Lumina - Facom/UFJF - v.4, n.1, p.137-152, jan/jun 2001 - www.facom.ufjf.br
A MULHER
E SEUS ADORNOS
Em Baudelaire
Maria Cristina Brandão de Faria*
>Admirador da mulher e sua relação com o que ele chama de alta espiritualidade da moda, Charles Baudelaire
exalta a maquilagem, as vestimentas e os adereços femininos definidos como uma deformação sublime da
natureza. Comentários sobre o pensamento baudelairiano a respeito da Modernidade e da moda. Breve
panorama da indumentária da segunda metade do século XIX.
Charles Baudelaire - Moda – Modernidade
>Charles Baudelaire admired women and their relation to what he called the high spirituality of fashion. He
exalts feminine maquillage, ladies’s wear and adornments, all defined as a sublime deformation of nature.
Comments on Baudelaire’s thoughts about Modernity and fashion. A view of the second half of the XIXth
century’s garments.
Charles Baudelaire - Fashion - Modernity
Em seu ensaio O Pintor da Vida Moderna, o poeta francês Charles Baudelaire
(1821-1867) dedica dois capítulos para exaltar a mulher1, sua indumentária e sua
maquilagem. Um ser
para quem e por meio de quem se fazem e se desfazem fortunas, para quem e
sobretudo devido a quem os artistas e os poetas compõem suas jóias mais
delicadas; de quem derivam os prazeres mais excitantes e as dores mais
profundas,
a mulher baudelairiana é, sobretudo, um astro, uma divindade que “preside todas as
concepções do cérebro masculino”. A mulher é objeto de admiração e curiosidade mais
viva que o “quadro da vida possa oferecer ao contemplador”. Mas este ser fascinante e
enfeitiçador não se apresenta apenas conforme a natureza o esculpiu. Baudelaire faz uma
espécie de apologia aos adornos e maquilagens que compõem a mulher afirmando que
“tudo que adorna a mulher, tudo que serve para realçar sua beleza, faz parte dela própria”, e
os artistas que se dedicarem ao estudo desse “ser enigmático” devem adorar todo esse
mundus muliebris que envolve a mulher. Tanto quanto ela própria. E o poeta conclui:
...é sem dúvida, uma luz, um olhar, um convite à felicidade, às vezes uma
palavra; mas ela é sobretudo uma harmonia geral, não somente no seu porte e
no movimento de seus membros, mas também nas musselinas, nas gazes, nas
amplas reverberantes nuvens de tecidos com que se envolve, que são como que
os atributos e o pedestal de sua divindade; no metal e no mineral que lhe
serpenteiam os braços e o pescoço, que acrescentam suas centelhas ao fogo de
seus olhares ou tilintam delicadamente em suas orelhas. Que poeta ousaria, na
pintura do prazer causado pela aparição de uma beldade, separar a mulher de
sua indumentária?2
Deparamo-nos então com um autor que clama aos artistas que queiram decifrar o ser
feminino, a dedicarem sua atenção a todos os artifícios utilizados pela mulher para realçar
sua beleza (incluem-se, pelo trecho acima, as jóias e adereços que realçam seu corpo) e,
principalmente, sua indumentária. Esses artifícios, voluntária ou involuntariamente, fazem
parte dela.
Mais adiante, o poeta nos indaga:
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Que homem, na rua, no teatro, no bosque, não fruiu, da maneira mais
desinteressada possível, de um vestuário inteligentemente composto e não
conservou dele uma imagem inseparável da beleza a quem pertencia, fazendo
assim de ambos, da mulher e do traje, um todo indivisível?
Esta seria a ocasião, como o próprio autor nos incita, para estudarmos certas
questões relativas à moda e aos adereços que, segundo ele, atormentaram alguns amantes
“muito equívocos da natureza”.
Contra a natureza
Para compreendermos a importância que Baudelaire dá ao uso da maquilagem pela
mulher, teremos que nos ater, primeiramente, às suas observações filosóficas e estéticas
relacionadas à natureza. O poeta vagueia pelos meandros da natureza onde estão a origem e
justificação de sua postura diante da vida e das artes.
