O JOGO COMO FONTE DE HUMANIZAÇÃO Juliana Cristina Bomfim (Universidade Estadual Paulista UNESP) Apoio financeiro: IFP-Programa Internacional de Bolsas de Pós-graduação da FORD FOUNDATION – Coordenação no Brasil Fundação Carlos Chagas. O presente trabalho visa enfocar a função do jogo e seu grande valor na humanização do sujeito, haja vista que para a Teoria Histórico-Cultural a formação da personalidade e da inteligência de uma pessoa decorre das experiências humanas vividas desde a mais tenra infância, uma vez que é tudo aprendido. Nessa perspectiva, pensamos o jogo como fonte de desenvolvimento da criança pré-escolar, isto é, de sua personalidade e de suas características essencialmente humanas. Os trabalhos de Vigotski possibilitaram a superação das teorias naturalistas do jogo e, em decorrência, não há possibilidade de conceber o jogo como uma atividade que objetive que o aluno aprenda algum conteúdo e mostre o que aprendeu anteriormente, uma vez que dessa forma, fica descaracterizado o brincar, isto é, arruína-se a sua finalidade em si mesmo. Além disso, o papel do jogo no desenvolvimento humano não se resume a uma válvula de escape para energia vital acumulada, nem mesmo de sentimentos e impulsos prejudiciais, ou como momento de descanso das atividades ditas comumente como “sérias” ou “produtivas” que ocorrem na sala de aula. Palavras-chave: Jogo. Humanização. Funções psíquicas. Teoria Histórico-Cultural. Introdução Defendo a tese de que a criança desenvolve intensamente as suas capacidades intelectuais, como as práticas e artísticas, e ainda, começa a formar as primeiras idéias, sentimentos, hábitos morais e os traços de caráter, se a ela forem garantidas condições adequadas de vida e de educação. Isso porque a criança aprende desde o seu nascimento e, porque aprende, se desenvolve. Antes das formulações de Vygotsky, segundo ele (1988), a “velha Psicologia” considerava o desenvolvimento humano como um processo de maturação biológica, num processo que vinha de dentro pra fora. De acordo com a Teoria Histórico-Cultural o processo de aprendizagem engendra o processo de desenvolvimento, diferentemente de outras teorias que consideram que o desenvolvimento é que gera a aprendizagem, isso porque o que dá suporte a esta visão é uma concepção naturalista do que consiste ser da espécie humana, isto é, orgânica, a qual considera o desenvolvimento como um processo de maturação biológica. No entanto, para a Teoria Histórico-Cultural tudo o que faz com que as pessoas sejam o que são (seus sentimentos, sua linguagem, suas habilidades, sua personalidade) é aprendido. O desenvolvimento humano, para essa perspectiva, é decorrente da atividade que o sujeito tem em seu entorno, num processo articulado: entre os parceiros mais experientes; o sujeito (o qual é ativo nesse processo); e o meio. Dessa forma, o desenvolvimento da criança se apresenta num processo dialético, com saltos qualitativos, isto é, tudo o que é interno nas funções psíquicas superiores – a atenção ativa, a memória ativa, o pensamento, a linguagem, a vontade – foi antes externo, isto é, social, haja vista que toda a natureza das funções psíquicas superiores é social, por sua vez, o homem é um ser que não nasce homem, mas se torna homem, por meio da humanização e da estruturação de sua inteligência, personalidade e de sua consciência, formada pela atividade humana. Sabemos que esses princípios foram apropriados a partir dos estudos aprofundados que Vygotsky retomou em algumas filosofias, dentre elas, a de Hegel e a de Karl Marx. Nesse sentido, escreve Vygotsky: Si es cierto que el signo fue al principio un medio de comunicación y tan sólo después pasó a ser un medio de conducta de la personalidad, resulta completamente evidente que el desarrollo cultural del comportamiento transcurrió inicialmente de forma social, externa. (VIGOTSKII, 2000, p. 147). A Escola de Vigotski considera que a aprendizagem é gerada a partir da ação conjunta entre o educador, ou parceiro mais experiente, e a criança. Desse modo, o educador é o mediador da relação da criança com o mundo que ela pode conhecer, já que os objetos da cultura têm significado a partir do momento que se sabe o seu uso social, assim esse uso social dos objetos é aprendido com quem já sabe usá-los: A forma fundamental é a de atuarem em conjunto crianças e adultos a fim de, paulatinamente, estes transmitirem