I
— Acorde, Panta — diz Pochita. — Já são oito horas. Panta,
Pantita.
— Já, oito horas? Puxa, que sono — boceja Pantita.
— Costurou o meu galão?
— Sim, meu tenente — se perfila Pochita. — Ai, desculpe, capitão. Até eu me acostumar você vai continuar sendo
tenentinho, meu amor. Sim, costurei, ficou ótimo. Mas levantese de uma vez, sua reunião não é às...?
— Às nove, sim — Pantita se ensaboa. — Aonde vão
nos mandar, Pocha? Passe a toalha, por favor. Para onde você
acha, chola?
— Aqui, em Lima — contempla o céu cinzento, as varandas, os automóveis, os pedestres Pochita. — Ai, fico com
água na boca: Lima, Lima, Lima.
— Não sonhe, Lima nunca, que esperança — se olha
no espelho, amarra a gravata Panta. — Se fosse pelo menos uma
cidade como Trujillo ou Tacna, eu ficaria feliz.
— Que engraçada esta notícia no El Comercio — franze o rosto Pochita. — Em Leticia um sujeito se crucificou para
anunciar o fim do mundo. Foi mandado para o manicômio mas
as pessoas o tiraram à força porque acham que ele é santo. Leticia
é a parte colombiana da selva, não é?
— Que boa-pinta você está como capitão, filhinho —
põe a geléia, o pão e o leite na mesa a senhora Leonor.
— Agora é da Colômbia, mas antes era do Peru, tiraram
de nós — passa manteiga numa torrada Panta. — Um pouquinho mais de café, mamãe.
— Se nos mandassem de novo para Chiclayo — junta as
migalhas num prato, tira a toalha a senhora Leonor. — Afinal,
lá estávamos muito bem, não é mesmo? Para mim, o principal
é que não nos mandem para muito longe da costa. Vá, filhinho,
boa sorte, com a minha bênção.
Pantaleão.indd 11
4/5/2007 11:27:47
12
— Em nome do Pai e do Espírito Santo e do Filho QUE
MORREU NA CRUZ — ergue os olhos para a noite, abaixa
os olhos até as tochas o Irmão Francisco. — Minhas mãos estão amarradas, a madeira é oferenda, façam por mim o sinal da
cruz!
— O coronel López López está à minha espera, senhorita — diz o capitão Pantaleão Pantoja.
— E dois generais também — abre os olhinhos a senhorita. — Pode entrar, capitão. Sim, essa aí, a porta marrom.
— Aqui está o homem — se levanta o coronel López
López. — Entre, Pantoja, parabéns por esse novo galão.
— A melhor nota no exame de promoção, e por unanimidade do júri — aperta sua mão, dá um tapinha no ombro
o general Victoria. — Muito bem, capitão, assim é que se faz
carreira para o bem da Pátria.
— Sente-se, Pantoja — aponta para um sofá o general
Collazos. — Fique à vontade e segure-se bem para ouvir o que
vai ouvir.
— Não o apavore, Tigre — move as mãos o general
Victoria. — Assim ele vai pensar que o estamos mandando para
o matadouro.
— Os chefões da Intendência vieram pessoalmente lhe
comunicar o seu novo destino, isto significa que a coisa não é
tão simples — faz uma expressão grave o coronel López López.
— Sim, Pantoja, trata-se de um assunto bastante delicado.
— A presença destes chefes é uma honra para mim
— bate o calcanhar no chão o capitão Pantoja. — Caramba, o
senhor me deixa intrigado, coronel.
— Quer fumar? — tira uma cigarreira, um isqueiro o
Tigre Collazos. — Mas não fique aí em pé, sente-se. Como, não
fuma?
— Está vendo, desta vez o Serviço de Inteligência acertou — acaricia uma fotocópia o coronel López López. — Isso
mesmo: nem fumante, nem pau-d’água nem olho grande.
— Um oficial sem vícios — se admira o general Victoria. — Já temos alguém para representar as armas no Paraíso,
junto com Santa Rosa e São Martín de Porres.
— Não exagerem — enrubesce o capitão Pantoja. —
Devo ter alguns defeitos desconhecidos.
Pantaleão.indd 12
4/5/2007 11:27:48
13
— Sabemos do senhor mais que o senhor mesmo — apanha uma pasta e torna a largar na mesa o Tigre Collazos. — Ficaria
pasmo se soubesse quantas horas passamos estudando a sua vida.
Sabemos o que fez, o que não fez e até o que vai fazer, capitão.
— Podemos recitar sua folha de serviço de cor — abre
a pasta, embaralha fichas e formulários o general Victoria. —
Nem uma punição como oficial, e como cadete só meia dúzia de
advertências leves. Por isso foi escolhido, Pantoja.
— Entre quase oitenta oficiais da Intendência, nada
mais, nada menos — levanta uma sobrancelha o coronel López
López. — Pode ficar inchado feito um pavão.
— Agradeço o bom conceito que têm de mim — se embaça a vista do capitão Pantoja. — Farei tudo o que puder para
corresponder a essa confiança, coronel.
— O capitão Pantaleão Pantoja? — sacode o telefone
o general Scavino. — Não estou ouvindo direito. Para que o
mandou, Tigre?
— O senhor deixou uma magnífica lembrança em Chiclayo — folheia um relatório o general Victoria. — O coronel
Montes estava doido para que ficasse lá. Parece que o quartel
funcionava como um relógio graças ao senhor.
— “Organizador nato, senso matemático da ordem, capacidade executiva” — lê o Tigre Collazos. — “Conduziu a administração do regimento com eficácia e verdadeira inspiração.”
Nossa, o mestiço Montes se apaixonou pelo senhor.
— Tantos elogios me deixam confuso — abaixa a cabeça o capitão Pantoja. — Só procurei cumprir o meu dever,
apenas isso.