Acredita estar a natureza corrompida pela própria natureza, o que se torna
particularmente claro quando, no fragmento XXII das Fusées, nos diz ele : “L’homme,
c’est-à-dire, chacun, est si naturellement dépravé qu’il souffre moins de l’abeissement
universel que d’établissement d’une hiérarchie raisonnable”3. Essa visão de uma natureza
desde sempre e necessariamente corrupta faz-se ainda mais nítida na passagem do Elogio
da Maquilagem, na qual Baudelaire sustenta que a natureza não ensina nada, ou quase
nada, que ela obriga o homem a dormir, a beber, a comer, a defender-se, bem ou mal,
contra as hostilidades da atmosfera. É ela igualmente que “leva o homem a matar seu
semelhante, a devorá-lo, a seqüestrá-lo e a torturá-lo”; pois saindo da ordem das
necessidades e das obrigações ele entra na do luxo e dos prazeres, e, consequentemente, a
natureza irá incentivar apenas o crime. Chega a culpar a natureza por ter criado o parricídio
e a antropofagia e mil outras abominações, concluindo, afinal, que a virtude, ao contrário, é
artificial já que “foram necessários, em todas as épocas e em todas as nações, deuses e
profetas para ensiná-la à humanidade animalizada”, e que o homem, por si só, teria sido
incapaz de descobri-la já que o “mal se faz, sem esforço, naturalmente, por fatalidade”.
Historicamente, Baudelaire reagia a algumas correntes do século XVIII que
debatiam o papel da natureza enquanto fonte de todo o bem e de todo o belo4.
O poeta deixa muito clara sua posição: tudo que é natural é abominável. Já o bem,
“será sempre o produto de uma arte”. Nesse ponto, Baudelaire retoma a razão como
verdadeira redentora e reformadora podendo transpor seu pensamento para a ordem do
belo. O próximo passo será elevar a vestimenta e os adereços da mulher ao patamar de
nobreza e ainda afirmar: “as raças que nossa civilização, confusa e pervertida, trata com
naturalidade de selvagens, com um orgulho e uma enfaturação absolutamente risíveis,
compreendem, tanto quanto a criança, a alta espiritualidade da indumentária”5.
Para Baudelaire, os selvagens e as crianças, por sua aspiração ingênua a tudo que é
brilhante, multicor e tecidos cintilantes, em resumo, à majestade superlativa de todas as
formas artificiais, estariam manifestando a imaterialidade de sua alma. Ao contrário,
aqueles que como Luís XV6 que apreciam apenas a natureza, podem ser identificados com
a depravação e à barbárie.
A moda, gosto pelo ideal
Ao rechaçar a natureza - fonte do que é feio, “o horror”-, chegamos então à
expressão, do contrário, do belo e, por extensão, à moda. Esta deve ser considerada como
um “sintoma do gosto pelo ideal que flutua no cérebro humano acima de tudo que a vida
natural nele acumula de grosseiro, terrestre e imundo”. A moda poderia, segundo
Baudelaire, ser definida como “uma deformação sublime da natureza, ou melhor, como
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uma tentativa permanente e sucessiva de correção da natureza”. Como modificadoras da
natureza, todas as modas seriam encantadoras, na visão do poeta, pois fazem um esforço
novo, em direção ao belo, uma aproximação qualquer a um ideal cujo desejo lisonjeia
incessantemente o espírito humano insatisfeito. Baudelaire, à sua época, já contradizia o
que hoje muitos estudiosos e estilistas renegam, ou seja, a pressuposição de que qualquer
coisa referente à moda seja frívola. Georgina O’Hara aproxima-se do pensamento
baudelairiano quando nos diz que determinados aspectos da moda são “registros sensíveis
da época na qual ocorrem e que seu estudo pode ser ao mesmo tempo uma aula de história,
uma aula de geografia, uma aula de economia e uma aula de matemática”7.
Para serem verdadeiramente apreciadas, o nosso crítico das artes do século XIX nos
informa que “as modas não devem ser consideradas como coisas mortas”, ao contrário, é
preciso imaginá-las vitalizadas e vivificadas pelas belas mulheres. Somente assim
poderemos compreender seu sentido e espírito.
É direito da mulher e quase um dever esforçar-se em parecer mágica e sobrenatural,
ordena Baudelaire, pois a mulher precisa despertar a admiração e fascinar. Como um ídolo,
deve “dourar-se para ser adorada”. E como fazê-lo? Colhendo em todas as artes os meios
para elevar-se acima da natureza para “melhor subjugar os corações e surpreender os
espíritos”. Não importa se os artifícios são conhecidos de todos, mas o efeito será sempre
irresistível.
