MARIA BUENO: UM DIÁLOGO SOBRE
RELIGIOSIDADE CATÓLICA
1
2
3
Tônia Kio F. Piccoli; Solange R. de Andrade; Vanda F. Serafim
UEM/LERR. E-mail: [email protected]
2
UEM/LERR – Orientadora
3
UEM/LERR – Co-orientadora
1
Resumo: Neste artigo, pretendemos analisar a santidade em Maria Bueno a partir da
religiosidade católica, buscando perceber suas diversas representações e como se constitui
enquanto uma santa de cemitério. Utilizaremos a análise das mentalidades para explicar os
conceitos de Religião e Religiosidade, prescritos nas obras de Solange Ramos de Andrade
(2010) e Jacqueline Hermann (1997). Por meio dos jornais será possível levantar alguns dados
relevantes sobre o desfecho de sua morte. Maria Bueno foi assassinada de forma brutal pelo
militar Ignácio José Diniz, na madrugada do dia 29 de janeiro de 1893. O motivo da violência
é controverso, seus devotos afirmam que foi morta por defender sua honra; já seus detratores
sugerem que Maria Bueno era uma prostituta e teria sido morta por desobedecer às ordens de
seu cafetão, Ignácio Diniz. Santa ou Prostituta? Mártir nas mãos de um algoz malévolo ou
vítima de seu próprio modo de viver? São muitas as contradições a respeito de Maria Bueno,
e podemos antecipar que é justamente essa dubiedade que torna a análise de sua vida e morte
tão fascinante. Entendemos nossa abordagem como pertinente dentro da percepção da terceira
geração do Annales, a partir de autores como Pierre Nora e Jacques Le Goff (1974), de que a
História pode incorporar estes novos objetos e problemas.
Palavras-chave: Santidade; Maria Bueno; Religiosidade católica; Cemitério.
Anais do X Seminário de Ciências Sociais - Tecendo diálogos sobre a pesquisa social
Universidade Estadual de Maringá | Departamento de Ciências Sociais
22 a 26 de Outubro de 2012
78
MARIA BUENO: UM DIÁLOGO SOBRE RELIGIOSIDADE CATÓLICA
Este artigo tem por o objetivo apresentar algumas considerações acerca do Projeto de Iniciação
Científica “Maria Bueno: um estudo de religiosidade no Paraná”, no qual objetiva-se analisar a
santidade em Maria Bueno a partir da religiosidade católica, buscando perceber suas diversas
representações e como se constitui enquanto uma santa de cemitério.
Ao tomar jornais como fonte histórica será possível levantar alguns dados relevantes
sobre o desfecho de sua morte. Maria Bueno foi assassinada de forma brutal pelo militar Ignácio
José Diniz, na madrugada do dia 29 de janeiro de 1893. O motivo da violência é controverso,
seus devotos afirmam que foi morta por defender sua honra, já seus detratores sugerem que
Maria Bueno era uma prostituta e teria sido morta por desobedecer as ordens de seu cafetão,
Inácio Diniz. Santa ou Prostituta? Mártir nas mãos de um algoz malévolo ou vítima de seu
próprio modo de viver? São muitas as contradições a respeito de Maria Bueno, e podemos
antecipar que é justamente essa dubiedade que torna a análise de sua vida e morte tão fascinante.
Entendemos a proposta como pertinente dentro da percepção da terceira geração do
Annales, a partir de autores como Pierre Nora e Jacques Le Goff (1974), de que a História pode
incorporar estes novos objetos e problemas. A fim de problematizar tais questões utilizaremos a
análise das mentalidades para explicar os conceitos de Religião e Religiosidade, prescritos nas
obras de Solange Ramos de Andrade (2010) e Jacqueline Hermann (1997).
As considerações presentes neste artigo estão vinculadas ao projeto de pesquisa em
desenvolvimento, a partir de 2011, no Laboratório de Estudos em Religiões e Religiosidades
(LERR – UEM) com o objetivo de compreender a santidade em Maria Bueno por meio da análise
da religiosidade envolvida nos dos santos de cemitério. Dando enfoque em dois aspectos: Maria
Bueno enquanto homem-comum, a análise da vida de Maria Bueno; e Maria Bueno enquanto
objeto de culto, representações de sua santidade.
