida em 1911.
As nações ocidentais haviam praticado o comércio com a China por longos
séculos, em que pese a política de “porta fechada” da dinastia Ming. No começo da dinastia Qing o comércio ficou restrito ao porto de Cantão. Contudo
os comerciantes das nações ocidentais chegaram à China ainda em maior número. Em 1760, a Companhia Britânica das Índias Orientais veio para comerciar, em busca de chá, seda e porcelana. Desde que a demanda de produtos
ocidentais era muito menor, o déficit comercial foi pesando no lado britânico.
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COM OS IRMÃOS MARISTAS, NA CHINA, ENTRE 1909- 1912
Em 1793, a Grã-Bretanha experimentou em vão estabelecer um tratado de
comércio com a China. Os comerciantes britânicos tomaram o assunto nas suas
próprias mãos e deram início ao comércio clandestino do ópio, para compensar ou neutralizar o desbalanço do comércio. Isso criou vasto número de viciados, ao passo que o superávit comercial da China virou déficit. Em 1836, o Imperador proibiu com todo o rigor o comércio do ópio. Mesmo assim, o comércio continuou ilegalmente. Em 1840, uma arca de ópio foi tomada e queimada
em Cantão. Esta ação serviu de pretexto para a Grã-Bretanha deflagrar a Primeira Guerra do Ópio. Depois de dois anos de luta, acordou-se o tratado de
Nanjing, em 1842. O tratado estipulava que cinco portos seriam abertos ao comércio; Hong Kong seria arrendado à Coroa Britânica por noventa e nove anos,
pelo que a China ficava humilhada com a prática da extraterritorialidade.
Daí por diante começava a diplomacia da “artilharia embarcada”; muitos
outros portos foram forçados a abrir as portas para o comércio. A China já no
podia isolar-se e desconhecer a dura diplomacia ocidental. Extraterritorialidade e concessões de terra a outras nações ocidentais proliferaram como cogumelos. O seriado de tais derrotas humilhantes, de permeio com inundações,
fome e corrupção das autoridades levaram a China ao caos. Seguiram-se rebeliões internas e diversas revoltas.
Em 1850, um cristão evangélico chinês, Hong Xiuquan, comandou a Rebelião de Taiping. Pregava o cristianismo, reformas radicais e políticas e combatia a retórica ocidental. Queria estabelecer o Reino da Grande Paz. Tentou instituir diversas reformas sociais, como a estrita separação dos sexos, abolição
do “enfaixamento dos pés” das meninas, a socialização da terra, a supressão
do comércio privado e a substituição do confucionismo, budismo e a religião
popular dos chineses por uma forma de Cristianismo, assegurando que ele era
o irmão mais novo de Jesus Cristo. Ele logrou agrupar cerca de vinte mil chineses enraivecidos contra a dinastia Qing. Pouco faltou para que o grupo tivesse êxito; foram derrotados pelo exército Qing, auxiliado por forças francesas e britânicas, em 1864.
Nos últimos anos do século dezenove, a China afundou ainda mais no caos.
O exército de Qing foi derrotado na primeira guerra sinojaponesa em 1895.
Foram montadas concessões econômicas e políticas, como a exigência de comércio com os estrangeiros, enquanto sentimentos contra os estrangeiros subiam de ponto na China. Os camponeses começaram a formar sociedades secretas contra os estrangeiros. Isso desencadeou a Revolta dos Boxers em 1900
e muitos outros incidentes contra os estrangeiros.
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Obviamente, o que mais nos interessa é o período entre 1908 e 1912, em
que se desenvolveu o experimento da fusão. Uns poucos anos antes, um nacionalista e dedicado cristão, de nome Sun Yatsen, educado fora da China, começou a pregar acerca da formação de República da China livre, no lugar da
monarquia absoluta. Sun desenvolveu uma filosofia política conhecida como
“os três princípios do povo”: enfatizava o nacionalismo, a democracia e o socialismo para o povo. Os seus esforços receberam o apoio dos chineses dentro e fora do país. O povo começou a conceber a idéia de uma China moderna transformada pelos próprios chineses.
Vários grupos que esposavam a mesma idéia começaram a se juntar a ele e
pensavam na revolução. Começou-se com a Revolta de Wuchang, em 10 de
outubro de 1911, também conhecida por Revolução de Xinhai. Os revolucionários tiveram sucesso inicial por um mês, capturando umas poucas cidades.
Ainda assim, o exército, sob o comando do general Yuan Shikai e com outros
generais, logrou empurrá-los de volta para Wuchang. Depois de cinquenta dias
de guerra, quinze de vinte e quatro províncias se declararam independentes
da Corte de Qing. Com o desbordar de tal desenvolvimento, Yuan Shikai negociou com os revolucionários, aceitou a formação da República da China e
marchou contra a Corte de Qing. Com isso a dinastia de Qing terminou e o Imperador Puyi abdicou em doze de janeiro de 1912.
Não podemos descartar a influência dos fatos políticos nas pessoas que vivem perto de uma grande cidade como Shanghai, que não está muito longe
de Wuchang, onde a Revolução havia começado. Por certo, o caos e a turbulência tiveram conseqüências diretas, porque em 1911, quando a tentativa de
fusão tomava a via do fracasso, o Irmão Provincial escreveu diversas cartas para instar com o Superior Geral a visitar China e dirimir o impasse com o Bispo
local; mas o Conselho Geral aconselhou o Superior Geral a não tomar o risco,
por causa da Revolução da China naquele momento.
Breve história da Igreja Católica na China
A primeira tentativa de evangelizar a China aconteceu no sétimo século,
quando um monge assírio, de nome Alopen, pelo chamado “Caminho da seda”, levou o cristianismo a Xi’an. A descoberta de uma lápide de 3,33m que
descreve a doutrina e as cerimônias cristãs, chamada pedra nestoriana, registrou os primeiros traços do cristianismo na China. Surpreendentemente, nenhum grupo cristão desse período deixou alguma influência significativa.
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A segunda tentativa de evangelização ocorreu no fim do século treze, quando um frade franciscano italiano, João de Montecorvino, foi à China. Ele teve
grande sucesso e o papa Clemente V o sagrou arcebispo. Ele converteu algumas pessoas das classes governamentais, batizou cerca de seis mil pessoas
e construiu igrejas. Tal período de evangelização durou perto de cem anos.
Com a queda da dinastia Yuan o cristianismo desapareceu da China.
A terceira tentativa de evangelização ocorreu no começo do século dezessete. Jesuítas, franciscanos, agostinianos e dominicanos rumaram à China
com os ousados exploradores da Europa. Ainda assim, eles tiveram dificuldade para ir além de Cantão, porquanto a dinastia Ming praticava uma política de “porta fechada”. Os padres jesuítas Michele Ruggieri e Matteo Ricci, no
entanto, lograram uma abertura. Primeiro, vestiram-se de monges budistas,
mas não foram bem aceitos pelo povo. Aí, passaram a apresentar-se como peritos confucianos. Por sorte eles trouxeram alguns instrumentos científicos
ocidentais para mostrá-los e lograr algum respeito e proteção. Tal alinhamento
com os peritos confucianos possibilitou a Matteo Ricci estabelecer-se em Beijing. Os jesuítas auxiliaram na correção dos erros do calendário imperial e,
depois, ascender a postos importantes na Corte Ming. Outras ordens religiosas começaram a fazer progressos na China e repartiram o território entre si.
Os missionários continuaram a gozar de liberdade para evangelizar, quando
a dinastia Qing substituiu a dinastia Ming em 1644. Por volta de 1700, já havia na China cerca de duzentos mil católicos. Ainda assim, a disputa entre Jesuítas e outras ordens religiosas acerca de ritos chineses, para honrar os membros mortos da família encerrou-se com o papa Clemente XI, que baniu a prática dos ritos chineses nas instituições católicas da China. Aí o Imperador Kangxi reagiu, expulsando os missionários cristãos da China. Esta infeliz leitura
equivocada da cultura atrofiou o desenvolvimento da Igreja Católica na China até a revogação do papa Pio XII em 1939.
A quarta grande tentativa de evangelização entrelaçou-se com o colonialismo e com os poderes ocidentais que invadiam a China. O tratado de Tianjing,
em 1858, não só abriu onze portos da China para os comerciantes estrangeiros,
mas também sancionou as atividades missionárias cristãs por toda a China. De
então em diante, houve todo um afluxo de missionários estrangeiros para a China. Com o estabelecimento de extraterritorialidades para os países ocidentais,
muitas Igrejas e escolas missionárias proliferaram. Muitos missionários foram à
China, com o apoio dos seus respectivos governos. Esses governos viam nisso
um meio de expandir a sua influência e cultura. Em geral os missionários, incluindo Irmãos, ficavam isentos do serviço militar, se fossem trabalhar nas co93
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lônias das suas nações. Este período de atividades missionárias durou até que
os comunistas tomaram conta da China em 1949.
Cumpre notar que as pessoas comuns costumeiramente não distinguiam
a diferença entre comerciantes, soldados e missionários. Todos eram contemplados como estrangeiros que invadiam a China e dela tiravam vantagem.
Muitos missionários foram mortos durante as rebeliões contra os estrangeiros. Aqueles cristãos que se aliavam aos missionários eram vistos como agentes dos estrangeiros. Ainda que muitos convertidos chineses fossem cristãos
autênticos, muitos outros havia que se corvertiam por alimento, prestígio ou
proteção do poder forâneo, como segurança nas situações adversas.
Breve história dos começos maristas e da Igreja Local
do Vicariato de Kiang-nan
Os Irmãos Maristas chegaram à China em 1891, por convite do Bispo Sarthou
CM para tomar posse de um orfanato em Beijing. Logo descobriram que havia
grande procura de escolas de inglês, especialmente para filhos de estrangeiros.
Apressaram-se em solicitar a ajuda dos Irmãos de Sydney. No mesmo ano, dois
Irmãos chegaram de Sydney para ensinar em Tianjing. Eles conseguiram abrir
algumas outras escolas de francês com grande sucesso, enquanto o número de
Irmãos que vinham à China aumentou. A China aceitou muitos Irmãos franceses, quando foram expulsos da França em 1903. Dois anos depois da sua primeira chegada, os Irmãos também começaram a trabalhar com os Jesuítas em
Shanghai. No começo eles trabalhavam, sobretudo, com os missionários franceses, como lazaristas, jesuítas franceses e missionários estrangeiros de Paris.
O sentimento antiestrangeiro dos chineses muito afetou o seu trabalho missionário. Eles perderam o orfanato na rebelião dos Boxers em 1900; este fora o
seu primeiro trabalho na China. Três Irmãos, um postulante e os pobres órfãos
foram mortos93. Em 1905, um mal-entendido e uma disputa mal conduzida causaram a morte de cinco Irmãos em Nanchang94. A situação política instável afetou seriamente o seu trabalho por certo tempo. O trabalho de recrutamento e
de formação não podia ser desenvolvido. No pico do caos, todas as escolas foram suspensas, afora o Colégio de São Francisco Xavier em Shanghai.
93
94
Irs. Jules-André, Joseph- Félicité, Joseph-Marie Adon Fan e o postulante Paul Jens.
Irs. Louis-Maurice, Prosper-Victor, Léon, Joseph Amphien e Marius.
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COM OS IRMÃOS MARISTAS, NA CHINA, ENTRE 1909- 1912
O Vicariato compreendia as Províncias de Kiang-su e Ngan-hwei. As suas
terras de aluvião, especialmente as de Kiang-su, tornavam essas regiões como das mais ricas e mais populosas da China. Em 1907, o número de habitantes de cada uma excedia sessenta milhões. O padre Matteo Ricci foi o primeiro missionário delas, educando na religião católica o povo, no fim do século dezesseis. Em 1660, foi criado o Vicariato Apostólico de Kiang-nan. Em
diferentes períodos de tempo depois disso, houve diversas perseguições e as
atividades missionárias foram suspensas. Os responsáveis pela missão mudavam de mãos entre jesuítas, missionários estrangeiros de Paris e lazaristas, mas
sempre com a ajuda de uns poucos sacerdotes chineses. A própria guerra entre as nações ocidentais determinava a que Congregações e missonários seria
confiada a missão. Em 1849, foi confiada a Jesuítas franceses.
A “Enciclopédia Católica” publicou os dados estatísticos do vicariato como
segue. “Esta era a condição da missão em 1907: 1 bispo; 142 jesuítas, 26 deles chineses; 35 sacerdotes nativos; 696 igrejas ou capelas; 1 seminário maior
em Zi-ka-wei com 29 estudantes; 1 seminário menor com 15 estudantes; 558
escolas para rapazes com 14.175 alunos; 604 escolas para meninas com
9.360 alunas; duas faculdades para rapazes, com 408 estudantes; 2 faculdades para meninas européias com 766 alunas em Shanghai; 1 escola de inglês com 543 alunos; 1 escola de francês com 336 alunos; 6 hospitais com
3.898 pacientes; 6 asilos para idosos com 198 pensionistas; 37 orfanatos com
6.584 crianças; 29 Pequenos Irmãos de Maria; 32 carmelitas, 20 delas nativas; 91 Socorristas das Almas do Purgatório, 33 deles nativos; 31 Irmãos de
Caridade; 9 Pequenas Irmãs dos Pobres; 173 religiosos chineses; 145.219 católicos e 92.018 catecúmenos 95”. O número de Pequenos Irmãos de Maria ou
Irmãos Maristas , em serviço aí nesse tempo era de 29.
De 1865 em diante, os missionários do vicariato estavam tentando agrupar os catequistas, chamados “josefinos,” em certo tipo de congregação, mas
não obtiveram êxito. Depois, o bispo Garnier, em 188495 logrou incorporálos numa fundação a que deu o nome de Congregação da Mãe de Deus ou
Irmãos Maternistas. O bispo Garnier convidou os nossos Irmãos a auxiliarem os Jesuítas na condução do Colégio São Francisco Xavier, em Shanghai,
em 1893; em 1895, o Colégio passou por inteiro aos Irmãos Maristas. Garnier morreu em 14 de julho de 1898. O bispo Simon foi nomeado Vigário
95
Cf. “The Catholic Encyclopedia”, Volume VIII”, Publicada em 1910. New York: Robert Appleton Company, escrita por V. H. Montanar.
96
O documento oficial fixa 1884, mas o relato do Ir. Aristonique prefere 1885.
95
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Apostólico em janeiro de 1899, foi sagrado em 25 de junho, mas faleceu em
25 de agosto do mesmo ano, em Wu-hu. No fim de 1900, o bispo Paris, superior da missão, foi nomeado Vigário Apostólico e bispo titular de Silanda.
O processo da tentative de fusão
O bispo Paris, SJ, e o Pe. Gillet, SJ, superior regular da missão, tomaram a
iniciativa de se dirigir ao Provincial, Irmão Louis-Michel e ao Diretor do Colégio São Francisco Xavier, de Shanghai, na pessoa do Irmão Antonin, com
o objetivo de negociar a união, no começo de 1908. O que é que motivou as
duas partes? O bispo e os jesuítas eram diretamente responsáveis pela missão do vicariato; queriam assegurar o futuro da Congregação da Mãe de Deus.
Sem dúvida, queriam livrar-se da preocupação deste trabalho, especialmente com a formação dos membros. Nos últimos 24 anos, essa congregação havia tido altos e baixos e nunca realmente caminhara com firmeza.
A outra parte eram os Irmãos Maristas; eles conheciam os êxitos das fusões com os Irmãos da Instrução Cristã de Valence e daquela dos Irmãos de
Viviers, ainda na sua memória. No momento do convite, havia pouco que tinham superado a rebelião dos Boxers de 1900 e do lamentável incidente de
Nanchang de 1906. Eles queriam aumentar o recrutamento com membros nativos. Pelos assentamentos do Instituto, de 1895 a 1908, apenas dezesseis Irmãos97 nativos tomaram o hábito, sendo um deles o primeiro eurasiano da
China. Dos quinze chineses, um fora morto em 1900. O Conselho Provincial
gostou da proposta do Bispo: percebiam que com isso teriam automaticamente um noviciado em Shanghai, com substancial número de Irmãos chineses. Além disso, visavam no futuro a ter duas Províncias na China: uma no
norte e outra no centro, próxima a Shanghai. De fato, a Província da China
estava para ser erigida canonicamente no tempo da negociação98. A situação
parecia convergir para um resultado ganha-ganha para ambas as partes.
Em 8 de fevereiro de 1908, o Conselho Provincial deliberou sobre a matéria e estava em favor da proposta; mas deixavam os detalhes para quando os superiores houvessem manifestado a sua vontade. Eles enviaram este pedido a Grugliasco de imediato. O Conselho geral discutiu a proposta,
97
98
Calculado pelo “registro de vestição”, vol 3 1896-1931.
Foi erigida em 10 de março de 1908.
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COM OS IRMÃOS MARISTAS, NA CHINA, ENTRE 1909- 1912
aceitou-a em princípio, em 28 de março de 1908. Em 30 de março de 1908,
o Superior Geral aconselhou o Irmão Provincial da China a estudar com mais
profundeza o projeto e remeter-lhe depois uma proposta concreta. Não sabemos a data exata, mas provavelmente em outubro de 1908, a proposta de
14 artigos, com observações, provavelmente feitas pelo Conselho Provincial
ou pelo próprio Provincial, chegou a Roma. Em 4 de novembro de 1908, o
Conselho geral estudou os 14 artigos com as suas 11 observações. Na carta
do Superior geral ao Irmão Provincial, em 6 de novembro de 1908, ele estabeleceu a desejada modificação e acrescentou o artigo 15, para assegurar
o direito de pedir a mudança dos artigos 8 e l3, se, após certo período experimental, for reputado necessário assim. Ele igualmente sublinhou que,
no esclarecimento do artigo 1, o Superior Geral dos Maternistas, em nome
dos seus Irmãos, redigisse um ato de pedido de incorporação da sua Congregação naquela dos Irmãos Maristas. Nesse meio tempo, como o Bispo
Paris havia esperado mais que o previsto, sem nenhuma resposta, pensou
que não teria havido avanço nos trâmites da parte do Provincial dos Maristas. Assim, escreveu diretamente ao Superior geral dos Maristas, em 8 de dezembro de 1908 para propor a fusão. Ele incluiu um documento de dez notas muito semelhantes aos catorze artigos recebidos antes. O Superior geral
replicou-lhe em 13 de janeiro de 1909, afirmando que o Provincial lhe havia comunicado os trâmites e os seus avanços. O Conselho geral era a favor
da aceitação da proposta como um todo, mas antes queria que lhe fossem
submetidos alguns detalhes e observações. A notícia da negociação foi publicada no “Pequeno Marista”, carta publicitária da Província da China. O
Superior geral também falou dos trâmites na sua primeira circular de 1909. 99
Ainda assim, aqueles que estavam envolvidos no assunto, na China, não
perderam tempo em realizar a fusão, sem uma formal aprovação. Felizmente,
nenhum contrato definido de fusão foi assinado. Pelo menos tiveram o equilíbrio de esperar pela lição do tempo e da experiência antes de apor a assinatura em documento. Os dois relatórios do Irmão Antonique, mestre de noviços, assinados para a casa de formação, no período de fusão, dão-nos informe importante acerca do dia da fusão.
99
Circular do Superior geral, Vol XI, p.366.
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Os dados das duas congregações no tempo da fusão100
Pequenos Irmãos de Maria
Irmãos Maristas
Província da China
Irmãos da Mãe de Deus
Maternistas
Congregação diocesana do Vicariato Kangnan (Província de Jiangsu
e Província de Anhui )
Fundada em 2 de janeiro de 1817
por M. Champagnat
Fundada em 8 de setembro de 1884
pelo bispo Garnier, SJ
Os Irmãos Maristas foram à China em 8 de
Em 1911, ela tinha recebido o total de
março de 1891; começaram numa escola em 83 membros, desde a fundação; e 18 deles
Peking (Beijing); em 1893, em Shanghai.
tinham morrido na congregação.
Fim: educar e catequizar as crianças,
especialmente as menos favorecidas.
Fim: educar e catequizar as crianças
dos cristãos chineses e tomar o cuidado
da igreja.
Trabalho na China: cuidar de orfanatos,
ensino em escolas particulares católicas.
Trabalho: ensino nas escolas, tomar
cuidado da igreja e do serviço missionário
local da Igreja.
Provincial: Irmão Louis-Michel
Superior geral: Irmão Ya-ko-bei
Tornou-se Província
em 10 de março de 1908
Congregação diocesana dependente do
Bispo e dos missionários jesuítas.
Em 31-12-1908
Membros: 112;
14 deles chineses
Estáveis 8
Perpétuos 75
Prof. Temp. 29
Membros : 36
Apenas votos
temporários 36
com os escolásticos.
Casa de formação
em Pekin (Beijing)
Noviços 1
Postulantes 10
Juvenistas 24
Casa de formação
em Zié-ka
Noviços 0
Postulantes 0
Juvenistas 13
16 escolas
De norte
a sul da Chinaa
7 escolas
Em duas províncias
ao redor de Shanghai
100
Dados de acordo com as estatísticas Anuais do Instituto e extraídos do Relatório do Ir. Aristonique, de primeiro de janeiro de 1910 (AFM221. 39).
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Em 20 de janeiro de 1909, os Irmãos da Congregação da Mãe de Deus foram
informados da decisão de fusão da sua sociedade com os Irmãos Maristas. Os
seus líderes não se tinham atualizado para a negociação em marcha. A decisão
lhes foi comunicada por carta do seu Bispo. No estupor e no temor, alguns deles procuravam o seu capelão para se esclarecerem quanto à intenção do Bispo. Uma vez que se deram conta de que a sua congregação já não existia, ficaram muito deprimidos e chocados. Ainda assim, a pouco e pouco, acalmaramse e aceitaram a decisão do seu Bispo. Afora um que já estava decidido a sair
da vida religiosa, todos eles abraçaram a nova realidade com entusiasmo.
Depois do primeiro choque, eles sentiram-se encorajados e mais confiantes acerca do seu futuro, porque doravante eles pertenciam a uma sociedade
internacional, de sólida fundação e espalhada por muitas nações. Além do
mais, eles poderiam encarar com segurança a comunidade cristã local. As boasvindas cálidas e cordiais dos Irmãos Maristas de Shanghai deram-lhes ainda
mais firmeza. Ainda assim, quando o entusiasmo e a euforia da primeira semana haviam passado, eles começaram e enfrentar as realidades concretas da
vida cotidiana. Não demoraram em achar que uma simples decisão não resolvia os muitos problemas postos à frente deles. Muitas dificuldades começaram a irromper à superfície, o que se explica mais adiante.
O Provincial escreveu ao Superior geral em Grugliasco, em 15 de fevereiro de 1909, para informá-lo sobre a fusão que havia sido datada oficialmente em 2 de fevereiro de 1909. Aparentemente, ele também comunicou,
em língua chinesa, a adesão dos Irmãos da Congregação da Mãe de Deus à
incorporação com os Irmãos Maristas. Ele comunicou, igualmente, o fundamental sobre os Irmãos. Nenhum traço deste documento permanece nos
nossos arquivos; mas pôde-se estabelecer este fato por meio de diferentes
cartas oficiais da Administração geral. Desafiado pelo “fato consumado”, o
Conselho geral se reuniu em 5 de abril de 1909. O Conselho aceitou a fusão, mas optou por consultar a Santa Sé e solicitar-lhe que regulasse o caso. Em 19 de abril de 1909, o Superior geral escreveu ao Procurador geral
Irmão Candidus, com muito detalhada informação deste incidente e lhe forneceu todas as necessárias instruções e documentos, para que solicitasse à
Santa Sé de regular e aprovar esta união, no tempo em que se solicitava
aconselhamento para os seguintes pontos:
1. Dar o hábito religioso no próximo retiro.
2. Por seis meses, para não interromper o andamento escolar dos colégios, admitir os Irmãos, por grupos, a um noviciado incompleto.
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3. Depois de tal noviciado incompleto, admiti-los aos votos perpétuos ou
temporários, conforme os seus anos de vida religiosa, em diferentes categorias, com base no seu pedido e na aprovação do Conselho Provincial.
A resposta da Santa Sé não deixou traços nos nossos arquivos; mas pode-se com segurança presumir que não houve sérias objeções, porque em
26 de abril de 1909, a Santa Sé aprovou o estabelecimento do noviciado em
Shanghai. Esta notícia da fusão foi publicada na circular do Superior geral
de 25 de abril de 1909.101
Quanto a este ponto do assunto, ainda não se chegou a uma conclusão.
Na carta do Superior geral ao bispo Paris, de 26 de abril de 1909, ele menciona que a união foi feita às carreiras e sem a assinatura do competente
contrato de adesão. Ele então se reportou a diversas modificações da proposta inicial e discutiu algumas novas observações sobre a missa cotidiana
e as finanças. Por fim, ele lhe pede que finalize e aponha a sua assinatura.
Enquanto isso, as coisas não caminhavam bem quanto à casa de formação,
de que se encarregara o Irmão Aristonique. Ele se refere a algumas dificuldades que ele comunica ao Irmão Provincial, parecendo pessimista quanto
à união. O Irmão Provincial escreveu ao Superior geral, em seis de junho de
1909, mencionando sumariamente o descontento dos novos Irmãos. Eles se
queixavam de que não eram tratados igualmente como os Irmãos europeus.
Eles queriam beber vinho como os Irmãos europeus ou tomar parte na comida chinesa normal, que era mais em conta, mas que os europeus não aceitavam. Os jesuítas também se recusaram a tratá-los como eram tratados os
Irmãos europeus. Mesmo assim, o Irmão Provincial pensava que era normal
encontrar dificuldades na nova aventura. Ele escreveu sobre os novos confrades e sobre a casa de formação de Zie-ka, herdada pelos Irmãos Maristas
depois da fusão; o informe foi publicado no Boletim da Instituto dos Pequenos Irmãos de Maria.102
O bispo Paris escreveu ao Superior geral em 19 de julho de 1909; referiuse a que não havia recebido resposta da carta que havia escrito antes. Ele provavelmente expressou o seu ponto de vista sobre a questão financeira para a
fusão e propôs que houvesse um período experimental de cinco anos no projeto da unificação. O Irmão Superior geral replicou a esta carta em 14 de se-
101
102
Circular do Superior Geral, Vol. XI, p. 407-408.
Boletim do Instituto dos Pequenos Irmãos de Maria, Vol. 1, p.375-378.
100
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tembro de 1909. Ele expressou a necessidade de ajuda financeira da missão
para o desenvolvimento do trabalho dos Maternistas, mas não insistiu na questão financeira do ajuste anterior e aceitou o período experimental de cinco
anos. Ele não se esqueceu de relembrar ao Bispo que finalizasse o acordo e
lhe apusesse a sua assinatura. Não há sinal ou traço desse acordo, nos nossos
arquivos. Assim, o processo da unificação terminou com o andar do tempo,
como a próxima carta oficial acerca dessa matéria apareceria um ano depois.
Voltemos a examinar os problemas e dificuldades que irromperam.
2
1. Ir. Louis-Michel, Provincial,
Negociou
a Fusão em 1908
2. Ir. Ir. Antonin - tomou
posse como Provincial
em 1911. Encerrou a
tentavia de fusão, em 1912
3. Ir. Ignace Yang,
o antigo Superior geral
dos Maternistas,
tornou-se Irmão Marista
4. Kowtowing (ke-tou)
na Corte Imperial
1.
2.
3.
4.
101
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Problemas e Dificuldades
Deve ser notado que, no experimento da fusão, nenhum Irmão Marista
europeu ou chinês foi designado para as escolas dos Maternistas. O único
lugar em que havia Irmãos Maristas foi na casa de formação dos Maternistas, em Zie-ka. Havia muitos problemas e dificuldades depois da fusão. Alguns desses desafios são muito interessantes do ponto de vista do modo da
abordagem cultural missionária. O Irmão André Gabriel Robbe, com base
5. Os juvenistas em Zie-ka
em 1909
6. Emissão de votos
em Zie-ka
7. Irmãos Maristas e
Maternistas na escola
São João Berchmans
em Lodang, Shanghai,
1910
8. Velho mapa de Shanghai
em 1909. Mostra-se
o lugar do Colégio
S. Francisco Xavier
e o noviciado de Zie-ka
5.
6.
102
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7.
8.
103
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no relatório do Irmão Aristonique, categorizou os desafios no seu livro em três
grupos. Um estudo rigoroso das diversas correspondências disponíveis tende
a mostrar que as coisas não eram tão simples. Melhor é não seguir o mesmo
modo categorizador, mas apenas sumariá-los como se faz em seguida.
a. Problemas na casa de formação em Zie-ka
A casa de formação em Zie-ka, herdada na unificação provisória, não era
muito adequada, já antes da fusão. Situava-se a 12 km a sudeste de Shanghai (ver mapa acima). Da cidade de Shanghai para ir a Zie-ka podia-se passar por caminhos estreitos, que cortavam campos de arroz, ou de pequenos
barcos pelo canal que se liga ao rio Houang Pou, que atravessa a cidade. Na
estação chuvosa, os tais caminhos estreitos eram impraticáveis. E havia necessidade de ir à cidade cotidianamente: compra de provisões, correspondência, levar doentes ao hospital, etc.
A casa não era condizente com o noviciado103. Não era adequada à vida
comunitária, como era prática ordinária na comunidade marista desse tempo, em termos de Constituições e costumes. Estava dividida em duas partes
diferentes pela igreja paroquial. Obviamente, isso daria margem a inconveniências. Por exemplo, os Irmãos não podiam ter o seu próprio sino, havia
dois: um para a paróquia oficial e um para a comunidade dos sacerdotes. Isso era mui pequena questão; mas servia para mostrar como os Irmãos poderiam ser afetados na sua vida diária. Para os serviços religiosos era necessário seguir as várias precisões dos fiéis da paróquia. A casa não era exclusivamente para os Irmãos; havia interferência do pároco, constantes distrações das pessoas de fora, além de outras atividades. Por certo não havia
privacidade. Em suma, não servia para casa de noviciado.
Do relato do Irmão Aristonique se extrai que os membros da Congregação da Mãe de Deus queriam ser tratados como os Irmãos europeus. Ele deu
o exemplo de que eles queriam vinho nas refeições como os confrades europeus. Seria mais em conta a refeição de rito chinês. Nas entrelinhas, pode-se ler que eles eram tratados diferentemente, pelo menos no começo.
Um problema também se levanta porque os padres missionários convidavam apenas Irmãos ocidentais para algum passeio, não os Irmãos chineses.
103
Para o plano desta casa de formação, reporte-se ao Appendix I.
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Os padres missionários recusavam até de sentar-se à mesa com Irmãos chineses, preferindo os europeus.
Havia também o problema de língua. O Irmão Aristonique não era muito bom na língua local. Ao se comunicar com os Irmãos, ele tinha de confiar muito na tradução. Ele foi um dos pioneiros na fundação de Beijing, em
1891. Ele trabalhou muitos anos em Beijing ou Tianjing, na parte norte da
China. Na escola ele fazia largo uso da língua francesa ou inglesa com parco uso do chinês. Além disso, o pouco chinês que ele pegara no norte não
coincidia com a fala do dialeto de Shanghai. A situação é fácil de imaginar;
isso faz com que a gente se pergunte como é que puseram aí este formador.
O seu relato sobre a casa de formação só poderia ser de timbre pessimista.
Não se estranha que o delegado do Superior geral104, Irmão Antonin, escreveu ao Superior geral, em 17 de setembro de 1910, afirmando que o Irmão
Aristonique era pessimista nesse assunto. O Irmão Pascal, em carta sem data ao Superior geral, partilhando informes com o Irmão Louis-Fabien, subdiretor de Zie-ka por dois anos, assevera que o Irmão Aristonique não entendia bem os Irmãos e, no mesmo tempo, era rígido. Ele conclui que o Irmão Aristonique não era talhado para aquela função.
O artigo 7 da proposta de unificação estabelecia que o Bispo da missão
daria uma casa conveniente para servir de noviciado, antes da fusão de que
se versa aqui. Parece que não foi feito isso, antes da unificação. De várias
correspondências e de boletins informativos, fica claro que o noviciado seria transferido para Zi-ca-wei, perto da cidade e apenas os juvenistas seriam
deixados em Zie-ka. Os paroquianos não ficariam felizes, se os Irmãos saíssem de Zie-ka completamente, porque certamente também perderiam o seu
sacerdote residente. Contudo parece que o plano de deslocar o noviciado
nunca se levou a cabo, porquanto o bispo Paris era muito moroso em prover uma casa condizente em Zi-ka-wei. Ele provavelmente encontrou oposição do Superior dos jesuítas. Até 1911, a questão não foi resolvida. A carta do Provincial ao bispo , em 31 de janeiro de 1911, menciona que se não
é possível encontrar uma casa condigna, então vai ser necessário repartir a
casa de Zie-ka e proceder a outros arranjos indispensáveis.
104
AFM 221.392 no arquivo de AFM 223.
105
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b. Dificuldades provindas da organização escolar
A maior parte das escolas dos Irmãos chineses eram muito pequenas e
localizadas em regiões rurais, costumeiramente parte extensiva da igreja paroquial. Os Irmãos não tinham o seu refeitório próprio. Eles comiam com os
alunos e com os professores leigos no mesmo lugar arranjado pelo padre da
paróquia. Como os padres missionários estavam ocupados com muitos assuntos fora da sua paróquia, estavam muito ausentes por quatro dias por semana, o que causava um sem fim de problemas para os Irmãos, porque não
tinham autoridade sobre os serventes que preparavam o alimento para toda a escola. Era uma constante queixa da maioria das escolas. Não havia clara definição do limite da autoridade; os Irmãos continuavam sob a autoridade do sacerdote da paróquia.
Os missionários jesuítas costumavam tratar os Irmãos como os seus empregados, secretários, catequistas, sacristães e operários, além do seu papel
de professores primários. A maioria dos Irmãos não fora bem treinada como professores de escola; confiavam muito nos professores leigos no ensino dos alunos. Em algumas escolas, eles tinham mera função de apoio. Em
tais escolas, a autoridade em organizar os assuntos escolares recaía sobre o
sacerdote. Depois da união, os sacerdotes não se ajustaram bem à nova situação; por exemplo, no caso em que vinha um delegado do Provincial para a supervisão regular das escolas. Eles costumavam estar sob a orientação
do Bispo; este andava muito longe, em viagem de diversos dias. Algum sacerdote chegava a negar o direito de o Provincial inspecionar, por si ou pelo seu delegado, a sua escola.
Além disso, como foi assinalado na carta do Provincial ao bispo Paris, em
31 de janeiro de 1911, não havia nenhuma uniformidade na administração
das escolas. Cada escola tinha o seu regulamento, montado pelo sacerdote
local. Isso afetava os Irmãos, quando eles eram transferidos de uma escola
para outra. Teriam de tomar conhecimento de novas regras e enquadrar-se
cada vez.