O artista-filósofo encontrará facilmente, garante o poeta, nessas considerações, a
legitimação de todas as práticas empregadas em todos os tempos pelas mulheres para
consolidarem e divinizarem, por assim dizer, sua frágil beleza.
Do vestuário chegamos, enfim, à maquilagem. Destacaremos aqui três “artifícios”
utilizados pelas mulheres: (no século XIX e até os nossos dias) o pó-de-arroz,o lápis preto
que contorna os olhos e o ruge. Vejamos então o que Baudelaire, poética e filosoficamente,
nos tem a dizer a respeito desses três elementos básicos da maquilagem. O primeiro, o póde-arroz, “tolamente anatematizado pelos filósofos cândidos”, faz desaparecer da tez “as
manchas que a natureza nela, injuriosamente, semeou e criar uma unidade abstrata na
textura e na cor da pele”. Seu efeito aproxima o ser humano da estátua, isto é, de um ser
divino e superior. O preto artificial e o vermelho que marcam a parte superior da face
representam, para Baudelaire, (que aqui nos fala como crítico de arte a observar uma
pintura), a vida sobrenatural e excessiva. A moldura negra torna o olhar mais profundo, “dá
aos olhos uma aparência mais decidida de janela aberta para o infinito”, e o vermelho, que
inflama as maçãs do rosto, ao aumentar a claridade da pupila, acrescenta ao belo rosto
feminino “a paixão misteriosa da sacerdotisa”8.
A maquilagem, todavia, não deve ser usada para imitar a natureza, mas sim “exibirse sem afetação mas com uma espécie de candura”. E conclui:
Aqueles a quem uma pesada gravidade impede buscar o belo mesmo em suas
mais minuciosas manifestações, autorizo de boa vontade a rirem de minhas
reflexões e a assinalarem nelas a pueril solenidade; nada em seus julgamentos
austeros me afeta; contento-me em me remeter aos verdadeiros artistas, assim
como às mulheres que receberam ao nascer uma centelha desse fogo sagrado
com que gostariam de iluminar-se por inteiro9.
A Modernidade e a moda
A idéia que o homem tem do belo imprime-se em todo seu vestuário, torna sua
roupa franzida ou rígida, arredonda ou alinha seu gesto e inclusive impregna
sutilmente, com o passar do tempo, os traços de seu rosto10.
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Não podemos falar em Baudelaire sem associá- lo à Modernidade. Muitos terão
escrito tanto e tão ou mais profundamente do que ele sobre o tema (Poe, Proust, Valéry) ou
terão o pintado com cores mais fortes e claras (Turner, Ensor). Mas é Baudelaire quem
aparece como marco obrigatório de referência, porque as figuras da Modernidade traçadas
por Baudelaire são mais simples e menos extensas e, simultaneamente, mais coloridas,
matizadas e densas. Os tópicos básicos do que Baudelaire sentia-se autorizado a chamar de
Modernidade estão presentes em Do heroísmo da vida moderna, no Salão de 1859, e em O
pintor da vida moderna, onde surgem as concepções mais diretas sobre o assunto
(incluindo os capítulos sobre o belo, a moda e a maquilagem - já citados).
Estes temas de que trata o autor, combinados, desenham as linhas da vida moderna,
na qual Baudelaire distingue um lado épico tão fecundo quanto o da “vida antiga”11 e onde
o artista contemporâneo poderia alimentar-se tranqüilamente deixando de recorrer a fontes
da Antigüidade, como fazia ainda David.
É sobre esta base que Baudelaire chamará de Modernidade - esse algo resultante da
operação de extrair da moda o que ela tem de poético no histórico, de extrair do transitório
o que ele tem de eterno. Modernidade que, em arte, dialoga continuamente com a
Antiguidade; Modernidade que, se for apenas o transitório, o efêmero, é “metade da arte”.
Modernidade feita de belezas passageiras e fugazes12.