àquelas os modos planejados pela sociedade para utilizar os objetos. Nesse trabalho conjunto, os adultos organizam em conformidade com um modelo as ações da criança, e em seguida estimulam e controlam a evolução de sua formação e execução. (ELKONIN, 1998, p. 217). O divisor de águas entre a velha Psicologia e a Psicologia HistóricoCultural é justamente que, para a primeira o homem já nasce com as características e qualidades humanas enquanto que para a segunda, as características e qualidades humanas são formadas ao longo da vida: eis a humanização. Tal processo ocorre numa relação complexa, visto do prisma que considera que a mediação que há entre o parceiro mais experiente (mediador que propicia a relação entre o sujeito e o objeto da cultura), a cultura (material e imaterial) e a criança permite a elaboração de estruturas psíquicas que são essencialmente importantes para o desenvolvimento intelectual da criança. Os animais trazem ao nascer o conjunto de habilidades que vão desenvolver na idade adulta. O homem precisa aprender as habilidades que poderá desenvolver. Logo, o animal não se desenvolve para além daquelas habilidades que já lhe vêm dadas biologicamente, enquanto que o ser humano, sem as habilidades dadas biologicamente, as aprende com a geração com que convive e no mundo em que vive. A diferença fundamental entre o homem e o animal é que o homem é produto e produtor da história humana, com a capacidade de transformar a natureza de acordo com suas necessidades, modificando suas condições de vida e a si próprio. Além disso, o gênero humano tem a capacidade do ato criativo: o conhecimento e a arte, tudo isso transmitido de uma geração para outra e produzido por meio da atividade criadora por excelência humana: o trabalho. Dessa forma, o desenvolvimento da criança se dá por meio da aprendizagem da utilização social da cultura. Essa aprendizagem se dá por meio do ato intencional ou espontâneo de ensinar do parceiro mais experiente, embora no caso da escola o ensinar deva ocorrer exclusivamente de forma intencional. Assim, o papel da educação é: [...] garantir a criação de aptidões que são inicialmente externas aos indivíduos, e que estão dadas como possibilidades nos objetos materiais e intelectuais da cultura. Pra garantir a criação de aptidões nas novas gerações, é necessário que as condições de vida e educação possibilitem o acesso dos indivíduos das novas gerações à cultura historicamente acumulada. (MELLO, 2002, p. 4). 1. O fazer humano e o desenvolvimento psíquico De acordo com Leontiev (1988), ao longo da vida de uma criança o lugar que essa ocupa nas relações humanas é alterado em razão de circunstâncias reais, que interferem diretamente no desenvolvimento de sua vida psíquica. Ainda a dependência do desenvolvimento psíquico está intrinsecamente relacionada à atividade principal. Quanto à definição de atividade principal escreve Leontiev: Designamos por esta expressão não apenas a atividade freqüentemente encontrada em dado nível de desenvolvimento de uma criança. O brinquedo, por exemplo, não ocupa, de modo algum, a maior parte do tempo de uma criança. A criança pré-escolar não brinca mais do que três ou quatro horas por dia. Assim, a questão não é a quantidade de tempo que o processo ocupa. Chamamos de atividade principal aquela em conexão com a qual ocorrem as mais importantes mudanças no desenvolvimento psíquico da criança e dentro da qual se desenvolvem processos psíquicos que preparam o caminho da transição da criança para um novo e mais elevado nível de desenvolvimento. (LEONTIEV, p. 122, 1988). Igualmente, segundo Leontiev (1988) no momento da infância pré-escolar os jogos lúdicos têm extrema importância, já que é por meio deles que a criança representa ou reproduz ações humanas. Assim, seu mundo, neste momento, é composto por dois círculos: o primeiro é composto pela família, um círculo mais íntimo, com relações diretas; e o segundo, é composto pelas demais pessoas, com as quais ocorre uma relação mediada pelo primeiro círculo. Isso se reflete, como exemplo, quando a criança tem de ir pela primeira vez ao jardim de infância, o que lhe causa, até certo ponto, um sofrimento. No entanto, na relação com a professora, a criança cria um vínculo muito forte, passando a professora a fazer parte do íntimo círculo de relações da criança. No período da entrada da criança na escola, segundo