— O Serviço das... quê? — solta uma gargalhada o general Scavino. — Nem você nem o Victoria vão conseguir me
deixar de cabelo em pé, Tigre, esqueceram que sou calvo?
— Bem, vamos aos fatos — sela os lábios com um dedo
o general Victoria. — Este assunto exige a mais absoluta reserva.
Falo da missão que vamos lhe confiar, capitão. Solte os bichos,
Tigre.
— Em poucas palavras, a tropa da selva está comendo
as cholas — toma fôlego, pisca, tosse o Tigre Collazos. — Há
estupros a granel e os tribunais já nem conseguem julgar tanto
safado. Toda a Amazônia está em alvoroço.
Pantaleão.indd 13
4/5/2007 11:27:48
14
— Diariamente nos bombardeiam com informes e denúncias — belisca o queixo o general Victoria. — Chegam comissões de protesto dos povoados mais perdidos.
— Seus soldados abusam das nossas mulheres — espreme o chapéu e perde a voz o prefeito Paiva Runhuí. — Fizeram
mal a uma cunhadinha minha há poucos meses, e na semana
passada quase abusaram da minha própria esposa.
— Meus soldados não, soldados da Nação — faz gestos apaziguadores o general Victoria. — Calma, calma, senhor
prefeito. O Exército lamenta muitíssimo o incidente com sua
cunhada e fará tudo o que puder para compensá-la.
— Agora chamam estupro de incidente? — se desconcerta o padre Beltrán. — Porque foi isso o que aconteceu.
— Florcita foi dominada por dois homens uniformizados que vieram da chácara e a violaram no meio da trilha — rói
as unhas, pula sem sair do lugar o prefeito Teófilo Morey. —
Com uma pontaria tão boa que agora está grávida, general.
— Agora vai identificar esses bandidos, senhorita Dorotea — resmunga o coronel Peter Casahuanqui. — Sem chorar,
sem chorar. Vai ver como eu ajeito isto.
— Acha que eu vou lá? — soluça Dorotea. — Ficar sozinha na frente de todos os soldados?
— Eles vão desfilar por aqui, em frente à Delegacia — se
esconde por trás da treliça metálica o coronel Máximo Dávila.
— Você fica espiando pela janela e os aponta para mim quando
descobrir os salientes, senhorita Jesus.
— Salientes? — salpica salivas o padre Beltrán. — Depravados, canalhas e miseráveis, isto é o que eles são. Fazer uma
infâmia dessas com dona Asunta! Macular assim o uniforme!
— Luisa Cánepa, minha faxineira, foi estuprada por
um sargento, depois por um cabo e depois por um soldado raso
— limpa os óculos o tenente Bacacorzo. — Ela gostou da coisa
ou sei lá, comandante, mas o fato é que agora se dedica à putaria
com o nome de Maminha e tem um veado chamado Milcaras
como cafetão.
— Agora diga com qual destas pessoinhas quer se casar,
senhorita Dolores — passeia em frente aos três recrutas o coronel
Augusto Valdés. — E o capelão casa vocês neste instante. Escolha,
escolha, qual deles prefere para papai do seu futuro filhinho?
Pantaleão.indd 14
4/5/2007 11:27:48
15
— Pegaram a minha esposa na própria igreja — permanece rígido na ponta da cadeira o carpinteiro Adriano Lharque. —
Na catedral não, na igreja do Santo Cristo de Bagazán, senhor.
— Pois é, queridos radiouvintes — brama o Sinchi. —
Esses sacrílegos lascivos não foram contidos pelo temor a Deus
nem pelo respeito devido à Sua santa casa nem aos nobres fios
grisalhos dessa digníssima matrona, semente já de duas gerações
de loretanos.
— Começaram a me puxar, ai meu Jesus, queriam me
jogar no chão — chora a senhora Cristina. — Estavam caindo
de bêbados e nem queira saber os palavrões que falavam. Na
frente do altar-mor, juro.
— É a alma mais caridosa de toda Loreto, general — retumba o padre Beltrán. — Foi ultrajada cinco vezes!
— E também a filhinha e a sobrinha e a afilhadinha,
já sei, Scavino — sopra a caspa das ombreiras o Tigre Collazos.
— Mas esse padre Beltrán está conosco ou com eles? É ou não é
capelão do Exército?
— Protesto como sacerdote e também como soldado, general — encolhe a barriga, estufa o peito o comandante Beltrán.
— Porque esses abusos fazem tanto dano à instituição quanto às
vítimas.
— O que os recrutas pretendiam fazer com aquela senhora é muito errado, claro — contemporiza, sorri, faz vênias
o general Victoria. — Mas os parentes quase os mataram de
pancadas, não se esqueça disso. Aqui está o laudo médico: costelas quebradas, hematomas, rasgão na orelha. Neste caso houve
empate, doutorzinho.
— Iquitos? — pára de umedecer a camisa, levanta o
ferro Pochita. — Nossa, como nos mandam para longe, Panta.
— Com madeira você faz o fogo que cozinha seus alimentos, com madeira você constrói a casa onde mora, a cama
onde dorme e a balsa em que atravessa o rio — paira sobre o bosque de cabeças imóveis, caras ofegantes e braços abertos o Irmão
Francisco. — Com madeira você fabrica o arpão que pesca o
peixe, a zarabatana que caça a capivara e o caixão onde enterra
o morto. Irmãs! Irmãos! Ajoelhem-se por mim!
— É um baita problema, Pantoja — balança a cabeça o
coronel López López. — Em Contamana, o prefeito emitiu um
Pantaleão.indd 15
4/5/2007 11:27:48
16
comunicado pedindo à população local que deixe as mulheres
trancadas em casa nos dias de folga da tropa.