Esse tom épico da vida da grande cidade, segundo nos diz Teixeira Coelho, ao
analisar a Modernidade em Baudelaire, introduz outro de seus pontos fundamentais, o do
artista como o herói da Modernidade, capaz de perceber a “beleza particular” dos novos
tempos e de encontrar “nas existências errantes dos subterrâneos da grande cidade
criminosos e mulheres de reputação equívoca” - as provas do heroísmo contemporâneo.
O artista-herói é o flâneur13, observador, filósofo, romancista ou moralista pintor do
circunstancial, do trivial e de “tudo o que este sugere de eterno”: como ele mesmo.
Para um observador apaixonado, cuja profissão é “desposar a multidão, observar
com imenso júbilo o ondulante movimento das ruas permanecendo incógnito, como amador
da vida o mundo é sua família”. Assim, o flâneur14 admira a eterna beleza e a espantosa
harmonia da vida das capitais. No seu tempo, contempla as “belas carruagens, os garbosos
cavalos, a limpeza reluzente dos cavalos...o andar das mulheres ondulosoas...” Ele pode
anotar “se uma moda, um corte de vestuário foi levemente transformado, se os laços de fita
e os cachos foram destronados pelas rosetas, se a mantilha se ampliou e o coque desceu um
pouquinho na nuca, se a cintura foi erguida e a saia alargada...”15
E como um flâneur é que vamos passear pelas ruas de Paris, entre 1840 e 1867, para
observarmos o que motivava o poeta a ver as mulheres que “envergavam trajes segundo o
grau de poesia ou de vulgaridade que as distinguia”, e como sua época exibia o “seu porte,
o seu olhar, o seu gesto” ou a imaginação do espectador podia ainda “ movimentar ou
fremir esta túnica ou este xale”16.
Ao nos transportarmos numa flânerie pela década de 1840, temos que considerar
que aqueles anos foram marcados por extraordinárias inovações técnicas e convulsões
sociais. Presenciou-se o surgimento das ferrovias e levantes sociais, mas esperava-se que as
mulheres não tomassem parte nisso, mesmo em 1848, “ano das revoluções”. O pudor
reinava incontestado, por isso as saias iam até o chão e os sapatos sem saltos mal podiam
ser vistos pelas anáguas. Excetuando-se os decotes em roupas para a noite, as mulheres
estiveram bem cobertas. O chapéu boneca encobria seus rostos. A mulher que Baudelaire
observava usava, fundamentalmente, vestidos de cintura baixa, e as linhas de adornos do
corpete se destinavam a realçar esse efeito. As mangas eram justas ou ficavam fofas no
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antebraço. As saias, como já dissemos, eram compridas e rodadas. O corpete e a saia
geralmente formavam uma só peça abotoada atrás com colchetes. A partir de meados da
década, já era possível usar uma jaqueta curta cinturada e separada da saia. A jaqueta era
justa e abotoada na frente.
Entre os vestidos para o dia, os estudiosos da moda distinguem quatro tipos: o
pelisse-robe, usado em ambientes fechados, pela manhã, o redingote, esse sim, usado para
o passeio e o mais apreciado pelo flâneur. Já o round dress era bem mais enfeitado e usavase nos passeios à tardinha. Por último, o peignoir, vestido informal, usado apenas pela
manhã (mas não é o que chamamos hoje de roupão). À noite, as mulheres usavam vestidos
decotados, mostrando os ombros, e retos, com uma pequena reentrância no meio (chamada
en coeur)17. Estes vestidos eram confeccionados em seda furta-cor ou veludo. Usava -se
sapatos sem salto para que as mulheres parecessem bem pequenas (como deferência à
rainha Vitória). O tipo mais comum era sapatilha amarrada ao tornozelo (como a de uma
bailarina) mas feita de seda ou crepe, em cores que combinavam com o vestido. Nas ruas,
as mulheres usavam botas de tecido com laterais de elástico.
Reportando-nos um pouco mais à moda vista por Baudelaire em seu tempo,
chegamos à década de 1850, quando as mulheres passaram a sair com seus vestidos
repletos de babados sustentados por inúmeras anáguas.
Flores proibidas
O ano de 1857 era decisivo para Baudelaire. Seu editor e amigo Paulet-Malassis
publica As flores do Mal. Baudelaire tem 36 anos. Escreve à mãe que os 52 poemas do livro
têm uma beleza fria e sinistra. Um jornalista conservador do Le Figaro denuncia a
imoralidade da coletânea. A Segurança Pública manda recolhê-la por ultraje à moral e aos
bons costumes, e o autor e o editor são condenados a multas e à supressão de seis poemas18.