Leontiev (1988) surge uma nova obrigação, a criança tem obrigações, agora, com a sociedade. E isso se torna mais claro para ela em razão do ato de estudar. Dessa forma, a criança sente-se ocupada com algo muito importante. Ainda seus contatos, agora, passam a ser determinados pelas relações mais amplas, assim, “[...] podemos compreender de forma adequada o papel condutor da educação e da criação, operando precisamente em sua atividade e em sua atitude diante da realidade, e determinando, portanto, sua psique e sua consciência.” (LEONTIEV, 1988, p. 63). A atividade é concebida através do fazer significativo, isto é do sentido, a qual procede da coincidência entre motivos, objetivos, necessidades, desejos e interesses do sujeito. (Ex: um estudante motivado a conhecer o conteúdo do livro). A ação reside na atividade da qual ela faz parte, sendo que primeiramente, o objetivo pode não coincidir com o motivo. (Ex: estudante que lê pela necessidade de passar no exame). Todavia, é possível que o estudante se envolva na realização da tarefa e lhe atribua sentido, e esse fazer pode se tornar uma atividade (LEONTIEV, 1988). 2. Teorias sobre a natureza do Jogo Segundo Vygotsky (1984), no brinquedo a criança cria uma situação imaginária. Esta não é uma idéia nova, pois situações imaginárias no brinquedo já foram reconhecidas em outras teorias, entretanto a situação imaginária não era considerada como uma característica definidora do brinquedo em geral. Elkonin (1998) destaca, no capítulo 3 do livro Psicologia do jogo, as teorias gerais do jogo as quais estão tenuemente relacionadas com os diversos princípios de cada teórico que o referido autor apresenta. Segundo Elkonin, a “teoria do jogo de Groos é bastante conhecida, principalmente difundida no primeiro quartel do século XX”. (ELKONIN, 1998, p. 84). A teoria de Groos pode ser conhecida também como teoria do exercício ou da auto-educação. Tal teoria sobre a transcendência do jogo pode ser caracterizada, da seguinte maneira: Se é certo que o desenvolvimento das adaptações às sucessivas tarefas vitais constitui o objetivo principal da nossa infância, não é o menos que cabe ao jogo lugar preponderante nessa relação de conveniência, de modo que podemos dizer perfeitamente, empregando uma forma um tanto paradoxal, que não brincamos porque somos crianças, mas que nos é dada a infância justamente para que possamos brincar. (Groos, 1916, p. 72, apud ELKONIN, 1998, p. 86). Elkonin (1998) enfatiza que a história do trabalho criador da teoria geral do jogo foi um processo de adições e emendas à teoria de Groos, assim não houve um autor que escrevera sobre o jogo sem utilizar-se do referencial de Groos, mesmo que fosse para apontar observações críticas. No entanto, Elkonin aponta que Groos “[...] não decifrou o enigma do jogo, enigma que ainda hoje continua por averiguar até o fim”. (1998, p. 86), já que expõem a sua transcendência e não sua natureza. É nesse sentido que a teoria de Groos não nos é suficiente, já que o coloca como um “exercício prévio”, daí subentende-se o seu caráter essencialmente biológico. E, segundo Elkonin (1998), Stern inclui e retifica tal idéia do jogo de Groos em suas concepções, uma vez que “W. Stern escreve que o jogo é para a vida o que as manobras são para a guerra” (ELKONIN, 1998, p. 90). Portanto, em vez de significar um avanço em relação à teoria do jogo de Groos, essa emenda de Stern aprofunda ainda mais os aspectos errôneos no que se refere à incompreensão da diferença cardeal existente entre o desenvolvimento das crianças e o dos filhotes de animais. (ELKONIN, 1998, p. 93). Igualmente, Mora (1994, p.1601) aponta que Spencer em seus Princípios de Psicologia “[...] sustentou que o instinto do jogo se explica como uma energia biológica remanescente que pode ser vertida de duas formas: uma inferior que é o esporte, e outra superior, a arte.”