— E, principalmente, como é longe do mar — solta a
agulha, arremata o fio e o corta com os dentes a senhora Leonor.
— Será que lá na selva há muito pernilongo? Eles são o meu
suplício, você sabe.
— Olhe esta lista — coça a testa o Tigre Collazos. —
Quarenta e três grávidas em menos de um ano. Os capelães do
padre Beltrán casaram umas vinte, mas, é claro, o problema exige medidas mais radicais que os casamentos forçados. Até agora,
castigos e vinganças não mudaram o panorama: todo soldado
que chega na selva vira logo um porra-louca.
— Mas você parece o mais desanimado com este lugar,
meu amor — começa a abrir e sacudir as malas Pochita. — Por
quê, Panta?
— Deve ser o calor, o clima, não acha? — se anima o
Tigre Collazos.
— Pode ser, general — gagueja o capitão Pantoja.
— A umidade morna, essa exuberância da natureza —
passa a língua pelos lábios o Tigre Collazos. — Sempre acontece
comigo: é chegar na selva e começar a respirar fogo, sentir o
sangue ferver.
— Se a generala ouvisse isto — ri o general Victoria —,
ai das suas garras, Tigre.
— A princípio pensamos que era a alimentação — dá um
tapa na barriga o general Collazos. — Que nos quartéis se usava
muito tempero, coisas que aumentam o apetite sexual das pessoas.
— Consultamos especialistas, até um suíço que custou
os olhos da cara — esfrega dois dedos o coronel López López.
— Um nutricionista cheio de títulos.
— Pas d’ inconvénient — anota numa caderneta o professor Bernard Lahoé. — Vamos planejar uma alimentação que,
sem reduzir as proteínas necessárias, enfraqueça a libido dos soldados em 85%.
— Não vá exagerar — murmura o Tigre Collazos. —
Também não queremos uma tropa de eunucos, doutor.
— Horcones chamando Iquitos, Horcones chamando
Iquitos — parece impaciente o alferes Santana. — Sim, muito
grave, extremamente urgente. Não obtivemos os resultados pre-
Pantaleão.indd 16
4/5/2007 11:27:48
17
vistos com a operação Rancho Suíço. Meus homens estão morrendo de fome, ficando tuberculosos. Hoje desmaiaram mais
dois na revista, comandante.
— Não é brincadeira, Scavino — segura o telefone entre
a orelha e o ombro enquanto acende um cigarro o Tigre Collazos. — Procuramos até cansar, e esta é a única solução. Vou lhe
mandar o Pantojita com a mãe e a mulher. Faça bom proveito.
— Pochita e eu já nos acostumamos com a idéia e estamos felizes de ir para Iquitos — dobra lenços, arruma saias,
embrulha sapatos a senhora Leonor. — Mas você continua de
crista caída. O que é isso, filhinho.
— O senhor é o homem certo, Pantoja — fica em pé o
coronel López López e o segura pelos braços. — Vai acabar com
essa dor de cabeça.
— Apesar de tudo é uma cidade, Panta, e parece que
linda — joga panos no lixo, dá nós, fecha bolsas Pochita. — Não
faça essa cara, seria pior ir para a puna, não é mesmo?
— Na verdade, coronel, não tenho idéia como — engole saliva o capitão Pantoja. — Mas farei o que me ordenarem,
naturalmente.
— Por enquanto, vá para a selva — pega um ponteiro e
indica um lugar no mapa o coronel López López. — Seu centro
de operações será Iquitos.
— Vamos chegar à raiz do problema e liquidá-lo na sua
origem — bate o punho na mão aberta o general Victoria. —
Porque, como já deve ter adivinhado, Pantoja, o problema não é
só das senhoras atacadas.
— Também é dos recrutas condenados a viver como castos pombinhos naquele calor pecaminoso — estala a língua o
Tigre Collazos. — Servir na selva é duro, Pantoja, muito duro.
— Nos povoados amazônicos todas as saias têm dono
— gesticula o coronel López López. — Não há bordéis nem
garotas de programa nem nada parecido.
— Passam a semana inteira isolados, cumprindo missões no mato, sonhando com o dia de folga — imagina o general
Victoria. — Caminham quilômetros até o povoado mais próximo. E o que acontece quando chegam?
— Nada, pela maldita falta de fêmeas — encolhe os
ombros o Tigre Collazos. — Então, os que não batem punheta
Pantaleão.indd 17
4/5/2007 11:27:48
18
perdem o juízo e no primeiro copinho de aguardente se jogam
feito pumas no que estiver à sua frente.
— Houve casos de veadagem e até de bestialismo —
precisa o coronel López López. — Imagine que um cabo de Horcones foi surpreendido tendo vida marital com uma macaca.
— A símia responde pelo absurdo apelido de Chupachupa da Quinta Esquadra — prende a risada o alferes Santana.
— Ou melhor, respondia, porque a matei com um tiro. O degenerado está no calabouço, coronel.
— Enfim, a abstinência nos traz uma corrupção dos diabos — diz o general Victoria. — E desmoralização, nervosismo,
apatia.
— Precisamos dar de comer a esses famintos, Pantoja
— olha solene nos seus olhos o Tigre Collazos. — É aí que o
senhor entra, aí é que vai aplicar seu cérebro organizador.
— Por que está tão aturdido e tão quietinho, Panta?
— guarda a passagem na bolsa, pergunta: onde é a saída para
o avião? Pochita — Vamos ter um grande rio, podemos tomar
banho, visitar as tribos. Anime-se, bobinho.
— O que houve que você está tão esquisito, filhinho —
observa as nuvens, as hélices, as árvores a senhora Leonor. — Não
abriu a boca em toda a viagem. Por que está tão preocupado?