O monstro sagrado Vitor Hugo escreve da ilha de Guernesey uma carta elogiosa ao autor. O
mesmo Hugo, mais tarde, avalia o gênio de Baudelaire reconhecendo o frisson criado por
seus poemas. É o que podemos observar nessas estrofes de um dos poemas censurados:
....As fulgurantes, vivas cores
De tuas vestes indiscretas
Lançam no espírito dos poetas
A imagem de um balé de flores,
Tais vestes loucas são o emblema
De teu espírito travesso;
Ó louca por quem enlouqueço,
Te odeio e te amo, eis meu dilema...
Assim eu quisera uma noite,
Quando a hora da volúpia soa,
Às frondes de tua pessoa
Subir, tendo à mão um açoite,
Punir-te a carne embevecida,
Magoar o teu seio perdoado
E abrir em teu flanco assustado
Uma larga e funda ferida,
E, como um êxtase supremo,
Por entre esses lábios frementes,
Mais deslumbrantes, mais ridentes,
Infundir-te, irmã, meu veneno!19
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Mesmo em seu poema “amaldiçoado”, Baudelaire continua atento às fulgurantes,
vivas cores das vestes indiscretas e loucas. As saias com muitos babados eram típicas da
década de 1850. Quando surgiu a crinolina20, a mulher podia ser comparada a um navio
majestoso navegando orgulhosamente na frente, enquanto um pequeno escaler - seu
acompanhante masculino - navegava atrás. Para o historiador de moda James Laver, a
enorme saia rodada era um grande fingimento; ela era um instrumento de sedução, como
vemos Baudelaire ao ser atraído pelas vestes loucas de sua musa. “A crinolina estava em
agitação constante, e, jogada de um lado para outro e nada parecia, exceto na forma, com o
iglu dos esquimós. Balançava-se para um lado, depois para o outro, levantava-se um pouco,
ia para a frente e para trás”21. Em meados de 1860, a crinolina começou a ser deslocada
para a parte de trás do vestido ficando a frente mais ou menos reta. Já no final da década,
houve uma mudança, tendo a armação da saia se deslocado totalmente para trás, não
passando, na verdade, de meia crinolina. Havia um amontoado de tecido atrás, terminando
em cauda e a crinolina foi reduzida a uma espécie de anquinha, o que iria caracterizar a
década seguinte.
Baudelaire nos lembra que cada época tem seu porte, seu olhar, seu sorriso e “não
temos o direito de desprezar ou de prescindir desse elemento transitório (aqui aplicado à
moda), fugidio, cujas metamorfoses são tão freqüentes”. Se suprimirmos esse elemento,
“podemos cair, forçosamente, no vazio de uma beleza abstrata e indefinível, como a da
única mulher antes do primeiro pecado”22.
Como se vestia o dândi
O homem rico, ocioso e que, mesmo entediado de tudo, não tem outra ocupação
senão correr ao encalço da felicidade; o homem criado no luxo e acostumado a
ser obedecido desde a juventude; aquele enfim, cuja única profissão é a
elegância...23
O dândi, como o caracteriza o poeta, advém dos romances ingleses do gênero highlife que dotaram suas personagens de fortunas bastante consideráveis, que viviam todas as
suas fantasias pois estavam dispensadas de qualquer ocupação a não ser “ cultivar a idéia
do belo em suas próprias pessoas, satisfazer suas paixões, sentir e pensar”. Daí as suas leis:
ter tempo e dinheiro, cultivar o amor, o gosto pela indumentária e a elegância como
símbolo de superioridade aristocrática do espírito; ter os olhos ávidos de distinção e uma
espécie de culto de si mesmo por se tornar original, não podendo nunca ser um homem
vulgar.
Do romance inglês que caracterizava o dandismo viriam também as influências da
moda masculina com total adesão francesa. No final do século XVIII, os franceses
aceitaram o traje inglês como uma lei. Surgia a roupa de casimira ajustada - a essência do
dândi - mas sem suntuosidade. Não havia bordados no casaco, que era feito de tecido liso,
com o corte originário do casaco de caça e de preferência em cores primárias (os coletes em geral curtos e de corte quadrado aparecendo por baixo da parte da frente do casaco podiam ser azul-escuro, vermelho ou branco, combinando com os calções)24.