No final do século XIX, mais precisamente em1854, nasceu Maria da Conceição Bueno,
no seio de uma família pobre e conturbada. Maria nasceu no dia 8 de dezembro, dia de Nossa
Senhora da Conceição e foi batizada em sua homenagem. Posteriormente, quando a própria
Maria se tornaria uma santa de cemitério, seria lembrada apenas como Maria Bueno. Conta-se
que desde que nasceu já persistia em torno de si uma aura mítica.
Sua insígnia começa a tomar forma quando decide partir de Rio da Prata, sua terra
natal, para começar uma vida nova e solitária em Curitiba. Seu modo de vida era considerado
pouco convencional para uma cidade que nesse momento despontava para o crescimento e
ainda compartilhava de uma mentalidade interiorana. Morava sozinha, não tinha pudor em
desfrutar da vida social dos bailes e festas e era provedora de seu próprio sustento. Desafiava os
bons costumes da época ao rejeitar uma figura masculina como protetor e provedor.
Maria Bueno é um personagem histórico que nasceu com sua morte. Partindo desse
princípio, escolhemos dar ênfase aos aspectos sociais, para melhor atender ao objetivo deste
Anais do X Seminário de Ciências Sociais - Tecendo diálogos sobre a pesquisa social
Universidade Estadual de Maringá | Departamento de Ciências Sociais
22 a 26 de Outubro de 2012
79
TÔNIA KIO F. PICCOLI; SOLANGE R. DE ANDRADE; VANDA F. SERAFIM
artigo a respeito de um objeto que poderia definir, nas palavras de Michel de Certeau (1974),
como homem-comum. Para analisar sua história, buscaremos no conceito de lugar social,
compreender os fatos que formaram o caráter humano de Maria Bueno.
Quando se fala em Religiosidade Católica, é impossível dissociar as doutrinas da Igreja
das imagens dos santos. Desde a constituição da cristandade católica essas figuras míticas
estiveram presentes como modelo de virtude e valores morais a serem seguidos. Mas o que
é necessário para ser um santo? Para a Igreja Católica, santo é aquele que durante a vida se
arrependeu de seus pecados e se propôs a uma vida de santidade e dedicação aos preceitos de
Deus - da Igreja - e também da divulgação da boa nova de Jesus. Mas, só será santo perante
a Igreja Católica aquele que em morte tiver seus milagres atestados pelo Papa, passar pelo
processo de beatificação e for depois canonizado. Portanto não basta ter fiéis que atestem seus
milagres, há um grande processo burocrático para que três milagres sejam comprovados.
Porém para aqueles que necessitam de auxilio espiritual, o que mais importa é a graça
alcançada, independente da sua legitimidade perante o Vaticano. Essa mentalidade leva ao culto
dos chamados Santos Populares, que podem assumir diversas formas de culto como as romarias,
o culto em grutas onde imagens de santos foram achadas, o culto a pertences dos mortos que se
tornaram santos e o culto aos Santos de Cemitério.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE RELIGIÃO E RELIGIOSIDADES
Realizaremos um breve discurso sobre o conceito de Religião Institucional e Religiosidade
como também uma análise acerca de como a religião/religiosidade tem influenciado a sociedade,
e ajudado a moldar seu caráter histórico. Segundo Andrade a religiosidade católica são todas as
manifestações e crenças ligadas ao catolicismo, ainda que estas práticas não sejam em parte ou
totalmente reconhecidas oficialmente pela Igreja.
É um contato com um transcendente que, apesar de estar fortemente ligado ao
institucional, ao mesmo tempo distancia-se dele, num processo de apropriação
que muitas vezes marca um conflito simbólico na adoção de crenças e práticas não
sancionadas. (ANDRADE, 2010, p.132).
De acordo com Andrade (2010) a fé não se preocupa com instituições, o devoto acredita
estar vivendo sua religião e os cultos praticados em cemitério, destinado ao que chamamos
de santos populares, é a manifestação material dessa forma de religiosidade. Os cultos em
cemitérios estão espalhados por diversas regiões do Brasil e historicamente estão tanto ligados
aos aspectos milenares do culto aos mortos, como também traduzem uma adaptação do povo,
do culto institucional aos santos, para a sua realidade.