— Não é nada, mamãe, nada, Pochita — aperta o cinto
de segurança Panta. — Estou bem, não é nada. Olhem, já estamos chegando. Este deve ser o rio Amazonas, não é?
— Você passou todos estes dias feito um idiota — põe
os óculos escuros, tira o casaco Pochita. — Não falava nada, ficava sonhando de olhos abertos. Ai, que inferno. Nunca vi você
tão mudado, Panta.
— Eu estava um pouco preocupado com o meu novo
destino, mas já passou — tira a carteira, dá umas notas ao motorista Panta. — Sim, chefe, número 549, o Hotel Lima. Espere,
mamãe, eu ajudo você a descer.
— Você é militar, não é? — joga a bolsa de viagem numa
cadeira, tira os sapatos Pochita. — Sabia que podia ser mandado
para qualquer lugar. Iquitos não é nada mau, Panta, não está
vendo que parece um lugar simpático?
— Tem razão, estou me comportando feito um bobo
— abre o armário, pendura um uniforme, um terno Panta. —
Pantaleão.indd 18
4/5/2007 11:27:49
19
Devia estar acostumado demais com Chiclayo; palavra de honra
que já passou. Bem, vamos abrir as malas. Que calorzinho, não
é, chola?
— Por mim, passaria a vida dentro do hotel — deita de
costas na cama, se espreguiça Pochita. — Aqui fazem tudo por
você, não é preciso se preocupar com nada.
— E seria adequado receber o cadete Pantoja num hotelzinho? — tira a gravata, a camisa Panta.
— O cadete Pantoja? — abre os olhos, desabotoa a blusa, apóia um cotovelo no travesseiro Pochita. — Sério? Já podemos encomendar, Pantita?
— Não prometi que seria quando chegasse o terceiro
galão? — estica, dobra e pendura a calça Panta. — Vai ser loretano, que coisa.
— Maravilhoso, Panta — ri, aplaude, toma impulso
no colchão Pochita. — Ai, que felicidade, o cadetinho, Pantita
Júnior.
— Temos que encomendar o quanto antes — abre e estica as mãos Panta. — Para que chegue rapidinho. Venha, chola,
não fuja.
— Espere, espere, o que é isso? — salta da cama, corre
para o banheiro Pochita. — Ficou maluco?
— Vamos, vamos, o cadetinho — tropeça numa mala,
derruba uma cadeira Panta. — Vamos encomendar agora mesmo. Vamos, Pochita.
— Mas são 11 da manhã, acabamos de chegar — gesticula, afasta, empurra, fica zangada Pochita. — Solte, sua mãe
vai nos ouvir, Panta.
— Para estrear Iquitos, para estrear o hotel — ofega,
luta, abraça, escorrega Pantita. — Venha, amorzinho.
— Veja só o que ganhou com tanta denúncia e tanto
comunicado — brande um ofício repleto de carimbos e assinaturas o general Scavino. — O senhor também tem culpa disso,
comandante Beltrán: veja o que esse sujeito veio organizar em
Iquitos.
— Vai rasgar a minha saia — se protege atrás do armário, joga um travesseiro, pede paz Pochita. — Não o estou reconhecendo, Panta, sempre tão educadinho, o que há com você.
Deixe, eu tiro.
Pantaleão.indd 19
4/5/2007 11:27:49
20
— Queria curar um mal, não causar — lê e relê a cara
compungida do comandante Beltrán. — Nunca imaginei que o
remédio seria pior que a doença, general. É inconcebível, iníquo.
Vai permitir esse horror?
— O sutiã, as meias — transpira, deita, se encolhe, se
estica Pantita. — O Tigre tinha razão: a umidade morna, a gente
respira fogo, o sangue ferve. — Vem, me belisque onde eu gosto.
A orelhinha, Pocha.
— Sinto vergonha assim de dia, Panta — reclama, se enrola na colcha, suspira Pochita. — Você vai adormecer, não tem
que estar no Comando às três? Acaba sempre adormecendo.
— Tomo uma chuveirada — se ajoelha, se dobra, se
desdobra Pantita. — Não fale nada, não me distraia. Belisque
minha orelhinha. Assim, assim. Ai, já sinto que vou desmaiar,
chola, já nem sei quem sou.
— Sei muito bem quem você é e para que veio a Iquitos
— resmunga o general Roger Scavino. — E, de cara, quero logo
dizer que não estou nem um pouco feliz com a sua presença nesta cidade. Gosto das coisas claras desde o começo, capitão.
— Desculpe, general — balbucia o capitão Pantoja.
— Deve haver algum mal-entendido.
— Não estou de acordo com o Serviço que o senhor vem
organizar — aproxima a careca do ventilador e abaixa os olhos
por um instante o general Scavino. — Eu me opus a ele desde o
começo e continuo pensando que é uma barbaridade.
— E, acima de tudo, uma imoralidade sem nome — se
abana com fúria o padre Beltrán.
— O comandante e eu não dissemos nada porque os
superiores mandam — desdobra seu lenço e enxuga o suor da
testa, das têmporas, do pescoço o general Scavino. — Mas não
nos convenceram, capitão.
— Eu não tenho nada a ver com esse projeto, general
— transpira imóvel o capitão Pantoja. — Foi a maior surpresa
da minha vida quando me comunicaram, padre.
— Comandante — corrige o padre Beltrán. — Não
sabe contar os galões?
— Perdão, comandante — bate ligeiramente os calcanhares o capitão Pantoja. — Não interferi em absoluto, juro.
Pantaleão.indd 20
4/5/2007 11:27:49
21
— O senhor não é um dos cérebros da intendência que
conceberam essa nojeira? — pega o ventilador, aponta para a
própria cara, o crânio, pigarreia o general Scavino. — De todo
modo, há algumas coisas que devem ficar bem claras. Não posso
evitar que isso vá em frente, mas farei com que a coisa respingue
o menos possível nas Forças Armadas. Ninguém vai arranhar a
imagem que o Exército conquistou em Loreto desde que estou à
frente da Quinta Região.