Durante o dia usavam calções justos por dentro das botas de montaria e, à noite, meia de
seda com escarpins.
O dândi poderia ser reconhecido por alguns detalhes:
...pelo corte da roupa e pelos calções apertados, mas também pelo apuro do
arranjo em seu pescoço. O colarinho da camisa era virado para cima, com as
duas pontas projetadas sobre o rosto, firmadas por um lenço em forma de
plastrom ou stock. Dizia-se que alguns dândis passavam a manhã inteira
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arrumando seus plastrons. Grandes quadrados de gaze, musselina ou seda,
dobrados até formar uma tira, eram enrolados em volta do pescoço e amarrados
em nó ou laço, na frente. [...]O stock era uma faixa dura, em nó, já pronta,
abotoada atrás. Uma vez que o uso do plastrom ou stock tornava difícil, se não
impossível, virar ou abaixar a cabeça, isso contribuía muito para a
imperturbabilidade e arrogância do dândi25.
Ainda outros pormenores destacam o dândi como o uso de cartolas a toda hora e o
chapéu do tipo bicorne, com formato de lua crescente, à noite. Os cabelos eram curtos mas
usados um pouco despenteados. Usava-se bengala como todo homem que queria estar bem
vestido.
Sheridan, Byron e George Brummell foram dândis famosos citados por Baudelaire.
Este último, em 1819, fugiu para o continente para escapar dos seus credores e, após sua
partida, as roupas dos dândis, que antes eram sóbrias, começaram a apresentar todo tipo de
extravagância. A cartola inclinou até a copa ficar mais larga do que a aba, também eram
maiores e visíveis as extremidades do colarinho da camisa, chegando até os olhos, os stocks
ou plastrons ficaram mais apertados e mais altos, os casacos possuíam ombreiras e a cintura
era afinada com o auxílio de um espartilho. As calças terminavam acima das botas de meio
cano, ou presas sob o arco do pé.
Na França, os dândis tornaram-se cada vez mais raros, escreve Baudelaire. Ficaram
na literatura e na sociedade como figuras lendárias, pois “a maré montante da democracia,
que invade tudo e que tudo nivela, afoga dia a dia esses últimos representantes do orgulho
humano...” O autor ainda pode identificá-lo vez ou outra:
É justamente essa leveza de atitudes, essa segurança nas maneiras, essa
simplicidade no ar de dominação, esse modo de vestir uma casaca e de conduzir
um cavalo, essas atitudes sempre calmas, mas revelando força, que nos fazem
pensar, quando nosso olhar descobre um desses seres privilegiados, em quem o
belo e o temível se confundem tão misteriosamente: ‘Aqui talvez esteja um
homem rico, mas com maior probabilidade, um Hércules sem emprego’26.
O dandismo baudelairiano, como o define Ivan Junqueira, está não apenas na raiz de
toda a fundamentação estética do que produziu o poeta, mas até mesmo na origem e na
justificação de sua conduta humana e social. Nada mais é do que uma manifestação de
espírito, um processo de vida interior cujas raízes e implicações são bem fundas do que se
possa imaginar. Para compreendermos o esteta, o escritor artista, o criador sempre
insatisfeito com que escrevia, teríamos então o dândi, o próprio artista superior, lúcido e
refinado demiurgo do caos vocabular, aquele que se consagra à elaboração artificial, ou
seja, intelectual de um processo criativo do qual a natureza não participa.
Concluímos, portanto, que todas as belezas, como todos os fenômenos observados
pelo poeta francês, contêm algo de eterno e algo de transitório. “O elemento particular de
cada beleza provém das paixões e, como temos nossas paixões particulares, temos nossa
beleza”. Quanto à indumentária, essa segunda pele do herói moderno, pudemos observar
como foi poetizada no corpo das mulheres e dos dândis baudelairianos. A Modernidade
feita de “belezas passageiras e fugazes”, como se encontram na “vida presente”, mas que
para transformar-se em obra de arte precisa recorrer à identificação daquilo que estabelece,
com a tradição e a continuidade, uma ponte visível.