. Além disso, cabe aqui, salientar que “A estreita relação entre a atividade lúdica e a artística foi estudada por K. Groos; ao contrário de Spencer, contudo Groos considera que a atividade lúdica não é uma descarga, mas uma preparação para a vida”. (MORA, 1994, p. 1601). Dessa forma, Mora (1994) pontua que a idéia de jogo como energia psíquica ou biopsíquica foi muito disseminada no começo do século XX, visto que consideravelmente todas as concepções naturalistas aderiram a ela. Ainda, Mora (1994) pontua que além das teorias de Groos e Spencer “Outras teorias propostas sobre o jogo são: o jogo é uma conseqüência do impulso de imitação; o jogo é a expressão de um desejo de domínio ou competição; o jogo é uma atividade inteiramente desinteressada.” (MORA, 1994, p. 1601). Desse modo, há algumas definições em relação à função e gênese do jogo, nas quais, consideravelmente, todas essas relacionadas a um pressuposto de finalidade biológica. Há teorias que o consideram como descarga de energia vital, outras o consideram como preparação do jovem para as atividades sérias da vida adulta, ou ainda como um escape para impulsos prejudiciais, entre outros. Nesse sentido, “A intensidade do jogo e seu poder de fascinação não podem ser explicados por análises biológicas”. (HUIZINGA, 1990, p. 5). 3. O jogo para a Teoria Histórico-Cultural Do ponto de vista do enfoque Histórico-Cultural, de acordo com Elkonin (1998), Vigotski deu uma contribuição substancial à teoria do jogo, em razão de seu interesse pela Psicologia da arte e pelo estudo do problema do desenvolvimento das funções psíquicas superiores. Escreve Vigotski: Se nos referirmos ao homem primitivo, veremos que nos jogos das crianças sobreleva a sua preparação profissional para a atividade futura: a caça, seguir o rasto da fera e a guerra. O jogo da criatura humana também está orientado para a atividade futura, mas, principalmente, a de caráter social. A criança vê a atividade dos adultos que a rodeiam, imitaa e transforma-a em jogo, e no jogo adquire as relações sociais fundamentais e freqüenta a escola do seu futuro desenvolvimento social. (Vigotski apud ELKONIN, 1998, p. 199). Para Elkonin (1998), a Psicologia soviética, especialmente os trabalhos no campo da Psicologia infantil, conduz a uma superação das teorias naturalistas do jogo, ao passo que se foi cristalizando a noção de jogo como atividade específica “da criança que dá forma, em si mesma, à atitude do adulto em face da realidade circundante, sobretudo, em face da realidade social, e que possui seu conteúdo específico e sua estrutura: um objeto, motivos peculiares de atividade e um sistema peculiar de ações”. (ELKONIN, 1998, p. 204-205). Diante disso, escreve Elkonin: A evolução da atividade lúdica está intimamente relacionada com todo o desenvolvimento da criança. Da evolução do jogo só se pode falar depois de se terem formado as coordenações sensório-motoras fundamentais que oferecem a possibilidade de manipular e atuar com os objetos. (ELKONIN, 1998, p. 207). Ao longo dos anos, vem sendo construído pela Psicologia um campo de pesquisa que concebe as brincadeiras infantis como resultado da experiência direta com os adultos, por meio da imitação e da observação, caracterizando-se como espaços privilegiados de interações sociais, com apropriação de novos significados e constituição de novos conhecimentos pelas crianças (VYGOTSKY, 1984). Na perspectiva da análise histórico-social Vigotski infere que: Na brincadeira, a criança está sempre acima da média da sua idade, acima de seu comportamento cotidiano; na brincadeira, é como se a criança estivesse numa altura equivalente a uma cabeça acima da sua própria altura. A brincadeira em forma condensada contém em si, como na mágica de uma lente de aumento, todas as tendências do desenvolvimento; ela parece tentar dar um salto acima do seu comportamento comum. (VIGOTSKI, 2008, p. 35) Pensamos o jogo, de acordo com Vigotski (1935), como fonte de desenvolvimento da criança pré-escolar, isto é, de sua personalidade e de suas características essencialmente humanas. Segundo Vygotsky (1984), o brincar corresponde à atividade que, entre zero e seis anos, melhor permite o desenvolvimento da inteligência e da personalidade da criança, isto é, as funções psíquicas superiores, como a atenção voluntária, a memória voluntária, a linguagem, o pensamento e as idéias e sentimentos morais, a capacidade de viver em grupo e de ser solidária. Para Vygotsky (1984), a criança pequena tem alguns desejos que precisam ser satisfeitos imediatamente, caso contrário, ela evidenciará irritabilidade e sérias mudanças de comportamento. No caso da criança em idade pré-escolar, Vygotsky (1984) afirma que há uma compreensão da impossibilidade, na vida real, de realização de alguns dos seus desejos, e, então, ela começa a ter necessidade de vivenciar, por meio das brincadeiras, as situações em que a sua