Como foi referido, quando se falou da visita do Irmão Antonin, delegado do Superior geral, em 1910, algumas das comunidades escolares não ti-
105
Relatório da visita AFM 681. R.004 a 681.R.010.
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nham sala de estudo nem quartos para os Irmãos. Isso muito afetou o desenvolvimento da sua vida religiosa. O estudo religioso estava reduzido ao
mínimo entre os Irmãos em tal situação.
Note-se que, a despeito do decréscimo do efetivo de Irmãos, duas novas
escolas foram fundadas, em fevereiro de 1910, Mo-ka-tsen e Ning-kouo-fou.
Os Irmãos eram 33 em 1911, e 36 em 1909. Entre os 33, o Irmão Provincial
contava com 26 bons elementos. O artigo 12 da proposta de fusão expressava o desejo do Bispo de ter os Irmãos no seu Vicariato, afora em casos excepcionais, reputados necessários, o que requeria diálogo entre Provincial
e Bispo para a decisão final. Tal exceção ocorreu com um noviço, autorizado a fazer o seu noviciado provisório em Beijing. Ainda assim, quando o
Provincial propôs ao Bispo a transferência de um Irmão para Kwangsi, com
o objetivo de salvaguardar-lhe a vocação, o Bispo não aceitou. A proposta
de retirada temporária de Irmãos de uma escola em Yao-wan, depois de sério conflito entre os Irmãos e o sacerdote Thomas da paróquia, em relação
ao “ke-tou”, o Bispo também não aceitou.
c. O relacionamento com os missionários jesuítas
A questão merecedora da nossa atenção foi como os Irmãos Maternistas
eram tratados pelos missionários e pelos Irmãos Maristas. Os missionários
jesuítas tratavam-nos como meros auxiliares, uma segunda classe. Os Maternistas tinham de se submeter ao “ke-tou”, quando saudavam os sacerdotes. Os Irmãos Maristas europeus não aceitavam isso. A imediata questão
que vinha ao espírito dos Irmãos Maternistas era por que seriam tratados diferentemente, se pertenciam à mesma família depois da fusão. Não logramos ter certeza se o fervor político, que despertou o patriotismo e a consciência de direitos iguais para todos, explicaria o caso. Da parte dos jesuítas, será que se atinham à tradição herdada de Matteo Ricci, vestido de perito confuciano ou de serem respeitados como mandarins? Não temos certeza. Também não podemos entender por que enfatizavam tal prática, muito diversa da que tinham com os outros missionários. Os Irmãos Maristas
queriam terminar com tal prática. O Irmão Provincial assumiu o risco de desagradar ao bispo Paris, que autorizava tal prática: escreveu-lhe, pedindo
que a extinguisse. Por volta de 1911, apenas o Pe. Thomas na escola de Yao-
106
Modo polido de saudar, usado para os pais de alguém, ou VIP, o que envolve inclinação
profunda, enquanto a pessoa está ajoelhada.
107
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wan continuava a exigir dos Irmãos Maternistas o famigerado “ke-tou”. Não
julgo que os Irmãos Maristas europeus fossem mais bem adaptados à cultura chinesa; mas a sua instintiva compreensão de fraternidade, herdada de
Champagnat, levava-os a tratar todo o mundo de modo igual, descurando raça e cor. De fato, o artigo nono das Constituições de 1903 estatui com clareza: “Há apenas uma categoria de membros no Instituto dos Pequenos Irmãos
de Maria, vivendo sob a mesma disciplina.”107 Constitui algo assinalável que
o Irmão Provincial tenha enfrentado o Bispo no atinente a essa questão. Um
ano antes, o Pe. Thomas ameaçara expulsar os Irmãos Maternistas da Congregação, se não se sujeitassem ao “ke-tou”. Para não prejudicar a frágil fusão nos seus começos, o Irmão Provincial impôs um ano de silêncio na matéria. Nessa quarentena, ele trabalhava para extinguir de todo a prática.
Outro ponto havia, e não pequeno. Não podemos ser ingênuos e pensar
que todos os jesuítas eram acordes com a idéia da fusão. Contrariamente ao
relatório do Irmão Aristonique, o Bispo não agiu sozinho no projeto de fusão. A carta dele afirmava que havia consultado o seu Conselho; contudo não
podia ter pleno controle dos missionários jesuítas, que também eles tinham
um Superior jesuíta. A carta do Irmão Provincial de 31 de janeiro de 1911
mencionava que aqueles missionários não estavam felizes com a fusão e influenciaram o seu Superior a não permitir que construíssemos um noviciado
perto de Zi-kawei.108 Em carta sem data ao Superior geral, o Irmão Pascal
menciona que os jesuítas se opuseram à construção do noviciado em plena
fase de investimento de nada menos que 40.000 francos.109 Assim, deve-se
admitir que havia sabotagem do projeto de fusão, partida dos missionários.
d. Vocações
Uma das dificuldades era o recrutamento. O Irmão Aristonique assinalou
que os Irmãos Maristas eram conhecidos apenas na cidade de Shanghai, mas
não no resto do Vicariato. Além disso, os pais gostariam de ver os seus filhos seguir a carreira sacerdotal. Ele enfatizava também que os padres selecionavam os melhores alunos para o seminário; os menos dotados eram enviados para a nossa casa de formação.
107
Tradução do artigo 9º da Constituição de 1903.
AFM 681.L.028
109
AFM 221.392
108
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Quando alguns Irmãos abandonavam a Congregação, no começo da fusão, era difícil substituí-los. Esta situação foi agravada pela abertura de duas
novas escolas em 1910. Pode-se imaginar quão difícil era cumprir as expectativas dos jesuítas quando pediam mais Irmãos para as escolas paroquiais. A sugestão do Irmão Provincial da retirada provisória dos Irmãos de
uma escola não foi aceita. A situação por certo criou a dificuldade seguinte: como continuar com o noviciado incompleto sem perturbar o andamento das escolas?
e. O problema financeiro
O ajuste financeiro não foi feito adequadamente antes da fusão precária,
ainda que o Superior geral tivesse prevenido o bispo Paris. O artigo sexto da
proposta de fusão falava acerca da única renda possível para os Irmãos. Era
um fundo de 50 unidades de 3000 francos investidos em bens imobiliários,
cujo rendimento se destinava ao trabalho dos Maternistas e da Congregação
da Apresentação. Desse modo, a metade da renda, que era cerca de 3.805.15
piastras iriam aos Maternistas. Das correspondências entre o bispo Paris e o
Superior geral, parecia que mesmo esta soma era mera aproximação. Aparentemente o montante não era suficiente para desenvolver o trabalho dos
Irmãos Maternistas. Não se sabe se os missionários pagavam aos Irmãos algum outro dinheiro, além do alimento e da moradia. Evidentemente em carta do Superior geral ao bispo Paris, em 6 de novembro de 1911, ele, uma vez
mais, tocou no tema financeiro que não deveria custar demasiado à Província da China, porque o número dos Irmãos Maternistas aumentava.
Fim da tentative de fusão
Por volta do tempo em que o Irmão Louis-Michel estava para terminar o
seu mandato de Provincial, o experimento de fusão rumava ao fracasso. Em
10 de março de 1911, o Irmão Antonin assumiu o provincialato. Ainda que
ele estivesse com bom relacionamento com o bispo Paris, era por demais
difícil fazer reverter a situação. Em carta de 8 de março de 1911, ele insinuou que havia carência de Irmãos Maternistas. Em julho de 1911, ele transferiu o Irmão Marie Nizier do noviciado de Beijing para Zie-ka. A mudança
130
131
Moeda chinesa corrente na época.
Veja a carta ADM14554 e ADM14573.
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era boa, mas chegava um pouco tarde. O Irmão Marie Nizier dominava melhor a língua chinesa do que o Irmão Aristonique e tinha experiência em lidar com a formação dos candidatos chineses.
Herdando a relação tensa entre o seu predecessor e o Bispo, o Irmão Antonin empenhou-se seriamente em que as coisas andassem bem. Embora
houvesse estado nas reuniões da negociação de 1908 e tivesse visitado todos os estabelecimentos dos Maternistas em 1910, ele não poderia fazer milagres; também dominava mal a língua chinesa. Em outubro de 1911, ele
percebeu que já não havia modo de superar o impasse, causado pelos missionários jesuítas; escreveu ao Superior geral em 11 de outubro de 1911, instando que ele visitasse a China e tentasse resolver o problema. Infelizmente, aconteceu a revolução em Wuchang e logo se espalhou pelas proximidades de Shanghai. Ele escreveu de novo em 14 de outubro de 1911, prevenindo o Superior geral da situação caótica; mas ainda tinha esperança de
que o Superior geral poderia visitar a China, viajando pelo trem siberiano.
O Conselho geral desaconselhou a viagem. Depois da discussão de 5 de
novembro de 1911, os Conselheiros decidiram que se devia escrever ao bispo Mons. Paris, realçando as dificuldades enfrentadas pelos Irmãos Maristas no experimento da fusão. Não se sabe se o Bispo respondeu à carta. Há
indícios de que o Irmão Antonin escreveu outras duas cartas ao Superior geral, em 28 e 29 de novembro de 1911. Não localizamos as duas cartas. Em
28 de dezembro de 1911, o Superior geral escreveu ao Irmão Provincial, informando-o acerca de duas decisões do Conselho geral. (1) Ele era autorizado a devolver os Irmãos Maternistas ao bispo Paris. (2) Não aceitar nenhum Irmão Maternista que quisesse unir-se aos Irmãos Maristas sem formal autorização do Bispo.
Podemos supor que teria havido discussões entre o Irmão Antonin e o
bispo Paris sobre a matéria, depois de recebida a autorização para encerrar
o experimento da fusão. Em 31 de janeiro de 1912, o Bispo escreveu ao Superior geral, informando-o oficialmente de que o Vicariato houve por bem
reconstituir a Congregação da Mãe de Deus. De fato, em 3 de fevereiro tal
decisão foi comunicada aos Irmãos Maternistas reunidos em Zie-ka, na presença do Rev. Pe. Sédille que assumiu as responsabilidades dos Irmãos Aristonique e Marie Nizier. Os Irmãos Maternistas estavam tristes especialmente quando souberam que não podiam unir-se aos Irmãos Maristas, já que o
Bispo não permitia, afora o Irmão Jean Baptiste, que estava no noviciado de
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COM OS IRMÃOS MARISTAS, NA CHINA, ENTRE 1909- 1912
Beijing. Eles elegeram o Irmão Yang Benoit para ser o seu novo líder. Os Irmãos Aristonique e Marie Nizier deixaram Zie-ka no dia seguinte. A experiência de união encerrou-se depois de três anos.
Depois da separação
Depois do fim do tentame de união, em 3 de fevereiro de 1912, alguns
dos membros dos Maternistas expressaram o seu desejo de entrar no nosso
Instituto. Contudo o ajuste previa que não se aceitaria ninguém sem a permissão do Bispo deles. Isso foi feito para não prejudicar o seu trabalho com
o êxodo dos seus membros. Mais tarde, o bispo Paris permitiu que cinco Irmãos Maternistas se fizessem Irmãos Maristas. Desses cinco, quatro perseveraram e morreram no Instituto. São eles: Irmãos Ignace Yang, Joche Benoît Pien, Petrus-Stanislas Zhang and Simon Fu.
O Irmão Ignace Yang era Superior geral dos Maternistas em 1909, no momento da fusão. Ele prestou grande serviço como tesoureiro da Casa Provincial em Chala, Beijng. Ele morreu em 31 de dezembro de 1939. O Irmão
Petrus Zhang era poeta e mestre em literatura chinesa. Ele muito contribuiu
para a formação dos Irmãos Maristas chineses. Ele morreu em primeiro de
março de 1937 em Beijing. O Irmão Joche Benoit Pien é o mais notável deles. Ele foi diretor dos seguintes colégios: Escola Marista de Chefoo, Escola
Marista de Weihaiwei e do Colégio Sagrado Coração, em Beijing. Ele foi eleito delegado ao Capítulo geral de 1946, claro sinal da aceitação tanto pelos
Irmãos chineses quanto pelos Irmãos europeus. Ele morreu em Shanghai em
30 de dezembro de 1952 e foi enterrado no túmulo do jesuíta mártir Pe. Beda Tsang. O Irmão Simon Fu muito sofreu dos comunistas, porque ele auxiliou o Provincial André Gabriel na administração financeira. Foi acusado
pelos comunistas de colaborar com os imperialistas; foi preso sob o pretexto
de atividades subversivas. Ele faleceu em data não sabida, entre 1958 e 1962.
Quanto aos Maternistas, a frustração da unificação os desconcertou. A
Congregação diminuiu rapidamente. Em 1945, havia apenas um membro vivo. Então, o bispo de Shanghai Haouisée teve a idéia de fazê-la reviver. O
clero chinês, no entanto, tinha outras preocupações. Com a morte de Houisée em 1948 e a tomada do poder pelos comunistas, toda a esperança de
ressuscitá-la foi destruída.
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Lições por retirar do evento
Que podemos aprender deste incidente do passado? Primeiro, podemos ver
que a união de duas congregações não pode ser feita às pressas. Não se trata
de fusões mercantis que visam ao lucro e podem ser ultimadas em breve tempo. Uma companhia pode contratar e despedir funcionários com facilidade,
dentro da lei e com condizente processo; no caso de congregações religiosas,
não é tão expedito. Para realizar suave e frutuosa fusão de congregações há
necessidade de comprometer os membros atingidos pelo processo de negociação de forma transparente, até o fim do período experimental.
Muito importa incumbir da fusão as pessoas certas. Não é tarefa para pessimistas. As pessoas devem ser capazes de se comunicar bem com todos os
membros. A deficiência no idioma vai ser grande obstáculo. As diferenças
culturais podem ser fatais, se a fusão não é tratada adequadamente. A sabotagem dos membros descontentes pode ser muito subtil; algumas vezes
pode esconder-se no pretexto das diversidades culturais.
Tão cedo quanto possível, deve-se criar o senso de pertença e nova identidade. Clara visão da linha de autoridade precisa ser estabelecida para auxiliar os membros que entram em novas realidades. Eles precisam sentirse tratados igualmente. Isso pode reduzir interferências de pessoas de fora.
Seria vantajoso que houvesse criterioso mapa do caminho para tal fusão:
cumpre ajudar os membros na construção da nova identidade. Com isso o
poder da liderança vai ter mais eficácia.
Finalmente, o ajuste financeiro decidido e judicioso, antes de qualquer fusão, tem de marcar presença. Do contrário, muita energia pode ser desperdiçada quanto a tais temas, e poderia prejudicar o futuro relacionamento.
Conclusão
Esta pesquisa da tentativa de fusão de uma corporação religiosa local, Congregação da Mãe de Deus com os Irmãos Maristas da China, não só revela o modo diferente de os missionários tratarem os religiosos autóctones na China desse tempo, mas mostra também como era poderosa a hierarquia da autoridade
praticada então. Importante projeto como este afetou muitos Irmãos religiosos,
mas foi levado a termo quase sem consultar as pessoas que iam vivê-lo.
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A TENTATIVA DE FUSÃO DA CONGREGAÇÃO DOS IRMÃOS DA MÃE DE DEUS
COM OS IRMÃOS MARISTAS, NA CHINA, ENTRE 1909- 1912
Os missionários estrangeiros eram considerados superiores aos religiosos locais. Não havia muito apreço nem compreensão no atinente à cultura
do lugar. Os Irmãos Maristas pouco se empenhavam em aprender a língua
nativa. A despeito de muitos anos de presença, poucos conheciam em grau
suficiente a língua do país. Sem dúvida, deviam considerar que tocava a eles
adaptarem-se à situação do país e não deviam exigir que os nativos se conformassem ao modo deles.
Não faltam lições que aprender na narrativa desta tentativa de fusão e de
como se levou a cabo. Desde 1993, a reestruturação com o fim de consolidar a realidade de diversos países em uma Província, com viabilidade e vitalidade, se vai realizando no mundo marista. A experiência da fusão versada aqui não difere em demasia dos desafios dos últimos anos. O conhecimento da história pode ajudar a evitar os erros cometidos.
Por último, mas não o menor, deve-se notar a instintiva compreensão da
fraternidade, herdada de Champagnat, que logrou que os Irmãos Maristas
tratassem todos os membros com igualdade, sem consideração da etnia, cultura e língua. Este forte senso de fraternidade é salvaguardado pelas Constituições e foi transmitido de geração a geração. Em verdade é o maravilhoso
meio de expressar a fraternidade descrita no salmo 133: “Como é belo ver
os Irmãos vivendo juntos em unidade”.
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Escritura e busca
de identidade
A descoberta da história do Instituto
escondida em narrativa bíblica112
Irmão Colin CALMERS, FMS
Província do Centro-Oeste Europeu
Introdução
A história do Instituto não é uma série de acontecimentos isolados de significância apenas imediata, senão o desenvolvimento de tema específico, o de busca contínua de identidade. Ela é similar à história do povo judeu, como o descreve o Antigo Testamento. Este trabalho examina um período da história do
Instituto, em busca da realidade de tal período ocultada em narrativa bíblica particular. O período em exame é o tempo que medeia dois Capítulos Gerais, o de
1967 e o de 1985. Por razões que o autor espera que se tornem claras, ele chamou este período da história do Instituto “período transformador”.113 A narrativa bíblica em que o período transformador se esconde é a experiência do povo judeu, no cativeiro bíblico. Na leitura da sua história, à luz dessa experiência
dos israelitas do Antigo Testamento, o Instituto pode aprofundar o seu entendimento do lugar e da ação de Deus na própria narrativa da sua identidade e formação, tentando descobrir o que pode ser lido do evento bíblico; ele pode continuar a “crescer em compreensão realista e madura daquilo que o evento significa para ser povo de Deus e fillho da promessa” (Hanson, 1986, p.541).
112
Este trabalho é versão adaptada de outra narrativa mais extensa. A narrativa inteira pode
ser solicitada ao autor.
113
O autor faz cuidadosa distinção entre os termos transformação e transição. Transição
é definida como mudança caracterizada por suavidade e sem ruptura, com grande senso
de continuidade entre o antes e o depois. Um exemplo na história do Instituto seria a transferência da autoridade de Champagnat para Francisco. Por outro lado, transformação define-se como mudança profunda, que torna mais difícil discernir a continuidade do antes
no depois.
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No mundo bíblico, era pela lembrança e reiterada narração dos eventos
que o povo judeu do Antigo Testamento formava a sua identidade de povo,
ao longo do tempo. Assim também se com o Instituto. A narrativa da sua
identidade há de ser encontrada não apenas em William Keenan, sociólogo
e velho estudioso dos Irmãos, quando se refere aos “frios documentos históricos abrigados nos arquivos do Instituto” (Keenan, 2000, p. 95); cumpre
reportar-se também à recordação individual dos Irmãos e à reescrita dos
eventos. Tanto o Instituto como o povo judeu do Antigo Testamento experimentaram, de modo similar, distintos estágios na sua história. Ainda que a
correspondência entre as narrativas históricas dos dois grupos não seja, de
forma alguma, perfeita, há suficientes semelhanças para assegurar que a aferição do Instituto pelo modo como a identidade do povo judeu da Velha
Aliança se estabeleceu, se Deus for visto em ação não apenas naquela história, mas igualmente na sua própria.
O presente trabalho visa a contribuir na discussão em marcha acerca da
identidade do Instituto. Paul Avis bem o percebe e aponta: “Não começamos a falar de identidade enquanto ela não for ameaçada” (Avis, 2003, p.
29). Por outro lado, não falar de identidade pode ser sinal de complacência, na melhor hipótese ou, na pior, de morte. O fato de que o Instituto continua a falar de sua identidade, continua a explorar a narrativa da sua história viva, por certo constitui algo sadio.114
114
Sempre é arriscado que o autor discuta eventos ocorridos no tempo de vida e experiência dos seus leitores. Relatos e interpretações vão ser desafiados, particulamermente se o autor não participou dos eventos por si. No relato desta pesquisa quanto ao Capítulo geral de
1967, muitas decisões não foram contempladas ou foram deixadas ao subentendimento, ao
passo que os leitores poderiam considerar importantes, até mesmo cruciais, para compreender
a história do Instituto. Uma óbvia omissão, palpável até para o leitor mais apressado, há de
ser a falta de discussão da liderança do Ir. Basilio Rueda. O período abrangido pela narrativa coincide por inteiro com o governo deste Superior Geral. Basílio desempenhou papel crucial no Capítulo, como Moderador, como Superior Geral; alguém poderia arguir que, sem a
contribuição dele, as decisões teriam tomado rumo diverso. A direção de Rueda depois do
Capítulo foi também crucial. A discussão da sua contribuição, por certo, tem o seu lugar no
período examinado; o autor pode arguir que a sua narrativa discorre tema diverso. Vendo a
história deste período escondida na narrativa bíblica, o autor está oferecendo uma interpretação espiritual, visualizando o período como parte de um todo maior, de preferência a uma
mera interpretação histórica de certo tempo específico. Como e por que decisões específicas foram logradas, eis tema de historiador e, em tal discussão, a liderança de Basílio deve
ter papel central.
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Transformação do povo judeu
Na antiga história do povo judeu, o evento mais significativo, depois do
Êxodo, é o cativeiro babilônico (V século a.C.). A destruição de Jerusalém
e o forçado deslocamento dos habitantes para a Babilônia, sumariados na
Bíblia em II Crônicas (36, 15-21)95, eram mais do que a mera demolição de
um grupo de edifícios; aquilo era como se as próprias fundações da vida
judia, cultura e religião houvessem sido destruídos. Na babilônia o povo
judeu tinha de encontrar novos modos de adorar a Deus, modos que não
se centralizavam no Templo e nos seus rituais. Até o saque de Jerusalém e
o cativeiro da Babilônia, o laço quase indissolúvel entre fé e locação tem
sido virtualmente universal. De que isso já não era o caso aparece na carência de pressa, no retorno a Jerusalém. Havia profunda incerteza, entre
o povo judeu, de como e onde encontrar a Deus. O único resultado certo
do exílio era que já não havia judaísmo, para adotar e adaptar as palavras
de James Sweeney CP, “uma total instituição de estilo Goffman” (Sweeney,
2002, p. 172).
A transformação e a Igreja
Sweeney refere-se no livro à vida religiosa anterior ao Concílio Vaticano
II, de 1962 a 1965. O Capítulo Geral do Instituto de 1967 foi um dos efeitos
do Concílio. Se tivesse havido um Capítulo geral neste tempo, o Concílio
precedente ou sua ausência implicaria muita diferença.115 Um dos principais
efeitos do Concílio dentro da Igreja, e do Capítulo geral de 1967 dentro do
Instituto, foi a orientação para a exploração: exploração de novos modos
de experimentar e de falar sobre Deus, exploração de novos modos de ser
Irmão Marista. Como a experiência do exílio deu ao povo judeu a oportunidade de reconsiderar o seu relacionamento com Deus, assim a experiência do Vaticano II e as suas consequências deram aos religiosos, tanto cole115
Sempre é interessante, mas muito arriscado, tentar construir o evento com a conjunção condicional se, especialmente em eventos históricos. Tantos fatores necessitam ser ponderados para construir cenários razoáveis. Por exemplo, o que teria acontecido, se não tivesse havido o Concílio Vaticano II? Isso leva a formular outra pergunta: Como o Instituto teria enfrentado as convulsões que
ocorreram na sociedade ocidental, no decênio de 1960? O autor propõe a experiência do “período
transformador”, que trouxe o Instituto para a posição de estar preparado para os desafios postos por
tais convulsões, de preferência a manter uma mentalidade de uma como fortaleza, na qual escapar
do mundo, mentalidade comum na vida religiosa anterior ao decênio de 1960. Foi a experiência do
período transformador que possibilitou que o Instituto se movesse para nova fase da sua vida.
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tiva como individualmente, a oportunidade de ver onde situar a Deus nas
suas vidas. O problema com a exploração foi nitidamente sumariado por
Sean Sammon FMS nos seguintes termos:
Nos últimos quatro decênios, temos aprendido duas duras
lições: a exploração leva a crises; quanto mais possibilidades de vida nós descobrimos, tanto maior é o número
de crises
(cf. Sammon FMS, 2002 p. 66).
Gerald Arbuckle SM, antropólogo, fala da “distorcida mitologia da vida
religiosa” pré-conciliar (Arbuckle SM, 1993, p. 135). O Concílio tentou destruir tal mitologia no seu “Decreto sobre a Apropriada Renovação da Vida
Religiosa”, instruindo cada uma das congregações religiosas formalmente
reconhecidas, com apelo ao seu mais alto corpo legislador para que efetue
o que os Padres Conciliares resolveram pelo decreto, como futuros passos
da vida religiosa na Igreja. Era dupla tarefa de adaptação e renovação, igualmente, o que enfrentou o Capítulo geral do Instituto de 1967.116
A transformação no Instituto
O intervalo de dois anos, entre o fim do Concílio e o começo do Capítulo Geral de 1967, foi aproveitado para consultas que, aliás, são costumeiras
no Instituto. Esse seria o último Capitulo geral dominado por europeus.117
Parece sinal indicador da profundidade das mudanças que teriam de ser feitas; os delegados, pela primeira vez, olharam fora da Europa e do Conselho
geral para o homem que lideraria o Instituto nos próximos anos: elegeram
um mexicano relativamente pouco conhecido: Basílio Rueda Guzmán, FMS.118
116
Este trabalho não intenciona prover detalhado relato do Capítulo, mas meramente indicar
a profundeza da mudança iniciada no Instituto com as diversas decisões tomadas pelos delegados do Capítulo.
117
Ademais da superioridade numérica das Províncias europeias, considerável porcentagem
dos Provinciais e delegados capitulares da África, Ásia, América Latina, Oceania e Pacífico
eram de origem e de nacionalidade europeia.
118
Diversamente, para os Capítulos gerais recentes as sessões se realizaram em dois anos, de
30 de agosto a 28 de outubro de 1967, e de 28 de setembro a 21 de novembro de 1968. A maior
duração do Capítulo foi devida à extraordinária quantidade de trabalho que os delegados deviam realizar: rever as Constituições e Regras Comuns, além do longo intervalo entre as sessões, com que se facilitassem consultas e se colhessem experimentações no Instituto.
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Importante dificuldade enfrentou o Capítulo: sabia-se que a revisão do
Código Canônico iria realizar-se; assim, revisões definitivas dos documentos do Instituto não podiam ser publicadas. O Capítulo revisou as Constituições existentes em base ad experimentum e editou o documento em 1968.
Para adequar-se ao Código Canônico de 1917 em vigor, o Capítulo foi cuidadoso na sua introdução às revisadas Constituições: “As Constituições podem parecer muito diferentes, mas um cuidadoso estudo vai revelar que
tudo o que é essencial nas precedentes é mantido.” Ainda assim, um rápido olhar nas Constituições revisadas vai assinalar uma maior diferença no
formato daquelas precedentes que, no essencial, são as Constituições de
1852, estas, sim, com poucas revisões. Onde as velhas Constituições se apresentam artigo por artigo, as de 1968 comparecem em seções que, então, se
dividem em artigos com diversos parágrafos. Diferentemente tanto da Regra de 1837 e das Constituições de 1852, a formulação do fim não aparece
antes do artigo 43 nas revisadas Constituições e com inserção de pouco detalhamento.119 Realmente, com o olhar nos apelos do Vaticano II às congregações religiosas, mirando não apenas a adaptação das suas vidas aos tempos, mas uma renovação das vidas dos seus membros, os 42 artigos precedentes fixam o que significa ser Irmão Marista e o lugar do Irmão Marista
dentro da Igreja. Talvez aqui esteja a mais explícita procura da identidade,
na história do Instituto.
No lugar das Regras Comuns, que antes haviam regulado o cotidiano da
vida dos Irmãos, o capítulo editou um documento que os delegados chamaram “Diretório”. A diferença entre Diretório e Regras Comuns aparece de
imediato no prefácio do novo documento: “Como ele se dirige à Congregação como um todo, não se pode esperar que entre nos detalhes da organização”. Os pormenores seriam deixados para as Províncias individuais, que
os regulariam conforme as suas próprias circunstâncias.120 Diversos outros
documentos que cobrem diferentes aspectos da vida no Instituto, suplementaram tanto as Constituições quanto o Diretório.
119
Por esse tempo, o Instituto se envolveu também na educação terciária, em várias partes
do mundo, algo muito distante da educação elementar considerada por Champagnat. A revisão de 1968 sumaria a finalidade do Instituto em duas linhas: educação da juventude, particularmente a menos favorecida”. (Institute, 1968a Article 43, p 57).
120
Esta abordagem da legislação era de todo nova e está em nítido contraste do apelo do Irmão Luís Maria de 1865 para a estrita uniformidade do Instituto num catecismo editado para os noviços (Institute, 1934 p 6-7).
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Um curto parágrafo no “Decreto acerca da apropriada renovação da vida religiosa” do Concílio acrescentou combustível ao fogo do debate no
Instituto, que havia originalmente emergido no Capítulo geral de 1946: é
a questão da introdução do sacerdócio no Instituto que foi levantada de
novo no Capítulo Geral de 1958; o Capítulo encaminhou o problema ao
Superior geral e ao seu Conselho para mais profunda investigação. No Capítulo geral de 1967, a questão era central na consideração da identidade
do Irmão Marista. Embora não preparados para decidir a favor de um caminho ou outro acerca do sacerdócio, muitos delegados expressaram temores de que, inserindo a definição de “religioso leigo” no rascunho das
Constituições, a decisão sobre tal questão ficaria excluída. Chegou-se a um
acordo, somente depois de muita discussão e do voto de entregar ao Capítulo a decisão de que a inserção da frase não fecharia a questão (Instituto, 1968c 121). Não houve nenhuma tentativa de tomar decisão sobre a
questão em si mesma. 122
Até o Capítulo Geral de 1958, o Pequeno Ofício de Nossa Senhora era recitado em latim nas comunidades; depois, na língua moderna apropriada.
O documento “a nossa vida religiosa” do Capítulo de 1967 estabeleceu o seguinte:
O Ofício Marial, isto é, o Pequeno Ofício de Nossa Senhora, será mantido até que o Conselho geral ou Comissão
por ele nomeada decida sobre a conveniência de mantêlo adaptado123 ou opte pela adoção Ofício Divino, igualmente adaptado
(Institute, 1969 p 106).
121
Todas as versões deste trabalho para documentos de língua francesa são do próprio
autor.
122
A questão de intoduzir o sacerdócio retornou no Capítulo Geral de 1976, mas foi novamente procrastinada. Após longa discussão no Capítulo Geral de 1985, os delegados concordaram em que a introdução do sacerdócio não deveria ser permitida no Instituto. Por esse tempo, poucas Congregações de Irmãos haviam decidido permitir aos seus membros de
serem ordenados. Havia pouca evidência de que tal iniciativa houvesse sido satisfatória.
Quando o Papa João Paulo II levantou de novo o tema em 1996, na sua Exortação Apostólica “Vita Consecrata” (John Paul II, 1996 p. 106), apenas diminuta onda de interesse se levantou no Instituto.
123
“Adaptado, quer dizer, com versão do latim para as línguas modernas.
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As disposições a respeito do porte da batina124 que, pelo Código em vigor era exigida de todos os religiosos, também foram mudadas.125 Na luz das
normas estabelecidas pela Seção 17 do Decreto sobre a apropriada renovação da vida religiosa, as Constituições de 1968 sumariaram-nas em duas linhas: “Os Irmãos se vestirão de maneira simples e modesta, conforme a pobreza evangélica”. Os detalhes foram deixados ao que consta no documento “A nossa vida religiosa”. Ficou claro que a batina era apenas umas das opções disponíveis. A regulamentação, no caso, foi deixada para as Províncias
individuais, como outro passo distanciado da uniformidade dos tempos anteriores.
No seu discurso, no fim da primeira sessão do Capítulo, o Irmão Basílio,
novo Superior Geral, ministrou uma nota de cautela acerca do período experimental em que o Instituto havia entrado.
“Estou pronto em dar as boas-vindas a todos os experimentos
propostos ao longo das linhas indicadas; por outro lado,
devo assinalar que há sérios perigos de que, sob a capa dos
poderes especiais desfrutados por este Capítulo especial, os
experimentos sejam meras concessões à fraqueza ou que se
limitem à aprovação das irregularidades já existentes.”
(Institute, 1968c)
O Capítulo estabelecera diversas condições para o período experimental
autorizado para o Instituto:
1. Todas as planejadas adaptações e experimentos devem
encerrar-se depois de um ano, se necessário, sem nenhum
problema.
2. Cada experimento deve concluir-se com uma análise objetiva.
124
No Capítulo Geral de 1985, houve acordo em que o colarinho romano pudesse substituir
o rabá. A maioria das Províncias de língua inglesa manteve o rabá.
125
A “Estrutura regulatória penetrante” da Igreja (Keenan, 2000 p 95) tinha tal influência no
Instituto, que as Regras Comuns indicavam quantas camisas e pares de meias um Irmão poderia ter por ano; na verdade, previa-se de que material seriam feitos os cadarços dos sapatos. A batina, naturalmente, deveria ser levada em todo o tempo. Havia uma exceção: os Irmãos de fala inglesa, nos países protestantes, podiam usar roupa do clero fora das suas comunidades ou da escola.
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3. Os experimentos e adaptações podem e até mesmo devem
ser levados a termo em número fixo de casas: algumas
casas realizam certo tipo de experimentos; outras casas
fazem um tipo diverso. Desse modo, evita-se dar a impressão de que os experimentos devem prosseguir e tornarse questões de governo.
(Institute, 1968c)
Os delegados do Capítulo geral de 1967 procuraram discernir a vontade
de Deus para o Instituto nas circunstâncias de vida; mas o discernimento
não podia encerrar-se no fim do Capítulo. Os eventos subsequentes, que
não podiam ter sido previstos, forçaram o Instituto a um processo contínuo
de discernimento, no contexto de circunstâncias em rápidas mudanças. O
Instituto embarcou em programa maciço de transformação; mas era programa que iria trazer consigo desafios imprevistos, embora fossem desafios
não particulares aos Irmãos Maristas.126
Nos desafios dos tempos
Constitui lugar comum para o católico mais tradicional questionar que o
Vaticano II é a causa do que é visto em larga escala como declínio da Vida
Religiosa dos últimos quarenta e cinco anos. Naturalmente, é fácil notar a
coincidência do declínio do número de religiosos e o fim do Concílio, censurando o Concílio por esta queda. Isto é um passo que muitos tomaram e
continuam tomando. Este trabalho não pretende envolver-se em discussão
de responsabilidade pelo decréscimo do número de religiosos, a partir do
final do decênio de 1960, decréscimo que prossegue no ‘mundo desenvolvido’ até o presente. O Instituto é uma dessas Congregações religiosas que
sofreram considerável diminuição dos seus efetivos, que declinaram de 9.752
membros em 1965127 para 6.230, em 1985, na véspera do Capítulo Geral.128
O decréscimo relativamente pequeno de 1966 foi o começo do declínio constante que se seguiu. A queda no efetivo do Instituto não pode ser explica126
Mudanças na vida do Instituto, planejadas e deliberadamente decididas pelo Instituto,
constituem apenas parte da história do “período “transformador”. O pleno impacto do período não pode ser compreendido, a menos que mudanças fora do Instituto sejam, de igual
modo, levadas em consideração..