— Este também é o meu desejo — olha por cima do
ombro do general a água barrenta do rio, um barco carregado
de bananas, o céu azul, o sol ígneo o capitão Pantoja. — Estou
disposto a fazer o possível.
— Porque aqui, se a notícia se espalhar, vai ser um Deus
nos acuda — eleva a voz, se levanta, põe as mãos no batente da
janela o general Scavino. — Os estrategistas de Lima planejam
suas sacanagens, bem sossegados lá nos seus escritórios, porque
quem vai enfrentar a tempestade se a coisa vier a público é o
general Scavino.
— Eu concordo com o senhor, tem que acreditar — transpira, vê as mangas do uniforme se encharcarem, implora o capitão
Pantoja. — Eu jamais pediria esta missão. É tão diferente do meu
trabalho habitual que nem sei se vou ser capaz de cumpri-la.
— Sobre madeira seu pai e sua mãe se juntaram para
fazer você e sobre madeira aquela que o pariu empurrou e abriu
as pernas para parir você — ulula e troveja, lá em cima, nas
trevas, o Irmão Francisco. — A madeira sentiu o seu corpo, se
avermelhou com seu sangue, recebeu suas lágrimas, se umedeceu
com o seu suor. A madeira é sagrada, o tronco traz saúde. Irmãs!
Irmãos! Abram os braços por mim!
— Por esta porta vão desfilar dezenas de pessoas, este escritório vai se encher de protestos, de abaixo-assinados, de cartas
anônimas — se agita, dá uns passos, volta, abre e fecha o leque o
padre Beltrán. — A Amazônia inteira vai botar a boca no mundo e achar que o arquiteto do escândalo é o general Scavino.
— Já estou ouvindo o Sinchi, aquele demagogo, vomitando calúnias contra mim pelo microfone — dá meia-volta,
transfigurado, o general Scavino.
— Minhas instruções são de que o Serviço funcione no
maior segredo — se atreve a tirar o quepe, a passar um lenço na
Pantaleão.indd 21
4/5/2007 11:27:49
22
testa, a limpar os olhos o capitão Pantoja. — Vou cumprir essa
determinação com muito rigor, meu general.
— E que diabos poderia inventar para aplacar as pessoas? — grita, rodeia a mesa o general Scavino. — Será que pensaram em Lima no papel que vou ter que representar?
— Se o senhor preferir, posso pedir hoje mesmo minha
transferência — empalidece o capitão Pantoja. — Para lhe demonstrar que não tenho qualquer interesse no Serviço de Visitadoras.
— Olhe só o eufemismo que os gênios arranjaram —
bate o pé de costas para o capitão Pantoja, olhando para o rio
que cintila, as cabanas, a planície de árvores o padre Beltrán.
— Visitadoras, visitadoras.
— Nada de transferências, em uma semana eles mandariam outro intendente — torna a se sentar, a se ventilar, a
enxugar a careca o general Scavino. — Depende do senhor que
isto não prejudique o Exército. Tem uma responsabilidade nos
ombros do tamanho de um vulcão.
— Pode dormir tranqüilo, general — enrijece o corpo,
joga os ombros para trás, olha para a frente o capitão Pantoja.
— O que mais respeito e amo na vida é o Exército.
— A melhor maneira que tem de servi-lo agora é mantendo-se afastado dele — suaviza o tom e ensaia uma expressão amável o general Scavino. — Enquanto estiver no comando
desse Serviço, pelo menos.
— Como? — pisca o capitão Pantoja. — O que foi que
disse?
— Não quero que ponha os pés no Comando nem nos
quartéis de Iquitos — expõe às hélices invisíveis que não paravam de zumbir a palma, o dorso das mãos o general Scavino.
— O senhor fica proibido de participar de todos os atos oficiais,
desfiles, te-déuns. Também de usar uniforme. Deve estar sempre
de trajes civis.
— Devo me vestir à paisana até mesmo no meu trabalho? — continua piscando os olhos o capitão Pantoja.
— Seu trabalho vai ser bem longe do Comando — observa-o com receio, com consternação, com piedade o general
Scavino. — Não seja ingênuo, rapaz. Imaginou que ia poder
abrir um escritório aqui, para o tráfico que vai organizar? Destinei para isso um depósito nos arredores de Iquitos, à beira do rio.
Pantaleão.indd 22
4/5/2007 11:27:49
23
Esteja sempre à paisana. Ninguém deve saber que esse lugar tem
a menor ligação com o Exército. Entendido?
— Sim, general — sobe e desce a cabeça o boquiaberto
capitão Pantoja. — Só que, enfim, eu não esperava uma coisa
assim. Vai ser, bem, como trocar de personalidade.
— Faça de conta que foi mandado para o Serviço de
Inteligência — sai da janela, se aproxima dele, dá um sorriso
benevolente o comandante Beltrán —, que a sua vida depende
da sua capacidade de passar despercebido.
— Tentarei me adaptar, general — balbucia o capitão
Pantoja.
— E é melhor que não vá morar na Vila Militar, de
modo que pode procurar uma casinha na cidade — passa o lenço
nas sobrancelhas, orelhas, lábios e nariz o general Scavino. — E
lhe peço que não mantenha relações com os oficiais.
— Quer dizer relações de amizade, general? — se engasga o capitão Pantoja.
— Não vai ser de amor — ri ou ronca ou tosse o padre
Beltrán.
— Já sei que é duro, que vai ser difícil — afirma com
amabilidade o general Scavino. — Mas não há outra fórmula,
Pantoja. Na sua missão, vai ter contato com toda a ralé da Amazônia. A única maneira de evitar que isso atinja a instituição é
sacrificando a si mesmo.