Para a história, cultuar santos em seus jazigos não é novidade, foi exatamente assim
que os primeiros cultos aos santos começaram. Nos primórdios do cristianismo, como atesta
Anais do X Seminário de Ciências Sociais - Tecendo diálogos sobre a pesquisa social
Universidade Estadual de Maringá | Departamento de Ciências Sociais
22 a 26 de Outubro de 2012
80
MARIA BUENO: UM DIÁLOGO SOBRE RELIGIOSIDADE CATÓLICA
Andrade (2010), os devotos dos primeiros santos se dirigiam para onde estes estavam enterrados
e lá faziam orações, pedidos de interseção e depositavam oferendas. Com o tempo para abrigar
essas relíquias depositadas por seus fiéis, foram sendo construídas capelas ao redor desses
sepulcros; e os santos mais populares acabaram ganhando construções maiores, os templos. Foi
assim que surgiram as primeiras igrejas dedicadas aos santos. Portanto, historicamente falando,
todo santo em seu primórdio era um santo de cemitério. Hoje em dia institucionalizados como
Santos Padroeiros Locais.
Dando continuidade ao discurso de Andrade (2010) a respeito da historicidade dos santos,
descobrimos que os primeiros santos a serem cultuados foram os mártires e que a devoção por
eles foi dada de maneira espontânea, como se o povo reconhecesse uma divindade naquele que
sofre em nome de Cristo. Com o passar do tempo, porém, o conceito de mártir passou a abranger
não apenas aqueles que davam a vida para defender a palavra de Cristo, mas também aqueles
que morriam de forma violenta, provocada por homicídio ou doenças graves que causavam
períodos prolongados de dor e sofrimento. O sofrimento na Terra representaria a redenção por
seus pecados e a morte uma possibilidade de purificação. Neste contexto, apresentamos Maria
Bueno, uma santa de cemitério, cultuada no Cemitério Municipal de Curitiba onde jaz seu
corpo, e considerada como mártir por seus devotos.
FONTES DE ANÁLISE PARA O OBJETO MARIA BUENO
As informações obtidas até o fechamento deste artigo é que Maria da Conceição Bueno, era de
uma família humilde de pouca instrução, que sua mãe foi Júlia Bueno e seu pai Pedro Bueno.
Quando Maria Bueno tinha 15 anos de idade, Pedro se alistaria no exercito como voluntário na
guerra do Paraguai e acabaria morrendo logo depois. Não tardou muito, e outro infortúnio na
vida de Maria Bueno levou também sua mãe, restando a ela ir morar com sua irmã Maria Rosa
que a maltratava. Para fugir dos maltrato da irmã, Maria Bueno partiu para Curitiba com a ajuda
de alguns padres locais. Lá se estabeleceu e permaneceu até sua morte. (KOSTER, 2011).
Desde o início a história de Maria Bueno mistura realidade com elementos da fé, como
a própria narrativa de seu nascimento.
“Na noite do nascimento de Maria Bueno, sua mãe estava contente porque, na
véspera, sonhou que havia visto uma santa muito bonita entrar em seu quarto.
Ela teve vontade de gritar, não de medo, mas de alegria. A Santa, porém, fez um
sinal, dizendo-lhe: “Júlia, não temas”. Eu sou a Mãe de Jesus. Venho avisar-te que
vais dar à luz a uma menina, e que está reservada a ela uma grande missão sobre
a terra. Será uma alma milagrosa, que há de fazer muitos benefícios, aos seus
semelhantes. Tenha Fé e Confiança”. Contam que Pedro Bueno, embriagado, quis
matar Maria Bueno, quando nasceu. Quando se preparava para arrebatar a cabeça
da criança com uma garrafa, uma forte luz bateu em sua cabeça, fazendo-o cair
desfalecido. Depois disso acordou diferente. Transformou-se num bom homem.
Anais do X Seminário de Ciências Sociais - Tecendo diálogos sobre a pesquisa social
Universidade Estadual de Maringá | Departamento de Ciências Sociais
22 a 26 de Outubro de 2012
81
TÔNIA KIO F. PICCOLI; SOLANGE R. DE ANDRADE; VANDA F. SERAFIM
Deixou de beber e adorava Maria Bueno. (KOSTER, 2011) 1
As pesquisas em sites que se propõem à contar a biografia de Maria Bueno indicam,
por um lado, que ela era uma jovem bonita e que apesar dos costumes da época frequentava
bailes desacompanhada e gostava muito de dançar. Numa dessas noites conheceu o soldado do
Exército, Ignácio José Diniz. Depois de alguns encontros as escondidas ele insistiu e foi morar
junto com Maria Bueno, causando certo constrangimento na sociedade da época. Talvez esse
fosse o motivo que levaria a difamação de Maria Bueno em vida e a dificuldade de sua aceitação
como santa pela Igreja após a morte. (KOSTER, 2011).