127
Boletim do Instituto, 27, p 436.
128
Relatório do Secretário geral sobre o Capítulo geral de 1985.
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ESCRITURA E BUSCA DE IDENTIDADE
da apenas pela natural redução devida à morte e às saídas129 , mas também
pela carência de novas vocações. Um dos fatores no declínio em número de
ingressos, diretamente atribuíveis às reformas do Vaticano II, foi a decisão
tomada por muitas Províncias do Instituto de fechar os juvenatos. O abandono pelo Concílio Vaticano II do conceito de mundo como lugar do qual
os religiosos e os potenciais candidatos tinham de se afastar, mais o desenvolvimento na psicologia em repensar os conceitos de vocação e de desenvolvimento humano levaram ao abandono da aceitação de vocações muito jovens para a vida religiosa. Por certo o fechamento dos juvenatos não
era a visão de todos os Irmãos; até hoje, há apelos entre os Irmãos de mais
idade em trazer de volta a instituição do juvenato, como meio de resolver o
problema do recrutamento. As grandes saídas do Instituto entre 1967 e 1985,
combinadas com a carência de recrutas, pelo menos no mundo desenvolvido, apressadamente levaram a um significativo aumento da idade média dos
Irmãos nas Províncias. Isso, ademais, levou à diminuição de Irmãos para as
posições de liderança nas escolas e em outros apostolados, com a consequência de que mais e mais comunidades se retiraram dos lugares em que
os Irmãos haviam trabalhado por um século e mais.
O sentimento de quase total autoconfiança da Vida Religiosa, embora não
por acinte, foi atingido pelo Concílio Vaticano II. Um dos efeitos desta mudança foi que já não bastava que os Irmãos Maristas “trabalhassem pela maior
glória de Deus, em honra da Santíssima Virgem e para a sua própria santificação” (Institute, 1923 Article 1 p. 7), simplesmente pela observância dos
três votos simples de pobreza, castidade e obediência, e das Constituições
do seu Instituto (ibid). O Concílio Vaticano II havia mostrado que ser um religioso observante, de per si, já não era garantia de salvação. A exigência do
Concílio de completa mudança de mentalidade pelas Congregações Religiosas colocava enorme carga sobre elas. Novas Constituições, embora editadas com a marca ad experimentum, e o novo Diretório compunham tremenda reivindicação para os Irmãos, tanto no todo da corporação como na
parte do indivíduo. O sentido tradicional de identidade foi desafiado diretamente. Esta crise de identidade não foi peculiar aos Irmãos Maristas, mas
129
A experiência das saídas é comum para virtualmente todas as Ordens e Congregações, tanto
de homens quanto de mulheres. Atrás de toda a saída, naturalmente, jaz uma história profundamente pessoal e, provavelmente, não se pode extrair material que forme um elemento comum para uma resposta desta pergunta: Por que ocorreram tantas saídas? Em tempos anteriores ao Concílio, naturalmente, havia uma simples resposta ao problema das saídas de Irmãos do
Instituto: “A maioria das defecções aconteciam pela carência de virtude.” (Institute, 1946)
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mostrou ser comum aos católicos depois do Vaticano II (Arbuckle, 1996), e
a outros religiosos (Chittister, 1996) e Irmãos de outras Congregações (Berger, 1994). Foi para achar maneira de aliviar tal crise de identidade que o
Instituto embarcou em nova fase da sua história, por intermediação do Capítulo Geral de 1985, uma fase em que ele examinou o seu sentido de identidade muito mais rigorosamente do que até então, ao insistir no retorno aos
seus textos fundacionais.
Conclusão
Quase como se houvesse intentado sacudir o povo judeu da letargia em
que estava acomodado, o Cativeiro Babilônico trouxe-o a uma situação que
rompeu o laço entre a sua fé e a locação ajustada a esta fé (Seitz, 1985). Com
o templo destruído e com o povo esmagado, com muitos sem nunca retornarem à terra dos seus antepassados, nova fase se abria na vida do povo judeu. Durante esse tempo, eles tinham de considerar seriamente o seu futuro. Não havia possibilidade de voltar atrás para uma idealizada existência
de pré-cativeiro. Este trabalho tentou mostrar que a experiência do Instituto no período entre 1967 e 1985 foi algo similar à experiência do povo judeu, na realidade do cativeiro da Babilônia. Uma palavra de precaução é
aqui necessária. No trabalho não há tentativa de interpretar o período de
transformação do Instituto como desastre, como muitos judeus interpretaram o saque de Jerusalém e o cativeiro babilônico, muito menos como castigo de Deus. Tampouco é interpretado o período como o sequestro do Instituto por um pequeno grupo de ultraliberais, de modo muito similar como
tantos católicos tradicionalistas interpretam as mudanças autorizadas pelo
Vaticano II. A hipótese do autor é esta: o período transformador tem a mesma função, na narrativa atinente à identidade e formação do Instituto, como a experiência do cativeiro babilônico foi para o povo judeu do Antigo
Testamento, isto é, uma experiência de mudança de vida em que as velhas
certezas desapareceram e as novas questões tinham de ser enfrentadas.
O Capítulo Geral de 1985 marcou o início deste novo período na vida do
Instituto, como período profético. Neste período, com os desafios enfrentados pelo Instituto, procurou-se a reinterpretação da vida do Fundador e
dos documentos fundacionais do Instituto. Profetas, tanto dentro como fora do Instituto, erguem-se para liderar a busca dos elementos fundamentais
da identidade marista e da identidade do Irmão Marista. O período proféti-
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ESCRITURA E BUSCA DE IDENTIDADE
co corre ao longo das transições e das transformações que continuam na vida do Instituto: não oferecem uma crítica da mudança, mas os instrumentos
pelos quais a mudança deve reter o que Marcelino Ganzaraín, FMS, refere
como “fidelidade criativa.” (Ganzaraín, 1993 p. 565)130
Refletindo na sua história, dentro do paradigma bíblico, presente neste
trabalho, o autor sugere que o Instituto vai ganhar outra introvisão na sua
narrativa histórica: encara esta narrativa como gradual desdobramento da
sua identidade, antes que mera e frenética indagação dela. Isso, por outro
lado, vai possibilitar que se olhe o futuro com confiança, na segurança de
que, em quaisquer vicissitudes da vida, Deus nunca abandona o seu povo.
REFERÊNCIAS
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Dublin. Geoffrey Chapman.
Arbuckle, Gerald A (1993): Refounding the Church. Dissent for Leadership.
London. Geoffrey Chapman.
Arbuckle, Gerald A (1996): From Chaos to Mission. Refounding Religious
Life Formation. London. Geoffrey Chapman.
Avis, Paul (2003): Church Drawing Near. Spirituality and Mission in a PostChristian Culture. London & New York. T & T Clark Ltd.
Berger, Robert C (1994): “Old Brothers and Young Dreams and Visions”. Review for Religious March-April. Pages 238 – 253.
Chittister OSB, Joan: (1996): The Fire in These Ashes. A Spirituality of Contemporary Religious Life. Leominster. Gracewing.
Ganzarain FMS, Marcelino (1993): “Particularly Those Most in Need”. Marist
Apostolic Spirituality (Supplement). Circulars of the Superiors General of the Marist Brothers of the Schools. XXX (8). Pages 549 - 575.
Hanson, Paul (1986): The People Called. The Growth of Community in the
Bible. San Francisco. Harper & Row.
130
O Ir. Marcelino antecipa em cerca de três anos o uso da mesma expressão do Papa João
Paulo II, na seção 37 da sua “Exortação Apostólica” sobre a vida religiosa, Vita Consecrata
(João Paulo II, 1996)
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Institute of Marist Brothers (1923): Constitutions of the Institute of the Marist
Brothers of the Schools or Little Brothers of Mary. Dumfries. Courier
and Herald Press.
Institute of Marist Brothers (1934): Principles of Christian and Religious Perfection. For the Use of the Marist Brothers of the Schools (Little Brothers of Mary). Translated from the sixth French edition. Revised and enlarged. Tournai, Belgium. Desclée et Cie.
Institute of Marist Brothers (1946): Procès-Verbal du XIV.ième Chapitre Général. Archives. General House. Rome.
Institute of Marist Brothers (1968a): Constitutions of the Institute of the Marist
Brothers of the Schools or Little Brothers of Mary. Rome. General House.
Institute of Marist Brothers (1968b): Directory of the Marist Brothers of the
Schools or Little Brothers of Mary. Rome. General House.
Institute of Marist Brothers (1968c): Procès-Verbal du XVI.ième Chapitre Général. Archives. General House. Rome.
Institute of Marist Brothers (1969): Our Religious Life. Documents of the 16th
General Chapter of the Marist Brothers of the Schools. Sydney. Marist
Brothers.
John Paul II, Pope (1996): Vita Consecrata. The Consecrated Life and Its
Mission in the Church and in the World. Apostolic Exhortation. London. Catholic Truth Society.
Keenan, William J F (2000): “Clothed with Authority. The Rationalization of
Marist Dress-Culture”. Undressing Religion. Commitment and Conversion from a Cross-Cultural Perspective. Linda B Arthur (ed). Oxford & New York. Berg. Pages 83 – 100.
Sammon FMS, Sean D: (2002): Religious Life in America. A New Day Dawning. New York. St Paul’s.
Seitz, Christopher R (1985): “The Crisis of Interpretation over the Meaning
and Purpose of the Exile: A Redactional Study of Jeremiah XXI-XLIII”.
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Sweeney CP, James: (2002): “The Experience of Religious Orders”. Authority in the Roman Catholic Church. Bernard Hoose (ed). Aldershot &
Burlington ,Vt. Ashgate. Pages 171 – 180
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Terna afeição
Tema de interpretação,
inspiração e motivação
Irmão Christopher MANEY, FMS
Província do Nova Zelândia
Prefácio
Este projeto de pesquisa contempla um tema encontrado nas cartas e outros documentos de Marcelino Champagnat, nos escritos de testemunhas
contemporâneas e biografias. Primeiramente, tenta desenvolver o assunto a
partir de fontes primárias e secundárias com respeito ao Fundador; em segundo lugar, aplicar as introvisões e achados aos dias de hoje, especialmente
a uma particular incidência: o Capítulo Provincial de 2007. Em terceiro lugar, o projeto procura investigar como as perspectivas do Fundador continuam a ser desenvolvidas no nosso tempo.
A escrita deste projeto constitui tanto viagem pessoal quanto investigação. Para mim, esta pesquisa não tem sido apenas individual, mas também
muito pessoal. Creio que ela me levou a uma compreensão e apreciação renovada e melhor do Fundador e dos Irmãos que partilham comigo este empreendimento. A minha esperança é que esta partilha de experiência com
os outros pode vir a ser de alguma utilidade para alcançar tais objetivos.
Este projeto particular não é primariamente trabalho acadêmico ou de especialista, nem o deseja ser; mas visa a apresentar alguns aspectos que merecem ulterior investigação. O grande uso de citações lhe confere uma natureza eclética, mais do que sintética ou sincrética, na esperança de propor
um tema para discussão, mais do que chegar a descobertas conclusivas. Conquanto tenha feito largo uso de fontes primárias, confiei também em fontes
secundárias, como anotações de Irmãos Maristas e de diversas outras proveniências; por certo, as anotações confiam especialmente nas fontes pri-
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márias e, portanto, parecem dignas de confiança; mas faz-se uso também de
documentos contemporâneos, tais como as Circulares do atual Superior geral.
Vali-me de hipótese e de especulação; ambos empregam imaginação e
intuição, algo mais que ciência, dado que entendo o projeto antes como premissa inicial, o que tende a reivindicar ulteriores investigações. A tentativa
de compreender os diversos ajustes do espírito do Fundador requer intuição e considerações mais do que provas e com isso se abre o caminho para imaginar novas possibilidades.
O projeto, ademais, procura integrar muitos dos vários insumos oferecidos durante o Curso do Patrimônio. Aqui tais referências são superficiais, o
que tento compensar com notas de rodapé que assinalem possíveis áreas de
leitura para pesquisas mais avançadas.
1. INTRODUÇÃO
1.1 Zelo apostólico
Durante o Curso do Patrimônio realizado em Roma, de fevereiro a junho
de 2008, numa apresentação intitulada “Somos semeadores da Boa-nova entre os jovens, especialmente as mais negligenciadas”, o apresentador Irmão
Carlos Martínez Lavin131 formulou quatro perguntas: O zelo apostólico é carga? é obrigação? é convicção? é paixão?
Antes de tentar responder a estas intrigantes proposições, vai auxiliarnos certo ajuste prévio sobre como definir cada uma das palavras-chaves.
Carga é a primeira; facilmente é entendida como expressão metafórica para indicar “algo opressivo ou que preocupa.”132 No dicionário pode-se colher toda uma fileira de significados da palavra duty, que servem ao nosso
131
Ir. Carlos Martinez Lavin foi membro da Comissão Internacional da Educação Marista (19951998), encarregada de produzir o documento “Nas pegadas de Marcelino Champagnat, uma
visão Marista da educação hoje.” Ele, no Curso do Patrimônio, falou sobre o tema seguinte:
“Escutando aqueles que o conheceram” e falou dos “nossos santos.”
132
As definições deste documento foram tiradas do dicionário “Merriam-Webster.”
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propósito: procedimento para com os pais e superiores; obrigação moral ou
legal. A palavra conviction pode verter-se para “forte persuasão ou crença”. A palavra passion, mais que as anteriores, pede clara definição. Além
disso, para o propósito desta discussão, é bom fazê-lo: “afeição ardente;
amor; forte desejo; dedicação a alguma atividade, objeto ou conceito”. Para mim ocorre que a motivação brota do interior da pessoa. A sua forma e
cor é proativa, de antecipação e autorrealização. Ao seu lado, a compaixão
define-se como “simpática consciência do sofrimento alheio, com o desejo de aliviá-lo”. A “compaixão” também deriva do íntimo da pessoa, mas
como resposta ao estímulo de fora. Naturalmente, paixão e compaixão interativas caminham juntas. Ainda assim, nesta discussão, prefiro começar
pela paixão, como força motivadora do interior da pessoa. Aí pode-se passar a considerar a “compaixão” como força motivadora em resposta da necessidade. Por “força motivadora” estou sugerindo que a pessoa é mais expeditamente levada à ação, quando o impulso, pensamento ou convicção
vêm acompanhados de fortes sentimentos, como no exemplo da “afeição
ardente”. Estudos contemporâneos da “neurociência afetiva” tendem a apoiar
este ponto de vista.133
O documento “Água da Rocha” 134 coloca esta percepção ainda mais sucintamente, quando se refere à “espiritualidade marista nas pegadas de Marcelino Champagnat” no próprio subtítulo: “A história da nossa espiritualidade se caracteriza pela paixão e compaixão, paixão por Deus e compaixão
pelas pessoas.”135 Sobre Marcelino, o mesmo documento assevera: “Marcelino Champagnat viveu entre crianças e jovens, amou-os com paixão e se
dedicou a eles com todas as suas energias.”136
133
A neurociência afetiva é o estudo do mecanismo neural da emoção. Este campo interdisciplinar combina neurociência com o estudo psicológico da personalidade, emoção e espírito. As emoções são pensadas como relacionadas à atividade de areas cerebrais que dirigem
a nossa atenção, motivam o nosso procedimento e determinam a significância do que nos
cerca. http://en.wikipedia.org/wiki/Affective_neuroscience
134
‘Água da Rocha’ é um documento sobre a espiritualidade marista, escrita especificamente
para ir ao encontro das necessidades dos Irmãos e dos leigos maristas. Foi publicada em 2007
pelo Instituto dos Irmãos Maristas.
135
‘Água da Rocha’, P.22.
136
Ibid P.34 .O parágrafo continua: “Como discípulos seus, experimentamos também especial alegria em partilhar o nosso tempo e as nossas pessoas com eles, fazemos causa comum
com as suas aspirações, estamos cheios de compaixão por eles, estendemos-lhes a mão nas
suas dificuldades. A pergunta é esta: “Quão veraz é esta afirmação?”
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Provavelmente, o mais das vezes é na arena pública que falamos de paixão
em sentido negativo, como em “crimes de paixão”, ou nos livros espirituais,
que instam conosco para reconhecermos as nossas inclinações e resistirmos à
nossa “paixão dominante.”119 Contudo aqui estamos considerando atos de virtude, heroísmo e santidade que brotam de convicções mantidas apaixonadamente. Exemplo de tal uso pode ser encontrado num artigo intitulado “No coração do sonho marista”, dado a público na Assembléia Internacional da Missão Marista, realizada em Mendes, RJ, Brasil, nos termos seguintes:
“Como Maristas, somos chamados a centrar apaixonadamente as nossas vidas em Jesus Cristo, desenvolvendo uma
espiritualidade de discipulado. Inspirados por Maria, encontramos a Deus nesse espaço previlegiado, em que passamos as nossas vidas entre crianças e jovens.” 138
I.2. Situação contemporânea
Creio que as perguntas formuladas por Carlos, pouco acima, são muito
pertinentes para mim e para a minha Província de Nova Zelândia, neste tempo. No Capítulo Provincial, realizado em dezembro de 2007, três declarações prioritárias eram preconizadas. A primeira estava formulada assim:
“Desenvolver uma atividade pastoral com foco renovado;
a Província deve orientar-se pelo nosso carisma, isto é, estar com os jovens, sobremodo os mais pobres, necessitados ou de risco.”
Na primeira leitura da declaração, temos a impressão de que a ideia parece válida e nobre e assim pode muito bem ser; mas há um sinal de repetido, já visto. O apelo, há tempo vem reiterado, quanto ao serviço dos mais
137
Por exemplo, o Ir. João Batista escreve em “Meditações das grandes verdades. ” AFM
5201.21 na meditação 54, terceira parte, causa de pecado, a concupiscência, as paixões. “As
paixões perturbam a alma, avassalam-na, cegam-na enervam-na, enfadam-na e lhe tiram todo o autodomínio, como a bebedeira do vinho domina o corpo; perturbam o juízo e tiram o
bom senso. As paixões corrompem a vontade ; elas a tornam toda carnal e animal.»
138
Esta citação vem do documento “Um coração, uma missão, Assembleia da missão internacional marista, No coração do nosso sonho marista”. P.1 Esta Assembleia se reuniu em Mendes, RJ, Brasil, em 2007.
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necessitados. Na sua conferência, intitulada Solidariedade, o Irmão Dominick Pujía139 bosquejou longa história acerca do ensino da Igreja na questão
da justiça social, a partir do documento fundacional da Rerum Novarum de
Leão XIII, especialmente desde 1967. De igual modo, as nossas Circulares e
apelos do Irmão Basílio Rueda Guzmán; este havia trabalhado por sete anos
no Movimento do Mundo Melhor. Estivemos ouvindo os apelos de solidariedade da parte dos nossos Superiores gerais e dos nossos Capítulos gerais.
Que é que não está ocorrendo em relação aos reiterados apelos, mesmo
que em leve mudança de sentido das palavras? Por certo, há todo um complexo de respostas possíveis a esta pergunta. Por exemplo, as rápidas mudanças do mundo, com comunicações instantâneas, quiçá mais para as notícias
negativas, especialmente quanto às estatísticas dos “jovens marginalizados, pobres, necessitados e de risco”. Também ocorreram mudanças de ordem religiosa depois do Concílio Vaticano II, o que parece estar sapando as nossas
energias de adaptação, a carência de candidatos para as nossas fileiras, idade
média dos Irmãos da Província já acima dos sessenta anos. Assim, os apelos
para alguns estariam virando carga. Para outros muitos os apelos seriam, ao
mesmo tempo, obrigação e convicção. A linguagem acima pode implicar ou
sugerir um tipo de orientação para a obrigação. Repitamos: “Alinhar-se melhor com o imperativo do nosso carisma”. A palavra imperativo, de per si, denota comando, súplica, exortação.”140 Obrigação e convicção são termos válidos, mas seriam suficientes para inspirar e motivar? Isso não é para difundir
dúvida acerca da boa vontade dos Irmãos; mas dirijo o pensamento a mim próprio e tenho muita esperança nos outros; como introvisão e busca de entendimento, a ponderação pode levantar-nos acima da mera aquiescência a princípios, motivando-nos melhor para a ação. Num artigo intitulado “As Memórias do Pequeno Irmão Silvestre141, que serve de introdução para os escritos
sobre Champagnat, por esse Irmão, o autor faz este pertinente comentário:
“Silvestre descreve o entusiasmo de Marcelino e dos primeiros
Irmãos para o trabalho da evangelização, qualificando-o de
“inflamado.” O que os dirigia e o que estava no coração da
espiritualidade apostólica marista era uma profunda preocupação pelas pessoas. Constitui antes uma resposta de amor,
139
Ir. Dominick Pujia dirige a Solidariedade mantida pelo Generalato dos Irmãos Maristas em Roma.
Merriam-Webster. Também “tendo o poder de restringir, controlar e dirigir.”
141
Ir. Michael Green, na introdução ainda não publicada, para a tradução da “Vida de Champagnat”
do Irmão Silvestre.
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mais que resposta obrigação, que os propele para a ação. A
teologia deles dava ao trabalho ao mesmo tempo importância e urgência; mas era essencialmente em favor da pessoa.”
Na terceira parte da Circular “Tornar Jesus conhecido e amado”, sob o título “Missão, vida apostólica e os pobres”, o Irmão Seán Sammon escreve:
“Sem dúvida, há unidades administrativas, através do Instituto, em que os Irmãos e os associados leigos responderam satisfatoriamente a essas perguntas: Como vamos
assistir os marginalizados da sociedade? Como grupo agora e no futuro? A maioria dos nossos Irmãos, no entanto,
ainda não chegou à resposta final das mesmas perguntas. Na verdade, na sua tentativa de fazê-lo, muitas vezes
irromperam agudas diferenças de opinião.” 142
Em Assembleia de um setor da Província da Nova Zelândia, no desenrolar do Capítulo da nossa Província, alguns teceram este comentário, como
para confirmar o destaque acima:
“Sentindo a perda de direção na missão, o envelhecimento
dos Irmãos, a falta de contato com a juventude pelos Irmãos,
a falta de dimensão comunitária em algumas atividades pastorais correntes, a fragmentação dessas atividades, sentimentos
de que o nosso trabalho é dominado pela manutenção, a sociedade está mudando e não estamos ligando a isso. A Igreja está mudando e não estamos ligando a isso.143”
Na mesma Circular, intitulada “Tornar Jesus conhecido e amado”, o Irmão Sean escreve:
“Para Marcelino Champagnat, a educação era poderoso
meio para formar e transformar as mentes e os coraçãos
das crianças e dos jovens. Por exemplo, ele escreveu “se
fosse apenas para ensinar às crianças os temas seculares,
142
Ir. Sean Sammon, fms, Superior Geral: Tornar Jesus conhecido e amado, vida apostólica
marista hoje. Junho de 2006, Instituto dos Irmãos Maristas.
143
Essas notas são tomadas do início de um rascunho de relatório sobre a Assembleia dos Irmãos Maristas; relatório empregado aqui apenas como mera ilustração.
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os Irmãos não seriam necessários; se o nosso fim fosse apenas dar-lhes a instrução religiosa, nós seríamos apenas
catequistas. O nosso fim é algo superior; queremos dar-lhes
algo melhor; queremos dar-lhes o espírito cristão e as atitudes cristãs e formar neles hábitos religiosos e virtudes que
deve possuir o bom cristão e o bom cidadão.”144
Dessas palavras podemos concluir que Marcelino estava motivado não apenas pela obrigação e convicção, mas pela paixão que leva à ação: “Visamos a
algo melhor”. Muitos outros exemplos podem ser empregados para ilustrar esta reivindicação, alguns dos quais vão ser utilizados nas páginas seguintes
2. PROJETO, FINALIDADE E MÉTODO
Trabalhando com a perspectiva acima, o projeto de pesquisa formula a questão de como a consideração e familiaridade com a pessoa e com a vida de Marcelino por parte dos Irmãos da primeira hora do nosso patrimônio podem tornar-se a fonte de inspiração e de motivação que nos energiza para ponderar o
comprometimento da missão: “ficar mais alinhado com o carisma da nossa missão”; mas não apenas alinhado, senão também compartilhar a paixão que Marcelino teve, como se viu.
Enquanto especulação, que pode implicar inconclusividade e igualmente não
se alinhar como instrumento ortodoxo de investigação histórica e análise,145 pode servir como plataforma da intuição, esta de maior respeitabilidade.146 Alguma especulação pode ser posta à prova, já que temos de ir às fontes, mas certa
porção deve permanecer apenas isto: especulação. A especulação pode ser de
mera assistência, para mais livremente encarar teorias e possibilidades e abrir
144
Ir. Sean Sammon: P. 24.
Merriam- Webster.Especular.1 a: meditar ou ponderar algo; refletir. b: Rever algo sem muita atenção e sem fim claro http://www.merriam-webster.com/dictionary/speculating
146
Henri Bergson, (18-10-1859—4-1-1941). Foi filósofo francês; ele definiu intuição como
simples e indivisível experiência de simpatia, mediante a qual alguém é levado ao ser interior de um objeto, para captar o que é único e inefável nele. O absoluto que é extraído é
sempre perfeito, no sentido de que é exatamente o que é, e infinito no sentido de que pode
ser captado como um todo, mediante o ato de intuição simples e indivisível; mesmo assim,
quando analisado, presta-se a uma enumeração sem fronteiras.
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caminho ulterior de investigação ou de rejeição. Além disso, é de assistência ou
auxílio para o escritor, já que ela envolve autoexame, porquanto, sem dúvida,
levanta mais especulação com as projeções da própria personalidade. Quiçá isso seja especialmente verdadeiro, quando consideramos palavras e conceitos
como “paixão”. Por exemplo, quando consideramos a “paixão” ou a força emocional que incitou Marcelino à ação,147 o reconhecimento de nós próprios em tal
emoção é percebido por mediação dos filtros da nossa própria experiência. Isso significa que apenas podemos empatizar e ficar motivados até o grau em que
a própria experiência emocional ressoa.148 Isso não é para negar a ação da graça ou a moção do Espírito Santo. Quiçá tudo isso seja parte do processo de discernimento.
Na introdução à Circular “Uma Revolução do coração,”149 o Irmão Sean assinala:
“Os relatos sobre Marcelino e sobre os primeiros Irmãos
são muito importantes. Eles encorajam a você e a mim, a
viver no cotidiano, tão pobres, obedientes e castos quanto pudermos; eles nos ajudam a compreender e a dar graças
pelo fato de que o nosso modo de vida como Pequenos Irmãos de Maria nos leva não à diminuição senão ao aumento da nossa liberdade.”
3. CIRCULAR DE MARCELINO DE MAIO DE 1836
Para investigar os relatos e as evidências sobre Marcelino, preferi partir da consideração da Circular que Marcelino escreveu aos Irmãos. O Irmão André Lanfrey, no seu “Ensaio acerca das origens da Espiritualidade Marista,”150 escreve que
a quinta, ainda existente, Circular de Marcelino, de 19 de janeiro de 1836,
147
Veja nota 4 acima.
Empatia é a capacidade de reconhecer ou compreender o estado de espírito ou emoção
de alguém. Muitas vezes, caracteriza-se como a habilidade de alguém imaginar-se na pele de
outrem, ou experimentar, de algum modo, as emoções de outro ser dentro de si. Pode ser
descrito metaforicamente como espécie emocional de ressonância ou de espelho.
http://en.wikipedia.org/wiki/Empathy
149
Ir. Sean Sammon, fms, Superior geral, na obra “A revolução do coração, espiritualidade
e identidade contemporânea de Marcelino, para os Pequenos Irmãos de Maria”, junho de
2003. Instituto dos Irmãos Maristas.
150
Andre Lanfrey “Ensaio sobre as origens da espiritualidade marista”, sem data, Instituto
dos Irmãos Maristas.
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“chama a nossa atenção. Depois de longo parágrafo superabundante de ternura, o Pe. Champagnat exortou os seus Irmãos a se darem a Jesus e a Maria. Essas idéias já constituem um como testamento espiritual.” Como o Irmão Paul Sester assinala na introdução a essa Circular, a finalidade é transmitir aos Irmãos os votos de feliz ano-novo, no fervor, zelo e caridade fraterna e corajosa fidelidade.”151 O que surpreende, especialmente na primeira leitura e talvez mais no século 21, na postura de alguém da Nova Zelândia, que tende a ser cético ou encara o assunto com ponto de vista desconstrutivista,152 é interessante a linguagem usada e os sentimentos que
ela expressa. Por exemplo, esta sentença de abertura:
“O nosso coração se compraz em recordar-vos cotidianamente e apresentar-vos todos ao Senhor no santo altar;
mas hoje não podemos resistir à prazerosa satisfação de
expressar-vos os nossos afetuosos sentimentos e mostrarvos a nossa paterna afeição.” 153
Pareceria improvável, nestes nossos dias, que um superior escrevesse com
tanta veia pessoal a algum Irmão ou aos Irmãos em geral; seria ainda mais surpreendente, se o fizesse. Do ponto de vista de um contemporâneo, de imediato se levantariam perguntas como as seguintes: Está Marcelino escrevendo com sinceridade do próprio coração ou está escrevendo no timbre da convenção social de começos do século dezenove? Está ele refletindo certa piedade convencional da sua idade? Está ele convenientemente empregando alguma fórmula desgastada contemporânea? Está ele escrevendo com senso de
obrigação como se podia esperar de um sacerdote? Está ele, consciente ou inconscientemente, motivado para assegurar cooperação? Está ele porventura
projetando inconscientemente a sua própria necessidade de afeto? E está ele
em busca das suas próprias necessidades, quando ele escreve: “Não podemos
resistir à prazerosa satisfação de expressar-vos os nossos afetuosos sentimentos?”
Algumas ou todas essas motivações estariam envolvidas?
151
Ir. Paul Sester, fms Editor; Tradução do Ir. Leoard Voetle fms: Cartas de Marcelino Champagnat Volume I Textos P. 144
152
“Man Alone” é o arquétipo mitológico da Nova Zelândia, de forasteiro na sua própria terra e
sozinho no mundo. O homem sozinho tem sido tema recorrente na curta históiria da Nova Zelândia em arte e literatura, epitomizado em Man Alone por John Mulgan, no decênio de 1930, e
no Smiths Dream por C. K. Stead, no decênio de 1970. http://en.wikipedia.org/wiki/Man_alone
153
Sester, Cartas P.144
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A linguagem não parece adequada à figura antes severa e ascética do Fundador, familiar a muitos de nós, pelo menos facilmente imaginada, em face
das páginas do Irmão João Batista na biografia de Champagnat154. O ponto
de vista do hagiógrafo, na apresentação de um santo, era antes de ordem
didática.155 O Irmão João Batista, escrevendo a vida de Champagnat, desde
as primeiras palavras do prefácio, pode muito bem dar margem a que os modernos, até certo ponto, vejam na obra a criação de uma mitologia. Pessoas
dos séculos vinte e vinte e um facilmente têm o viés mitologizante. Ainda
que possamos respeitar e admirar os santos do século dezenove, os nossos
heróis têm traços mais humanos, até com fraquezas com as quais, mais de
pronto, podemos identificar-nos.156
“O modelo monástico, a que visa o Irmão João Batista,
parece bom exemplo da reinterpretação das nossas origens, sob a pressão de construí-lo sublinhando uma circunstância particular: enraizá-lo no cumprimento da Regra (1851).157
Desse modo, todas essas expressões da citada Circular não parecem refletir o rigorismo sulpiciano da espiritualidade francesa do século dezenove, aprendida no seminário de Santo Ireneu.
154
Reporto-me à Vida de MJB Champagnat de João Batista, edição de 1989, Casa Generalícia, Roma. André Lanfrey, na obra “Ensaio sobre as origens da espiritualidade marista”, escreve: “A Vida é pequeno manual de tal doutrina; esta doutrina toma um tom legislativo e
catequético nos textos fundacionais da Congregação.” P.24
155
Há muitos estudos que atestam e verificam essa intenção do autor. Por exemplo, Cadernos Maristas n.1, junho de 1990 e n.2, junho de 1991. Para o artigo “Ir. J.B. Furet, biógrafo de
Champagnat,” pelo Ir. Paul Sester e também Cadernos Maristas n.6, junho de 1994. “Introdução crítica à vida do Pe. Champagnat,” p.33, pelo Ir. Andre Lanfrey.
156
Em artigo intitulado “Esboço de uma introdução crítica à vida do Pe. Champagnat”, publicado nos Cadernos Maristas N.6, dezembro de 1994, p. 33-60. André Lanfrey, depois de
ampla discussão, chegou a esta conclusão: “e assim parece–me óbvio que a vida do Pe. Champagnat, embora continue com grande valor como fonte fundamental no atinente às origens
do Instituto, pode somente revelar a sua riqueza, se o leitor a considera como de gênero literário hagiográfico, que parte de uma santidade original que se desenvolve ao longo da vida de um indivíduo predestinado. Por outro lado, o leitor deve guardar no espírito o caráter
e a posição do autor. Ele faz que Champagnat perca uma dimensão excessivamente sagrada
e desumanizada; isso também guarda o corpo narrativo, que vai perpetuando a sua memória; evita ser desviada para o mitológico, que desincorpora e o torna intemporal, algo desvirtuado como o contrário de uma visão espiritual sadia.”
157
Ir. André Lanfreyn na obra Ensaio sobre as origens da espiritualidade Marista, cap. 1, p. 165.
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Na Circular “A revolução do coração”, somos assim aconselhados:
“A espiritualidade de Marcelino Champagnat jaz no coração
de uma identidade renovada e impulsionadora para os
seus Pequenos Irmãos. É compreensível que o caminho de
ir a Deus necessite considerar o século XXI, de preferência ao século dezenove. Ainda assim, no seu reduto central, estão as mesmas atitudes e orientações que guiaram
o Fundador na sua jornada espiritual.”158
Isso bem pode ser assim, mas parece que tais expressões de afeto, citadas acima, no nosso século, em algumas culturas pelo menos e em clima
corrente de suspeição, especialmente entre homens, hão de ser empregadas com prudente reserva.