— Em resumo, tenho que esconder minha condição de
oficial — vê ao longe um menino nu subindo numa árvore, uma
garça rosada e manca, um horizonte de matagais flamejantes o
capitão Pantoja. — Preciso me vestir como civil, conviver com os
civis, trabalhar como um civil.
— Mas pensar sempre como militar — dá um soco na
mesa o general Scavino. — Designei um tenente para servir de
enlace entre nós. Vão se encontrar uma vez por semana e, por
intermédio dele, o senhor me presta conta de suas atividades.
— Não tenha a menor preocupação: serei um túmulo — ergue o copo de cerveja e diz saúde o tenente Bacacorzo.
— Estou a par de tudo, capitão. Podemos nos encontrar às terças-feiras? Pensei que o ponto de encontro pode ser sempre em
barzinhos, bordéis. Agora o senhor vai ter que freqüentar muito
esses ambientes, não é mesmo?
Pantaleão.indd 23
4/5/2007 11:27:49
24
— Ele me fez sentir um delinqüente, uma espécie de
leproso — passa em revista os macacos, papagaios e pássaros
empalhados, os homens que bebem em pé no balcão o capitão
Pantoja. — Como diabos vou começar a trabalhar se o próprio
general Scavino está me sabotando? Se os próprios superiores começam a me desanimar, a pedir que me disfarce, que não me
deixe ver?
— Você foi tão contente para o Comando, e agora volta
com essa cara de tonto outra vez — se levanta, dá um beijo em
sua bochecha Pochita. — O que foi, Panta? Chegou tarde e o
general Scavino esbravejou?
— Vou ajudar no que puder, capitão — o tenente Bacacorzo lhe oferece lasquinhas de babunha fritas. — Não sou
especialista, mas farei o possível. Não reclame, muitos oficiais
dariam qualquer coisa para estar na sua pele. Pense na liberdade
que vai ter; o senhor mesmo decidirá seus horários, seu sistema
de trabalho. Além de outras coisas gostosas, capitão.
— Vamos morar aqui, neste lugar tão feio? — a senhora
Leonor olha as paredes descascadas, o assoalho sujo, as teias de
aranha no teto. — Por que não lhe deram uma casa na Vila Militar, que é tão bonita? Outra vez sua falta de firmeza, Panta.
— Não pense que sou derrotista, Bacacorzo, é que estou
completamente perdido — prova, mastiga, engole, sussurra que
gostoso o capitão Pantoja. — Sou um bom administrador, isso
sim. Mas me tiraram do meu ambiente, e aqui não sei fazer nem
desfazer.
— Já deu uma olhada no seu centro de operações?
— enche de novo os copos o tenente Bacacorzo. — O general
Scavino mandou uma circular: nenhum oficial de Iquitos pode
se aproximar desse depósito do rio Itaya, sob pena de trinta dias
de prisão.
— Ainda não, vou amanhã cedo — bebe, limpa a boca,
contém um arroto o capitão Pantoja. — Porque, vamos ser francos, para cumprir essa missão como me pedem, eu teria que ter
experiência na matéria. Conhecer o mundo da noite, ter sido um
pouco farrista.
— Você vai ao Comando assim, Panta? — se aproxima,
apalpa a camisa sem mangas, fareja a calça azul, o bonezinho
Pochita. — E o seu uniforme?
Pantaleão.indd 24
4/5/2007 11:27:49
25
— Infelizmente, não é o meu caso — se entristece, esboça um gesto envergonhado o capitão Pantoja. — Nunca fui
bagunceiro. Nem mesmo quando era rapaz.
— Por que não podemos conviver com as famílias dos
oficiais? — brande o espanador, a vassoura, um balde, sacode,
limpa, varre, se espanta a senhora Leonor. — Por que temos que
viver como civis?
— Quando eu era cadete, nos dias de folga preferia ficar
estudando na Escola — recorda nostálgico o capitão Pantoja.
— Dando duro em matemática, principalmente, minha matéria
preferida. Nunca ia às festas. Parece mentira, mas só aprendi as
danças mais fáceis: o bolerinho e a valsa.
— Por que nem os vizinhos podem saber que você é
capitão? — esfrega vidros, molha pisos, pinta paredes, se assusta
Pochita.
— Pois é terrível isso que acontece comigo — olha em
volta com apreensão, fala bem perto do ouvido do outro o capitão Pantoja. — Como alguém que nunca na vida teve contato com visitadoras pode organizar um Serviço de Visitadoras,
Bacacorzo?
— Uma missão especial? — encera portas, forra armários, pendura quadros Pochita. — Você vai trabalhar no Serviço
de Inteligência? Ah, agora entendo tanto mistério, Panta.
— Quando imagino os milhares de soldados que estão
esperando, que confiam em mim — vasculha as garrafas, se emociona, sonha o capitão Pantoja —, que contam os dias e pensam:
eles já vêm, já estão chegando, fico até arrepiado, Bacacorzo.
— Que segredo militar que nada — arruma armários,
costura cortinas, espana abajures, troca lâmpadas a senhora Leonor. — Segredos com a sua mãezinha? Conte, conte.
— Eu não quero decepcioná-los — se angustia o capitão
Pantoja. — Mas por onde vou começar, merda?
— Se não me contar, vai sair perdendo — arruma camas, estende toalhas de mesa, lustra móveis, guarda copos, pratos e talheres no aparador Pochita. — Nunca mais belisquinhos
onde você gosta, nunca mais mordidinhas na orelha. Como você
preferir, meu filho.
— Pelo começo, capitão — incentiva com um sorriso e
um brinde o tenente Bacacorzo. — Se as visitadoras não vêm ao
Pantaleão.indd 25
4/5/2007 11:27:49
26
capitão Pantoja, o capitão Pantoja deve ir às visitadoras. É o mais
simples, acho.