imaginação lhe permitirá suprir tal desejo, o que não significa dizer que todos os desejos não realizados serão supridos pelas situações de brincadeiras. Em resumo, o brinquedo cria na criança uma nova forma de desejos. Ensina-a a desejar, relacionando seus desejos a um “eu” fictício, ao seu papel no jogo e suas regras. Dessa forma, as maiores aquisições de uma criança são conseguidas no brinquedo, aquisições que no futuro tornar-seão seu nível básico de ação real e moralidade. (VYGOTSKY, 1984, p. 131). A partir da apresentação dos pressupostos que dão corpo à denominada Teoria Histórico-Cultural, é possível nos apoiarmos na idéia de que é na infância que o brincar proporciona maiores possibilidades de a criança compreender o mundo físico, organizar e reorganizar seus processos psíquicos e interpretar os papéis sociais que testemunha em seu meio; envolve objetos, num processo que vai do tateio puro e simples à utilização social dos objetos e quando desenvolve – entre tantas outras funções psicofisiológicas – a função simbólica essencial à aquisição da leitura e da escrita (VYGOTSKY, 1984). Ou seja, enquanto brinca, a criança vai desenvolvendo funções psíquicas e atitudes que são condição para seu desenvolvimento futuro na escola e na vida: [...] tudo aparece no brinquedo que se constitui, assim, no mais alto nível de desenvolvimento pré-escolar. A criança desenvolve-se através da atividade de brinquedo. Somente neste sentido o brinquedo pode ser considerado uma atividade condutora que determina o desenvolvimento da criança. (VIGOTSKI, 1984, p. 135). “Dessa forma, a definição da brincadeira pelo princípio de satisfação, é claro, não pode ser considerada correta. [...] A dificuldade de uma série de teorias sobre a brincadeira é, de certa maneira, a intelectualização desse problema.” (Vigotski, 2008, p. 24). Nesse sentido, é necessário conceber a brincadeira do ponto de vista da esfera afetiva, considerando os motivos, as necessidades e os desejos da criança, isto é, a atividade. Segundo Vigotski (2008) há um diferencial entre a criança na primeira infância e a criança em idade pré-escolar, pois a segunda já é capaz de generalizar as reações afetivas. Nessa perspectiva “A imaginação é o novo que está ausente na consciência da criança na primeira infância, absolutamente ausente nos animais, e representa uma forma especificamente humana de atividade da consciência [...].” (p. 25). Dessa forma, inicialmente a criança pequena reproduz as ações dos adultos na atividade do brincar, com uma situação imaginária bem próxima do real e, ao longo do desenvolvimento do brincar, assim é uma memória ativa do que aconteceu e não uma imaginação. Posteriormente a imaginação acentua-se e, ao final do desenvolvimento surgem as regras e consequentemente com a exigência das regras aumenta a atenção da criança no brincar e a regulação da atividade. Além disso, o brincar torna-se mais tenso e agudo. Nesse sentido, Vigotski (2008) pontua que aquilo que há na vida real e que a criança não percebe, isto é, não tem consciência de que há um comportamento, transforma-se em regra na brincadeira, ou seja, a regra é decorrente da situação imaginária, já que não foi previamente formulada. Como exemplo, temos uma criança que brinca de cabeleireira, nessa situação a regra é a de comportar-se como uma cabeleireira. Ainda, Vigotski (2008) afirma que em qualquer brincadeira imaginária há regras ocultas. E aqui a recíproca é verdadeira. Em qualquer brincadeira com regras há em si uma situação imaginária, isto é: O que significa, por exemplo, jogar xadrez? Criar uma situação imaginária. Por que? Porque ainda que sejam conceitos próprios do xadrez o peão poder andar somente de uma forma, o rei de outra, a rainha de outra; “comer”, perder peças, etc., mesmo assim há uma certa situação imaginária que está sempre presente e não substitui diretamente as relações reais da vida. (VIGOTSKI, 2008, p.28). Em síntese: “Qualquer brincadeira com situação imaginária é, ao mesmo tempo, brincadeira com regras e qualquer brincadeira com regras é brincadeira com situação imaginária. Parece-me que essa tese está clara.” (VIGOTSKI, 2008, p. 28) Ainda, de acordo com Vigotski (2008) na brincadeira do pré-escolar a há pela primeira vez a divergência entre o campo semântico e o ótico, tarefa muito árdua para a criança nessa idade, “[...] na brincadeira, a idéia separa-se