Um olhar ao desenvolvimento da espiritualidade do tempo de Champagnat aos dias atuais pode auxiliar a realçar as distinções. Naturalmente,
esse breve sumário é muito generalizado; ainda assim pode ser útil. O autor do que se segue está considerando a espiritualidade desenvolvida por
são Sulpício e que, no século dezenove, se tornou a espiritualidade francesa, em cotejo com as introvisões e perspectivas desenvolvidas depois do
Concílio Vaticano II. Eis o extrato:
“Um levantamento do contraste entre a compreensão do século dezessete e a do século vinte vai estabelecer o cenário de
exploração mais pormenorizada. No século dezessete, a preocupação dizia respeito ao Verbo encarnado; hoje a preocupação se reporta à Encarnação. A ênfase, então, fixava-se em
Deus entre nós; a ênfase hoje fixa-se em Jesus Cristo humanado.
A resposta do século dezessete ao mistério do Verbo encarnado era a adoração; a atividade própria era a servidão. O resultado era certo rebaixamento do ego em face da exaltação
de Deus. A resposta do século vinte à Encarnação é o abraço
otimista da nossa condição humana comum; a atividade
apropriada é a autoafirmação e o autodesenvolvimento e o
serviço neste mundo. Ainda que esses contrastes sejam a au-
158
Ir. Sean Sammon, em “Uma revolução do coração,” P.20
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rora de uma forma severa, a identificação dos valores básicos em cada posição é exata. Surpreende que o foco em um
e mesmo mistério cristão possa ter tais efeitos opostos. Por um
lado, disso resulta desenfatizar a importância deste mundo
e exaltar o mundo transcendente. Por outro, resulta o legitimar da preocupação com este mundo e o seu cumprimento,
ademais do desenfatizar do transcendente.”159
Desse modo, esperamos que Marcelino esteja dando plena forma a uma contemporânea armação de referência; ainda assim, a linguagem, em particular as
palavras “afetuoso e ternura” que ele emprega, ao dirigir-se aos Irmãos antes que
a Deus, parece tudo menos remoto, distante e rigorista. Em parte, isso pode ser
explicado pelas influências espirituais em que ele se viu imerso nos seus anos de
formação. Em artigo intitulado “Uma Sociedade- mãe da Sociedade de Maria”: os
“Amigos do Cordão” no Seminário de Santo Ireneu (1805-1816)”, o Irmão Andre
Lanfrey , em termos de ousada convicção, argúi os ditos “amigos” como sendo
“uma sociedade secreta, uma entre muitas, esses tais “Amigos do Cordão” eram pelo menos oito homens associados na
fundação dos Maristas; esta espiritualidade experimentada
teria tido neles grande influência. Desse modo, temos o escrito de um texto ligado à “Associação do amor Divino”, que
prescreve: “ele se considere como apresentado por Deus para
reparar as faltas daqueles que não o amam. Como ponto
essencial, o seu zelo deve levá-lo a comunicar o seu ardor
a seus vizinhos, para conquistar para Deus os corações que
vão amá-lo para sempre, e especialmente aqueles da sua
condição, e ainda mais particularmente os jovens eclesiásticos, destinados que são, pelo seu próprio estado, a serem
de Deus por inteiro, para torná-lo conhecido, amado e glorificado por todo o mundo.”160 O texto fala de zelo e ardor,
virtudes que Marcelino certamente apresentava. Ainda assim, tais virtudes não são apenas evidentes; mas ele, além
disso, expressa uma “paternal afeição.”
159
Daniel A. Helminiak, Limbo espiritual do Catolicismo: uma mudança na espiritualidade
encarnada. Espiritualidade hoje, inverno de 1987, Vol. 39, pp. 331-348.
160
Andrey Lanfrey, A Mãe da Sociedade de Maria? Os Amigos do Cordão, no seminário de Santo Ireneu (1805 -1816). Um papel privado apresentado no Curso do Patrimônio, Roma, 2008.
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Talvez experimentemos aqui certa ambiguidade e contradição interna na
Circular. Por um lado, Marcelino escreve “a nossa ternura paternal” e “queridos e muito amados, vocês são continuamente o objeto especial da nossa terna solicitude” e, por outro lado, escreve “cumprir todos os deveres do nosso
estado com fidelidade, trabalhar todos os dias em desapegar o nosso coração
das criaturas para dá-lo a Jesus e a Maria.” Como podemos amar alguém e ser
ao mesmo tempo desapegados ou indiferentes? Como o Irmão Lanfrey assinala, no seu trabalho “Espiritualidade Marista,”161 numa espiritualidade dividida, torna-se difícil reconciliar a percepção de Deus na postura de forte rigorista com a percepção de Deus misericordioso, amoroso, bondoso, sempre propício a perdoar. Parece que Marcelino começou a carta circular com explosão
de afeição entusiasta; mas aí assumiu um modo responsável e didático. Similar dicotomia pode ser extraída da Circular de 1837: apresentando a Regra aos
Irmãos, Marcelino escreve o seguinte. “Não pretendo obrigá-los sob pena de
pecado (menos rigoroso e mais compassivo) a observarem cada artigo em particular; contudo eu lhes digo (mais de diretor) que vão gozar de paz e consolação no seu estado de vida tão somente na proporção em que forem muito
exatos (maior rigor) na observância por inteiro da sua Regra.” 162
Uma referência aqui ao modelo de análise transacional, ideado por Eric Berne163, pode também dar-nos uma introvisão de quão efetiva tenha sido a estratégia de motivação de Marcelino nessa instância. Pelo vocabulário e expressões
da carta, obviamente pode-se classificar um relacionamento interativo de pai e
filho, de acordo com a análise do citado Berne.164 Marcelino usa as palavras “ternura paternal” e prossegue para nos dar uma lista de instruções, precedida pelos termos “anelamos e desejamos”. Os destinatários ou recebedores da transação são “os nossos caríssimos Irmãos religiosos”. Mais adiante, significativamente
eles são designados “filhos de Maria.” Na Circular de 12 de agosto de 1837, nos
161
Ir. André Lanfrey. A espiritualidade marista, da luta pela glória de Deus e honra de Maria, para a alegria e abandono a Deus.”
162
Paul Sester. Cartas, P.187.
163
Análise transacional, comumente chamada TA pelos discípulos, é uma abordagem que integra teoria psicológica e psicoterapia. Integrativa, porque tem os seus elementos psicanalíticos, humanistas e abordagens cognitivas. Ela foi desenvolvida por um psiquiatra americano de nacionalidade canadense Eric Berne, no decênio de 1950. Para maior informação Veja http://en.wikipedia.org/wiki/Transactional_analysis
164
Em qualquer tempo, uma pessoa experimenta e manifesta a sua personalidade por mediação de procedimentos mesclados, pensamentos e sentimentos. Tipicamente, de acordo
com TA, há três estados de ego que a pessoa usa consistentemente: pai, adulto, criança.
http://en.wikipedia.org/wiki/Transactional_analysis
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deparamos com “meus queridos filhos em Jesus e Maria.”165 O “modelo transacional” exigiria que não houvesse “estado de ego universal”; portanto não podemos com exatidão predizer a resposta de um indivíduo. Ademais, estamos
considerando aqui a palavra escrita, quando o “modelo transacional” quase sempre se reporta a intercâmbios falados. Mesmo assim, neste caso, podemos categorizar as intenções de Marcelino como de educação, alimento e estruturação,
pelo que estamos perante qualidades positivas de uma “transação paterna”. Ele
identifica-se com o ledor “os deveres do nosso estado” e o “desapego do coração.” Se o ledor da Circular responde com ego na condição de criança e filho e
cooperativamente, aí a transação poderia ser considerada recíproca ou complementar. Se, porém, o ledor responde como de pai para pai, a transação pode ser
considerada “transação cruzada”, caso em que é menos provável que tenha sucesso. O ledor pode pensar: “Por que está a instruir-me como se eu fosse criança”? Isso implicaria resistência, nota negativa; ou pelo contrário: “Bem, você é o
chefe”. Aí haveria submissão, também traço negativo.
Assim, procuremos, de preferência, descobrir a sua própria personalidade
e motivação, debaixo ou no meio do condicionamento religioso e cultural.
4. “TERNA AFEIÇÃO”
A expressão “terna afeição” ocorre mais adiante na Circular e como exemplo. No caminho de tentar explorar a psicologia e a espiritualidade de Marcelino, eu desejaria olhar mais de perto esta expressão, como tentativa de compreender uma atitude e orentação do passado, mas que me parece relevante
no século XXI. Escolho esta expressão em particular, porquanto é empregada
no contexto do “ministério;” este, como se notou acima, é conceito chave nas
resoluções do nosso Capítulo Provincial. Marcelino escreve o seguinte:
“Desejamos vivamente que, a exemplo de Jesus, nosso divino modelo, vocês tenham terna afeição aos meninos. Com
santo zelo, distribuam-lhes o pão espiritual da religião. Façam
o máximo esforço em formá-los na piedade, gravando profundamente nos seus tenros corações os sentimentos de religião que nunca mais se apaguem.»
165
Paul Sester, Cartas, P.248.
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TERNA AFEIÇÃO
Que é que Marcelino deseja mesmo transmitir com a expressão “terna
afeição”? Considere-se o lastro lingüístico e semântico da expressão, com as
suas implicações e matizes psicológicos e emocionais, com as suas ênfases
históricas e cullturais, bem como a relevância e as associações espirituais,
morais e teológicas. O exemplo da “análise transacional,” citada acima, é
possivelmente relevante aqui.
Alguém pode igualmente perguntar se é possível que uma pessoa regule os
sentimentos ou os desperte em outrem. Marcelino escreve “desejamos”. Usa a
primeira pessoa do plural, como para distanciar-se da forma singular, mais pessoal. Usa o sinônimo “anelamos”. A repetição visa enfatizar a idéia. Passa a usar
“que vocês tenham”, no modo subjuntivo, para indicar menos afirmação. Em
suma, parece haver certo acúmulo de lisonja, até porque chega a invocar o
exemplo de “Jesus, nosso divino modelo”, para robustecer a expressão. Uma
pessoa sente, por vezes, o que outra pessoa sente, e isto pode ser considerado o derradeiro bastião da integridade e da individualidade. De pai para pai,
no modelo da análise transacional, ou um intercâmbio pode realizar-se. “Sim,
mas como eu o vejo”, no modelo de adulto para com o pai.
Ao mesmo tempo, deve ser admitido que hoje há várias escolas de pensamento, acerca de como ocorrem as respostas. O debate neste ponto está
em marcha, mas representa grande distinção entre o que se chama teoria
cognitiva das emoções e teoria não cognitiva das emoções; teorias não cognitivas dizem respeito a algum aspecto das emoções, tais como respostas somáticas, para ficar no essencial.
Presumivelmente, com base em “perspectiva cognitiva” podemos interpretar o uso da expressão “terna afeição” para invocar uma atitude preparada por
ato da vontade, antes que tentativa de despertar sentimento espontâneo166.
Os Irmãos serão inspirados e motivados a “fazer todo o esforço” pelo seu
assentimento intelectual da vontade, com a energia emocional para agir com
tal assentimento ou com base nele. Simultaneamente, ainda que os Irmãos
166
Para maior informação, veja http://en.wikipedia.org/wiki/Emotion#Defining_Emotion
Note mais. Stanford Encyclopedia of Philosophy: “Muitas emoções estão especificadas em
termos de proposições. Alguém não pode estar de mal com outrem, a menos de crer que a
pessoa é culpada de alguma ofensa; ninguém pode ser invejoso, a menos de crer que outrem tenha algo de bom na sua posse. Proponentes de cognotivismo universalizam este aspecto de certas emoções, e mantêm isso para ter uma emoção; alguém deve sempre ter algum tipo de atitude dirigida à proposição.” http://plato.stanford.edu/entries/emotion/#1
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possam estar bem intencionados, há a realidade do “subconsciente” para ser
levada em conta. Patricia Greenspan, que foi a primeira a chamar a atenção
para os problemas das ambivalências emocionais, observa: “as emoções jogam papel importante, tanto para determinar quanto para solapar o pensamento racional.” 167
Como o Irmão Avitus ilustra nos “Anais do Instituto”, nem todos os alunos
que os Irmãos educavam inspiravam a resposta espontânea de “terna afeição.”168 A respeito da inspiração e da motivação, um Irmão que trabalhasse
com orientação fulcrada na obrigação agiria com submissão, possivelmente
para agradar ao superior. Um Irmão que incorporasse o desejo de Marcelino
poderia responder e agir com convicção; um Irmão que respondesse com base em princípio, sentindo-o em profundidade, estaria apaixonadamente motivado, mesmo que Marcelino ou outrem lhe houvesse proposto a idéia.
O ambiente contextual para essa expressão é obviamente religioso e espiritual. Seguindo esta expressão em tela, Marcelino escreveu: “Distribuam-lhes
o pão espiritual com santo zelo.” Previamente, em carta aos Irmãos Antoine
e Gonzague, em Millery, Rhône, em 4 de fevereiro de 1831, Marcelino escrevera: “O Salvador do mundo disse aos seus discípulos que deixassem que as
crianças se aproximassem da sua divina pessoa. Assim, digam-lhes que elas
devem sentir-se felizes de serem tão caras a Jesus Cristo como elas são. Sim,
este Deus de bondade as ama a ponto de deliciar-se em estar com elas; elas
têm apenas que abrir os corações para que Jesus e Maria as inundem.” 151 Sem
dúvida, tal conselho irrompe de tanto rezar e meditar tais textos do evangelho, como lemos em Lucas 9,47: “Jesus, percebendo o cogitar dos seus corações, tomou uma criança e a dolocou ao seu lado”; ou ainda em Lucas 9,48:
“E falou-lhes: todo aquele que recebe esta criança no meu nome a mim recebe; e todo aquele que me recebe recebe a quem me enviou; quem for o menor de todos vós vai ser grande”.
167
Patricia Greenspan, Stanford Encyclopedia of Philosophy .” http://plato.stanford.edu/entries/emotion/#1
168
Alguns exemplos, entre muitos, ocorrem em cenários como este do Ir. Avitus. “No dia seguinte, o Pe. Champagnat visitou as aulas; encontrou os alunos em muita conversa, indisciplinados e insolentes. Um deles, quando viu o Pe. Champagnat, gritou: Atenção, olhe o grande Padre. Os alunos eram preguiçosos, viciosos, faltos de piedade e inteligência. Perturbações provêm igualmente de pessoas que, desviadas por alguns voltairianos, corriam para a
escola, para puxar conversa com os pais do internos e incitavam os internos a se rebelarem.
Uma madrasta, que havia batido seriamente no filho, acusou os professores de tê-lo feito.
169
Sester: Cartas de Marcelino Champagnat Vol 1. P.58
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Dessa maneira, Marcelino não está meramente dando conselhos aos outros.
Onde quer que ele se encontre, expressa o seu amor pelos pequenos. Em carta ao Irmão Barthélemy, escreveu: “Diga aos seus alunos que Jesus e Maria
muito os querem a todos: aqueles que são bons se parecem a Jesus Cristo, que
é infinitamente bom; aqueles que ainda não são bons, para que se tornem bons.
Diga-lhes que a Santíssima Virgem os ama, porque ela é a mãe de todos os alunos das nossas escolas. Diga-lhes que eu os amo muito também, e que não rezo a santa missa sem pensar em todos vocês e nos seus queridos alunos.”170
As duas citações acima comportam impressionante similaridade com uma
passagem do testamento espiritual de Dom Augustin de Lestrange: “A minha
mais terna afeição aos nossos caros Irmãos leigos e àqueles da Ordem Terceira a quem nunca vou esquecer. Digam aos nossos queridos pequenos quanto tenho a peito a salvação deles e como estou pronto a fazer tudo quanto for
necessário para salvá-los.” 171 O autor estabelece a influência tanto de jesuítas como de trapistas sobre as muitas novas congregações fundadas no começo do século dezenove. A linguagem e os sentimentos expressos por Marcelino comportam estreita semelhança com os dizeres de Dom Augustin e sugerem a fonte da qual derivaram. Ainda assim, isso não indica necessariamente que tais sentimentos não sejam sinceros. Além disso, pode-se notar que
o altruísmo expresso aqui não parece buscar resposta de reprocidade; mas,
pelo contrário, visa a que “a graça do amor de Deus se imprima solidamente
nos seus tenros corações”.172
Da mesma forma, em carta ao Irmão Euthyme, Marcelino afirma: “Recorde
também quão importante é o seu começo de aula. Compete a você exercitar na religião todos os meninos que educa; você pode tanto abrir-lhes como fechar-lhes o céu. Por isso, meu caro amigo, procure edificá-los; reze
para que a graça do amor de Deus se imprima solidamente nos seus tenros
corações.“ 173
170
Sester: Cartas, p.48, 21st January 1830.
Ir. André Lanfrey. A carta de Aiguebelle; a primeira Sociedade de Maria e o Modelo
Trapista.
172
Stanford Encyclopedia of Philosophy. Neste tópico: “Muitas emoções, como o amor, necessariamente envolvem um fim, ou algo particular a que elas se dirigem. Outras, como a
tristeza, não demandam isso. Po outro lado, diversos aspectos do ente amado podem motivar o foco da atenção; esforços para achar o objeto proposto para o amor não têm sido convincentes. (Kraut 1986, Rorty 1988).” http://plato.stanford.edu/entries/emotion/#1
173
Sester: Cartas, P. 102, 19 de março de 1837.
171
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No mesmo sentido, escreveu o Irmão Aidant: “Com muita frequência, eu
o ouvi falar nas suas conferências e aconselhar os Irmãos, quando vinham
a reunir-se na Casa Mãe nas férias, acerca dos pontos sólidos e práticos em
que deveriam orientar os alunos.” 174
Este amor ou terna afeição às crianças tinha motivação espiritual e mesmo espiritualizada: um evangelho imperativo e que devia até ser “imperativo do nosso carisma.” Marcelino instrui o Irmão Euthyme a “rezar para que a graça do amor
de Deus se imprima nos corações”; por certo é graça não merecida, para o fim
da regeneração ou da santificação humana.”175 Mas a graça constrói sobre a natureza176. A mim pareceria que Marcelino emprega essa expressão não apenas
em termos de obrigação e de convicção, mas da sua própria compaixão cordialmente sentida. Tal compaixão inspira a energia e zelo que levam à ação e ao
próprio desejo de motivar os Irmãos a uma semelhante “imitação de Cristo”.
Neste ponto, corremos o risco de enveredarmos por um estado sonambúlico
e catatônico por tal tipo de santidade, perfeição e piedade. Nos dias que correm,
somos confrontados no cotidiano por lemas de publicidade, sem excluir as conhecidas e reiteradas máximas do Fundador, como esta: “Não posso ver uma
criança sem querer logo ensinar-lhe o catecismo, conseguir que ela considere
quanto Jesus Cristo a tem amado.” De certa forma, há o perigo e até a probabilidade de que, a despeito de quão apto e adequado possa ser o aforisma, isso também deslize para a categoria da frase publicitária e então perde o seu impacto.
Assim, há necessidade de resgatar da trivialidade tais pensamentos fundacionais
e inspirações. Um meio de conseguir isso seria contemplar as prováveis fontes
de motivação que contribuíram para respostas de tanta energia de Marcelino. Ainda assim, tal prontidão em responder aos convites do Evangelho, como nas citações de são Lucas, examinadas acima, para que não caiam no vazio, sugiro que
há diversos fatos que contribuem para ajudar-nos nesta conquista: entender a generosa resposta evangélica de Marcelino, empatizar e até mesmo emular com ela.
174
Ir. Aidant Summ 193 Cadernos Maristas N.13, julho de 19998, p.11.
Merriam-Webster
176
Richard P. McBrien. “Para o Aquinate, a graça constrói sobre a natureza. Ela não substitui a
natureza, muito menos a destrói. A graça santifica, eleva e renova a natureza. A graça sempre
trabalha por mediação da natureza. Não somos apenas templos do Espírito Santo, mas instrumentos dele também. Enquanto Deus é a primeira causa de tudo quanto existe, nós somos causas segundas, intrumentos; colaborando com Deus na extensão do seu reino, reino de justiça,
amor e paz.” Reporter católico Nacional, 11 de fevereiro de 2000. http://findarticles.com/p/
articles/mi_m1141/is_15_36/ai_59607730
175
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Na tradução oficial de língua inglesa da carta de Marcelino, “tendre affection” foi vertido por “deep affection”. Parece que “deep” não comporta
bem o adjetivo francês “tendre”; o termo possível “tender” foi descartado.
As palavras no dicionário têm de atender a todos, em todas as épocas. O dicionário francês-inglês de Harrop dá ao termo “tender” estes significados:
terno, brando, delicado, afetuoso e outros. Outro dicionário inglês177 dá muitos usos e significados da palavra inglesa “tender”, incluindo os seguintes:
mostrar cuidado, consideração, solicitude. Um destes sequestraria melhor o
sentido francês. Pode-se notar que a expressão “tendre affection”, no século atual, para exprimir um relacionamento de adulto com criança, se ambos
do gênero masculino, tende a sugerir malícia. As últimas gerações hão de
ter perdido em demasia a inocência, quiçá fruto da excessiva liberdade e
descontração da mídia. Presume-se que por isso o tradutor apelou para o
adjetivo “deep” em vez de “tender”. Geralmente, no idioma inglês, cobre o
intelecto, como “deep in thought”, profundo em pensamento. O mesmo tradutor no período francês “je suis avec affection la plus tendre votre tout dévoué confrère”, ousa empregar o adjetivo em discussão: “I am, with the most
tender affection, your very devoted confrère”. Outra expressão francesa de
Colin a Francisco “l’assurance de la tendre affection” passou ao inglês como “the assurance of the tender affection” (28-8-1836 OS 67).
É tempo de apresentar uma definição também do termo “affection”. O dicionário Merriam-Webster’s assim define: “sentimento moderado de emoção, terno apego.” No contexto da nossa discussão, isso não sugere sentimentalidade, que é excesso de demonstração de afeição. Nos “Avisos, Lições e Sentenças”, o Irmão João Batista apresenta Marcelino dando conselhos aos Irmãos: “Há diversos meios de estragar uma criança: você pode estragar-lhe o espírito com elogio demasiado; pode estragar-lhe o coração,
dando-lhe demasiada atenção e mostrando-lhe excessiva afeição.” 178 Todas
as coisas demandam moderação.
Sabemos que Marcelino, longe de ser distante e sem afeto, era capaz de
grande entusiasmo, sentimento que testificam diversos Irmãos, como Syl-
177
Merriam-Webster
“Avisos, Lições, Sentenças” foi um trabalho publicado em 1868 para a instrução dos Irmãos. Foi escrito pelo Ir. João Batista. A nova versão foi traduzida pelo Ir. Leonard Voegtle,
com o seguinte título “Na escuta das palavras do Pai: opiniões, conferências, ditos e instruções de Marcelino Champagnat.”
178
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vestre, Camille e Callinique. Este escreveu: “Nada pode descrever a bondade do sacerdote no confessionário. Na minha confissão, abraçou-me, como
era o seu costume, e apertou-me afetuosamente contra o seu coração.” 179
Marcelino se vale da expressão “tendre affection” apenas três vezes em todas as cartas e circulares que se preservaram. Na primeira vez, foi em carta ao
Pe. Francisco Mazelier (junho de 1835 PS60), onda consta: “Veuillez croire,
Monsieur, que toute la société vous porte la plus tendre affection et la plus
vive gratitude pour tout ce que vous avez la bonté de faire en sa faveur.” A segunda vez, foi em carta de 1835 ao Irmão Francisco. “Vous avez mon adresse,
si vous avez à m’écrire. Recevez tous l’assurance de la tendre affection avec
laquelle, mes chers ff.” A terceira aparece em outras duas cartas ao Pe. Mazelier em 1837; ele escreve “votre tendresse e votre tendresse paternelle.”
Há apenas oito outros empregos da palavra “tendre” nas suas cartas, mas nenhuma vez nas circulares. A palavra em tela é costumeiramente empregada em
expressões como “notre tendre mère.” Em carta ao Irmão Barthélemy, em 1830,
consta esta expressão: “ces tendres enfants”. Neste caso, a tradução inglesa
verteu “tendre” por “impressionable.”180 Se Marcelino quisesse significar impressionable, teria usado esta palavra, idêntica nos dois idiomas.
Além disso, a palavra “tender” poucas vezes se usa nas cartas passivas dirigidas a Marcelino; uma vez pelo Pe. Rigard, SJ: “sentiments tendres”. Duas
vezes pelo Pe. Courveille: “Mère si tendre” e reiteradamente “tendre affection”. Isso supõe que tais expressões eram empregadas pelos Maristas da
primeira hora fundacional. Ainda assim, tal parcimônia de exemplos parece indicar que a expressão não era convencional ou de uso comum, ao passo que outras saudações e cumprimentos eram incluídos na linguagem polida, para exprimir bondoso respeito e entusiasmo em sentimentos, como
estes: “Je vous laisse dans les bras de Jésus et de Marie;” ou “j’ai l’honneur
d’être avec respect votre dévoué serviteur.”181
Uma conclusão pode-se extrair: Marcelino, no uso dessa expressão, não
estava exprimindo meramente algum piedoso clichê, senão manifestando
um grau pessoal de sentimento e simpatia de apropriada sinceridade. Marcelino não está pedindo para os outros o que ele próprio não possui. No
179
Ir. Leonard Voegtle, fms, Postulador geral. Testemunhas para a beatificação de Marcelino Champagnat. p.16, Instituto dos Irmãos Maristas.
180
Paul Sester. Cartas, p.48
181
De uma carta escrita de Belley pelo Pe. Colin a Champagnat e confrades, em 9 de agosto de 1831.
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mesmo tempo, é interessante notar que ele se vale da expressão “terna afeição” na Circular de janeiro de 1836, excluindo, naturalmente, a “a última
vontade e testamento,” de que esta Circular constitui a antecipação, no nível pessoal do sentimento que Marcelino demonstra; aliás, sentimento de
otimismo e esperança.182
Além do mais, pode notar-se que nas circulares datadas depois de janeiro de 1836, embora Marcelino expresse com frequência a sua afeição pelos
Irmãos, não menciona especificamente as crianças e que a Congregação está crescendo em número: as circulares tornam-se preocupadas com as crescentes matérias administrativas. Ainda assim, no “testamento espiritual” consta o seguinte: ”Vocês têm a incumbência de anjos da guarda das crianças que
lhes são confiadas. Demonstrai para com estes puros espíritos especial homenagem de amor, respeito e confiança.”183
O problema com esse “imperativo carismático” para muitos de nós é que,
enquanto temos a responsabilidade de ser guardas, estamos longe de ser anjos. Marcelino estava muito consciente deste fato; segundo o Irmão João Batista, no que se reporta aos conselhos aos jovens Irmãos, no livro “Avisos,
lições e sentenças”. “Um santo é pessoa fraca e inclinada ao pecado como
nós. Muitas pessoas imaginam que os santos não partilham conosco a queda de Adão, que a virtude lhes é natural, e que praticam o bem sem esforço e sem sofrimento. Isso é de todo errado. Os santos são pessoas como nós,
no sentido de que têm a natureza inclinada ao mal como a nossa, eles encontram em si as sementes de todos os vícios, de todas as paixões, e eles
têm de lutar contra os mesmos inimigos que nós.” 184
Marcelino, embora parecendo severo, foi muito prudente ao proteger os
Irmãos, quando a sua Regra de 1837 insiste nos seguintes termos:
182
Na sua obra “Ensaio sobre as origens da espiritualidade marista”, Lanfrey escreve: “de todas as circulares, aquela de 19 de janeiro de 1836 atrai particularmente a nossa atenção. Depois de longo parágrafo de transbordante ternura, Champagnat exortava os seus Irmãos a se
entregarem a Jesus e a Maria. Esboçou para eles verdadeiro programa de santidade: humildade na obediência, caridade da parte dos superiores; para todos, zelo pela perfeição pela
exata observância da Regra; finalmnente uma recordação da glória celeste que espera aqueles que perseveram até o fim.”
183
Veja Constituições e Estatutos dos Irmãos Maristas. P.143 Instituto dos Irmãos Maristas.
184
“Avisos, Lições e sentenças“ (versão inglesa) P. 173
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“Um Irmão nunca tome um menino de parte, por nenhuma razão; se necessário, faça-o sempre na presença de outro Irmão ou de quatro outros meninos, pelo menos. Um Irmão nunca se permita nenhuma familiaridade com eles,
como tomá-los pela mão ou algo similar. Todo o Irmão que
testemunhar outro Irmão com um menino ou com outro Irmão é obrigado a informar o Superior quanto antes.”185
Comentários contemporâneos acerca do procedimento moral do tempo
sugerem que isso constitui comportamento inadequado e não desconhecido em nível sexual.
O primeiro prospecto escrito de 1824 fez a seguinte observação:
“A instrução cristã hoje é inteiramente negligenciada nos
distritos camponeses, ou substituída por instrução anticristã. No inverno, homens sem moral e sem religião, pelo seu comportamento imoral, pelas suas conversas ímpias
e livros corruptos, disseminam a irreligião e sentimentos
antimonarquistas pela região camponesa, onde os policiais são raros.”
Uma avaliação um pouco mais reservada foi feita por uma testemunha
secular. O Irmão Avitus registra que certo senhor de nome Fourcroy, supervisor de escolas, assim opina.
“Depois de misturar-me com o povo e visitar os Departamentos, fiquei convencido de que a grande maioria das
pessoas necessita de religião, uma forma de adoração e
de sacerdotes. Crer, como certos filósofos modernos fazem,
que a propaganda extensiva pode destruir os preconceitos
religiosos é um erro em que eu também caí sob a sua influência. A guerra da Vendeia deu uma bela lição ao governo moderno, lição que as pretensões da filosofia desejaria em vão destruir. Agora é o tempo de opor-se a esta
185
A regra de 1837 foi a primeira regra; foi outorga de Marcelino aos Irmãos. Antes disso havia o desenvolvimento do prospecto e do status.
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inclinação nacional. Os pais não enviam os filhos às escolas onde os mestres não dão instrução religiosa. Eles
reivindicam isso daqueles que são pagos para que ensinem
religião. Desejam encontrar neles melhor ensino, melhor
caráter moral e princípios religiosos nos quais eles firmemente crêem.”186
Os escritos dos romancistas contemporâneos, como Sthendal (1783-1842)
na obra “O vermelho e o negro”187, e Honoré Balzac (1799–1850) na obra
“Louis Lambert” querem sugerir que eles e as personagens dos seus romances, contemporâneos de Marcelino, sublinham uma atitude menos que meramente clínica a respeito dos Mandamentos. Nem surpreende que Marcelino organizasse um auto de fé sobre certa literatura em que ele “visa livrar a
paróquia dos maus livros, largamente disseminados nas suas cercanias,”188
porque sabia que certa literatura obscena estava em circulação.
A respeito da expressada afeição de Marcelino para com as crianças, temos também a evidência dos contemporâneos: eles, como admiradores e
seguidores de Marcelino, continuam testemunhas merecedoras de fé. No livro “Guia das Escolas”, a expressão “terna afeição” ocorre apenas uma vez,
no prefácio da obra, pelo Irmão Francisco nestes termos: “O amor de Deus
que enchia o seu coração, e a “terna afeição” que ele tinha pelas crianças,
revelou-lhe todas as necessidades delas e os meios de lhas minorar, como
também o segredo de lhes conquistar a confiança, para lograr que estimem
a virtude, inspirando-lhes a piedade e desenvolvendo-lhes todas as potências da alma. Esse talento que ele desconhecia, mas que possuía em alto
grau, e o ardente zelo que o animava em favor da santificação das crianças,
e que se empenhava em infundir aos seus Irmãos, nas instruções cotidianas
sobre o tema, são os aspectos que nos temos esforçado para colocar aqui
para vocês.” 189
186
Esta citação aparece nos “Anais” do Ir. Avitus, n.64. Os anais são memórias recolhidas pelo Ir. Avitus, redigidas de 1880 em diante. Ele foi admitido no noviciado em 9-3-1838; conheceu pessoalmente Champagnat.
187
O principal protagonista desta história, Julien Sorel, determinou tornar-se sacerdote com
motivação de pouco valor; não demorou em ter casos amorosos.
188
Ir. João Batista, a Vida do Pe. Champagnat, P. 53
189
Ir. João Batista: O Guia das Escolas, manual escrito para os professores e publicado em 1856.
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Mesmo que estejamos convictos de que Marcelino possuía “terna afeição” apropriada para com os jovens, perduram algumas dificuldades contemporâneas com esta expressão lingüística quanto à sua adequação.
Na Circular “A revolução do coração”, com o subtítulo “Elementos que
formam hoje a espiritualidade da Encarnação”, lemos que “a paixão assinalava o relacionamento de Champagnat com o Senhor Jesus. Nos nossos dias,
suspiramos por similar experiência de Deus, mesmo compreendendo que
ela pode diferir daquela do Fundador.” 190 O Irmão Sean passa a ilustrar que
o conceito de paixão é ambíguo, isto é, quiçá uma idéia crucial para nós entendermos, quando nos movemos do domínio do dever e da convicção para ações inspiradas pela paixão. Paga a pena notar aqui a nossa definição
de paixão do dicionário, dada acima; comporta, entre outras expressões, a
própria “ardente afeição”, ao passo que a reiterada “terna afeição” de Marcelino bem pode fazer a distinção.
Em anos recentes, todos nós temos sofrido, por causa de uma publicidade
adversa e um possível abaixamento da autoestima, em face do escândalo no
abuso sexual de menores. Pareceria que, na França do século dezenove, a expressão “terna afeição” teria sido saudada com aprovação e vista com louvor.
Marcelino sente-se livre de usá-la em diversas ocasiões. Tal expressão, no clima hodierno, pode despertar temor, suspeição e mal-entendido, especialmente em certas sociedades menos urbanizadas, onde as transgressões foram
muito noticiadas. A possibilidade é que muitos, invertendo a norma da lei, reputem alguém culpado, a menos que se prove a sua inocência.191 Não implica que tenhamos feito tal transgressão; mas ocorre que temos experiência da
ambigüidade da paixão e nos acostumamos a não confiar.192 Porque a luta permanece forte e equilibrada diante do apetite da natureza, a sexualidade se torna particular e pessoal, com orientação do diretor espiritual ou sem ela, pelo
190
Ir. Sean Sammon: A revolução do coração, P.50
Por exemplo, na Nova Zelândia, como em outros países, foi difícil recrutar professores
homens para as escolas primárias. Uma razão dada pelos possíveis candidatos era a muito
difundida suspeição de procedimento contra eles na função.