Outra versão, ao contrário, diz que Maria Bueno era humilde e trabalhadora e que seria
incapaz de manchar sua honra se envolvendo de maneira perniciosa com um homem de má
índole como Ignácio Diniz. Além disso, teria permanecido pura até sua morte, motivo pelo qual
poderia ser uma verdadeira santa perante a Igreja Católica. Mas não há como discordar sobre
o fato de sua morte e nem de seu assassinato: Maria Bueno foi assassinada na noite de 29 de
janeiro de 1893, com 39 anos, quando passava por um matagal na Rua Campos Gerais, a atual
Vicente Machado, entre Visconde de Nácar e Visconde do Rio Branco. Zona do meretrício da
época. Teve quase a cabeça e as mãos separadas do corpo à navalhada, por Diniz, que foi preso,
julgado e absolvido. (KOSTER, 2011).
A repercussão da morte chamou muito a atenção na época pelo fato de ter sido o primeiro
crime passional2 de Curitiba. Até então, não havia registro de um crime como este. Chocada, a
população por curiosidade ou comoção, começou a frequentar o túmulo de Maria Bueno. Logo,
começaram a surgir as primeiras placas de agradecimentos colocadas por fiéis, que diziam terem
sidos agraciados por Maria Bueno. Em 1962, foi inaugurada na primeira Rua do Cemitério São
Francisco de Paula a capela de Maria Bueno, onde estão até hoje os restos mortais. Com uma
imagem em tamanho real, local para acenderem velas à alma de Maria Bueno e local para
oração. Santa ou não, segundo a administração do cemitério, no Dia de Finados o túmulo de
Maria Bueno recebe em média 3 mil visitantes por dia. O muro em frente à capela está quase
tomado por placas de agradecimentos, com datas que vão de 1983 até os dias atuais. Fiéis de
todo o Brasil e exterior frequentam o túmulo, aberto todos os dias (SILVA, 2011).
DIÁLOGO COM HISTORIADORES MENTAIS PARA JUSTIFICAR A ESCOLHA DE
UM PERSONAGEM AMBÍGUO
Maria Bueno, uma santa de cemitério, com história de vida dúbia e acusada de prostituição,
foge do estruturalismo da Igreja Católica Oficial. Primeiro porque não foi canonizada e mesmo
1 KOSTER, Julia. Maria Bueno - Um Crime Passional e a Construção de uma “Santidade” Popular. Disponível
em: http://www.mariabueno.com.br/maria-bueno-construcao-de-uma-santidade-popular/. Acesso: 21/08/2011.
2 KOSTER, Julia. Maria Bueno - Um Crime Passional e a Construção de uma “Santidade” Popular. Disponível
em: http://www.mariabueno.com.br/maria-bueno-construcao-de-uma-santidade-popular/. Acesso: 21/08/2011.
Anais do X Seminário de Ciências Sociais - Tecendo diálogos sobre a pesquisa social
Universidade Estadual de Maringá | Departamento de Ciências Sociais
22 a 26 de Outubro de 2012
82
MARIA BUENO: UM DIÁLOGO SOBRE RELIGIOSIDADE CATÓLICA
assim é cultuada e desperta grande devoção até os dias atuais. Segundo porque não viveu em
santidade e mesmo assim é reconhecida como santa pelos seus fiéis. E historicamente foge
também do determinismo de que só grandes heróis reconhecidos como tal, e não pessoas de
vida comum merecem “fazer parte da história”.
Para justificar nossa escolha de estudar as representações da religiosidade em Maria
Bueno seguiremos a linha de pensamento de três autores: em primeiro lugar, o surgimento da
religião como disciplina inerente a História, através de Jacqueline Hermann; em segundo lugar,
o estudo de Maria Bueno enquanto exemplo da religiosidade a partir de Solange Ramos de
Andrade. E por fim, a escolha de Maria Bueno como objeto de estudo histórico através de Pierre
Nora e Jacques Le Goff.