do objeto e a ação desencadeia-se da idéia e não do objeto.” (p. 30). Desse modo, a partir do momento em que a criança faz um chinelo transformar-se em um carro, isto é, separou o significado carro de um carro real, “[...] nesse momento crítico, modifica-se radicalmente uma das estruturas psicológicas que determinam a relação da criança com a realidade.” (p. 31) Mukhina (1996) afirma que na atividade lúdica, as qualidades psíquicas e individuais da criança se desenvolvem com muita intensidade, influenciando na formação dos processos psíquicos e desenvolvendo a atenção ativa e a memória ativa da criança. Ainda, a ação lúdica influencia de forma permanente a atividade mental do pré-escolar, sendo o jogo elemento principal para introduzir a criança no mundo das idéias, em razão de a criança aprender a substituir certos objetos por outros e a interpretar diversos papéis, o que servirá de suporte para a sua imaginação: Enquanto brinca, a criança se concentra melhor e lembra mais coisas do que nos experimentos de laboratório. O objetivo consciente da criança em concentrar-se e recordar manifesta-se sobretudo e da melhor forma no jogo. As próprias condições de jogo obrigam a criança a concentrarse nos objetos na situação lúdica, no conteúdo das ações e no argumento que interpreta. (MUKHINA, 1996, p. 164). Diante disso, o jogo ajuda a desenvolver a personalidade da criança. Por meio do jogo a criança compreende o comportamento e as relações dos adultos que lhe servem de modelo de conduta. 4. Gênese e desenvolvimento do jogo na criança Para Elkonin (1998) as coordenações sensório-motoras começam a se formar nas primeiras interações da criança com o adulto, daí decorre um processo de aprendizagem. Além disso, as apalpações com as mãos são fundamentais para o desenvolvimento do ato de preensão. Nesse sentido, é possível inferir que como lei geral da Teoria HistóricoCultural, a importância do adulto, ou parceiro mais experiente, tem suma importância no processo de ensino e aprendizado que prioriza a humanização do indivíduo, desde a mais tenra idade: A formação primária da preensão e seu ulterior aperfeiçoamento transcorrem na atividade conjunta com os adultos. É precisamente o adulto quem cria as diferentes situações em que se aperfeiçoa a direção psíquica dos movimentos das mãos baseados na percepção visual do objeto e em sua distância. (ELKONIN, 1998, p. 209). Após a formação do ato de preensão, de acordo com Elkonin (1998), a evolução dos movimentos passa para outra fase, a qual se deriva do aparecimento e desenvolvimento de diversos movimentos reiterativos, o qual se inicia com as palmadas no objeto. E, concomitantemente aos movimentos reiterativos, aparecem os concatenados, “[...] movimentos soltos e diferenciados que se sucedem estritamente uns aos outros”. (ELKONIN, 1998, p. 210). Elkonin (1998) afirma que Denísova e Figurin (1929) pesquisaram a influência do novo como estímulo nas ações da criança com os objetos, e a partir dessa pesquisa, indicam que à medida que as crianças manipulam os objetos, essas têm preferência para a manipulação de objetos novos, que ainda não conhecem, sendo possível essa observação no quinto mês de vida. Segundo Leontiev (1988), nos primeiros meses de vida, a atividade principal da criança é a comunicação emocional com os adultos que cuidam dela e, posteriormente, a necessidade de manipulação dos objetos que a rodeiam. A partir disso a criança acumula experiências que a ajudarão a desenvolver seu pensamento, sua linguagem, sua memória ativa, e sua atenção ativa, isto é, suas funções psíquicas superiores. Em relação à comunicação emocional Lísina, citada por Elkonin (1998) no capítulo quatro do livro Psicologia do jogo, pesquisou minuciosamente o desenvolvimento da comunicação. Segundo Elkonin, Lísina aponta para o fato de que no primeiro ano de vida a comunicação emocional direta da criança com os adultos é trocada de maneira especial por uma nova qualidade, que evolui também em conjunto com os adultos que é a manipulação com os objetos: A criança aspira também a ter contatos pessoais diretos com os adultos e reclama a sua atenção e aprovação. As crianças buscam o elogio dos adultos para as ações lúdicas, manipulações a que se entregam, e rechaçam o elogio desligado do que fazem por parte de adultos desconhecidos. Se o adulto manifesta, de passagem, a sua boa disposição para com a