192
Culpa coletiva, ou culpa por associação: é a controvertida ideia de que o grupo humano carrega tal culpa e não os membros faltosos da corporação; o indivíduo tem de portar
a culpa, mesmo nada tendo feito pessoalmente.
Responsabilidade coletiva é o conceito ou doutrina, segundo a qual o indivíduo fica responsável pelas ações dos outros, tolerando ou não levando em conta ou dando asilo, sem
ativamente colaborar em tais ações.
191
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que se tende a acometer esta batalha no privativo do coração.193 A Circular sobre a “fidelidade,” escrita pelo Irmão Basílio, versa essa ideia, entre outras,
com alguma extensão.194 Com sugestões de franqueza nesta arena, o Irmão
Sean escreve: “Aceitar o fato de que não somos obra acabada” pode enchernos de sentimentos de vergonha e embaraço e tirar-nos a energia de que necessitamos para permanecer ativos no apostolado. O Irmão Sean assinala: “Ligando a sexualidade com a paixão, em uma vida de oração, não teria sido
convencional nos dias de Marcelino. A sexualidade sequestra a nossa necessidade básica de nos ligarmos a outra pessoa, física e espiritualmente, para
abraçar outros.” Percebemos, afinal, que a sexualidade comporta mais de uma
face. Enquanto nos dá gosto para viver, contribui para o romance num relacionamento e é fonte de coragem não ordinária e de heróica generosidade. A
mesma energia pode também ser autodestrutiva e levar-nos a comportamento desumanizador. Nessas ocasiões, perdemos o nosso senso de equilíbrio; a
sexualidade contribui para nos desviar do caminho, em corrida fora de controle.195 Segue-se o conselho para termos um senso de disciplina. Capacidade de autoavaliação honesta, habilidade em tolerar a solidão e senso de humor. A maioria dos que foram exercitados em ascetismo são felizes em manter-se com procedimento dentro dos limites. Esta ameaça de mal-entendido
circunstancial adiciona temor à equação.
Um estudo intitulado “A vida afetiva de Marcelino Champagnat, celibato,
amor e amizade”,196 foi publicado nos “Cadernos Maristas,” depois de estudar
as cartas e outros escritos de Marcelino, o autor chegou à seguinte conslusão:
“O celibato, como o vivido por Champagnat, estava fortemente conectado com o seu amor por todos os homens e
com a sua intimidade com cada pessoa em particular. Era
homem de modos não sofisticados, capaz de cultivar profundas amizades e cândidos relacionamentos com quantos lhe estavam próximos. Do texto de muitas das suas cartas pode-se concluir o profundo amor e amizade que Marceli193
Por exemplo, o Ir. João Batista escreve nas Meditações das grandes verdades AFM 5201.21
Na meditação 57, ‘acerca da impureza, ele reconhece : « A fidelidade nas tentações: se você
tem frequentes tentações, não estranhe. Os santos também as tiveram; a fidelidade a resistir
a elas tornou-os santos.
194
Ir. Basilio Rueda Guzmán, Circular sobre a Fidelldade. Instituto dos Irmãos Maristas.
195
Ir. Sean Sammon, A Revolução do coração, P. 50
196
A vida afetiva do Pe. Champagnat; Autor não sabido, Cadernos Maristas, dezembro de
1994, nº 6. P.71
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no tinha pelos seus correspondentes, onde se mostra a atividade do seu coração. O segredo dos seus esforços na formação e do seu sistema de pedagogia se alimenta no amor,
numa combinação de ternura e insistência paternal. A
sua ação apostólica se sumaria nas palavras compaixão
e amor em relação a todos os homens.”
O mesmo autor respiga nas cartas de Marcelino as recomendações de perseverança no celibato e castidade. “Maria vai guardá-lo casto como um anjo.”179 Entre outros meios, ele sugere para cultivar a pureza e a castidade o
seguinte: Pensem na paixão e morte de Nosso senhor Jesus Cristo; sempre
estejam ocupados e entusiastas no seu ensino; obedeçam ao superior e sigam o seu conselho; observem a Regra com fidelidade; pratiquem a presença de Deus e tenham grande devoção a Maria.”198
A respeito da última parte da citação o Irmão Seán comenta: “Aqui, no século vinte e um, como Instituto, nós necessitamos de apreciação renovada
de Maria, no cumprimento dos ensinos do Concílio Vaticano II; ao mesmo
tempo sejamos respeitosos com as ricas e variadas tradições tão evidentes
entre nós. Como óbvio e pressuposto, Maria, mulher de coragem e de fortaleza, que foi tão importante para Marcelino, cumpre tenha lugar central na
nossa espiritualidade, nas pegadas do que ela foi para a vida dele.” 199
5. MANIFESTAÇÃO DAS TESTEMUNHAS
Como foi previamente indicado, a credibilidade das atitudes e práticas
de Marcelino neste positivo cuidado com as crianças, a cujo serviço fomos
chamados, é apoiado pela manifestação dos seus contemporâneos, que são
as suas testemunhas. Em perspectiva histórica, tais testemunhas são convenientemente categorizadas em maiores, menores e indretas.
O intento hagiográfico do Irmão João Batista é reconhecido. “O leitor deve guardar no espírito o caráter e posição do autor, que exibe a sua espiritualidade, cultura e opção ideológica no texto, o que não sempre é do
197
Sester, Cartas 259
A vida afetiva de M. Champagnat, P.72
199
Ir. Sean Sammon: A Revolução do coração, P. 55
198
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Fundador.”200 Nos seus muitos escritos com referência às atitudes de Marcelino com as crianças e relativas às suas expectativas quanto aos seus Irmãos, há conformidade com a manifestação do material de fonte primária
das suas cartas, citadas acima. “Embora o Padre Champagnat amasse todas
as crianças, amava particularmente as mais novas, que ele chamava pequenos anjos, em razão da sua inocência.”201 Simultaneamente, Marcelino se
exibe como homem prático, ao dar prudentes conselhos com respeito à disciplina na aula. “Sejam antes pais que professores; os alunos vão respeitálos e obedecer-lhes sem dificuldade. O espírito de uma escola de Irmãos deve ser espírito de família.” No livro “Avisos, Lições e Sentenças” consta um
capítulo todo sobre o respeito que devemos à criança.
Uma segunda testemunha, com similar escopo biográfico e com certo estilo extravagante, foi o Irmão Silvestre. Ele comenta como segue, com espírito semelhante, a estada no seminário de Marcelino.
“Depois dos seus parentes, o seu principal interesse eram as
crianças. Ele as reunia para ensinar-lhes o catecismo e como rezar. As suas palavras sábias e paternais se destinavam
principalmente a inspirar-lhes o horror ao pecado e inculcar-lhes o amor ao Menino Jesus. Ele era amado, respeitado e reverenciado por todos. O simples pensar nele, afirmou
um deles, era bastante para impeder-me de ofender a Deus.”202
“A preocupação particular que tinha com as crianças e o
amor que lhes dedicava, combinados com o seu ar de bondade e raro talento de ensinar as verdades básicas da
doutrina cristã davam às crianças por ele catequizadas
o forte desejo de assistir às aulas de catecismo.” 203
O Irmão Avitus, nos “Anais”, cita como de Champagnat o seguinte: “Se
soubéssemos o preço de uma alma, se soubéssemos quanto Jesus ama as
crianças e com que ardor ele deseja a sua salvação, longe de achar penoso
o trabalho escolar e nos queixarmos das dificuldades do nosso estado, es-
200
Ir. Andre Lanfrey: “Introdução crítica à vida do Pe. Champagnat, ” Cadernos Maristas, No 6,
dezembro de 1994 P.60
201
Ir. João Batista, A vida do Pe. Champagnat, P.523
202
Ir. Silvestre, “Pequena Vida do Pe. Champagnat” .
203
Ibid
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taríamos sempre prontos a sacrificar a nossa vida para dar a essas tenras
crianças o benefício da educação cristã.” 204
As testemunhas menores são aquelas em cujos depoimentos o Fundador
é o foco central. Elas são ditas “menores” por contraste com aquelas que depõem mais copiosamente, como nos escritos dos Irmãos João Batista, Silvestre e Avitus. Muitos desses testemunhos foram apanhados, em especial
como documento das testemunhas em favor da beatificação; basta dar um
exemplo, ainda que haja vasta e rica seleção. A sua afeição aos jovens não
era mero sentimento, mas o resultado prático, como o testemunho de Marie-Françoise Bache evidencia: “Eu tenho apenas uma lembrança apagada
de tê-lo visto, quando eu era criança; mas ouvi a minha mãe falar dele muitas vezes; ela ajudava-o nos seus bons trabalhos. Diversas vezes ela extraiu
os piolhos das pobres crianças que ele educava e ensinava; aliás, alguns
desses meninos se fizeram Irmãos Maristas”.
6. A HISTÓRIA DE MARCELINO
O conhecimento da sua história pode muito bem ser uma sugestão para
despertar o nosso entusiasmo. O Irmão Sean escreve: “Toda a ordem religiosa digna do nome tem obrigação de oferecer aos seus membros um modo particular de servir ao Senhor, aproximação única à autotranscendência;
eis por que as histórias de Marcelino e dos nossos primeiros Irmãos são tão
importantes.” 205
Assim, cumpre perguntar quais fatores contribuíram para forjar Marcelino naquela pessoa que ele veio a ser e como isso nos vai dar a compreensão e introvisão com as quais as nossas próprias vidas, com a assistência dele, se tornem mais motivadas e efetivas no ministério que nos cabe? Que fatores ambientais alimentaram a generosa disposição que o encorajou a aceitar o convite de ser sacerdote, especialmente em face da dificuldade e oposição? A família e a educação podem dar-nos algumas respostas.
204
205
Ir. Avitus, Anais, n.179, sobre o Espírito de fé.
Ir. Sean Sammon, A Revolução do coração, Introdução, p. 7
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Na sua “Vida do Fundador”, o Irmão João Batista escreve: “Muitas vezes,
na sua vida, ele foi ouvido a falar da sua querida tia e das lições dela quando
menino. No modo como ele falava, transparecia que ele ainda estava imbuído com as disposições que a tia lhe inculcou e que ele guardou, até por gratidão e amor por ela, disposições que duraram toda a vida. Assim que Marcelino foi formado à piedade pela mãe e pela piedosa tia.” 206 O mesmo autor
descreve o seu ambiente familiar: “Humildes circunstâncias, em região pobre,
em meio de gente profundamente religiosa, mas inculta e sem escola.” 207 Cumpre concluir, portanto, que Marcelino, desde os primeiros anos, respondeu,
sensível e positivamente, à instrução e formação religiosa que recebeu tanto
no lar quanto na igreja. Embora João Batista comente por alto e brevemene a
vida do pai de Marcelino e a sua contribuição na retaguarda de Marcelino, o
Irmão Avitus é antes prolixo e um pouco menos lisonjeiro.
Em contraste do Irmão Avitus, estudando os registros financeiros e o fundo do quadro histórico da “Confraria dos Penitentes Brancos, estabelecida
em Marlhes”, o Irmão André Lanfrey chega a deduzir convincentemente que
João Batista Champagnat, tesoureiro da citada confraria de Marlhes por dez
anos, de 1779 a 1788, era capaz de sintetizar o devoto espírito da Confraria,
ensinando “a justiça cristã feita sentença, restituição e reconciliação”,208 de
permeio com o ideal da Revolução de 1789. “Basicamente, J.B. Champagnat é um daqueles cristãos que brotaram de certa atividade pastoral dos séculos dezessete e dezoito, seguidores de um tipo de democracia rural e cristã, que a Revolução parecia realizar por algum momento.” 209
O mesmo autor conclui o artigo com interessantes parágrafos, no que
ele considera características de comportamento que Marcelino herdou do
pai. Ademais, se é verdade que Wordsworth quis fazer-nos crer que “a criança é pai do homem,” 210 o copioso testemunho da “terna afeição”, já insistentemente discutido acima, e que pode ser evidenciado por muitas testemunhas, sim, isso sugeriria o calor da afeição paterna, ainda que aprofundada pela ação da graça. “Consequentemente, parece que o fato nos acon-
206
Ir. João Batista, A vida do Pe. Champagnat, p. 5
“Ibid P 2
208
Ir. André Lanfrey, “Reforma Católica e Revolução Política;” João Batista Champagnat e os
penitentes de Marlhes.” Cadernos Maristas No 25 P.64 Instituto dos Irmãos Maristas.
209
Ibid Cadernos Maristas No 25 PP 37 – 65.
210
Poema inglês. “O meu coração pula quando eu observo”, William Wordsworth, (1770–1850).
207
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selha a matizar a tradição marista no concernente a João Batista Champagnat, o qual não só teria treinado o Marcelino nos trabalhos manuais, mas
também o teria formado numa vida religiosa dinâmica que influenciou o
seu tempo.” 211
Interessa notar que o Irmão João Batista, escrevendo sobre o quadro de
fundo de Marcelino e da sua infância, assevera: “João Batista Champagnat e
a mãe de Marcelino, Maria Chirat, tiveram seis filhos, três meninos e três meninas.” Avitus fornece pormenor mais exato e documentado. 212 Quatro parentes dele morreram em tenra idade, o que pode sugerir que as relações
eram íntimas e de natureza afetiva. Marcelino, sendo o mais novo e sobrevivente teria tido compaixão dos seus companheiros; daí também inferir o
gesto solidário no caso do colega de escola, paciente de maus tratos. Honoré Balzac, no seu romance algo autobiográfico, “Louis Lambert”, fornece
um informe, uma como narrativa gráfica dos métodos do tempo para manter a disciplina em sala de aula.213
Além disso, segundo a cultura da lareira e do lar as noites de inverno eram
tradicionalmente despendidas no contato fraterno e da vizinhança, impli-
211
Ir. André Lanfrey, Cadernos Maristas, n.25, p.65.
“Anais”. Op. cit.
213
Louis Lambert. É romance de 1832 do escritor francês Honoré de Balzac (1799–1850), incluído nos estudos filosóficos, seção da Comédia Humana. Encenado sobremodo numa escola de Vendôme. Ele examina a vida e as teorias de um garoto genial, fascinado pelo filósofo sueco Emanuel Swedenborg (1688–1772). Segue-se peculiar excerto balzaquiano.
“A menos que fosse séria ofensa ou mau procedimento, para os quais havia outras formas de
punição, a correia em Vendome era encarada como ultima ratio Patrum, última razão dos
pais. Exercícios esquecidos, lições mal aprendidas, mau procedimento ordinário eram assaz
castigados por uma imposição; mas a dignidade ofendida do mestre falava pela correia. De
todos os tormentos físicos a que estávamos expostos, por certo o mais agudo era aquele infligido por esse instrumento de couro de dois dedos de largura, aplicado às nossas pequenas e pobres mãos com toda a força e com toda a fúria do administrador. Para receber esta
clássica forma de correção, a vítima ajoelhava no meio da sala. O menino tinha de deixar o
banco e ir ajoelhar-se perto da mesa do professor, sob o curioso e sempre impiedoso olhar
dos colegas. Para as sensíveis naturezas tais preliminares eram a tortura introdutória, como
a viagem do Palácio da Justiça à Praça da Parede que o condenado devia percorrer antes do
enforcamento.” Alguns meninos choravam e derramavam amargas lágrimas antes ou depois
da aplicação da correia. Outros aceitavam o castigo com calma estóica. Era uma questão de
natureza; poucos podiam controlar uma expressão de angústia por antecipação. Luís Lambert era constantemente submetido à correia; devia isso a uma peculiaridade da sua fisiognomia de que, por longo tempo, esteve inconsciente. Muitas vezes era ele de repente acordado da sua abstração pelo grito do mestre: Você não está fazendo nada.
212
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cando íntimos laços de família e confiança. Mais adiante na vida, Marcelino
dá indicação disso, quando escreve à cunhada depois da morte do irmão,
em março de 1838. 214
“Lamento demais não ter podido estar com o meu irmão
na enfermidade dele. Parece que faz apenas dois dias que
estávamos ambos na mesma casa em que você vive e que
vai nela viver por bom tempo ainda, se Deus quiser. Tínhamos então treze e catorze anos. Agora resto apenas eu.”
Portanto, não há exagero em especular sobre aqueles primeiros anos de
formação de Marcelino, que o proveram de sensibilidade e introvisão no
concernente às necessidades dos jovens e crianças. Na biografia do Irmão
João Batista, no versar a infância de Marcelino, há forte elemento didático
que compensa notar: no mesmo tempo em que se enfatiza a piedade e as
práticas religiosas do lar, não se descuram os elementos mais humanos e
afetuosos da vida familiar, algo que o século vinte e um acharia edificante.
Cumpre-nos notar o seguinte: “A palavra família comporta especial força, quando se consideram as circunstâncias da instrução de Champagnat; na
vida dura do “maciço central”, um homem conta quase só com este apoio
seguro: a família. O solo agrícola delgado, o tempo traiçoeiro e a doença
eram desafios, cuja superação demandava uma família unida, unida no trabalho, na prosperidade ou na carestia, na alegria e na dor. Esperava-se de
cada membro da família a colaboração na medida das suas forças. Na sua
vez, todo o membro da família podia esperar aceitação, amor, consolação,
lealdade, meios de progredir e apoio na dificuldade.” 215 Assim, não há surpresa em ver escrito na “Vida” o seguinte: “Os Irmãos nunca devem esquecer que, abraçando a vida de comunidade, eles formam uma família, e devem amar-se reciprocamente como irmãos.” 216 Não teria sido incomum que,
na consideração da vida de Marcelino, todos nós recordássemos a nossa própria família e educação. Além disso, tal reflexão enriquece a nossa compreensão e simpatia relativamente à nossa incumbência de cuidar dos jovens, especialmente dos mais necessitados.
214
Sester, Cartas, PS 180.
Ir. Romuald Gibson P.17
216
Ir. João Batista, “Vida” P.7
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Outras influências, muito fortes e pertinentes, são também importantes, quando ponderamos o desenvolvimento de Marcelino e o nosso. “No tempo da vida
de Champagnat, vimos a destruição do antigo Regime, que parecia inexpugnável, a degeneração da Revolução nos excessos do Terror, a substituição da Revolução pelo governo autocrático de Napoleão, o colapso do primeiro Império
e o restabelecimento dos Bourbons, a decisiva derrubada de Carlos X pela revolução de 1830; em seguida, a deterioração das lealdades francesas em Louis Philippe. Este, oito anos após a morte de Champagnat, foi forçado a abdicar o trono.” 217 O autor tece comentários sobre revoltas e inseguranças dos tempos em
que havia sede popular de subverter quaisquer controles, tão logo a multidão
perdia o gosto e o objetivo. “Colocado em tal situação, Champagnat veria parentesco com os nossos tempos, quando o grito crescente de liberdade sem peias
é cada dia mais estridente e a sociedade hodierna é permissiva em demasia.” 218
Em outra pauta, cumpre reconhecer as poderosas influências da sua estada no Seminário. Marcelino passou oito anos no seminário menor de Verrières. No começo, o superior era o Pe. Périer, de espiritualidade sulpiciana; foi o primeiro em introduzir o jovem Champagnat nesta corrente francesa de espiritualidade.
No Seminário Maior de Santo Ireneu de Lyon, Marcelino foi influenciado
pelo Pe. Philibert Gardette, de quem aprendeu a dedicação e fidelidade ao
ideal sulpiciano. O Pe. Jean Cholleton, professor de teologia moral, apoiou os
planos de uma Congregação Marista e, mais tarde, também se fez Marista. Ele
teve profunda influência em Marcelino, no atinente à espiritualidade da caridade e da humildade. Os sacerdotes Simon Cattet e Jean-Marie Mioland foram
outros professroes; este inspirou aos seus estudantes o amor e o respeito em
bem conduzir as liturgias. O Irmão Romuald, contemporâneo, escreve: “Champagnat considerou esses anos de Santo Ireneu os mais felizes da sua vida. A
sua natureza ardente absorveu com avidez os princípios da espiritualidade sulpiciana e a dinâmica urgência dos professores; o seu bom senso e discernimento salvaram-no de alguns dos pontos mais fracos da convicção e maneira
deles; o ideal sulpiciano de completo dom de si a Deus com Jesus e Maria, sem
ponderar o custo em termos de natureza humana, foi o que ele viveu e procurou inculcá-lo aos seus Irmãos.”219 Outras influências derivam dos seus ami217
Ir. Romuald Gibson fms. “Pe. Champagnat, O homem e a sua espiritualidade, Estudos de
Espiritualidade Marista.” P.17
218
Ibid P 21
219
Ibid P 25
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gos de seminário, entre os quais podemos nomear Jean-Louis Duplay, JeanClaude Colin, Jean-Marie Vianney e Jean-Claude Courveille.
Em artigo intitulado “o escopo dos Irmãos”, o Irmão André Lanfrey, em
análise comparativa dos escritos do Irmão Francisco e do Irmão João Batista sobre este assunto, percorre os pensamentos originais retroativamente até
Marcelino. Como exemplo, toma este, nos escritos do Irmão Francisco: “Pertencemos a um século em que os homens têm sede de conhecimento. A instrução se dissemina até nas povoações mais distantes. Os maus, inspirados
pelo Anjo das Trevas, se valem disso para instilar nas mentes e nos corações
das crianças os mais perversos e perniciosos princípios.”220 Há certa urgência e convicção contidas nestas palavras. “Champagnat vê a sua missão: difundir a educação cristã.” Há nisso um eco do fervor do apóstolo determinado a livrar o mundo da grosseria, da heresia e da imoralidade. 221
Não muito tempo atrás, um estudo descritivo foi editado sobre a nossa
atual sociedade da Nova Zelândia. Foi chamado “o povo sem paixão.”222. Não
poderia ele descrever, com exatidão, a atual inapetência que parece bloquear em nós maior devotamento e dedicação?
7. ORAÇÃO E ESPIRITUALIDADE
Quando se visa às fontes de motivação e inspiração, pode ser que a oração e a espiritualidade de Marcelino vão ser particularmente efetivas: são
práticas que podemos partilhar, ou são aquelas que especificamente ele nos
exortava a seguir. Se, em primeiro lugar, nos reportamos às suas cartas, lo220
Ir. André Lanfrey, fms. “O fim dos Irmãos, segundo duas instruções contidas nos manuscritos do Ir. Francisco e do Ir. João Batista.” Trabalho privado.
221
Ibid
222
Há trinta anos, o jornalista e locutor Gordon McLauchlan, da Nova Zelândia, escreveu um
livro O povo sem paixão. Nele GM, com precisão cirúrgica, desnuda a nossa escassez e a nossa inapetência. As características salientes do neozelandês, critica McLauchlan, são a sua monótona mesmice e a sua paralisia emocional, a sua inabilidade em se relacionar calorosamente com outrem, o seu medo e até horror de mudança. GM castigou-nos por não termos
filosofia moral ou social e nenhum sonho além da devoção egoísta ao materialismo. A nossa sociedade está por inteiro dividida entre grupos de pressão, que exercem o seu poder quase exclusivamente para as necessidades próprias, sem nenhum senso da comunidade total.
Se acreditamos em GM, somos hoje tão venais e centrados no nosso ego como trinta anos
atrás.- Peter Verstappen Ashburton Guardian, 19 de novembro de 2007.
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go se evidencia que a sua oração e espiritualidade eram parte essencial da
sua pessoa. Dois extratos vão bastar, mas poderiam ser multiplicados, ao
longo da sua correspondência com os Irmãos.
“Diga ao Irmão Dominique que eu o amo e que rezo por
ambos vocês. Espero que vocês não me esqueçam nas suas
boas orações. Coloque Maria no seu lado; diga-lhe que,
depois de que você fez tudo o que podia, seria muito ruim
para ela, se os negócios não andassem bem. Recomende
os seus alunos a ela com fervor. Em homenagem a ela,
faça uma novena com os alunos; por exemplo, com a
recitação da oração Lembrai-vos.” 223
“Nunca se esqueça do meu devotamento por você. Nunca
subo ao santo altar sem rezar por você. Deus, caro filho, vai
garantir-lhe a perseverança, da qual a sua santificação depende. Não há dúvida de que, se você lha pede por intercessão de Maria, vai alcançá-la. Caminhe na presença de
Deus todos os dias da sua vida. Possa a sua santa vontade
constituir o motivo primeiro de todas as suas ações.” 224
No livro “o Pe. Champagnat, o homem e a sua espiritualidade, estudos de
espiritualidade marista”, o Irmão Romuald Gibson examina a natureza da espiritualidade e comenta, em termos gerais: “A pesquisa consiste em descobrir a
base de todo o ser e constitui indagação vital, porquanto a própria existência
do homem está essencialmente relacionada com esta útima fonte e explicação
da vida: o homem deve conhecer os termos dela.” 225 Encarando Marcelino, ele
assevera o seguinte: “Para um homem como Champagnat, a compreensão central deste mistério da existência e da finalidade da vida humana constituía, obviamente, o fato de que o fulcro básico de todo o ser é Deus e a finalidade da
vida humana é descobrir este Deus e servi-lo. Graças à orientação da sua família e à sua própria educação, tal consciência era-lhe natural como a respiração;
a sua vida girou em torno do aprofundamento e compreensão deste senso do
espiritual, deste relacionamento que existia entre ele e Deus.”226
223
Paul Sester, Cartas, PS 17, 10 Sept 1830 P.52
Cartas
225
Ir. Romuald Gibson, Padre Champagnat, P.13
226
Ibid.
224
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Na convocação à Assembleia do Setor Provincial, citado no começo da
pesquisa, de permeio com outras lembranças da Província, foi colocado diante dos Irmãos o seguinte.
“A nossa idade média está ficando mais alta. Éramos conhecidos como professores de muito êxito. Hoje só uns poucos
de nós estão na sala de aula. Somos conhecidos como
Irmãos Maristas das Escolas. A maioria das pessoas hoje
não sabe quem somos nem o que estamos fazendo aqui.
Marcelino estava profundamente movido pela tragédia
dos ignorantes, a juventude que morre na triste carência
de Montagne. Marcelino reagiu com tal preocupação pela
mudança da realidade, a ponto de decidir-se por dar a
conhecer às pessoas que Jesus as amava. Que será que ele
faria hoje?”227
No martelado incidente Montagne, Marcelino tinha 27 anos. A média de
idade da Província é de 68 anos. Marcelino morreu com 17 a menos. A maioria dos Irmãos da minha Província tem despendido muitos anos no exigente
trabalho da educação dos jovens em ambiente de rápidas mudanças. Ninguém duvida da boa vontade e interesse na persecução de novas iniciativas. A convocação citada acima toma nota disso, quando assevera: “Como
Província somos chamados a seguir as três prioridades do Capítulo, empenhando-nos de conformidade com a nossa idade, saúde e força.” 228 Desse
modo, para estimular o interesse e o envolvimento, cada qual deve ter em
conta a situação individual do Irmão. Ainda que tenha sempre havido exortação para a oração e para a meditação229 na Província, aqui a ênfase poderia recair na ação, em vista das recentes resoluções do Capítulo Provincial,
ao passo que a dimensão contemplativa recebe menos atenção. Recentemente, a clave mística de Marcelino vem tornando-se mais reconhecida, com
assaz interesse neste aspecto da sua vida, o que vem atraindo muitos jovens
de hoje. No livro “a revolução espiritual, emergência da espiritualidade con-
227
Ir. Carl Tapp, Carta de convocação à Assembleia dos Irmãos Maristas da Nova Zelândia,
abril de 2008.
228
Ibid
229
Veja Constituições, Cap. 4: Art77 P.54 “A oração é para nós de absoluta necessidade. Não
pode ser pensada como mero exercício de piedade, nem pode ser confundida com o trabalho apostólico.”
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temporânea”, o professor David Tacey descreve como as suas aulas e conferências sobre a mística e a espiritualidade são muito procuradas. 230
No livro “Ensaio sobre as origens da espiritualidade marista”, o Irmão André Lanfrey começa com a discussão da espiritualidade, encarando as suas dimensões místicas, ascéticas e teológicas. Ele apresenta a seguinte definição de
mística: “O adjetivo místico se reporta ao que vai além da estrutura da experiência ordinária. Os fenômenos místicos se reportam primariamente às moções interiores para ir além do próprio indivíduo, rumo a um particular objeto ou ser, moções essas que não são nem simplesmente profanas nem eternas,
mas situadas além dos limites da experiência normal e empírica; em segundo
lugar, essas moções se reportam a percepções intuitivas do objeto ou ser.” Seguindo os comentários que se referem ao relacionamento do tema místico com
a fé, o autor atinge a hipótese “de que não há diferença essencial entre a vida
mística e a vida cristã no Espírito; consequentemente não há caminho ordinário de santidade, adquirido pela prática das virtudes, e caminho extraordinário assinalado por graças místicas.” Abaixo uma conclusão derivada disso.
“Certos cristãos lutam para achar palavras com que descrever a sua experiência. O Pe. Champagnat parece uma
de tais personalidades carismáticas capazes de reunir e
energizar numerosos discípulos; mas cujo ensino parece
230
David Tacey, A revolução espiritual, emergência da espiritualidade contemporânea, Harper Collins 2003.
Tacey escreve: “O projeto da alma da Bretanha se depara com 76% das pessoas do Reino Unido admitem ter tido uma experiência religiosa ou espiritual. Isso contrasta radicalmente com
as estatísticas que mostram como a assistência às igrejas está declinando em todas as maiores denominações cristãs. Ainda assim, se olhamos os números da experiência espiritual, eles
parecem sugerir que estamos nas vésperas de um ressurgimento espiritual explosivo. ( David
Hay e Kate Hunt 2000: 846)
Comentando a situação da América do Norte, Sandra Schneider escreve de Berkeley, Califórnia. Raramente a espiritualidade gozou de tão alto perfil, de avaliação positiva e mesmo
de sucesso econômico, como se dá hoje entre os americanos. Se a religião está em séria perturbação, a espiritualidade está em ascensão; a ironia desta situação evoca embaraço e ansiedade no Sistema Religioso: investigação entre os teólogos e justificação entre aqueles que
trocaram a religião do passado pela espiritualidade do presente. (Sandra Schneiders 2000:1)
Podemos dizer que esta mudança é parte da tendência contemporânea, com tendência para
o colapso das tradições e das comunidades tradicionais, e a ascensão da sociedade pós-moderna individualista e fragmentada. Este é fato sociológico, que não se pode negar: igrejas
vazias, e indagação espiritual voando alto como nunca antes. Além do colapso da tradição,
há obviamente outros fatores envolvidos nesta mudança massiva.
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não haver alcançado o nível dos que de fato vivem e como eles dão vida a outros. Neste sentido, a dimensão mística de ser Marista tem a aparência de ser, de certo modo, incompleta: está claramente presente, mas sem os meios
necessários para ser reconhecida como tal. Uma das razões
desta carência provém da mentalidade sobrecarregada
de ascetismo próprio daqueles tempos.”231
No atinente à crescente média de idade da Província, pode-se recordar o
velho costume, compreensão e crença de que os Irmãos mais avançados em
anos, mas não só eles, apoiam o trabalho da missão pela sua oração e interesse no labor dos seus confrades. Isso está consagrado nas Constituições,
53: “O Irmão mais avançado em idade, pela sua oração e oferecendo ao Senhor os seus sofrimentos, realiza efetivo apostolado.”232 Os Irmãos, encorajados por esta afirmação, vão sentir-se menos inclinados ao desânimo pelo
ambiente e pela situação corrente; podem até mesmo lograr senso mais forte de autovalor e responsabilidade.
Seria incorreto e injusto olhar do alto a necessidade e contribuição da vida espiritual nas nossas vidas para cada um de nós em qualquer idade. Da
considerável introvisão da vida espiritual e mística de Marcelino podemos
encarar com confiança o Irmão Basilio Rueda, apaixonado advogado de Marcelino, que escreveu no começo do seu primeiro mandato de Superior geral o seguinte:
“Há outro ponto em que o nosso Fundador pediria que nos
empenhássemos hoje. Conhecemos a profundeza da sua vida interior, tanto teológica quanto ascética ou moral. Todos sabemos como este espírito interior se mostrava exteriormente, em zelo intrépido, ardente caridade com todos, de
modo peculiar com quem necessitava de ajuda, especialmente moral, bem como no trabalho em favor do seu Insti-
231
“Ensaio sobre as origens da espiritualidade marista”, Andre Lanfrey. Original publicado
pela Casa Mãe dos Irmãos Maristas, Roma, com tradução do Irmão Jeff Crowe.
232
Constituições, nº 53 “A perseverança de um Irmão de mais idade é sinal vital de fidelidade do Senhor. Ele não julga cumprida sua tarefa, mas procura servir na medida do possível
e interessa-se pelos Irmãos na ativa. Pela oração e oferta de suas enfermidades exerce eficaz
apostolado.”
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tuto, o devotamente do seu coração ao mundo angustiado.
A sua fé robusta, a sua filial confiança em Deus, no seu
caráter naturalmente forte, tomava um timbre de ternura,
quando falava de Maria. Champagnat tinha constância
na oração, viva consciência da paternidade e benevolência de Deus, em suma tudo nele nos mostra a solidez da
sua vida espiritual. Ele era uma lição para todos.”
“É traço típico e característica de um santo. Um homem com
forte senso social será muito sensível a todas as misérias
humanas, como fome, pobreza, enfermidade e sofrimento,
mesmo que fosse menos tocado pela pobreza religiosa e moral.
Um santo, por outro lado, é plenamente sensível a todas as
desgraças; mas a sua caridade e compaixão subiam de
ponto à vista da miséria religiosa e moral. Isso é natural em
santos que têm impressa, nos seus corações, uma hierarquia
dos valores evangélicos.”233
Ao entrevistador da revista J.M.V. ele confidenciou o seguinte:
“Quando alguém escuta com atenção a palavra de Deus,
cria-se um diálogo íntimo. Este diálogo engendra o impetuoso desejo de proclamar na vida das pessoas que Deus
é vida. Quem começa a discernir a vontade de Deus de modo apaixonado e generoso, por certo, comunga com a Igreja. Se alguém estabeleceu a sua vida no amor, não há possiblidade de retrocesso. Quem tenha conhecido a fascinação
do amor de Deus sabe que já não se pertence. Em verdade,
a alma não pede, ela dá. Um dia, eu descobri que Deus
tornara o seu amor tangível na pessoa do Filho e que Jesus Cristo é o beijo terno e afetuoso que o Pai nos dá.”
Na sua Circular sobre a obediência, ele faz surpreendente afirmação: “Todos trazemos em nós um grande mistério: Jesus em mim e eu em Jesus.”’234
E, depois de tudo, “tende terna afeição pelas crianças, nas pegadas de Jesus
Cristo”. Estejamos sempre unidos com ele na oração.