— Agente secreto, Panta? — esfrega as mãos, contempla
o quarto Pochita, resmunga como melhoramos esta pocilga, não é,
dona Leonor? — Como nos filmes? Ai, amor, que emocionante.
— Dê uma voltinha esta noite pela zona de puteiros de
Iquitos — anota endereços no guardanapo o tenente Bacacorzo.
— O Mao Mao, o 007, Gato Torto, Sanjuancito. Para se familiarizar com o ambiente. Eu o acompanharia com prazer mas, já
sabe, as instruções de Scavino são terminantes.
— Aonde vai tão elegante, filhinho? — a senhora Leonor responde: é, ninguém reconheceria, Pochita, merecemos um
prêmio. — Caramba, como caprichou, até gravata. Vai morrer
de calor. Uma reunião de alto nível? À noite? Que engraçado
você bancar o agente secreto, Panta. Está bem, shhh, shh, bico
calado.
— Pergunte em qualquer desses locais pelo China Porfirio — dobra e guarda o guardanapo no seu bolso o tenente Bacacorzo. — É um sujeito que pode ajudá-lo. Consegue “lavadeiras”
a domicílio. Sabe o que são, não é?
— Por isso Ele não morreu afogado, nem queimado,
nem enforcado, nem apedrejado nem esfolado — geme e chora acima do crepitar das tochas e do rumor das rezas o Irmão
Francisco. — Por isso foi pregado num tronco, por isso preferiu
a cruz. Ouça quem quiser ouvir, entenda quem quiser entender.
Irmãs! Irmãos! Dêem três pancadas no peito por mim!
— Boa-noite, ehem, hmm, atchim — assoa o nariz, se
senta no banquinho, apóia o cotovelo no balcão Pantaleão Pantoja. — Sim, uma cerveja, por favor. Acabei de chegar a Iquitos,
estou me familiarizando com a cidade. Este lugar se chama Mao
Mao? Ah, por isso as flechas, os totens, entendi.
— Aqui está, bem gelada — serve, enxuga o copo,
aponta para o salão o garçom. — Sim, Mao Mao. Não há quase
ninguém porque hoje é segunda-feira.
— Eu gostaria de saber uma coisa, ehem, hmm, hmm
— limpa a garganta Pantaleão Pantoja —, se não for incômodo.
Como curiosidade, simplesmente.
— Onde se conseguem vadias? — forma uma argola
com o polegar e o indicador o garçom. — Aqui mesmo, mas
Pantaleão.indd 26
4/5/2007 11:27:49
27
hoje foram ver o Irmão Francisco, o santo da cruz. Dizem que
veio do Brasil a pé, e também que faz milagres. Mas veja só quem
está entrando. Ei, Porfirio, venha cá. Quero lhe apresentar este
senhor, está interessado em informações turísticas.
— Boldéis e meninas? — pisca um olho, faz uma reverência, aperta-lhe a mão o China Porfirio. — Sem dúvida, senhol. Com plazel em dois minutos lhe dou um panolama. Vai
lhe costal apenas uma celvejinha, balato, não é?
— Muito prazer — indica que se sente no banquinho
ao lado Pantaleão Pantoja. — Sim, é claro, uma cerveja. Não vá
imaginar coisas, eu não tenho um interesse pessoal nessa história, é só técnico.
— Técnico? — se espanta o garçom. — Espero que não
seja um informante, senhor.
— Boldéis, há pouquinhos — mostra três dedos o China Porfirio. — À sua saúde e vida boa. Dois decentes e um poblinho, pla mendigos. E há também meninas que vão de casa em
casa, pol sua conta. As lavadeilas, sabia?
— Ah, é? Que interessante — estimula com sorrisos
Pantaleão Pantoja. — É pura curiosidade, eu não freqüento esses
ambientes. O senhor tem conhecimentos? Quero dizer, amizades, contatos nesses lugares?
— Onde houver putaria o China está em casa — ri o
garçom. — Por isso o chamam de Fumanchú de Belén, não
é, compadre? Belén, o bairro das casas flutuantes, a Veneza da
Amazônia, já passeou por lá?
— Já fiz de tudo na vida e não dói, senhol — sopra a espuma e bebe um gole o China Porfirio. — Não ganhei dinheilo
mas sim expeliência. Bilheteilo de cinema, motolista de lancha,
caçadol de coblas pla expoltação.
— E de todos os empregos foi expulso por sua inclinação
por putas e sacanagem, meu irmão — lhe acende um cigarro o
garçom. — Cante para o moço o que sua patroa lhe profetizou.
Chinês que nasce pobletão
Mole cáften ou ladlão
Canta e festeja com gargalhadas o China Porfirio.
Pantaleão.indd 27
4/5/2007 11:27:50
28
— Ai, minha mãezinha linda que está no santo céu.
Como só se vive uma vez, temos que aploveital, não é mesmo?
Tlaçamos a segunda geladinha da noite, senhol?
— Está bem, mas, ehem, hmm — se ruboriza Pantaleão
Pantoja —, pensei em uma coisa melhor. Por que não mudamos
de cenário, meu amigo?
— O senhor Pantoja? — transpira mel a senhora Chuchupe. — Prazer, pode entrar, a casa é sua. Aqui tratamos bem
todo mundo, menos os putos dos milicos, que só pedem desconto. Olá, chinês bandido.
— O senhol Pantoja vem de Lima e é meu amigo — beija bochechas, belisca traseiros o China Porfirio. — Vai ablil um
negocinho aqui. Já sabe, selviço de luxo, Chuchupe. Este anão se
chama Chupito e é o mascote do local, senhol.