criança, a sua avaliação causa a esta última uma alegria profunda. (Lísina apud ELKONIN, 1998, p. 215). De acordo com Leontiev (1988), por volta dos três anos a criança passa a imitar os adultos em suas relações sociais e com o mundo da cultura. É nesse momento, de acordo com Elkonin (1998), que se manifesta a aparição do papel no jogo, “[...] no final dos primeiros anos da infância, entre os dois anos e meio e os três anos, surgem os primeiros indícios de papel, que se expressam em duas séries de fatores.” (ELKONIN, 1998, p. 227). Conforme Elkonin (1998), a primeira série de fatores pode-se configurá-la da seguinte maneira: a criança ao brincar com duas bonecas coloca uma ao lado da que estava dormindo e diz: “Esta é a mamãe”, nesse caso a criança colocou na boneca o nome de uma personagem. E na segunda série de fatores pode-se configurá-la como quando uma criança coloca as duas bonecas uma próxima a outra e diz: “pronto filhinha agora estou aqui”, nesse caso a criança fala em nome da boneca, com indícios de uma futura fala protagonizada. Simultaneamente ao desenvolvimento da situação lúdica e do papel, Elkonin (1998) descreve que se torna complexa a estrutura das ações lúdicas. No início as ações se estruturam de forma solta, sem relação entre si e não há uma lógica nas ocorrências, assim como ocorre na vida. Ainda, a criança nessa fase, executa com o mesmo objeto três ações, “[...] primeiro a menina embala, depois caminha, logo dá de comer à boneca e, por último, leva-a a passear no carrinho.” (ELKONIN, 1998, p. 228). É no fim do primeiro período da infância, por volta dos dois e três anos que os jogos com relações e ações lógicas, que costumam ocorrer na vida, começam a aparecer na lógica da vida da criança: “[...]‘Kátia tomou banho, agora vai dormir’, e deita em seguida na caminha. Aqui, ao ato de dar banho segue-se o de pôr na cama, com a mesma continuidade com que essas ações se realizam na vida. A lógica das ações lúdicas começa a refletir a lógica da vida da pessoa” (ELKONIN, 1998, p. 230). Dessa forma, para o aparecimento do jogo protagonizado, a comunicação emocional, a manipulação de objetos e a imitação do papel da vida são de suma importância e estão inseridos nesse processo da gênese do jogo, sempre em ações e atividades conjuntas com os adultos, ou parceiros mais experientes. Como nos apresenta Leontiev (1988), próximo aos seis anos, a criança se atém na sua atividade principal, o faz-de-conta e, é por meio dessa atividade que a criança desenvolve suas capacidades máximas de linguagem, do pensamento, da atenção, da memória, dos sentimentos morais, dos traços de caráter, entre outros; “[...] isso mostra de maneira persuasiva que o jogo aparece com a ajuda dos adultos e não de maneira espontânea”. (ELKONIN, 1998, p. 231). Assim, escreve Leontiev, ao se referir à lei geral desenvolvimento do brincar na idade pré escolar, com transições em sua forma: A lei do desenvolvimento do brinquedo, como indicado pelas descobertas experimentais de Elkonin, diz que o brinquedo também evolui de uma situação inicial onde o papel e a situação imaginária são explícitos e a regra é latente, para uma situação em que a regra torna-se explícita e a situação imaginária e o papel latentes. (LEONTIEV, 1988, p. 133). Dessa forma, inicialmente a criança pequena reproduz as ações dos adultos na atividade do brincar, sendo uma situação imaginária bem próxima do real, assim é uma memória ativa do que aconteceu e não uma imaginação efetiva. Posteriormente, a imaginação acentua-se e, ao final do desenvolvimento, surgem as regras e, consequentemente, com a exigência das regras aumenta a atenção da criança no brincar e a regulação da atividade. Além disso, o brincar torna-se mais tenso e agudo. Assim, segundo Mora, o que Hegel considera como jogo, tem o significado cuja explicação está relacionada ao que a teoria Histórico-Cultural expõe: Werner Marx (Heidegger und die Tradition [1961], p.80) observa que para Hegel o ser “joga” como conceito na medida em que se põe em relação consigo mesmo no “ser outro”. Isso é como um “reflexo” do ser em outro e tem alguma semelhança com a idéia Heideggeriana do jogo (Spiel) como um refletir-se (Spiegeln). (MORA, José Ferrater, 1994, p. 1601). Dessa forma, podemos verificar que no momento em que a criança reproduz as ações adultas no brincar, ela reflete seu ser no ser adulto, por meio de um