233
234
Circular Superior geral, Ir. Basilio Rueda 1968.
Ibid.
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O Irmão Basilio ponderava que, com toda a boa vontade, o Instituto focalizava os meios de socorrer o pobre, as missões, os meios de evangelizar
e “a pouco e pouco, Jesus foi ficando de lado, posto em segundo lugar e,
em certas ocasiões, desapareceu, quando, na realidade, é ele a maior razão,
a sublime razão pela qual vivemos e morremos. Ele é a base da nossa vocação, da nossa fraternidade e da nossa amizade. Ele é a nossa salvação. Obviamente, já é tempo de fazer todo o esforço para recolocar Jesus no centro
da nossa vida.” 235
Na nossa Província, como em outras, os Irmãos podem muito bem consolar-se com o fato de que os seus anos de serviço, oração e dedicação constituem tesouro de experiência, sabedoria e graça ansiosamente almejado pelos jovens. Talvez nos devêssemos perguntar não apenas o que Marcelino
faria com 27 anos, no batido incidente de Montagne, mas também o que
Marcelino faria aos 68. Os Irmãos Francisco, João Batista, Silvestre e Avitus
nos poderiam informar como o fazem nos seus escritos biográficos. Eles partilham com os jovens Irmãos tudo quanto conheceram e compreenderam;
tudo o que experimentaram e quem eles eram.
8. A COMPAIXÃO DE MARCELINO
Além das motivações internas, havia, naturalmente, aquelas pressões externas que incitaram Marcelino à ação. Estamos familiarizados com o incidente que o fez abandonar a escola, em face da brutalidade e injustiça que
ele percebeu contra um colega. No seminário, foi Marcelino quem insistiu
em que “necessitamos de Irmãos.” Foi a sua resposta no caso Montagne que
o inspirou, sem tardança, a iniciar a primeira comunidade em Lavalla. Nessas experiências, percebemos a disposição interna que responde ao estímulo externo. Nem seria incomum que Marcelino estivesse tão inspirado,
dada a sua própria e infeliz experiência. “Sempre tive especial atrativo para o estabelecimento de Irmãos; acrescento de boa mente e, se reputar certo, assumo a responsabilidade desse setor. Não fui feliz na minha primeira
ida à escola. Seria feliz em propiciar aos outros aquilo de que fui privado
eu próprio”. No tempo da sua ordenação, toda uma plêiade de congrega-
235
Ibid
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ções de Irmãos foi fundada na França e alhures. Marcelino não deve ter
ignorado isso.236
O Irmão Sean Sammon escreve:
“A Igreja da França do século dezenove, não diversamente
da nossa, enfrentava uma crise de inovação. O mundo
em que se encontrava mudou depressa e decisivamente.
A resposta da Igreja a tal revolução tinha de ser inventiva e de recursos. Pessoas como o nosso Fundador, com o
tempo, tomaram a incumbência de contribuir na sua renovação”.237
Há muitas descrições nos nossos documentos no atinente às necessidades religiosas e educacionais na França do tempo de Marcelino.
No prospecto de 1824, em L’Hermitage, a situação era descrita como
segue.
“Na região rural o ensino religioso está completamente
negligenciado ou substituído pela instrução anticristã. Para
fazer face a este grande mal e para livrar a população
desses professores ímpios nas menos afortunadas áreas, o
Pe. Champagnat fundou um grupo de piedosos professores
236
Congregações de Irmãos contemporâneas de Marcelino. Irmãos de São Gabriel, fundados
pelo bem-aventurado Grignon de Montfort e M. Deshayes, em 1795 e 1821. Irmãos da Instrução Cristã de Ploermel, fundados por J. M. de Lamennais, em 1816. Irmãos da Doutrina
Cristã de Nancy, fundados pelo Pe. Fréchard, em 1817. Pequenos Irmãos de Maria, Irmãos
Maristas, fundados por Champagnat, em 1817. Irmãos do Sagrado Coração do Paraíso, fundados pelo Pe. Coindre, em 1821. Irmãos da Sociedade de Maria, fundados pelo Pe. Chaminade, em 1817. Irmãos da Santa Família, fundados pelo Irmão Gabriel Taborin, em 1821. Irmãos da Cruz de Jesus, fundados pelo Pe. Bochard, em 1824. Clérigos de São Viator, fundados pelo Pe. Guerbes, em 1829. Congregação da Santa Cruz, fundada pelo Pe. Moreau e pelo Pe. Dujarris, em 1835. Congregação do Espírito Santo e do Sagrado Coração de Maria, fundada pelo Pe. Liebermann, em 1841. Irmãos da Mercê, fundados pelo Pe. Delamare, em 1842.
Irmãos Cristãos da Irlanda, fundados pelo Irmão Ignatius Rice. Instituto das Irmãs das Escolas da Mercê, fundado pela venerável Julie Postel, em 1802. Todos eles exemplificam o caráter do seu trabalho e das Regras adotadas, com muita semelhança nos métodos e fins propostos por São João Batista de la Salle, ao fundar o Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs.
237
Ir. Sean Sammon, A revolução do coração, p. 41.
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devotados a Maria com o nome Pequenos Irmãos; eles vão
por duplas às vilas mais pobres às quais, por carência de
recursos, os Irmãos das Escolas Cristãs não vão.”238
Nas “Origens Maristas” podemos ler a seguinte contribuição do Irmão
Lourenço.
“Champagnat, vigário de Lavalla, estava muito triste de
ver a ignorância que havia na paróquia, particularmente
entre os jovens e as crianças. Ele reuniu garotos de dez a
doze anos, que não sabiam por que estavam na terra, ou
até mesmo se havia um Deus. Eis por que ele resolveu fundar uma sociedade de moços que pudesse levar a educação a tais crianças”. 239
No capítulo 35 do livro Avisos, Lições e Sentenças os seguintes princípios
de educação são propostos e elaborados:
“Educar uma criança significa iluminar o seu espírito e
auxiliá-la a conhecer a religião: reformando as suas más
inclinações; exercitar o seu coração e desenvolver todas
as suas boas disposições; formar a sua consciência; exercitá-la à piedade, fazendo-lhe compreender a necessidade e as vantagens da oração; educar uma criança significa exercitar a sua vontade, ensinando-a a obedecer;
exercitar o juízo da criança; moldar e polir o seu caráter. O trabalho da educação de uma criança significa
mantê-la em constante vigilância. Dar a educação a uma
criança significa inspirar-lhe o amor do trabalho; darlhe conhecimento de que vai precisar na sua posição e
estação de vida; aperfeiçoar o desenvolvimento físico
como o seu crescimento intelectual, moral e religioso. Em
suma, educar uma criança significa dar-lhe os meios de
adquirir a total perfeição do seu ser, tornando-a uma
pessoa completa.” 240
238
Prospecto de 1824A. Em Cadernos Maristas, julho de 1998, n.13 P.5
“Origens Maristas” 756
240
Ibid. P.301
239
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Marcelino, embora afetuoso e carinhoso com os Irmãos e com as crianças, não esposava uma atitude de ‘laisser faire’ no atinente à orientação e
instrução. Na Regra primeira de 1837, etapa melhorada do “prospecto de
1824”, e dos estatutos, o primeiro artigo estabelece:
“[1] A ordem leva a Deus, diz santo Agostinho, e a perfeição
do religioso depende da sua fidelidade em seguir inviolavelmente uma Regra de vida. Sem isso, ele perde muito
tempo e nada faz direito; pelo contrário, com a observância exata e diária, ele faz um tipo de penitência, ainda que
imperceptível, mas muito meritória ao olhar de Deus. “Qui
Regulae vivit, Deo vivit”. Quem vive Segundo a Regra, vive
segundo Deus.” 241
Disciplina e presença tornaram-se palavras sentinelas no método de Marcelino, mas disciplina paternal e presença benigna. É interessante notar que
no documento “Nas pegadas de Marcelino Champagnat, uma visão da educação marista hoje”, no capítulo quinto, intitulado “com estilo marista característico”, a presença encabeça os princípios seguintes: simplicidade, espírito de família, amor ao trabalho e nas pegadas de Maria242
Uma carta do Irmão Pierre-Marie ao “Padre Marista”, datada de 5 de dezembro de 1840 e, portanto, muito cronologicamente perto de Marcelino,
mostra “como um Irmão havia assimilado alguma coisa do ideal educativo
de Champagnat, já que o registro não difere muito do citado pelo Irmão João
Batista, como destacado acima. Vamos ao texto da carta.
“Eu imagino dois Irmãos ensinando algumas crianças muito travessas. O primeiro pensa que pode fazer tudo sozinho, faz muito barulho. Pelo contrário, o segundo trata os
seus alunos com amor e encorajamento. Este sabe que os
adultos necessitam de encorajamento, e as crianças ainda mais. “ O texto reflete o pensamento de Marcelino, que
ele conhecia, já que havia assistido a algum estudo em grupo
241
242
Regra de 1837.
“Nas pegadas de Marcelino Champagnat” P.43
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em 19 de fevereiro de 1840, conforme as instruções de Champagnat constantes na Circular de 10 de janeiro de 1840.243
O último foi mais desenvolvido para o professor contemporâneo pelo Irmão Michael Green em artigo intitulado “nova abordagem do ensino,” como consta a seguir:
“A originalidade de Marcelino não estava primariamente na
sua pedagogia. O método de ensino ou o currículo não eram
os seus pontos primordiais; não era a isso que ele procurou
oferecer alternativa de visão. A sua contribuição original estava no estilo de relacionamento por ele preconizado entre professor e aluno. Era um relacionamento fulcrado no amor e expresso num estilo que Champagnat chamava “espírito de família”.
Parece que Marcelino o retirou de duas passagens paulinas simultaneamente ricas e práticas abordagens no ensino dos jovens
(1Cor 13,1-19 e Col 3,12-17). Como o Fundador, os educadores
maristas de hoje enfrentam, primeiro, o desafio de amar os
seus estudantes, e ter a boa vontade de relacionar-se com eles
como irmãos mais velhos. Só com esta disposição eles podem
procurar e julgar as abordagens pedagógicas mais apropriadas.” O autor do artigo continua, dando os sete fundamentos ou bases da pedagogia marista. (1) Presença e bom exemplo. (2) O relacionamento entre professor e aluno deve levar a
um modo de ensinar e de aprender livre e aberto, mas industrioso e com meta. (3) Os educadores maristas têm preferência instintiva pela simplicidade. (4) Avidez em procurar, de
contínuo, métodos novos e mais eficazes. (5) O reconhecimento
da engenhosidade no ensino. (6) Uma atitude para com os
jovens que crê neles e nutre a autoestima e a autoconfiança.
(7) Uma prática pedagógica Marista se funda em implícita
consciência da presença de Deus, disposição mariana, simplicidade, compaixão, abertura, confiança e otimismo.”244
243
Irs. Aureliano Brambila e Edward Clisby: “Herança Espiritual Marista, Champagnat através
da sua Correspondência.” Curso do Patrimônio, 2008. Roma, Itália.
245
“Como Marcelino nos queria professores. Fundamentos de pedagogia para educadores
maristas” - Dr. Michael Green fms.
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“O Irmão Francisco e os primeiros Irmãos abraçaram o projeto de Marcelino com entusiasmo. Com similar espírito de fé e zelo apostólico, os seus
sucessores levaram-no a cinco continentes. Como educadores maristas contemporâneos, partilhamos e continuamos o sonho de Marcelino de transformar as vidas e as situações dos jovens, particularmente os menos favorecidos, oferecendo-lhes uma educação integral, tanto espiritual quanto humana, com amor pessoal para cada um.”245
9. PARTILHANDO O CARISMA MARCELINIANO
Com o crescimento exponencial do Instituto nos seus começos, especialmente nos anos que se seguiram à morte do Fundador, obviamente houve uma onda de entusiasmo e objetivo que atraiu muitos candidatos em relativamente curta espaciotemporalidade. Por outro lado, para os Irmãos contemporâneos, a partir do Concílio Vaticano II, tem havido fenômeno inverso de tal tendência. Assim, se dermos confiança às estatísticas como barômetro medidor da vitalidade e credibilidade do Instituto, há muitos números que desapontam e preocupam. Ademais, a necessidade de missão e de
evangelização permanece tão grande como no tempo de Marcelino.
É algo opressivo ler o seguinte, na Circular “Tornar Jesus conhecido e amado”: “Nos dias que correm há no mundo cerca de 200 milhões de crianças e
jovens excluídos da educação primária, ao passo que 800 milhões de adultos
são analfabetos”.246 Sem dúvida, nessas circunstâncias, conforto e desafio vão
surgir quando nos depararmos com introvisões como a que segue:
“Hoje, como resultado de novas situações, muitos Institutos chegaram à conclusão de que o carisma pode ser partilhado com os leigos. O laicato, portanto, é convidado a
partilhar mais intensamente na espiritualidade e missão
de tais Institutos. Podemos dizer que um novo capítulo,
rico de esperança, começou na história das relações entre pessoas consagradas e o laicato.” 247
245
“Nas pegadas de Marcelino Champagat” Art. 3 P.23.
Circular “Tornar Jesus conhecido e amado” P.15
247
Vita Consecrata , 54.
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TERNA AFEIÇÃO
Em termos especulativos, pode alguém perguntar-se: os Irmãos Maristas
teriam interesse em levar a outras organizações a riqueza e experiência do
carisma marista? Por exemplo, nos serviços sociais católicos ou seculares. O
Ir. Basílio Rueda passou sete anos trabalhando no “Movimento do mundo
melhor”, que tem apenas uma indireta associação com os trabalhos do Instituto, mas que exerceu profunda influência na sua liderança como Superior
geral. Deveríamos, necessariamente, dedicar-nos apenas às iniciativas por
nós estabelecidas e sobre as quais podemos exercer poder e controle?
No artigo intitulado “A situação do leigo na experiência do carisma marista”, o Irmão Pau Fornells escreveu: “Na data histórica de 16 de julho, a promessa em Fourvière de criar a Sociedade de Maria incluía também a intenção
da Ordem Terceira Marista, ramo leigo. O primeiro grupo começou em Lyon
em 1832, com o Pe. Pompallier. Desde o começo do Instituto houve muitos
benfeitores e simpatizantes que partilharam a espiritualidade e a missão”.
Desde o começo do século vinte, o Instituto tem reconhecido “membros
afiliados”. As “Amicales”, Associações de antigos alunos, começaram pelo
menos em 1865. Eram grupos de homens adultos que trabalhavam juntos
em manter o espírito religioso que os Irmãos lhes haviam inculcado. Foram
fundadas muitas associações provinciais, nacionais e continentais, bem como a União Mundial de Antigos Alunos. Desde o decênio de 1950, maior número de professores leigos tem partilhado conosco tanto o trabalho quanto a missão. No decênio de 1970, na luz do Concílio Vaticano II, os Irmãos
começaram a considerar o imenso fluxo de evangelização que viria com o
laicato contratado, se fosse sincronizado com o ideal proposto por Champagnat. Haja vista os pais de alunos e as suas associações. Em 1985, o XVIII
Capítulo Geral inseriu nas Constituições o artigo 164.4, que fala da criação
do “Movimento Champagnat da Família Marista”. Em 1993, leigos tomaram
parte no Capítulo geral dezenove. O documento de 1998 “Nas pegadas de
Marcelino Champagnat, visão da educação marista hoje” foi dirigido tanto
aos Irmãos quanto aos leigos envolvidos no apostolado dos Irmãos Maristas. Antes, “O educador marista”, escrito pelo Irmão Gregory Ryan, foi usado em algumas Províncias tanto por Irmãos quanto por leigos, e foi considerado condizente com sua abordagem indutiva.
A canonização de Marcelino Champagnat, em 18 de abril de 1999, proclamou-o santo de todos, isto é, o seu carisma passou para a Igreja. Dezessete leigos participaram do Capítulo geral vinte em 2001. Em 2003, o Con-
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selho geral criou a Comissão dos Leigos, como parte da Administração geral. Em 2006, tornou-se o Secretariado dos Leigos. Em 2004, a Assembléia
Internacional da Missão Marista foi lançada; em Mendes, RJ, Brasil, no mês
de setembro de 2007, houve a solene celebração. Em 2006, uma Comissão
internacional foi formada para escrever o documento “A vocação do leigo
marista”. Em 2007, foi a vez do documento “Água da rocha”, obra publicada para leigos e para Irmãos.
A sorte está lançada: se a “terna afeição” marceliniana para com os jovens
deve permanecer como ‘graça de salvação’ no mundo, então devemos encontrar o modo de sê-lo juntos.
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A opção pelos pobres
na Província Marista
da Nigéria
Irmão Benjamin UMOH, FMS
Província da Nigéria
Entre as muitas opções e apelos no mundo hodierno, a opção pelos pobres não é só preocupação da Igreja, mas preocupação fundamental para a
sua própria vida e missão.
Para nós, Irmãos Maristas, a opção pelos pobres tem longa tradição, desde
o Fundador são Marcelino Champagnat. A fundação dos Irmãos Maristas e a
sua espiritualidade nasceram da paixão e compaixão, paixão pelo Senhor e
compaixão pelo seu povo. Na carta à rainha Marie Amelie, em maio de 1835,
Marcelino escreveu: “Vi com os meus próprios olhos na área da comuna de
Saint Chamond, Loire, no atinente à educação dos jovens, o que me fez recordar as dificuldades que eu próprio tive, na idade deles, por causa da falta
de professores. Apressei-me em colocar em operação uma idéia que havia tido: formar uma Associação de Irmãos docentes para a área rural, onde a pobreza de muitos não lhes permite sustentar as escolas dos Irmãos de la Salle”.
No coração dessa carta insere-se a compaixão pelos pobres e desatendidos da sociedade atual. O que Champagnat viu por si e em si não era senão
as penas, sofrimentos, miséria e ignorância que acompanham a pobreza: carência material e espiritual de todo o tipo, como no caso do reiterado Montagne, em Les Palais, doente de morte e sem o conhecimento de Deus, da
religião e do fim da sua própria vida. Quem sabe quantos jovens partilham
o seu destino? Esta era a realidade em que Champagnat viveu; para ele seria um ponto sem retrocesso na sua determinação de formar o ramo dos Irmãos docentes, em Lavalla em 1817 e a subsequente fundação dos Irmãos
em l’Hermitage, em 1825.
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A opção pelos pobres é a atitude de ver o mundo, as pessoas e o ambiente através dos olhos dos pobres: estar e trabalhar com eles na solidariedade, no respeito e no amor. Isso deve levar ao comprometimento pleno
de agir em prol da justiça, em favor daqueles sofrem as penas da pobreza e
da marginalização.
Os Irmãos Maristas da Nigéria, em resposta ao apelo da Igreja, porque
imbuídos no verdadeiro carisma do Fundador Marcelino Champagnat, assumiram a opção em favor dos pobres na sua respectiva área de apostolado, por meio da educação dos jovens das nossas escolas e pelos cuidados
das pessoas necessitadas e desafiadas.
O ENSINO SOCIAL DA IGREJA
A Igreja Católica tem longa tradição no ensino social, especialmente no
que concerne aos pobres. A opção pelos pobres, entre outros temas apresentados no Ensino Social católico, se fundamenta nos ensinos de Jesus Cristo por mediação dos Apóstolos. A opção pelos pobres é inerente ao ensino
da Igreja. Constitui princípio que se fulcra na divina dignidade da pessoa humana, porque criada à imagem e semelhança do seu criador (Gen 1,26-27).
Ponderando este princípio, a Igreja focaliza a atenção naqueles cuja dignidade tem sido pisada, abusada, menosprezada, ou que está em perigo, como
resultado de um sistema economicossocial injusto, corrupto e depravado da
sociedade humana. Assim, as situações e experiências dos pobres oferecem à
introvisão da Igreja a procura de uma estrutura da vida social mais justa, para
cuja consecução Deus faz continuamente apelos à comunidade humana.
A opção pelos pobres é parte integrante da justiça social. A ideia de justiça social, cronologicamente, apresenta traços desde o sacerdote Luigi Taparelli, SJ, em 1840. No seu jornal Civiltà Cattolica, ele chamou a atenção
para o tema de que o capitalismo bucaneiro e o socialismo autoritário minavam a unidade da sociedade. Ele estava preocupado com os problemas
que levantava a revolução industrial. Os seus escritos hão de ter influenciado a encíclica de Leão XIII de 1891, intitulada “Rerum Novarum”, em que
se contempla a condição dos operários. Leão XIII lançou o fundamento do
que hoje se pode chamar ensino social católico. A encíclica se reporta ao
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A OPÇÃO PELOS POBRES NA PROVÍNCIA MARISTA DA NIGÉRIA
estado dos operários pobres urbanos e ao capitalismo sem peias. O Papa faz
referência à instabilidade social e ao conflito do trabalho que a aurora da
revolução industrial vinha levantando. Ele enfatizava a função do Estado em
promover a justiça por meio da proteção dos direitos dos trabalhadores. A
Igreja denunciava o mal presente nos excessos do capitalismo e ensinava os
corretos princípios sociais para assegurar a harmonia entre os operários e o
empregador.
O Papa propõe o seguinte.
‘O operário e o empregador devem fazer um acordo livre
e com norma especial combinar em liberdade o salário;
contudo aí subjaz um ditame de justiça natural mais imperioso e antigo do que toda a barganha entre um e outro
homem, isto é, o salário não pode ser insuficiente para o
sustento de um operário frugal e de bom procedimento. Se,
pela necessidade ou medo de mal maior, o operário aceita
condições mais duras, porque o empregador ou seu representante mais não dá, o operário é vítima da força e da
injustiça. Em tais ou similares questões, como, por exemplo, as horas de trabalho em diferentes empresas, quanto
às condições sanitárias e de segurança em fábricas e oficinas, para desbancar a indébita interferência da parte
do Estado, especialmente quando circunstâncias, tempo e
locais diferem muito, é aconselhável que se recorra a
sociedades ou juntas, ou a outro modo de salvaguardar os
interesses do operário; o Estado deve atender ao apelo que
é feito, se as circunstâncias o exigirem, fazendo valer a
sua sanção e proteção.248’
Esse excerto apresenta uma introvisão na via de legítima preocupação do
Papa com os operários, muitas vezes, vítimas da exploração, à míngua de
razoável remuneração. Os operários não têm esperança de serem livrados
desse ciclo vicioso de pobreza. A mensagem de Leão XIII constitui uma mensagem de esperança e libertação, obviamente ainda de relevo nos dias atuais.
248
Leão XIII, ‘Rerum Novarum’, sobre a condição dos operários, no. 45, 1891.
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Quarenta anos mais tarde, o Papa Pio XI, em 15 de maio de 1931, editou
a encíclica “Quadragesimo Anno”, endereçada à reconstrução da ordem social, leia-se depressão de 1929. Segue um excerto de Pio XI.
“A liberdade de ação deve ser deixada tanto aos cidadãos
individuais como às famílias; mesmo assim na condição
de que o bem comum seja preservado e o mal de todo o
indivíduo seja abolido. A função dos Administradores do
Estado, ainda mais, hão de vigiar sobre a comunidade e
cada uma das suas partes; mas, na proteção dos direitos
privados de cada indivíduo, deve ser dada a principal
consideração ao fraco e ao pobre. O rico provê em geral
à sua própria defesa, porque menos necessitado da proteção governamental; pelo contrário, a multidão sofrida,
sem meios de proteger-se, deve ser protegida pelo Estado.
Conseguintemente, dado que os assalariados constituem
a grande massa dos necessitados, o Estado deve incluílos na sua especial proteção e previdência.”249
O Papa está muito preocupado com a preservação do bem comum e a
incumbência do governo há de estar em proteger o pobre da indébita exploração. Ademais, nesta encíclica o Papa condena a voracidade que concentra o poder político e econômico na exploração. Ele propõe que a organização social seja fulcrada no princípio da subsidiariedade, isto é, os direitos dos indivíduos e dos grupos sociais de tomar as suas decisões e levar
a termo o que podem pela sua própria iniciativa e engenhosidade. A encíclica enfatiza a obrigação do Estado de intervir nos conflitos entre empregado e empregador e no assegurar os direitos dos operários.
Durante o Concílio Vaticano II, convocado e presidido pelo Papa João
XXIII e, depois, pelo Papa Paulo VI entre 1962 e 1965, um dos proeminentes documentos produzidos foi “Gaudium et Spes”, alegria e esperança. Este documento reafirma a dignidade da pessoa humana e sublinha a solidariedade da Igreja com o pobre. O documento restaura o compromisso da
Igreja de ser solidária com o pobre e com o que sofre. Este é o sentido verdadeiro da Igreja no mundo moderno. O parágrafo de abertura do documento expressa-se nos seguintes termos.
249
Pio XI, ‘Quadragesimo Anno’, reconstrução da ordem social, nº 25, 1931.
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“As alegrias e esperanças, o sofrimento e a angústia das
pessoas do nosso tempo, especialmente daqueles que são
pobres e sofridos, são, do mesmo modo, as alegrias e esperanças, o sofrimento e a angústia dos seguidores de
Cristo. Nada do que é genuinamente humano deixa de
encontrar eco nos seus corações. Eles constituem a comunidade do povo unido em Cristo e guiado pelo Espírito Santo na sua peregrinação para o reino do Pai, como
portadores de mensagem de salvação para toda a humanidade. Eis por que eles acalentam um sentimento de
profunda solidariedade com a estirpe humana e com a
sua história.” 250
Esta parte do documento focaliza a situação da pessoa humana no mundo e na missão da Igreja de trabalhar com o pobre e restaurar a esperança
de melhor existência humana, harmonia e destino.
Paulo VI, na sua encíclica intitulada “Populorum Progressio”, focaliza o
desenvolvimento da pesssoa humana e condena com veemência as situações que provocam pobreza global e mais desigualdade:
“Nas nações de nível econômico, social e educacional de
muita disparidade irrompem inveja e discórdia, muitas
vezes ameaçando a paz. Como dissemos aos Padres Conciliares, no nosso retorno das Nações Unidas: importa dedicar
a nossa atenção à situação daquelas nações que ainda
lutam para o seu desenvolvimento. Queremos significar,
para falar com mais clareza, que a nossa caridade para
com os pobres, aliás, ainda por demais numerosos no
mundo, deve tornar-se mais solícita, mais eficaz e mais
generosa.” 251
Aqui, o Papa reconhece as multidões inumeráveis dos pobres que sofrem
em várias situações e regiões do mundo, e apela à solidariedade e generosidade do povo para liberá-los e dar-lhes autoestima.
250
251
Gaudium et Spes (GS) nº 1, 1965.
Paulo VI, ‘Populorum Progressio’, o desenvolvimento dos povos, no. 64, 1967.
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A encíclica “Sollicitudo Socialis”, do Papa João Paulo II, sublinha a solidariedade para com os pobres nestes termos.
“O exercício da solidariedade com cada sociedade é válido, quando os seus membros se reconhecem reciprocamente como pessoas. Os mais influentes, porque mais bem
aquinhoados de bens e serviços comuns, devem sentir-se
mais responsáveis pelos fracos e mais prontos a partilhar
com eles todas as suas posses. Os que são mais fracos, na
sua parte, no mesmo espírito de solidariedade, não devem
adotar uma atitude puramente passiva ou que seja destrutiva do fabrico social; mas, enquanto reclamam os seus
legítimos direitos, devem fazer o que está ao seu alcance
para o bem de todos. Os grupos intermediários, no seu
turno, não devem insistir, egoisticamente, no seu particular
interesse, mas respeitar o interesse dos outros.” 252
A necessidade da interdependência de pobres e bem situados na sociedade é essencial. O rico é chamado a ser solidário com o pobre, ao passo
que este permanece comprometido com a busca da apropriada solução da
sua situação.
Outros documentos e encíclicas, que são grandes instrumentos quando
se fala de opção pelo pobre, como na intitulada encíclica “Octogesima Adveniens”. Esta apela às igrejas locais para que respondam às injustas situações de opressão e sofrimento, fazendo apelo em prol da justiça. A encíclica “Evangelii Nuntiandi” apresenta o Evangelho como meio de libertação e
instrumento de combate contra as estruturas opressivas. A encíclica “Laborem Exercens” enfatiza os direitos do trabalho, e apela em favor da justiça
para quantos estão no meio operário.
As Conferências dos Bispos, como a Conferência dos Bispos Latinoamericanos, em Medellín, Colômbia, de 1968; Idem de Puebla, México, em 1979;
a Conferência dos Bispos Católicos dos USA de 1986, e a Conferência dos
Bispos Africanos, todas têm enfatizado a opção pelos pobres e convidaram
igualmente a Igreja a entrar em solidariedade com os pobres, com aqueles
que não têm voz nem defesa na sociedade.
252
João Paulo II, ‘Sollicitudo Socialis’, preocupação social, no.39, 1987.
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Na história da Igreja, também houve personalidades que fizeram uma opção central pelos pobres na sua busca de Deus. Marcelino Champagnat fundou a Congregação dos Irmãos Maristas das Escolas especificamente em favor da educação cristã dos jovens e dos empobrecidos. Dom Bosco e os Salesianos focalizaram o trabalho com os jovens desprotegidos. Vicente de
Paulo e os Vicentinos devotaram-se a auxiliar os pobres. João Batista de la
Salle foi pioneiro na educação do povo comum. Madre Teresa de Calcuttá
viveu, partilhou e morreu em favor dos pobres da Índia.
Tais homens e mulheres optaram pelos pobres e contribuíram significativamente para aliviar o sofrimento e a pobreza; muito é necessário que seja feito nos nossos dias, especialmente em contraposição daquelas estruturas que são uma das causas a perpetuar pobreza e injustiça.
O INSTITUTO DOS IRMÃOS MARISTAS E OS POBRES
Marcelino nasceu em 1789, num tempo na história da França, em que a
Igreja estava à mercê da Revolução e dos seus excessos. A Assembléia nacional confiscou as propriedades da Igreja; os bispos perderam o controle da
educação da juventude. Era tempo de insurreição e tumulto contra a dignidade do ser humano como pessoa. Foi época de crise na história da França.
João Batista, pai do Fundador, tinha boa cultura para desincumbir-se das
responsabildiades públicas assumidas. Marcelino teve pouco gosto ou, melhor, pouca oportunidade para o estudo. Quando recrutar jovens para o sacerdócio se tornou crítica, ele resolutamente foi ao seminário menor. Na avaliação do cunhado Benoit Arnaud, Marcelino não era assaz dotado para os
estudos acadêmicos.
Marcelino superou as dificuldades e desafios dos estudos no seminário
com duro empenho no estudo e nas orações; em 1816, foi ordenado sacerdote. Foi mandado a Lavalla como coadjutor ou vice-pároco. Ele visitou o
jovem Montagne,253 doente terminal, que nada sabia de religião nem do fim
principal do homem na terra nem nada de Deus. O fato serviu de catálise
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Montagne, de dezessete anos, morava no povoado Les Palais, encosta do Bessat.
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para a fundação dos Irmãos, cujo primário apostolado seria o ensino do catecismo e a educação dos jovens da área rural.
Marcelino se condoeu da situação lastimosa em que muitos jovens e crianças se encontravam. A sua experiência e abertura de coração despertaram-lhe
a sensibilidade para com as necessidades do tempo, de modo especial a ignorância dos jovens no atinente à religião, além da vontade de melhorar as situações de miséria ou pobreza em que jaziam. Foi isso uma catálise de motivação
para Marcelino fundar o Instituto para a educação cristão dos jovens.254
O Prospecto de 1824 expressou as atitudes de sensibilidade e espírito prático de Marcelino para a solução da realidade dos jovens pobres. O ensino
das crianças em geral e em particular dos pobres órfãos era objeto da Fundação. Ele havia afirmado: “Tão logo acabemos a construção de l’Hermitage e
se os nosso meios nos permitirem melhorar o suprimento de água, vamos receber e abrigar crianças por caridade e ensinar-lhes a educação cristã. As de
bom procedimento e os bons estudantes serão empregados na casa.” 255
A educação dos jovens, especialmente crianças pobres e órfãos, foi ponto central para Marcelino e para os primeiros Irmãos. Era missão que tinha
o plano de incluir jovens de todas as raças, religiões e estratos sociais.
Diversos artigos das Constituições foram dedicados à missão dos pobres.
Os Irmãos, na sua missão com este grupo, mostram solidariedade e amor,
particularmente com os que vivem à margem da sociedade. Os Irmãos se
empenham em trabalhar com os pobres, ajudando-os a melhorar a sua situação de pobreza e de analfabetismo. O artigo 34 é enfático neste assunto.
“Em sintonia com a voz da Igreja e conexão com a nossa
vocação, somos solidários com os pobres e com as suas justas causas. Damos-lhes a nossa preferência em qualquer
lugar e em qualquer tarefa ou trabalho. Esta preocupação
com os pobres impele-nos a conhecer a raiz e causa da
sua desgraça; também nos leva a libertar-nos do preconceito e da indiferença a respeito deles.” 256
254
Constituições, nº 2
Veja o prospecto de 1824; versão A (AFM 132.008, nº 10)
256
Constituições, nº 34.
255
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Estando solidários e em comunhão com os pobres, participamos da missão da Igreja, sobremodo na missão salvadora de Cristo. Mais que nunca,
muitos jovens estão em risco de serem privados do conhecimento do Evangelho de Cristo, devido ao estilo de vida de subversivo materialismo. Consequentemente, o apelo a fazer a opção em favor dos pobres, como prioridade da nossa missão e apostolado, é essencial.
Os Capítulos gerais IXX e XX apresentaram grande preocupação com a solidariedade acerca dos pobres e menos aquinhoados da sociedade. O Capítulo geral IXX tem o seguinte pensamento sobre o tema: “Sejamos assaz ousados para desconsiderar alguma parcela da nossa segurança para ficarmos
mais achegados aos pobres e a outros que pouco contam. Não temamos envolver-nos com todos aqueles que vivem nas margens da sociedade.”257
Como continuação, o Capítulo geral XX, com o lema “Escolhamos a vida”, fez cinco apelos, um dos quais foi um convite aos Irmãos e encorajamento para o Instituto, nestes termos:
“Avante, Irmãos e consociados leigos, por claro e decisivo
caminho, achegados aos jovens e crianças mais empobrecidos e marginalizados, mediante modalidades novas
de educação, evangelização e solidariedade.” 258
O Capítulo foi estímulo e impulso para os Irmãos, especialmente para
idear novos modos de atingir os pobres nas nossas próprias unidades administrativas, seja por meio da educação e evangelização, seja na ampliação
da solidariedade. Esse Capítulo reconheceu o fato de que a solidariedade
com os pobres constitui tarefa interminável, como para confirmar as palavras de Cristo a Judas: Pobres sempre os tereis, entre vós.259
Estamos seriamente convocados a atender aos jovens, sem nunca excluir
os pobres, porque somos servos trabalhadores e não senhores construtores;
somos serventuários, não messias; somos profetas do futuro, não do nosso
próprio futuro.260
257
Atos do Capítulo geral XIX, Mensagem nº 20, Roma, outubro de 1993.