— É melhor dizer gerente, barman e guarda-costas,
puta-que-o-pariu — traz garrafas, recolhe copos, recebe contas,
liga o toca-discos, leva mulheres para a pista de dança Chupito.
— Então é a primeira vez que vem à Casa Chuchupe? Não será
a última, vai ver. Hoje há poucas garotas porque todas foram ver
o Irmão Francisco, que fez aquela grande cruz na margem do
lago Morona.
— Eu também estive lá, havia um bocado de gente, os
batedoles de calteila deviam estal fazendo a festa — distribui oizinhos o China Porfirio. — Um disculsadol fantástico, o Ilmão.
Não dava pla entendel muito, mas emocionava as pessoas.
— Tudo o que se pregar num tronco é oferenda, tudo o
que acaba na madeira se eleva e é recebido pelo QUE MORREU
NA CRUZ — salmodia o Irmão Francisco. — A borboleta colorida que alegra a manhã, a rosa que perfuma o ar, o morcego
com olhinhos que brilham na noite e até o ressentimento que se
incrusta sob as unhas. Irmãs! Irmãos! Ergam cruzes por mim!
— Que cara de homem sério, mas se anda com este chinês não deve ser tão sério assim — limpa a mesa com o braço, oferece cadeiras, se açucara Chuchupe. — Vamos lá, Chupito, uma
cerveja e três copos. A primeira rodada é por conta da casa.
— Sabe o que é uma chuchupe? — assobia, mostra uma
pontinha da língua o China Porfirio. — A cobla mais venenosa
da Amazônia. Imagine as coisas que esta senhola diz do gênelo
humano pla ganhal semelhante apelido.
Pantaleão.indd 28
4/5/2007 11:27:50
29
— Quietinho, maltrapilho — tampa a sua boca, enche
os copos, sorri Chuchupe. — À sua saúde, senhor Pantoja, bemvindo a Iquitos.
— Uma língua vipelina — mostra as tranças nuas das
paredes, o espelho danificado, os abajures vermelhos, as franjas
dançantes da poltrona multicolorida o China Porfirio. — Só que
é uma boa amiga e esta casa, embola já tenha uns bons anos, é a
melhol de Iquitos.
— Dê uma olhada no que temos de material, confira
— vai apontando Chupito —: caboclas, brancas, japonesas, até
uma albina. A Chuchupe tem ótimo olho para escolher seu pessoal, senhor.
— Que boa música, meus pés já estão coçando — se levanta, pega uma mulher pelo braço, arrasta-a para a pista, dança
o China Porfirio. — Licencinha, pla sacudil o esqueleto. Venha
cá, popozinha.
— Posso lhe pagar uma cerveja, senhora Chuchupe? —
esboça um sorriso sem jeito, sussurra Pantaleão Pantoja. — Gostaria de lhe pedir mais informações, se não for incômodo.
— Que sem-vergonha simpático este China, nunca tem
um tostão mas como alegra a noite — amassa um papel, joga na
cabeça de Porfirio, acerta o alvo Chuchupe. — Não sei o que elas
vêem no sujeito, mas todas fazem qualquer coisa por ele. Veja
como se mexe.
— Coisas relacionadas com o seu, ehem, hmm, negócio
— insiste Pantaleão Pantoja.
— Sim, com prazer — fica séria, concorda, autopsia o
homem com o olhar Chuchupe —, mas não pensei que tinha
vindo falar de negócios e sim para outra coisa, senhor Pantoja.
— Uma dor de cabeça terrível — se encolhe, se cobre
com os lençóis Pantita. — Estou com o corpo moído, cheio de
calafrios.
— Claro que está, claro que está, e se quer saber fico
muito feliz — bate o pé no chão Pochita. — Você foi se deitar
quase às quatro da manhã e chegou caindo pelas tabelas, seu
idiota.
— Vomitou três vezes — se esfalfa entre panelas,
pias e toalhas a senhora Leonor —, deixou o quarto fedendo,
filhinho.
Pantaleão.indd 29
4/5/2007 11:27:50
30
— Você vai me explicar o que isso significa, Panta — se
aproxima da cama, solta faíscas pelos olhos Pochita.
— Já disse, amor, é coisa de trabalho — protesta entre os
travesseiros Pantita. — Você sabe muito bem que eu não bebo,
que não gosto da madrugada. Fazer essas coisas é um suplício
para mim, chola.
— Quer dizer que vai continuar fazendo? — gesticula,
faz biquinho Pochita. — Vir dormir de manhã, ficar bêbado?
Isso é que não, Panta, juro, isso é que não.
— Vamos, não briguem — cuida do equilíbrio do copo,
da jarra, da bandeja a senhora Leonor. — Agora, filhinho, bote
estes panos frios na testa e tome este Alka-Seltzer. Rápido, com
as bolhinhas.
— É o meu trabalho, é a missão que me deram — se
desespera, emagrece, perde a voz Pantita. — Eu odeio isso, você
tem que acreditar em mim. Não posso dizer nada, não me faça
falar, seria gravíssimo para a minha carreira. Tenha confiança em
mim, Pocha.
— Você esteve com mulheres — explode em soluços Pochita. — Os homens não bebem até o amanhecer sem mulheres.
Tenho certeza que esteve, Panta.
— Pocha, Pochita, minha cabeça está explodindo, as
costas doendo — aperta um pano em cima da testa, procura
embaixo da cama, puxa um penico, cospe saliva e bile Pantita.
— Não chore, você me faz sentir um criminoso, e eu não sou,
juro que não sou.
— Feche os olhinhos, abra a boquinha — avança uma
xícara fumegante, franze a boca a senhora Leonor. — E agora
este cafezinho quentinho, filhinho.
Pantaleão.indd 30
4/5/2007 11:27:50
Download

Leia um trecho do livro em PDF