desejo que não pode ser realizado, como por exemplo, dirigir um carro. Considerações Finais Partindo do pressuposto de que é a escola uma das instituições de mediação da cultura historicamente acumulada pelo homem, logo o professor, através da mediação, deve motivar aprendizagens que propiciem a formação integral e plena das crianças. Diante disso, podemos afirmar que o professor, independentemente do nível de escolarização no qual atue, necessita ter a consciência de que o desenvolvimento psíquico da criança se dá por meio de momentos, cada um deles com uma atividade principal, as quais têm relação com os motivos e necessidades da criança e, à medida que esses motivos vão se modificando, os motivos velhos já não estimulam tanto, ficando num segundo plano. Inicia-se aí uma nova atividade principal e, com ela, um novo estágio de desenvolvimento (LEONTIEV, 1988). Mediante isso, não é possível conceber o brincar como uma atividade que objetive que o aluno aprenda algum conteúdo e mostre o que aprendeu anteriormente, uma vez que dessa forma, fica descaracterizado o brincar, isto é, arruína-se a sua finalidade em si mesmo. Além disso, é perceptível que há diversas concepções de brincar. Todavia, para a Teoria Histórico-Cultural o papel do brincar no desenvolvimento humano não se resume a uma válvula de escape para sentimentos ruins, uma vez que “A criança desenvolve-se, essencialmente, através do brinquedo. Somente neste sentido o brinquedo pode ser considerado uma atividade condutora que determina o desenvolvimento da criança.” (VYGOTSKY, 1984, p.117). Além disso, “O jogo obriga a criança a reviver os sentimentos experimentados pelos personagens que ela representa, como é o caso da atenção do médico ao doente. A criança trata com simpatia, carinho e com um ar protetor as bonecas e os animais de brinquedo.” (MUKHINA, 1996, p. 195). Do mesmo modo, se partirmos dos princípios da Teoria Histórico-Cultural explorados neste texto, se torna inviável aceitar a explicação de que o brincar é uma válvula de escape para energia vital acumulada, nem mesmo para sentimentos e impulsos prejudiciais, ou como momento de descanso das atividades ditas comumente como “sérias” e “produtivas” da sala de aula. Além disso, as teorias gerais de jogo de Groos e Stern, os quais compartilham das mesmas idéias, demonstram o seu caráter puramente biológico, uma vez que consideram que o jogo nada mais é do que o exercício prévio para a vida futura. E Mukhina (1990) complementa: “O interesse pelo jogo e o desejo de desempenhar bem o seu papel são tão fortes que a criança realiza ações difíceis ou pouco atraentes; por meio do jogo a criança reprime seus desejos.” (p.195). Podemos inferir mediante as discussões que o que temos é um discurso que permanece longe da prática, ou seja, é muito difícil perceber a valorização do brincar como uma atividade tão importante, enquanto tantas outras, que a criança realiza no período em que permanece na escola. O que se vê é uma dificuldade dos educadores em, efetivamente, promoverem espaços e organizarem momentos de brincadeiras na rotina. Assim, ocorre uma dicotomização entre o “jogo” e o “trabalho sério”, ou mesmo o uso do momento da brincadeira como uma atividade de descanso para docentes e discentes. Referências ELKONIN, D. B. Psicologia do jogo. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1998. HUIZINGA, J. Homo Ludens. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1990. LEONTIEV, A. Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique infantil. In: VIGOTSKII, L. S. et al. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone/Edusp, 1988. MORA, J. F. Dicionário de Filosofia. Tomo II e III. São Paulo: Edições Loyola, 1994, p.2312. MUKHINA, V. Psicologia da idade pré-escolar: um manual completo para compreender e ensinar a criança desde o nascimento até os setes anos. São Paulo: Martins Fontes, 1996. VIGOTSKI, L.S. A brincadeira e o seu papel no desenvolvimento psíquico da criança. In: Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais. Rio de Janeiro, nº. 8, p. 23-36, junho de 2008. VYGOTSKY, L.S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984. VIGOTSKII, L. S. et al. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone/Edusp, 1988. VYGOTSKI. Génesis de las funciones psíquicas superiores. In: VYGOTSKI, L. S. Obras escogidas. 2.ed. Madrid: Visor, 2000, v. III, p.139-168.