Capítulo geral XX, Roma, 2001.
259
Mt 26,11
260
Palavras atribuídas, por vezes, ao arcebispo Oscar Romero, martirizado em São Salvador, 1980.
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A SOCIEDADE NIGERIANA E O APARECIMENTO
DOS IRMÃOS MARISTAS.
A Nigéria é um país do oeste africano, o mais populoso da África, com
cerca de 140 milhões de habitantes, segundo o censo de 2006. O país se divide em trinta e seis Estados ou Províncias, com comunidades de Irmãos Maristas em sete deles.261 Sem dúvida, o país é abençoado com muitos recursos, tanto humanos quanto naturais.
Não obstante tais recursos, como petróleo, estanho, columbita, ferro, carvão, pedra calcárea, zinco, gás natural etc. há vastas situações de pobreza,
miséria e doenças. Segundo relatos da IFAD, “a situação tem piorado desde
o decênio de 1990, a ponto de ser considerado hoje um dos vinte países mais
pobres do mundo. Acima de 70% da população é considerada pobre, estando 35% do total em pobreza absoluta ou miséria.262
Os pobres são percebidos nas fileiras de famílias de rua, sobremodo nos
centros urbanos maiores, esmoleres, vendedores ambulantes, trabalhadores
eventuais, prostitutas etc. A lista é infindável. Os setores pobres não contam
apenas grupos de minguadas posses, mas incluem também os que sofrem
enfermidades espirituais ou mentais. Estes dois últimos aspectos não são
propriamente contemplados nesta exposição.
A maioria das pessoas pobres encontra-se nas regiões rurais, onde as amenidades sociais e a infraestrutura são limitadas ou inexistentes. Estas pessoas dependem apenas da agricultura para viver. Cerca de 90% do alimen261
Os Irmãos têm as suas comunidades e apostolado em Abuja (FCT), Kogi State, Enugu State, Ebonyi State, Anambra State, Imo State, e Abia State. Reporte-se ao appendix.
262
Veja o relato sobre a pobreza rural na Nigéria por IFAD, 2007. IFAD é o fundo internacional para o desenvolvimento da agricultura, agência especializada das Nações Unidas; foi estabelecida como instituição financeira internacional em 1977, como um dos maiores resultados da Conferência Mundial sobre alimentos de 1974. A Conferência foi organizada em resposta às crises alimentares do decênio de 1970, que afetou primariamente os países da África Saariana. A Conferência decidiu que um fundo internacional de desenvolvimento da agricultura seria estabelecido de imediato para financiar projetos de desenvolvimento agrícola,
sobremodo para a produção de alimentos nos países em desenvolvimento.”Uma das mais
importantes introvisões que emergiram da Conferência foi que a causa da insegurança alimentar e da fome não era tanto a falta de produção, mas os problemas estruturais relativos
à pobreza e ao fato de que a maioria da população pobre do mundo em desenvolvimento se
concentrava nas zonas rurais.
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A OPÇÃO PELOS POBRES NA PROVÍNCIA MARISTA DA NIGÉRIA
to do país é produzido por agricultores de pequena escala, cultivadores de
pequenas propriedades e, de mínima tecnologia, dependem mais da chuva
do que da irrigação. Alguns grupos lutam em atividade rural de mera subsistência. Ademais, grande proporção desse contingente rural sofre de problemas nutricionais e outras enfermidades.
Consequentemente, os que não logram superar as pragas da vida rural preferem a alternativa de migrar para as cidades. Nas cidades, os migrantes pobres, e sem preparo para o imediato, se confrontam com a realidade de ter
moradia e estão às voltas com a escassez de alimento. Para ganhar a vida, então, alguns se comprometem em crimes hediondos, como assaltos e sequestros, prostituição e militâncias criminosas. Outros terminam como esmoleres,
guardas domésticos, seguranças, etc.
No grupo mais afetado pela pobreza estão as mulheres, os jovens e os incapacitados. O sistema social nigeriano é ainda de natureza patriarcal: poucos privilegiados comandam a grande maioria da população. A pessoa tem de pertencer ao “grupo dominante” para ter alguma coisa do governo. As pessoas jovens estão diante de um dilema. São consolados pelos de mais idade, que lhes
dizem de não se preocuparem, já que o manto da liderança amanhã passará a
eles. Os jovens se perguntam quando virá esse amanhã. Na realidade, o amanhã tem dificuldade de chegar para eles; os de mais anos, líderes, são muito relutantes em passar o bastão para os novos, apesar de a vez destes já ter chegado. Eis um dos porquês que perpetuam a miséria na Nigéria. Muitos jovens, que
não gostam de esperar o dito amanhã, são vistos como proscritos sociais e ameaça à sociedade geral pelas suas atividades fora da lei ou da religião. Além desse nocivo patriarcalismo, há o problema da corrupção como fonte de pobreza
e miséria. A corrupção é endêmica no país; não poucos oficiais e autoridades
drenam para si grande parte dos fundos destinados ao bem das massas.
Outro lastro ou pano de fundo, que explica a pobreza da Nigéria, tem
que ver com a dicotomia religiosa, a violência entre maometanos e cristãos.
Tal crise irrompe em violência, levando a situações que fazem crescer a miséria e a nutrição desadequada.
Alguns agitadores políticos têm equipado militantes religiosos e étnicos
para expressar as suas frustrações livremente, com crescente violência. Nos
últimos anos, centenas deles morreram em choques entre governantes e militantes.
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No delta do Níger, onde as indústrias do petróleo operam, há muitos atos
de sabotagem contra as companhias multinacionais pelos militantes de grupos desconhecidos, que procuram aumentar a fatia nos recursos do petróleo,
em benefício da população do delta do Níger. Isso, muitas vezes, leva a choques fatais que envolvem também os pobres; eles perdem as próprias casas,
se são privilegiados, se não são sequestrados ou mortos pelas milícias.
Seja como for que você considere a pobreza, ela é uma “situação infeliz”
na vida do ser humano. É uma violação e infração da natureza humana. Constitui quebra dos inatos direitos da pessoa humana de ter uma vida digna. A
menos que se adopte o princípio da solidariedade na partilha dos recursos
comuns do mundo com aqueles menos aquinhoados, sempre vamos ficar
na prisão das nossas consciências, por havermos falhado em amar de verdade e de coração.
OS IRMÃOS MARISTAS NA NIGÉRIA
A chegada do Instituto dos Irmãos Maristas das Escolas à Nigéria abriu um
capítulo de esperança para os marginalizados da sociedade nigeriana, que
procurou e encontrou refúgio à sombra deles. Os Irmãos Maristas chegaram
à Nigéria em 1949, por convite do Bispo católico do vicariato de Owerri, Rev.
Dr. Joseph Whelan, CSSp. Estes Maristas missionários vieram da Grã-Bretanha: Irmãos Conleath James Dolan e Cormac Sheils foram solicitados pelo Bispo para tomarem conta de uma escola secundária, chamada Bishop Shanahan’s College, em Orlu, Estado Imo, escola que estava no estágio inicial.
O estabelecimento começou em 1950, com o Irmão Conleath Dolan como o seu primeiro diretor. Os Irmãos receberam enorme apoio do povo de
Orlu, especialmente por parte de Igwe Chief Patrick Acholonu. Com o excelente sucesso registrado nesta escola, a sua popularidade foi longe, de
modo que muitas famílias nacionais e estrangeiras vieram em busca de matricular os filhos. Com o tempo, houve necessidade de mais Irmãos para tomar conta de outro estabelecimento, que levou o nome de Colégio da Imaculada Conceição, em Enugu, Estado de Enugu; dita escola estava antes sob
a direção dos Padres do Espírito Santo. O Irmão Aloysius Palmer foi convidado e se tornou o primeiro diretor desta escola em 1955; havia dois Irmãos
trabalhando com ele.
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A competente direção e administração dessas escolas ficaram conhecidas
pela reputação do ensino acadêmico, esporte e formação do caráter, fama
que se espalhou pelo país. Os Irmãos muito se empenharam para engrandecer a oportunidade educacional dos jovens da Nigéria.
Em 1956, a Congregação autóctone de São Pedro Claver, fundada em 1944,
pelo Bispo Charles Herrey, dedicada ao apostolado paroquial263, decidiu entrar em diálogo com os Irmãos Maristas para a fusão dela com a nossa.264
Quando as negociações foram concluídas, a Administração geral de Roma
deu a sua aprovação para a fusão. Consequentemente, esses novos Irmãos
Maristas, antigos membros da Congregação de São Pedro Claver, foram incorporados: casas, comunidades e propriedades, tudo se tornou marista.265
O período que se seguiu, de 1957 a 1966, viu a profissão religiosa dos
primeiros Irmãos nigerianos. Esses jovens Irmãos, mais tarde, foram enviados ao Colégio Bispo Shanahan ou ao Colégio Imaculada Conceição, para
completarem a sua formação secundária. Completada tal formação secundária, alguns foram à Escócia para aperfeiçoamento cultural, enquanto outros foram à Inglaterra. Isso, aliás, era um pré-requisito para o seu futuro
apostolado como Irmãos Maristas.
Entre 1967 e 1970, o sistema escolar e outras facetas do sistema nigeriano foram rompidos pela irrupção da guerra civil. Naturalmente, a guerra civil nigeriana deixou indizíveis misérias, pobreza, desemprego, famílias atiradas à rua e muitas vidas perdidas no país. O apostolado escolar desses
missionários maristas teve uma parada. Muitos soldados e civis ficaram feridos na guerra. O sofrimento humano era óbvio em tão devastadora destruição de propriedades e vidas. A atenção dos Irmãos foi dirigida às vítimas da guerra: desgraças, miséria, fome, enfermidade; esta era mais aparente nas crianças de Kwashiorkor. Esses missionários maristas de corajoso
263
A Congregação de São Pedro Claver foi fundada para o apostolado da assistência dos sacerdotes nas paróquias e para o ensino do catecismo. No tempo da fusão, eles tinham três
Irmãos perpétuos, vinte temporários, trinta noviços, doze postulantes, depois de doze anos
de existência.
264
A fusão da Congregaão de São Pedro Claver ocorreu a pedido do Bispo Whelan da Diocese de Owerri, provavelmente devido à falta de formação condizente dos Irmãos e do temor da extinção. Veja o apêndice: a carta de fusão das duas Congregações.
265
Essas comunidades eram antes comunidades de Pedro Claver; mas, com a fusão, tornaramse comunidades maristas. A comunidade Ihioma de Okpala e a comunidade de Azaraegbelu,
ambas estavam no Estado Imo. Mais tarde, a comunidade de Ihioma foi fechada pelos Irmãos.
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espírito tinham de arriscar as suas vidas para estabelecer campos de refugiados, com o fim de cuidar das vítimas da guerra. Eles trabalharam com as
Organizações de Caridade da Europa, para angariar recursos materiais para
as pessoas afetadas. Para esses Irmãos pioneiros, as vítimas da guerra civil
eram os seus ‘Montagnes’. Estando ao serviço dessa pobre gente, eles trouxeram à existência a compaixão de Champagnat, o devotamento, o trabalho sério, o compromisso e o sacrifício.
Finda a guerra, em janeiro de 1970, havia muitos soldados feridos e também civis. O noviciado dos Irmãos Maristas em Uturu tornou-se o depósito
dos materiais de assistência; assim, essas pessoas vinham aí para serem tratadas e cuidadas. Devido ao afluxo desses assistidos, o Irmão Francis McGovern solicitou ajuda no exterior; duas agências se prontificaram em ajudar.
Uma dessas agências era a organização beneficente alemã chamada ‘Misereor’. Ela contribuiu imensamente para o nascimento da Hopeville, Cidade
da Esperança, onde foram acomodadas muitas pessoas com incapacitações
físicas, oriundas da guerra civil.
O setor dos jovens fisicamente incapacitados em Hopeville, Uturu. Com eles estão os Irmãos Benito
Arbués, Luis Sobrado, Joe Muoka e estudantes de MCA em 1998.
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Hopeville foi autorizada em 17 de novembro de 1971. A publicação oficial da abertura do Centro de Reabilitação de Hopeville, em Uturu, foi em
27 de novembro de 1971. Os seus principais objetivos seguem abaixo.
Um dos objetivos primários de Hopeville é prover os amputados com conveniente equipamento que lhes possibilite
ganhar a vida e tornarem-se úteis e produtivos membros da
sociedade; tirá-los da rua, onde já havia pessoas demais com
similares incapacitações, para que não necessitassem
tornar-se esmoleres profisisionais.
Os Irmãos, assim, embarcaram num programa de apoio, auxiliando os pensionistas de Hopeville. O programa de apoio incluiu: criação de galinhas, moinho de arroz, agricultura, serviços de transporte, fabrico de sapatos e outros.
Nem faltavam outros planos, como impressora de porte médio e curtume.
Uma vista nos Projetos de Hopeville
Esses projetos conseguiram grande sucesso
e contribuíram para angariar fundos para o Centro de Hopeville. Eles geraram empregos para
os residentes em Uturu; muitos deles foram contratados a trabalhar com os Irmãos, que eram
gerentes de diversos serviços.
Serraria: Dirigida pelo
Ir. Michael
e o Sr. Adolphus Ade
Criação de aves:
Dirigida pelo Ir. Albert.
Efetivo 7.000 aves.
Todos os projetos foram aprovados pelo Conselho geral, em Roma, na primeria parte do decênio de 1990.
Além de criar uma oportunidade para os incapacitados físicos da guerra, equipando-os com
qualificações para a vida, Hopeville foi também
estabelecida para dar autoestima às crianças e
jovens, com autoconfiança e autoemprego. Era
necessário reduzir o desemprego, característica primeira do período posterior à guerra. Em
consequência, os pensionistas de Hopeville tinham de ser treinados no fabrico de sapatos,
alfaiataria, reparos eletrônicos etc. Os Irmãos
criaram também o departamento de ortótese,
prótese e fsioterapia. Este departamento pro187
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Da esquerda à direita
Fila de frente: Rev. Ir. Francis, Sra. Jan Grainer
(fisioterapeuta), Rev. Ir. James.
Segunda fila: Rev. Ir. Austine (Diretor de
Amputados), Sr. J. Ijioma, Rev. Ir. Aloysius,
Sr. Jacob Nwokolo, Rev. Ir. Rufus.
Fila do fundo: Rev. Ir. Jude, Rev. Ir. Albert,
e Rev. Ir. Michael.
Moinho de arroz:
Ir. Rufus & o Sr. Linus Onyeador, gerente
duzia membros protéticos para amputados. A criação de aves e a serraria foram igualmente estabelecidas, como apoio profissional do centro de Hopeville.
O Centro de Hopeville foi notável nos serviços que prestou aos incapacitados físicos. Os pensionistas foram tratados gratuitamente. Anualmente, muitos
formados em alguma profissão saíam de Hopeville; os Irmãos se certificavam
de que eles estivessem adequadamente equipados para o mundo em que iam
entrar, realizando-se na atividade profissional aprendida no Centro.
Outro importante evento na fase após a guerra foi o confisco das escolas
da missão pelo governo. O Irmão Andrew Iwuagwu escreveu: “Esta nociva
e injusta intervenção nas escolas de educação cristã impediu os Irmãos de
exercer influência normal no Colégio do Bispo Shanahan e do Colégio Imaculada Conceição”. A única escola deixada para os Irmãos nesse tempo foi
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o juvenato, aberto em 1965, para a educação dos jovens que desejavam abraçar a carreira de Irmão Marista.
Em 1981, Hopeville fez mudança paradigmática. Havia necessidade de
introduzir estudos para secretariado para os pensionistas e para outros estudantes que procuravam matricular-se. Um setor do que sobrou da serraria virou sala de aula para crianças e jovens pobres em busca de sentido para as suas vidas. Os Irmãos gastaram tempo, energias e recursos para educá-los. Deste berço surgiu a atual “Academia Marista de Inclusão” a qual,
desde o começo, vem registrando sucesso no conteúdo acadêmico, nos esportes e na formação do caráter.
Dado que o governo não pôde administrar a maioria das escolas tomadas aos missionários, ele começou a perder o domínio na política nacional
da educação. Desse modo, os indivíduos particulares, as corporações e institutos e a Igreja começaram abrir escolas.
Os Irmãos Maristas na Nigéria optaram por considerar o apostolado escolar como prioridade, com o fim de atingir e educar os pobres e marginalizados. Todas as escolas estabelecidas pelos Irmãos ficam na área rural. Isso foi feito calculadamente, para garantir aos menos favorecidos e pobres a
oportunidade da educação como conseguiam as famílias mais aquinhoadas.
As escolas secundárias maristas, onde os Irmãos trabalham são seis. Veja a
lista a seguir.
O Ir. Francis instruindo os amputados e outros aprendizes em calçados - 1971.
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Escolas
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Foundação
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Localidade/Estado
Meta original
Juvenato dos
Irmãos Maristas (MBJ)
1963
Uturu,
Abia State
Para formação
dos candidatos dos
Irmãos Maristas
Centro Marista de
Reabilitação, Hopeville
para
Academia
de Inclusão Marista
1981
Uturu,
Abia State
Educação
de jovens pobres
visando à
autoconfiança
e autodomínio
1983
Colégio CristoRei
1991
Gwagwalada,
Abuja (FCT)
Propriedade
da Diocese.
Educação dos
jovens pobres
visando à
autoconfiança
e liderança
Colégio de
Inclusão Marista
1993
Ezzagu,
Ebony State
Educação para
a autoconfiança
Colégio de
Inclusão Marista
2000
Nteje,
Anambra State
Educação para
a autoconfiança
Colégio Marista
do Sagrado Coração
2003
Ejule,
Kogi State
Educação para
a autoconfiança
Escolas primárias, quatro, incluem: Enfermagem e escola primária, Uturu, Abia State. Enfermagem e escola primária, Ezzagu, Ebony State. Enfermagem e escola primária, Emene, Enugu State. Enfermagem e escola primária, Azaragbelu, Imo State.
O governo não subsidia esses estabelecimentos. Antes, para cada estabelecimento há certa porcentagem que o governo exige que se pague. Essas escolas têm estado a serviço dos pobres, cujas famílias não tinham recursos para matriculá-los nas escolas secundárias do governo.
As escolas secundárias maristas funcionam como internatos, onde os estudantes passam nove meses sob vigilante cuidado dos Irmãos. A pedagogia da presença é generosamente praticada entre os Irmãos.
As crianças pobres recebem também ajuda das Províncias ou Estados, na
forma de bolsas de estudos, auxílio disponível para os alunos verdadeira-
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mente necessitados, particularmente os órfãos. As diversas atividades organizadas nas nossas escolas maristas visam acrescentar valor e autoestima aos
jovens: formação integral de autoconfiança para o discente.
Outra modalidade de os Irmãos da Nigéria trabalharem diz respeito à solidariedade com os pobres por intermediação de instituições como ‘NIKE
CENTRE’ for the ex-leprosy victims in Emene, Enugu State.
O centro é de fato um lar para os antigos leprosos, que sofreram o ostracismo das suas famílias e comunidades. Em 1972, John Lakin, filantropo
protestante e missionário britânico, decidiu agrupar todas as vítimas da lepra para restituir-lhes a esperança no homem e no destino. Ele ergueu este
centro e o administrou até 1977, quando retornou ao Reino Unido; ele o entregou à administração dos Irmãos Maristas, em quem confiava; achava-os
capazes de assegurar a sua viabilidade, como via acontecer no Centro Hopeville. Os pensionistas do centro eram duzentos, de ambos os gêneros; foram rejeitados pelas famílias e pela sociedade. Os Irmãos trabalharam e viveram com essas vítimas.
Como forma de assegurar o futuro dos jovens nascidos nessas famílias sem
qualificação, os Irmãos fundaram uma escola primária e um curso de enfermagem para educá-los. Alguns desses estudantes fizeram jus a uma bolsa de
estudos oferecida pelos Irmãos, para que prosseguissem na sua formação.
Outros alunos foram exercitados em diversas profissões. Alguns lograram estabelecer-se com as suas famílias. Atualmente, há ainda 14 famílias266 vivendo no centro. Neste, as famílias se comprometem com alguma agricultura para completar o custeio assegurado pelos Irmãos.
Os Irmãos haviam iniciado uma criação de porcos para o centro. Destinava-se a sustentar o centro. Além do apoio dos Irmãos Maristas, há um leprosário alemão e uma T.B. Associação de Ajuda que auxilia o centro.
Há duas principais preocupações do centro: uma é a dificuldade em conseguir adequados fundos por tornar o empreendimento viável; a outra preocupação é a rede de estradas ao redor desta área que, na estação chuvosa,
se tornam intransitáveis.
266
Essas famílias compreendem oito homens e onze mulheres com vinte e seis crianças.
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As duras contrariedades enfrentadas pelos Irmãos, desde que fizeram a
opção pelos jovens pobres da Nigéria, explicitam-se a seguir.
• Dificuldades financeiras. Isso constitui grande ameaça à missão em favor dos pobres. O fato tem que ver com carência ou precariedade da
assistência do governo ou das corporações em ajudar os pobres. Muitas vezes, o governo reluta em prestar apoio ou ajuda.
• Intolerância religiosa. É situação complexa na Nigéria, onde há cristãos e muçulmanos e cultos espiritualistas autóctones. Há sempre preocupação e temor em perda de vidas, quando ocorre crise religiosa no
país, porque os religiosos fanáticos potenciam a ocasião para deflagrar terrorismo e violência contra os seus “infiéis”. Aí a missão em tal
perturbação se torna impossível.
• Barreira cultural. O país conta com uma situação multicultural, que
abrange várias línguas faladas, filosofias e crenças diferentes. Despende-se tempo em aprender a cultura do povo, onde queremos efetivamente trabalhar com os pobres. Algumas vezes isso bloqueia o
acesso aos pobres, especialmente quando for além do nosso limite cultura; a cultura tribal ou familiar nos assusta.
• Instabilidade e militância política. Os infelizes atos de sabotagem ou
violência registrados na Nigéria pelos militantes dos diversos grupos
têm causado perdas de vidas e bens, ameaçando o próprio governo e
a frágil economia do país. A área do delta do Níger hoje se torna verdadeiro antro de militantes. Estes homens hostilizam os pobres indistintamente, pondo obstáculo ao esforço de trabalhar com os jovens
pobres da região.
Essas são algumas das maiores contrariedades que os Irmãos encontram
na sua missão de opção pelos pobres. Esses empecilhos nunca detiveram a
paixão deles em colocar-se à disposição dos jovens, especialmente no apostolado do ensino em que estão comprometidos.
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REFLEXÃO E CONCLUSÃO
Os Irmãos na Nigéria, por meio do apostolado da escola e da assistência
social, lograram um impacto na vida dos pobres, livrando-os da ignorância
religiosa e intelectual, na parte da juventude que teve a oportunidade de estudar nas nossas escolas e de estar em contato com os Irmãos. O fato deve ser
reconhecido: os Irmãos, obviamente, só podem atingir pequena porcentagem
da população da Nigéria, educando-a e dando-lhe mais autoestima. Sem dúvida, novas formas de pobreza vão brotando na vida dos jovens e dos pobres;
se não for urgentemente enfrentado o problema, há séria ameaça de serem
vítimas do fado. Esta nova forma de ignorância é a ignorância ecológica. A
ecologia, ou aquilo que se considera ecossistema, ambiente tanto vivo como
telúrico, está em séria ameaça de degradação. Com o rápido crescimento das
indústrias e dos centros urbanos, o que equivocadamente se toma por desenvolvimento muito prejuízo já causou ao ambiente e tende a progredir. São
práticas bastardas de crescimento: agricultura predatória de ferro e fogo; pastagens demasiado intensivas; deplorável exploração madeireira e tantas outras formas. Isso tende a causar e já causou a poluição da água e a própria seca, por excesso de derrubadas da mata; o solo foi cultivado em excesso e conhece a própria erosão pelo vento; o ar vai ficando poluído, com emissão de
gases das indústrias, com destruição da camada de ozônio, potenciado tudo
isso pelo aquecimento global em marcha.
No ensino da religião e da ciência aos nossos jovens, há necessidade de
incorporar no currículo tópicos como ecologia, ambiente, meios de conservação. Jovens, pobres e ricos, devem aprender a respeitar e apreciar o meio
ambiente. Cumpre focalizar a atenção deles na conservação do ambiente
para a futura geração, o que reivindica desenvolvimento sustentável. Seminários e reuniões de estudo devem ser organizados para que levem os alunos a uma mudança de atitude..
BIBLIOGRAFIA
Livros
Constitutions and Statutes of the Marist Brothers of the Schools, Rome, 1986, with
the changes adopted by the General Chapters of 1993 and 2001
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Good News Bible with Deutero-canonical Books. St. Paul, Kolkata, 2004
Paul Sester, ‘Letters of Marcellin Champagnat’, General House, Rome, 1991
Documentos dos Capítulos Gerais
Marist Brothers, XIX General Chapter Message ‘Solidarity’, Rome, 1993
Marist Brothers, XX General Chapter Message, Rome, 2001
Encíclicas; documentos da Igreja; Conferências dos Bispos
Conference of Latin American Bishops, Evangelization in Latin America’s
Present and Future, 1979: sec 733.
John Paul II. Sollicitudo rei socialis. Libreria Editrice Vaticana, Vatican City,
Rome. 1987
Latin American Bishops’ Conference, Medellin documents: justice, peace, family
and demography, poverty of the Church, 1968
http://law.loyno.edu/quigley/classjusticepeace.pdf
Leo XIII ‘Rerum Novarum’ Rome, 1891
http://www.papalencyclicals.net/Leo13/l13rerum.htm
Paul VI ‘Populorum Progressio’ Libreria Editrice Vaticana, Vatican City, Italy 1967
Pius XI ‘Quadragesimo Anno’ Libreria Editrice Vaticana, Vatican City, Italy, 1931
United States Catholic Bishops, ‘Economic Justice for All’, Pastoral Letter on
Catholic Social Teaching and the U.S. Economy, 1986.
http://www.osjspm.org/economic_justice_for_all.aspx.
Vatican Council II, Pastoral Constitution ‘Guadium et Spes’, Rome, 1965
Revistas
Iwuagwu, Andrew(FMS), ‘25 years Silver Jubilee Celebration of Marist Comprehensive Academy’, Uturu, 2007
Outras fontes
IFAD Report ‘Rural Poverty in Nigeria’ 2007 http://www.ruralpovertyportal.org/english/regions/africa/nga/index.htm
Marist Brothers, Province of Nigeria, Provincial Council’s Report to the 6th Provincial Chapter, Jan. 2008.
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O Carisma e a Missão
dos Irmãos Maristas na
Costa do Marfim
Uma reflexão pessoal
Irmão Vincent KOUASSI, FMS
Província Mediterrânea, Distrito da África Ocidental
INTRODUÇÃO
Um debate a que assisti, com certa frequência, em algumas de nossas comunidades, é o da missão dos Irmãos maristas, ou mais precisamente, o que
o Irmão marista deve fazer ou não fazer, por tal ou qual razão. Por uma parte, há aqueles que veem o Irmão marista como catequista e nada mais. Por
outra, temos aqueles que consideram que, enquanto Irmãos, deveríamos
alargar nossos horizontes, nosso apostolado e nossa missão, segundo o contexto. “Escola e escola, sempre escola”, nada mais: eis, para outros mais, o
essencial da missão do Irmão marista, pouco importando atividades como
paróquia e tudo o que é informal e não-disciplinar. Consideram que a catequese, a missão e qualquer outra forma de atividade apostólica devem, necessariamente, desenvolver-se na escola.
Como, através das cartas de Champagnat, isto é, de suas ideias, sua vida
e tudo que nos deixou como tesouro para a missão, podemos nós justificar
nossas escolhas, hoje? Esta é uma pergunta determinante para quem deseja
levar a sério nossa missão e nossa vocação de Irmãos maristas, hoje.
Em sua Circular de 3 de julho de 1851, anunciando a morte do Irmão Lourenço (Jean Claude Audras)267, o Irmão Francisco escreve: “Vocês vêem, meus
267
Irmão mais velho de Jean Baptiste Audras (Irmão Luís) e o terceiro a integrar o grupo do
Padre Champagnat
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caríssimos Irmãos, nossos Irmãos maiores se vão, aqueles que o Padre Champagnat formou e que tinham, particularmente, assimilado seu espírito, o espírito originário da Sociedade [...] Quantas vezes o estimado Irmão Lourenço
veio ter conosco, desde quando as enfermidades o retinham na Casa-mãe,
para pedir a autorização para ensinar o catecismo, de povoado em povoado, pedindo seu pão!”
Essas palavras do Irmão Francisco nos permitem perceber o que ele mesmo chama de espírito originário de Champagnat. Poderíamos até dizer que ele
exprime algo do carisma original. É por isso que o Irmão Francisco não menciona as aulas, mas sim, a catequese. É bem verdade que, nesse período, na
França, essas duas tarefas se completavam - porque se ensinava aos alunos, ao
mesmo tempo, o catecismo e a leitura - é sabido, no entanto, que o Ir. Lourenço não era um professor de grande sucesso, mesmo porque não tinha grande instrução, como a maioria dos primeiros Irmãos maristas. Portanto, podemos pensar que o Ir. Francisco falava somente de instrução religiosa, referindo-se ao Ir. Lourenço.
O que impressiona aqui é a intenção primeira de Champagnat e que o Ir.
Francisco revela, ao menos em parte. Hoje, limitando-se a essas palavras, certos Irmãos, sem análise maior do contexto, recusam a fundação ou a construção
de escolas. Consideram que isso não é necessário para a missão marista. Para
eles, Champagnat tinha como intuição primeira formar apenas ‘simples’ catequistas. Essa seria também a razão pela qual, segundo eles, Champagnat sempre fazia questão de desencorajar toda vocação sacerdotal. Temos, entre outros
exemplos, o de João Batista Audras (Irmão Luís), a quem Champagnat proíbe
de estudar latim, o que era sinônimo de vocação sacerdotal e também de ensino clássico; e a pergunta: “Irmão Luís, você está contente, está feliz em sua santa vocação?”268 conserva todo o seu sentido. Entretanto, o espírito originário de
um Instituto religioso pode ele abstrair da rica tradição que se constrói no tempo? As perguntas que nos vão guiar neste trabalho são as seguintes:
O espírito e o carisma maristas limitam-se apenas a algumas atividades e
obras específicas? O Irmão marista, no início, não devia ele limitar-se à catequese ou à escola? Qual é a influência do contexto social e histórico no
desenvolvimento do carisma que o Espírito transmite a Champagnat e aos
268
FURET, Jean Baptiste, Biographie de quelques Frères qui se sont distingués par leurs vertus et
l’amour de leur vocation, Paris, 1924, p.28. (Cf. Em cada vida uma mensagem, Ed. portuguesa).
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O CARISMA E A MISSÃO DOS IRMÃOS MARISTAS NA COSTA DO MARFIM
primeiros Irmãos? Como compreender e viver, isto é, atualizar este carisma
e esta missão? Em síntese, o que devemos entender, em primeiro lugar, por
carisma, no quadro desta reflexão?
É importante precisar, de início, que o carisma considera o espírito, a espiritualidade, a missão e o modo de vida. Não vou insistir, nesta reflexão,
se não sobre os dois últimos elementos: a missão e modo de vida. Por questão
de clareza, eis, em resumo, a razão desta escolha e o objetivo desta reflexão.
Trata-se, num primeiro momento:
– de ressaltar o carisma ou o objetivo primeiro de nosso fundador, através de suas correspondências.
– em seguida, de descobrir, sempre através das Cartas e outros textos
maristas, as outras ramificações do carisma tradicional que é a educação das crianças mais necessitadas do campo. Quer dizer, as outras
atividades que ‘não se afastam do fim primeiro do fundador’.269
– enfim, partindo dessa segunda parte, proceder a uma atualização sobre um assunto particular: a implantação ou a inculturação do carisma e o problema das vocações na Costa do Marfim, país que conhecemos.
Este pequeno trabalho de pesquisa oferecerá apenas referências para uma
pesquisa mais completa e elaborada. Pretendemos ajudar dando pistas ou
argumentos maristas que permitam evitar o erro de rejeitar, erroneamente
muitas vezes, certas formas de apostolado, sob pretexto de que não estavam na intenção inicial de Champagnat.
Por outra, e terminando, este trabalho visa demonstrar que a inculturação
do carisma marista passa por uma tomada de consciência, da parte dos missionários como dos Irmãos autóctones, da dialética da inculturação e de seu
corolário: a problemática da vocação.
269
P. Sester, Lettres, doc 28, p. 79.
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A INSPIRAÇÃO DO CARISMA EM CHAMPAGNAT
Tradicionalmente, e talvez de modo demasiadamente imediato, é o encontro do jovem Montagne que é apresentado como aquele que inspira a
Champagnat o desejo de fundar o ramo da Sociedade de Maria que se ocuparia da educação das crianças da campanha. Digamos antes que foi o acontecimento que levou Champagnat a concretizar um desejo que nutrira, independentemente de seus companheiros de seminário, co-fundadores da
Sociedade de Maria. A inspiração inicial, particularmente de J. C. Colin, que
entrevia de início uma árvore com três ramos (Padres, Irmãs e Ordem-terceira), pouco a pouco admitiu o ramo dos Irmãos sem, no entanto, reconhecer exatamente sua especificidade. Esta discordância entre os dois padres,
que até então tinham tido relações muito corteses, se manifesta claramente
na carta de J. C. Colin, de 22 de fevereiro de 1839270:
« É a quarta ou quinta vez que lhe digo, ou faço solicitar,
de enviar um Irmão ao Padre Chanut, na Diocese de Bordeaux. Meu pedido, tantas vezes reiterado, lhe faz ver a
importância que dou a esse ato de obediência que espero
do senhor. Lembre-se que Maria, nossa Mãe, que tomamos
como modelo, depois da ascensão de seu divino Filho, se
dedicava totalmente às necessidades dos Apóstolos; que
este é um dos primeiros objetivos da Congregação dos Irmãos e das Irmãs maristas, em relação aos sacerdotes da
Sociedade, para que estes, inteiramente livres de preocupações temporais, se dediquem mais livremente à salvação
das almas. Um Irmão a serviço dos sacerdotes da Sociedade
faz um bem vinte vezes maior, em minha opinião, do que
se ele fosse empregado numa comuna, onde, graças a Deus,
hoje, os meios para ensinar a juventude não faltam. Mas,
o senhor nunca conseguiu compreender bem essa ordem
e esse fim da Sociedade...”