Notas
* Professora da Facom/UFJF.
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1. BAUDELAIRE, Charles. “A mulher” e “Elogio da maquilagem”. In: Sobre a
Modernidade. Rio de Janeiro. 1996. p. 53 a 60
2. BAUDELAIRE, Charles. Ibidem. p. 54
3. JUNQUEIRA, Ivan. A Arte de Baudelaire. In: Charles Baudelaire - As flores do mal. RJ.
1985 p.55
4. A corrente literária que surgiu na Alemanha chamada Sturm und Drang fazia apologia à
natureza. Numa tradução aproximada, Sturm und Drang quer dizer “Tempestade e Ímpeto”.
Título de uma peça de Klinger (1776) que deu nome a esse movimento literário alemão,
que, segundo alguns autores, persistiu de 1770 até 1790, caracterizado pela revolta contra o
racionalismo, em nome do sentimento e da natureza, e ao qual pertenceram, em sua
juventude, Goethe (1749-1832) e Schiller (1759-1805). O fenômeno manifestado por
intelectuais da classe média, num momento em que, excetuando-se algumas poucas cidades
livres, como Hamburgo e Frankfurt, provinha de uma Alemanha ainda dominada pelo
absolutismo aristocrático. Trata-se de um movimento de oposição ao classicismo onde
figura também o dramaturgo Jacob Lenz (1751-1792). A essência do Sturm und Drang era
a criação baseada no impulso irracional, característica de todos os movimentos românticos.
Sua importância é essencialmente histórica, base que foi da emancipação literária alemã.
(VASCONCELLOS, Luiz Paulo. Dicionário de Teatro. p. 180)
5. BAUDELAIRE.Charles. 1996. Op. cit. p. 57
6. COELHO, Teixeira. O tradutor do ensaio Sobre a Modernidade nos informa que a sra.
Dubarry, quando queria evitar receber o rei, tinha o cuidado de passar ruge. Era um sinal
suficiente. Ela fechava assim a sua porta: era embelezando-se que evitava o real discípulo
da natureza.
7. O’HARA, Georgina. Autora do Dicionário da Moda. Baudelaire diz ainda sobre o
fenômeno histórico da moda: “...tenho diante dos olhos uma série de gravuras de modas
que começam na revolução e terminam aproximadamente no Consulado. Esses trajes que
provocam o riso de muitas pessoas insensatas, essas pessoas sérias sem verdadeira
seriedade apresentam um fascínio de uma dupla natureza, ou seja, artístico e histórico [...] o
que me apraz encontrar em todos ou em quase todos é a moral e a estética da época.
8. BAUDELAIRE, Charles. Sobre a Modernidade. Op. cit. p. 59
9. ______. Op. cit. p. 60
10. BAUDELAIRE, Charles. O Belo, A moda e a Felicidade. In : Sobre a Modernidade
Op. cit. p. 9.
11. Baudelaire afirma ser o passado interessante não somente pela beleza que dele
souberam extrair os artistas para quem constituía o presente, mas igualmente como passado,
por seu valor histórico. O mesmo ocorre com o presente. O prazer que obtemos com a
representação do presente deve-se não apenas à beleza de que ele pode estar revestido, mas
também à sua qualidade essencial de presente. Ibidem. p. 8
12. COELHO, Teixeira. In: A Modernidade de Baudelaire. 1988. p.14
13. O flâneur fora um modelo bastante diferente de observador moderno proposto por
Baudelaire (flâner, perambular). O flâneur perfeito era o “observador apaixonado”, o
homem moderno que estava em seu elemento vagando por entre o vai-e-vem da multidão
urbana e cujo bem mais protegido era o anonimato, possibilitado pela vida na cidade
Baudelaire usou esse tipo necessariamente burguês e masculino como ilustrativo de um
conjunto particular de atitudes em relação à vida moderna, metropolitana. Compara o
flâneur ao artista, cuja tarefa é fruir essa qualidade especial de modernidade e expressar na
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pintura “o andar, o olhar e o gesto” da vida moderna. Na pintura da platéia no Concerto nas
Tulherias, de Manet, certas figuras destacam-se na multidão mas rapidamente dissolvem-se
nela. Uma delas é o retrato de Baudelaire (a figura de perfil por trás da mulher sentada à
esquerda) FRASCINA, Francis... et allii. Modernidade e Modernismo - A pintura francesa
do século XIX. São Paulo, 1998. p. 30.