Com efeito, para Champagnat, a razão de ser dos Irmãos é totalmente diferente daquela que pensava Colin. Este o reconhecerá mais tarde, quando
ele mesmo dirá que essa idéia dos Irmãos maristas educadores era essen-
270
AFM Dossier 43.30 ; abm 183.doc
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cialmente uma idéia de Champagnat.271 Eis porque, a partir de 1852, depois
do Capítulo geral que elegeu o Ir. Francisco como Superior geral, haverá dois
grupos: os Irmãos educadores de Champagnat e os Irmãos coadjutores (Irmãos
de São José), segundo o pensamento e a inspiração inicial de Colin, isto é,
Irmãos no sentido tradicional do termo, ajudando os Padres maristas em sua
missão, sustentando materialmente a comunidade como cozinheiros, jardineiros, carpinteiros, alfaiates, sapateiros, entre outros trabalhos.
Champagnat está, pois, na origem dessa idéia maravilhosa de um ramo
de Irmãos educadores consagrados a Deus, no seio mesmo da Sociedade de
Maria. O Ir. André Lanfrey faz até remontar a vocação de Marcelino a uma
data anterior aos anos do Seminário. Segundo ele, o luto de 1803 e 1804272
joga um papel catalisador na vocação do jovem Marcelino:
« Tem-se a impressão, escreve ele, que, num primeiro momento, Marcelino optou pelo lado ativo do modelo paterno, mas a morte do pai o convida a reparar num outro
aspecto de sua personalidade: aquele de um homem que
lamenta não ter adquirido uma cultura suficiente, sentimento que ele exprime ao assumir suas funções de presidente da administração de Marlhes, no começo de 1798,
sentindo ter conhecimentos muito confusos [...]
“Quando começa seus estudos em 1804, Marcelino já deseja tornar-se sacerdote? Provavelmente, ele é mais levado pelo desejo de instruir-se e de
tornar-se capaz de ensinar aos outros porque, em lugar de seu pai, ele fez
sua uma das grandes aspirações do mundo rural e pôde compreender que
uma ação individual para resolver isso não bastaria [...] Em suma, a vocação
sacerdotal de Marcelino parece enxertar-se, depois de certo tempo, num
projeto educativo anterior, do qual J. B. Champagnat parece ser o inspirador, por suas aspirações e por sua morte repentina.”
271
Coste, Jean, sm – G. Lessard, sm, Origines Maristes (1786-1836) 4 vol., Rome, 1960-1967.
Jean-Baptiste (23 anos) morre em 8 de agosto de 1803 e Joseph-Benoît (13 anos), em 20
de dezembro. Anne-Marie casa no dia 8 de fevereiro de 1804. O pai, Jean-Baptiste Champagnat, desaparece de improviso em 12 de junho de 1804. Assim, seja por morte, seja por
casamento, a família é reduzida de quatro membros dos quais três adultos. O casamento de
uma das filhas onerou o orçamento da família, impondo o pagamento de um dote, e os credores se precipitam, desde a morte do pai, para defenderem seus direitos.
272
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Voltando a Jean-Baptiste Montagne, o que toca e confunde o jovem sacerdote é menos o nível de estudos do que a pobreza espiritual desse jovem
de 17 anos. Por isso passa duas horas a instruí-lo porque as diretivas da Diocese eram bastante claras e definidas: “Os Padres não devem receber em
confissão... aqueles que ignoram os principais mistérios da fé.273” Não era
raro, nessa época, encontrar situações desesperadoras como essa de Montagne. Champagnat bem o sabia e o Padre Coste no-lo recorda: « Quantos
Jean-Baptiste Montagne vivem na região ‘le Palais’, além do Bessat...274». Mas
Champagnat considera este acontecimento como um chamado divino que
o leva a contatar imediatamente Jean-Marie Granjon que se tornaria o primeiro Irmão marista.
Temos, então, na origem do carisma, uma aspiração paterna, mas também
o sofrimento de um jovem adolescente da campanha. Em verdade, é o sofrimento, a ignorância de todos os jovens, aos quais a vida não deu nada de
graça. Jovens que têm sede do conhecimento de Deus, do amor e da felicidade. E é justamente o que Jean-Baptiste Granjon e todos os outros, que vão
unir-se ao jovem sacerdote, vão procurar para si mesmos e para os outros.
NOSSO CARISMA ATRAVÉS DOS TEXTOS
As cartas de Champagnat, mais do que nossos documentos atuais, refletem essa intuição inicial, em particular a carta dirigida ao Rei Luís Filipe275,
datada de 28 de janeiro de 1834, em que pede a autorização legal da Congregação. Nela conta pessoalmente sua vida, suas experiências e, sobretudo, seu sonho, com as razões que o levam a fundar uma congregação de
Irmãos. Numa palavra, apresenta o carisma e a missão dos Irmãos Maristas:
«Nascido no cantão de St. Genêt Malifaux, departamento
do Loire, não consegui aprender a ler e escrever senão com
infinitas dificuldades, por falta de professores preparados:
desde então, compreendi a urgente necessidade de uma
instituição que pudesse, com menos despesas, oferecer aos
273
P. Zind, Voyages & Missions, No.144, p. 5.
OM, vol.4. p. 220
275
AFM, 113.4; P. Sester, Lettres, doc 34, pp. 98-104.
274
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filhos dos camponeses o bom ensino que os Irmãos das Escolas Cristãs garantem aos pobres das cidades.”
“Ordenado sacerdote, em 1816, fui nomeado coadjutor
de uma paróquia rural; o que vi com meus olhos fez-me
sentir ainda mais vivamente a importância de iniciar, sem
demora, o projeto que meditava, há muito tempo. Comecei, então, a formar alguns professores. Dei-lhes o nome
de Pequenos Irmãos de Maria, convencido de que esse simples nome atrairia um grande número de candidatos. Um
notório sucesso, em poucos anos, confirmou meus planos
e ultrapassou minhas esperanças.”
Evidentemente, o que ele diz ter visto com seus próprios olhos é a ignorância
gritante das crianças e dos jovens. Essa carta de Champagnat justifica também
o fato de que seu projeto fora amadurecido por longo tempo, bem antes do
acontecimento Montagne que vai confirmá-lo ainda mais.
Uma carta oficial276, no ano seguinte, maio de 1835, dirigida desta vez à
esposa de Luís Filipe, Maria Amélia, mostra-nos ainda a idéia do fundador277.
Aqui também, fora de considerações políticas, o que chama nossa atenção
é o que Champagnat revela, em sua carta, relativamente ao nosso carisma e
nossa missão de Irmãos maristas. Ele escreve:
« Ordenado sacerdote, em 1816, fui enviado a uma localidade do cantão de St. Chamond (Loire ). O que vi com
meus olhos, nessa nova função, relativo à educação dos
jovens, lembrou-me as dificuldades que eu experimentara, pessoalmente, na idade deles, por falta de professores.
Apressei-me, então, a executar um projeto que eu tinha,
de formar uma associação de Irmãos professores para os
municípios rurais, porque a penúria de bom número deles não lhes permitia ter Irmãos das Escolas Cristãs.”
276
AFM, 132.1 pp. 47-49; P. Sester, Lettres, doc 59, pp. 144-147.
Champagnat queria que a « Grande Rainha » usasse de sua influência para solicitar a seu
esposo Rei a aprovação dos estatutos da Congregação.
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O que escreve o Ir. Jean-Baptiste Furet também é bastante revelador da
missão dos Irmãos em La Valla. No capítulo XXI da Vida (2ª parte)278, ele relata como Champagnat e os primeiros Irmãos viveram o carisma e a missão,
consagrando-se essencialmente a ajudar os pobres, os necessitados, os doentes, os velhinhos e os inválidos. Lembramo-nos do jovem para quem Champagnat havia pedido que fosse dado seu próprio colchão porque não havia
mais nenhum outro para os pobres. Esse jovem, Jean-Baptiste Berne, tornou-se mais tarde o Ir. Nilamon279 que morreu em 1830.
Um rápido olhar para a vida do Fundador com os primeiros Irmãos nos
mostra, pois, que, desde o começo, nossa missão não se restringiu à escola
e que a opção preferencial pelos pobres nunca se limitou à instrução. É o
que inspira o artigo 85 de nossas Constituições:
« Aberto a qualquer apostolado dentro do carisma de sua
fundação, nosso Instituto faz do anúncio direto da Palavra
de Deus elemento essencial de sua missão. Trabalhando
em instituições escolares ou em outras estruturas de educação, consagramo-nos a serviço da pessoa humana, por
amor do Reino. Do mesmo modo, os Irmãos que executam
trabalhos caseiros, braçais ou exercem funções administrativas estão cooperando no apostolado do Instituto, pelo fato mesmo de exercerem tais funções. A adaptação de
nossos compromissos às necessidades da Igreja e da sociedade requer discernimento e avaliação periódica.”
Na carta ao Bispo de Belley, D. Raymond Devie, escrita em julho de 1833280,
há uma frase cuja compreensão considero capital para quem quiser compreender ou apreciar nosso carisma e nossa missão de Irmãos Maristas, hoje e no futuro:
« Tenho crescente atração por essa boa obra que, bem examinada, não se afasta de meu objetivo, pois ela concerne
principalmente a educação dos pobres ».
278
Vie, pp. 520-530.
Vie, pp. 523-525; pode-se consultar também os Bulletins de l’Institut des Frères Maristes
XXVIII, pp. 409-413.
280
AFM, 113.22 ; P. Sester, Lettres, doc 28, p. 79.
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A obra em questão é uma escola de agricultura. E dizer que, hoje, alguns
candidatos são afastados porque receberam uma formação escolar mais bem
técnica do que geral! Hoje, um olhar sobre numerosas obras, em muitas Unidades administrativas da América e da África, mostra claramente que o ensino geral clássico nada mais é do que uma parte do vasto campo de ação
da missão dos Irmãos maristas, no mundo. O fato é que não podemos considerar um projeto como estranho ao carisma marista de Champagnat simplesmente porque não é aplicável em tal ou tal lugar.
Quase no fim de sua vida, o Fundador examina uma escola para surdosmudos, projeto que não vai realizar-se, mas abre a mente dos pósteros para novas formas de apostolado, em nossa missão de educadores. A carta281,
datada de 22 de fevereiro de 1840, e dirigida a um membro do Conselho para surdos-mudos, um sacerdote de nome Pradier Henri, anuncia que Jean
Baptiste Mérigay (Irmão Marie-Jubin) terá formação para a missão nessa instituição. Ele estudará com sucesso, em Paris, no Instituto Royal de jovens
surdos-mudos; sua aprendizagem vai durar dois meses. Esse tipo de missão,
como Champagnat e Francisco o dizem precisamente na carta, “cabe perfeitamente no plano de nossa Instituição, toda voltada à educação das crianças,
não importando a situação em que se encontrem”.
Na carta de Champagnat ao Bispo Philibert De Bruillhard, em Grenoble,
encontramos a célebre frase: “Todas as dioceses do mundo entram em nossos planos282» o que confirma ainda essa idéia que acabo de expor e que
inspirou o eslógão da canonização: “Um coração sem fronteiras”!
Outra carta, cujo teor tem ar de ser um testamento apostólico e que sugere que Champagnat nos confia, no fim de sua vida, outro tipo de apostolado, é aquela dirigida, à guisa de resposta, ao Rev. Pierre Bernard Hugony,
pároco de ‘Près-St Gervais sur Paris’. A carta vem datada de 3 de maio de
1840283, em torno de um mês antes da morte do fundador.284 Trata-se aqui
do apostolado num orfanato.
281
AFM, RCLA 1, pp. 175-176, no. 21; P. Sester, Lettres, doc 323, pp. 590-592 et doc 326, pp.
594-595.
282
AFM, RCLA, 1, p. 31, n°6; P. Sester, Lettres, doc 93, p. 210.
283
AFM, RCLA, 1, p.188, nº 234; P. Sester, Lettres, doc. 339, pp. 613-614.
284
É também nesse dia que Champagnat celebra a Eucaristia pela última vez, em l’Hermitage. (Gabriel Michel, “Champagnat, jour par jour”).
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« Digne-se o bom Deus, conclui o fundador, conceder a
vosso zelo os recursos para o cumprimento de uma obra
tão importante e necessária e de conceder a nós mesmos
a maneira de secundar vossos piedosos projetos.”
Esta última correspondência a Hugony mostra que Champagnat não é insensível às necessidades da população das grandes cidades. Aliás, o Ir. Francisco fará uma promessa a Hugony, em 1844, e em 1856285 enviará Irmãos para essa nova forma de missão: três orfanatos serão confiados à direção dos Irmãos.
Na conclusão desta primeira parte, constatamos dois pontos, importantes tanto um quanto o outro. Primeiro, está claro que a inspiração e a idéia
inicial da missão dos Irmãos maristas é a instrução das crianças da campanha.
Depois, essa missão será enriquecida no correr do tempo. Champagnat aceitará, atestam-no suas correspondências, novas formas de apostolado, de
missão, bons projetos que não se afastam do primeiro objetivo dos Irmãos
maristas. A missão dos Irmãos maristas é a instrução e a educação, sejam
elas formais ou informais. O esquema abaixo mostra claramente a diferença
entre o formal e o informal ou não-disciplinar:
MISSÃO DOS IRMÃOS MARISTAS
Educação dos jovens
Formal
Escola Primária
Escola Secundária
Universidade
285
Lettres, vol.2, p.284.
204
Informal
- Catequese
- Orientação e
acompanhamento
pessoais
- A orientação profissional
- Escolas de oração
- Orfanatos
- Centro para necessidades especiais
- Missão ad gentes
- Pobres
- Delinquência juvenil
- Dependentes de
drogas
- As crianças de rua
- MCS
- Produção de livros
- Esportes
- Atividades artísticas
- Conferências
- Oficinas diversas
- Defesa dos direitos da
criança
- E todas as outras
áreas de educação….
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Como se vê, a área da educação informal é mais elaborada e oferece maior
possibilidade de compromisso com os jovens. Eis porque é essencial abordar o carisma de modo dinâmico. É preciso cuidar para não continuar como ‘fósseis vivos’, fechados numa visão muito estreita, tradicional e intocável de um carisma e de uma missão que, seja qual for, deverá ter em conta
os “sinais dos tempos”.
O carisma, sem dúvida, foi transmitido, no início, ao Padre Champagnat
e aos primeiros Irmãos pelo Espírito Santo que é seu único garante. Mas este mesmo Espírito, ainda hoje, continua a agir porque Ele transcende o tempo. E os Capítulos gerais, de 1852 até hoje, têm também a missão importante
de atualizar o carisma, de adaptá-lo à vida e às culturas. O XIX Capítulo geral convida-nos decididamente, face às necessidades urgentes e às aspirações
dos jovens de hoje, a “intensificar nossa presença entre as crianças e os jovens marginalizados nas ‘fronteiras’ de nossa sociedade.286 ”
O documento “Missão Educativa Marista”287 retoma e desenvolve esse
aspecto de nosso projeto educativo, no capítulo 7. Os títulos dos capítulos
4, 5, 6 e 7 resumem bem nossas idéias neste trabalho: somos semeadores da
Boa-nova (cap. 4), com um estilo marista próprio (cap. 5), na instituição escolar (cap. 6) e em outras estruturas de educação (cap. 7).
A certeza que temos, hoje, na Costa do Marfim e no Distrito Marista da
África Ocidental288, é que nós somos chamados a encontrar os jovens lá onde eles estão. Essas palavras, tiradas do capítulo 7, o resumem bem:
« No centro do carisma de Marcelino Champagnat, está
a constante busca do modo mais eficaz de alcançar as
crianças e os jovens. O seu exemplo inspira as nossas intuições e energias criativas como apóstolos maristas. Buscamos ser a face humana de Jesus, no meio dos jovens, ali
onde eles se encontram.289»
286
XIX Capítulo geral, Nossa Missão, 33.
Missão Educativa Marista – Um projeto para o nosso tempo é o documento de referência produzido pela Comissão Internacional de Educação marista, (1995-1998).
288
Este Distrito, nascido em 2000, é formado pelo Gana, Libéria, Chade, Guiné Equatorial,
pela República dos Camarões e pela Costa do Marfim.
289
Missão Educativa Marista, n°167.
287
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Neste nível, é preciso assinalar o desafio e a dificuldade real de adaptar
o carisma e a missão num Instituto internacional com múltiplas facetas como o nosso. A situação social e a cultura, de um continente a outro, de um
país a outro e mesmo de uma comunidade a outra, pode apresentar profundos traços divergentes. Pensamos que haja duas perguntas essenciais a
fazer, quando se trata da implantação do carisma num país ou numa cultura qualquer: primeiro, como é que o carisma primitivo é enriquecido pela
cultura que o recebe? Depois - e é a dialética da inculturação - como conferir à nossa missão um rosto, ao mesmo tempo, marista e totalmente enraizado na sociedade e na cultura que o acolhe?
O CASO DA COSTA DO MARFIM - PERGUNTAS URGENTES
Hoje, como já sublinhamos, interrogantes muito urgentes se põem aos
Irmãos maristas, na Costa do Marfim que apenas sai de cinco anos de guerra
e de desordem, tanto socioeconômica quanto religiosa. Mais do que nunca
precisamos haurir de nossas tradições maristas os recursos carismáticos
necessários para engajar-nos com fé e coragem e enfrentar o desafio que a
realidade nos põe, neste século vinte e um.
Apoiemo-nos, mais uma vez, antes de reformular as perguntas já feitas,
sobre algumas fontes de informação bastante interessantes para debater sobre a natureza de nossa missão. Aqui não faremos senão expor, sem demasiados comentários, alguns textos que, em nossa opinião, poderão ajudar a compreender, para alguns, e a tolerar, para outros, as reflexões que
serão desenvolvidas em seguida. Já em 1833, nos Estatutos 290 subscritos por
Champagnat, pelo Padre Séon291 e pelo Irmão Berthélémy Badar, lemos o
que segue:
« Artigo primeiro. Os Pequenos Irmãos de Maria têm como objetivo a instrução primária.
[…]
« Artigo 9. O objetivo da Congregação é também de dirigir casas de Providência ou de abrigo destinadas a jovens
290
291
AFM, 132.7.
Lettre, Vol. 2, p.458-459.
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que se recuperam de desvios ou estão expostos a perder os
bons costumes».
Esses textos constituem para nós um apelo a redescobrir nosso carisma
e nossa missão. Já o XVI Capítulo geral, o de 1967, para responder ao chamado do Concílio, lançava um convite insistente a redescobrir nosso carisma, retornando às fontes, de modo a esclarecer melhor nossa missão.292
Retornando à missão dos Irmãos na Costa do Marfim, a questão prática
que se põe sem cessar é aquela do compromisso dos Irmãos e Leigos maristas na reinserção de todos esses jovens que vão depor as armas e voltar
à vida civil e ativa. Optaríamos nós, devido à ignorância ou à teimosia, por
continuar a restringir-nos e a confinar-nos na escola, fechando nossa missão
a este apelo que não se afasta da intenção primeira de Marcelino Champagnat e de seus primeiros companheiros?A alfabetização, a tutela, o acompanhamento, as oficinas de formação com os jovens e outras atividades esportivas ou culturais não poderiam, hoje, servir como instrumentos para ajudar e apoiar a reorientação e a formação desses jovens?
O PROBLEMA DAS VOCAÇÕES: PRECISAMOS DE IRMÃOS
Vamos contentar-nos em dar números, porque não pretendemos escrever uma história da presença Marista, na Costa do Marfim. Foi em 1969293
que os Irmãos maristas desembarcaram na Costa do Marfim, sob o generalato do Ir. Basílio Rueda.294 Eram em número de cinco, Irmãos espanhois da
Província de Levante, fazendo atualmente parte da nova Província Mediterrânea. Dois deles viveram e trabalharam, nesse primeiro ano, com a comunidade dos Clérigos de ‘Saint Viateur’, de Bouaké. Os três outros formaram a primeira comunidade marista de Costa do Marfim, em Dimbokro. 295
292
Can. 578 – O pensamento e o projeto dos fundadores, que a autoridade eclesiástica competente reconheceu relativamente à natureza, ao fim, ao espírito e ao caráter do Instituto,
bem como suas sadias tradições, elementos todos que constituem o patrimônio do Instituto,
devem ser mantidos fielmente por todos.
293
Na verdade é o segundo grupo de Irmãos espanhois que chega à Costa do Marfim. Um
primeiro grupo chegara apenas para sondar o terreno, em 1966, mas estes Irmãos partiram
em seguida.
294
Nono Superior geral de 1967 a 1985.
295
Cf. AFM
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Hoje, 40 anos depois, além dos cinco fundadores, pode-se considerar, grosso modo, a entrada de 24 Irmãos dos quais a maioria não perseverou.
Uma questão se põe então em nível de vocações.296 Muitas vezes somos
surpreendidos pela explicação de alguns Irmãos missionários da Costa do
Marfim sobre as razões da falta de vocações religiosas maristas. Primeiro,
afirmam, e isto é verdade, que a falta de vocações não é apenas um fato entre os Irmãos maristas. A segunda causa é mais surpreendente: consideram
que nos anos 70 e 80, o país era muito rico e havia muitas oportunidades de
estudo e de emprego para os jovens.
A vida religiosa seria então, hoje - onde a situação econômica piorou, uma escapatória, um refúgio, uma solução para os pobres. A procura de alguma segurança social seria, a priori, para algumas pessoas, a razão essencial da afluência das vocações, nos países da África.
Como esta maneira de explicar as coisas nos parece muito limitada, procuremos lançar um olhar crítico sobre o problema das vocações religiosas
maristas em especial, ainda que isso se possa, igualmente, aplicar à vocação
religiosa em geral. Primeiramente, na Europa e na maior parte dos países
desenvolvidos, constata-se que a pastoral das vocações, praticamente, desapareceu como prioridade. A vida religiosa morre e os próprios Irmãos presenciam, impotentes, essa morte. A solução para alguns é de ‘morrer silenciosamente’, sem alvoroço e, portanto, sem tentar procurar vocações. Um
argumento bastante reiterado entre Irmãos europeus é que os jovens não
são mais atraídos por nosso modo de vida. Mas, o que haveria de tão estranho em nosso estilo de vida? Um interrogante ao qual é preciso, necessariamente, responder.
296
De 24, passamos, hoje (2008) a nove Irmãos e desde 2003, ano da última profissão, nenhum aumento de Irmãos foi registrado.
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ALGUNS MOTIVOS DA FALTA DE VOCAÇÕES
A instrumentalização da missão
Pensamos que a crise das vocações tem três razões essenciais, muito ligadas entre si, válidas tanto para os países ricos quanto para aqueles que
ainda não o são.
A primeira razão, que explica o estado atual das coisas, na Europa, é o
que denominamos ‘instrumentalização’ da vocação do religioso. Houve inicialmente, entre os Irmãos maristas – e é o risco para todas as congregações
religiosas apostólicas – uma redução de nossa missão ao trabalho (de ensinar), ou ainda, aos projetos de desenvolvimento.
Ninguém, certamente, poderá negar a contribuição dos religiosos para a formação humana e para o desenvolvimento dos países chamados desenvolvidos.
Basta ver todos esses intelectuais formados, as obras e centros implantados pelos religiosos. Assim, num período em que os países ricos se desenvolviam, sem
sabê-lo a missão das congregações religiosas foi a de contribuir materialmente
para o desenvolvimento. E como, agora, esses países estão desenvolvidos, a
missão não tem mais sentido. Num momento dado, as congregações de vida
apostólica se viram totalmente perdidas em seu trabalho. É isso que cria seu desaparecimento, por mais misterioso que isso possa parecer.
Para apoiar este ponto, citemos uma tese da história defendida em 2001,
pelo Ir. Richard Hemeryck, da comunidade de Beaucamps, na França 297, resultado de uns trinta anos de pesquisa, sobre “As escolas congregacionistas
no departamento do Norte, sob o segundo Império (1852-1870)”. Na conclusão, o Ir. Hemeryck desenvolve alguns eixos de reflexão interessantes.
Antes de tudo, segundo o comentário que o Ir. André Lanfrey deles faz,
as congregações souberam responder a necessidades (saúde, educação e a
questão social em particular) que a sociedade não satisfazia inteiramente, e
muitas vezes forneceram modelos pedagógicos. Mas, citemos o Ir. Hemeryck,
porque é exatamente isso que nós chamamos ‘instrumentalização’ da missão:
297
É possível referir-se aos ‘Cadernos Maristas’, nº 24, de dezembro de 2007, para a apreciação que o Irmão Lanfrey faz dessa tese.
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« Diante do progresso das instituições leigas, dois caminhos se
abriam. O primeiro poderia ter sido o da qualidade, para continuar sua missão de pioneiros, de precursores, de animadores,
com um espírito cristão. Poderiam (as congregações) ter escolhido a segunda possibilidade, a da concorrência” [...] “Numa luta que se tornou sempre mais desigual, o crescimento do
volume das obras exaure as energias dos religiosos e arrastaos para um terreno mais humano do que sobrenatural...”298
Esta última frase resume bem o que queremos ressaltar como sendo uma
das razões essenciais do problema da missão e das vocações religiosas. Ela poderia ser aplicada a qualquer outra congregação, em qualquer continente.
Esse problema de vocações, é necessário precisá-lo, não é de hoje. O
Irmão Leônidas, 7º Superior geral de 1946 a 1958, nos oferece um grande
contribuição doutrinal, nesse sentido. Há, em suas 22 Circulares, duas por
ano299, reflexões muito bem conduzidas:
« Sente-se, nelas, a vontade de restaurar o Instituto em profundidade, face a problemas inquietantes tais como a pouca estima da vocação e a falta de perseverança. A idéia de uma mudança necessária se esboça, ainda que muito timidamente.» 300
Estes escritos fazem refletir sobre a essência de nossa vocação.
O fator material
Hoje, na África e em todos os países em via de desenvolvimento, falase sempre mais de autonomia financeira. Nas congregações religiosas, apresenta-se o mesmo cenário. As Províncias e outras Unidades administrativas
devem absolutamente se manter. Esquece-se, com frequência que, se essas
Unidades administrativas são pobres, é porque o país é pobre.
298
Irmão Hemeryck, Richard, ‘Les écoles congréganistes dans le département du Nord sous
le second Empire (1852-1870’), p. 1735.
299
A primeira Circular, de 24 de maio de 1947, trata sem dificuldade da vocação. Ela se intitula: « Um grande amor à nossa vocação ».
300
‘As circulares, testemunhas da tradição espiritual marista’, em ‘Cadernos Maristas’, n° 23,
Junho 2006, pp.11-38
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O CARISMA E A MISSÃO DOS IRMÃOS MARISTAS NA COSTA DO MARFIM
Os encontros, os grupos de trabalho e outras reflexões sobre « o uso evangélico dos bens » que deveriam, segundo nós, mostrar como utilizar nossos
bens (tendo-os em abundância ou não), de modo da promover os valores
evangélicos (solidariedade, partilha, caridade, amor, etc.), tornaram-se antes oportunidades para procurar caminhos e meios para ganhar dinheiro suficiente, para não mais depender da ajuda dos países ricos.
É verdade que para fazer uso evangélico dos bens é preciso tê-los, primeiramente. Entretanto, há o perigo de ficar tão obsessionado pela questão
da autonomia financeira a ponto de esquecer que ela não é o fim de nossa
missão. Por que, em nossos encontros sobre o uso evangélico dos bens, sempre se termina falando apenas de autonomia financeira? Para alguns, é preciso trabalhar mais, gastar menos, ‘apertar o cinto’ como, muitas vezes, se
ouve dizer ou insinuar. Na realidade, a pergunta essencial que não se faz
suficientemente é: por que fazemos tudo isso? Procuramos a autonomia financeira em si ou é para o Evangelho?
O perigo, como já assinalamos, é que, com esta lógica de autonomia financeira, nos tornemos necessariamente professores e não religiosos. E aqui
intervém a segunda das três razões que nos propusemos dar. A missão do
religioso tendo-se reduzido a seu trabalho - o de ensinar - não será possível
procurar vocações a não ser por este motivo. Ora, como em todo mundo, a
tarefa de ensinar não é somente pouco atrativa para os jovens de hoje, mas,
também e, sobretudo, não é necessário fazer-se Irmão se for para ser essencialmente professor.
Uma linguagem adaptada
É necessário não tanto redefinir, mas reafirmar nossa missão e, eventualmente, nossa vocação, nosso ser enquanto religiosos: “Nós somos religiosos, Pequenos Irmãos de Maria”301 como no-lo recorda o Irmão Leônidas. E todos nós temos necessidade, hoje, de usar uma linguagem adaptada, particularmente na Europa, onde os Irmãos, quase todos de idade con-
301
Título da circular-chave de 8 de dezembro de 1952, na qual trata do espírito religioso e do
espírito marista, temas eminentemente tradicionais. Diante da inquietude suscitada pela pouca perseverança dos Irmãos, o Ir. Leonida se propõe de recriar uma forte identidade marista, feita de amor e de estima pela própria vocação.
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siderável, parecem atropelados pelo ritmo de vida de uma sociedade secularizada, que muda muito rapidamente. Não conseguem mais, mesmo se fosse preciso tentar, encontrar uma linguagem adaptada para dirigir-se a uma
juventude cujas necessidades já não compreendem. Alguns então escolhem
de não mais falar de vocação religiosa.
Estas análises indicam que há, finalmente, perguntas necessárias às quais
se deve responder, em nosso Distrito marista da África Ocidental, e particularmente na Costa do Marfim, mas também, talvez, em toda África.
UM PASSO NECESSÁRIO
Hoje, a situação vivida na Costa do Marfim é muito parecida com aquela da França, no tempo do surgimento do carisma dos Irmãos Maristas. Em
seu livro, publicado por ocasião da canonização de Champagnat, Robert
Masson escreve:
“Na situação espiritual em que se encontrava a França, após
os anos de turbulências de toda espécie, havia evidente penúria.
Era preciso fazer face, com urgência. (...) Havia mais apego
aos bens deste mundo do que àqueles do Reino. Por questões
que se pareciam, com frequência, a acertos de contas, recorria-se a processos, sem verdadeira preocupação pela justiça.
A dissimulação e a corrupção corriam soltas. Os costumes
se ressentiam dessa situação, sem falar da fé”.302
Há também necessidade urgente de vocações religiosas na Costa do Marfim303: como colocar nosso carisma a serviço da sociedade e do povo de
Deus? Como viver o encontro da cultura marista com as culturas costa-marfinenses? Como renunciar ao utilitarismo do qual a missão está contaminada para adaptá-la às culturas marfinenses e africanas que têm mais o sentido da gratuidade, da comunidade e da família? As culturas, como diz o teólogo dominicano Paul Greffé, « são portadoras de valores de humanização
302
MASSON, Robert, Marcellin Champagnat, Les improbables de Dieu, Paris, Parole et Silence, 1999, p. 45.
303
Não utilizaremos a expressão ‘boas vocações’ que consideramos bastante ambígua.
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e de convivência. Elas são o sinal da transcendência do espírito em relação
às necessidades imediatas do homem. Em nossa época de globalização, parece-me, faz parte da missão da Igreja a promoção das culturas locais ameaçadas por uma cultura universal de ordem científica e tecnológica, sempre
mais monolítica...304”. Para fazer face a essa questão, a essa realidade, o marfinense, o Irmão autóctone, será o mais adaptado. Eis porque é essencial
que os Irmãos autóctones estejam à frente da missão. Os Irmãos missionários fundadores devem estar absolutamente conscientes disso, dando a eles
os meios de crescer e de continuar a missão por si mesmos. Esses meios são
evidentemente a formação humana, espiritual e intelectual.
Por outra, é absolutamente necessário procurar saber o que a cultura e a
sociedade marfinenses acrescentam ao carisma legado por Champagnat e
pelos primeiros Irmãos. Como, por exemplo, o sentido da comunidade, da
educação comum dos filhos, da família, da solidariedade e outros valores
influenciaram os Irmãos Maristas em sua missão educativa. Como os Irmãos
Maristas prevêem o pós-guerra, junto com seus parceiros leigos?
Por acaso, não existe, entre os Irmãos Maristas, uma visão demasiado estreita
da missão? E não seria essa visão muito limitada de nossa missão a explicação
da falta de vocações? Nosso modo de vida e nossa missão não reduzem eles
nossa vocação a um simples trabalho a ser feito? E se nossa vocação consiste,
substancialmente, na atividade de ensinar, a qual – seja dito de passagem – não
atrai nem um pouco os jovens de hoje, qual é então a diferença entre um bom
professor cristão e um Irmão Marista? Para atrair vocações é preciso absolutamente que aquilo que somos, isto é, nosso ser, seja mais evidenciado do que
aquilo que fazemos. Ser não é fazer, nem ter; é ser, ser o rosto de Deus.
CONCLUSÃO
Tentamos, através deste modesto trabalho de reflexão pessoal, expor a
questão de nossa missão e dar pistas, provenientes de nossas tradições e do
Fundador, para ajudar a avaliar nosso compromisso e nosso apostolado na
Igreja e no mundo. É um trabalho essencialmente inspirado pelo curso so304
Ele é o autor de « De Babel à Pentecôte. Essais de Théologie interreligieuse », d. du Cerf,
2006. Aqui citamos um artigo publicado no jornal La Croix, em 14 de março de 2008, sob a
rubrica ‘Paroles, Forum et Débats’.
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bre o Patrimônio Espiritual de nosso Instituto que teve o mérito de nos mergulhar no coração de nossa história, de nossa espiritualidade, de nosso carisma e de nossa missão. Descobre-se, acima de tudo, nosso Fundador como homem, ao mesmo tempo, profundamente humano e cheio de Deus.
Descobrimos também os primeiros Irmãos, igualmente tão importantes em
nossa história, em nossa espiritualidade marista. Descobrimos a profundidade do carisma e a autenticidade da missão que esses apaixonados de Deus
nos deixaram. Então, e somente então, nos sentimos como impulsionados
pelo Espírito, corresponsáveis, herdeiros de uma vocação que deve ser constantemente questionada, atualizada, encarnada em nossas culturas, e vivida
de modo sempre autêntico.
Mas nesse gênero de reflexão que toca o mistério de nossa escolha de vida, as perguntas, como diz Karl Jaspers305, são mais importantes do que as
respostas, porque ao respondê-las fazemos uma descoberta progressiva da
verdade, nos limites do que pode ser conhecido.
305
Karl JASPERS, Introduction à la philosophie, Paris, U.G.E, 10/18 (1965) 1977, p. 27.
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Impresso em Outubro de 2009
a CSC Grafica - Guidonia (ROMA)
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introdução - Hermanos Maristas