14. Ver também O Flâneur. In: BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire, um lírico no
auge do Capitalismo. São Paulo, 1989. pgs. 186 a 236.
15. BAUDELAIRE, Charles. 1996. O artista, o homem do mundo... Op. cit. p. 22
16. Os rufos voltaram à moda, e havia uma paixão pelos xales que vinham, inicialmente, de
Caxemira em Paisley (Grã-Bretanha). Saber usar um xale com graça era a marca da mulher
elegante e ele era peça essencial no guarda-roupa de todas as mulheres.
17. LAVER, James. PROBERT, Christina. SP.1989. p. 156.
18. Neste mesmo ano, a Sexta Corte Correcional do Tribunal do Sena absolve Flaubert,
autor do romance Madame Bovary (leitura considerada indecente e corruptora). Flaubert foi
absolvido pelos juízes, mas não pelos críticos puritanos, que não lhe perdoaram o
tratamento cru do tema : adultério. Mesmo mais tarde houve quem opusesse à “indecência”
de Madame Bovary a visão de “mais sublime”de outro e quase contemporâneo romance de
adultério: Ana Karenina. CARPEAUX, Otto Maria. Prefácio de Madame Bovary.
19. Estrofes do poema A que está sempre Alegre, que o poeta dedicou a Mme. Sabatier, ou
Appolonie Sebatier, uma promotora da vida literária parisiense em quem Baudelaire diz
encontrar o anjo da guarda, a musa e a madona. (Este ano, pela primeira vez, havia se
afastado do grande amor de sua vida, a mulata Jeanne Duval). Com uma regularidade
pendular, o poeta oscila entre momentos alegres - a recente admiração por Madame
Sabatier, a publicação de Exposição Universal de 1855 e a permanente amargura de pular
de hotel em hotel fugindo de dívidas que havia contraído. Os juízes julgaram descobrir um
sentido a um tempo sanguinário e obsceno nas duas últimas estrofes. A gravidade da
coletânea excluía semelhantes gracejos. Mas “veneno” equivalendo a spleen ou a
melancolia era uma idéia muito simples para criminalistas. (JUNQUEIRA, Ivan. In: As
Flores do Mal. RJ. 1985, p.515) Que sua interpretação sifílica lhes fique na consciência!
(Charles Baudelaire)
20. O termo designava, inicialmente, uma armação feita com crina de cavalo. A crinolina
era uma espécie de armação por arcos e surgiu em 1856. A crinolina de 1865 exigia um
vestido de 8 a 10 metros de tecido. Foi criada para livrar a mulher do empecilho de várias
camadas de anáguas. As mulheres sentiam-se como dentro de uma gaiola de aço mas
podiam movimentar as pernas livremente. Em meio à uma ventania, para que as pernas não
fossem vistas, usavam pantalonas compridas de linho com renda na barra. Era marca de
distinção deixar aparecer as pantalonas de renda. No final da década, as saias armadas com
crinolinas eram prodigiosas e impediam que duas mulheres entrassem juntas em uma sala
ou sentassem no mesmo sofá.
21. LAVER, James. PROBERT, Christina. Op. cit. p. 184
22. BAUDELAIRE, Charles. 1996 A modernidade. Op. cit. p. 25
23. BAUDELAIRE, Charles. 1996. Op. cit. p. 47
24. LAVER, James. et allii. 1989. Op. cit. p.158
25. BAUDELAIRE, Charles. 1996. Op. cit. p.52
26. JUNQUEIRA, Ivan. 1985. Op. cit. p. 57.
Lumina - Facom/UFJF - v.4, n.1, p.137-152, jan/jun 2001 - www.facom.ufjf.br
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Carpeaux. Rio de Janeiro. Ediouro. 9.edição.
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Trad. Thomás Rosa Bueno.São Paulo: Cosac&Naify Edições, 1998.
LAVER, James. PROBERT, Christina. A roupa e a moda. Uma história Concisa. Trad.
Glória Maria de Mello Carvalho. São Paulo: Companhia das Letras. 1989
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A MULHER E SEUS ADORNOS Em Baudelaire Maria Cristina