A Religião como disciplina surgiu porque mesmo com o racionalismo se instando como
palavra de ordem, ainda havia - e há - a persistência de expressões da religiosidade guiando
a sociedade. Segundo Hermann (1997), em “História das Religiões e Religiosidades”, foi ao
longo do século XIX e início de XX, que a história das religiões se instaurou como disciplina
específica, da necessidade de se aprofundar relações entre a defesa do caráter racionalista do
homem ocidental e a persistência de formas de expressões ainda classificadas como religiosas.
A princípio conferia-se a religião um sentido pragmático, porque tinha o papel de reestruturar
a vida em grupo através de uma reaproximação com o passado ritual e mítico. Hermann
acrescenta ainda que o papel da sociologia foi fundamental para o desenvolvimento da religião
e religiosidade, motivo pelo qual até hoje é inseparável a História da Sociologia quando se
pretende estudar a religiosidade dos povos.
Para Hermann a religião se definiria a partir de uma dicotomia sagrado/profano que ora
se completam hora entram em embate. Mas que seria impossível um existir sem o outro, são
conceitos intrínsecos que precisam que um exista para o outro poder se manifestar. Hermann
distingue Religião de Religiosidade da seguinte forma. Segundo a autora, Religião estaria
relacionada ao conceito de funcionamento da estrutura e organização do clero e da pregação
religiosa, incluindo as formas de proselitismo religioso, a disciplina clerical e a normatização
do ritual, a exemplo das diversas histórias institucionais da Igreja. Já na religiosidade, ao
superar obstáculos etnocêntricos, os indivíduos terminariam por fomentar novas abordagens
no contexto religioso que se enquadrariam no conjunto de produções da chamada história
cultural, onde a história das religiosidades pode ser englobada (HERMANN, 1997). Fechando
o discurso de Jacqueline Hermann, chega-se ao ponto onde Religião e Religiosidade se cruzam,
esse contexto é chamado de hibridismo pela autora. O hibridismo pode ser definido como as
relações históricas entre mitos e ritos encontráveis em diferentes momentos e lugares sociais,
tornando possível utilizar um método comparativo de análise historiográfica para compreender
a essência das experiências religiosas.
De acordo com Andrade, a busca para uma conceituação das manifestações populares
Anais do X Seminário de Ciências Sociais - Tecendo diálogos sobre a pesquisa social
Universidade Estadual de Maringá | Departamento de Ciências Sociais
22 a 26 de Outubro de 2012
83
TÔNIA KIO F. PICCOLI; SOLANGE R. DE ANDRADE; VANDA F. SERAFIM
no catolicismo coincide justamente com o período em que a Igreja percebe que esta perdendo
fiéis para tais práticas, seja para expressões dissonantes como a Umbanda, Espiritismo,
Protestantismo ou mesmo para vertentes dentro de sua própria doutrina como é o caso dos
santos de cemitério (2010). Andrade afirma em sua obra, que mesmo com todas as dificuldades
de interpretação que as manifestações religiosas impõem, elas devem ser vistas como um
importante objeto para aprofundar a compreensão histórica das sociedades.
Para inserir Maria Bueno no presente artigo, enquanto um objeto histórico, partimos do
princípio da subjetividade da História e o fato desta estar em constante mutação. Modificações
estas que criam e recriam o tempo todo, novos objetos de estudos. O que passaria despercebido
para gerações anteriores, hoje é foco de atenção acadêmica. Para seguir esta linha de raciocínio
nos apoiamos em Nora e Le Goff (1974), que possuem teorias que justificam a importância
do homem-comum como personagem historicizante a partir da abordagem de novos objetos
históricos. De acordo com Nora e Le Goff em sua obra “História: Novos problemas” (1974),
a história não é o absoluto dos historiadores do passado, mas o produto de uma situação, de
uma história. Essa constante mutação faz com que os historiadores estejam constantemente se
interrogando a respeito de como interpretar as novas histórias que surgem. Partindo da premissa
dos novos objetos de Nora e Le Goff, podemos atribuir a Maria Bueno o lugar de centro de
discussão histórica, pois ela constitui em si todas as características de um novo objeto, tanto
por ser mulher, excluída socialmente, moralmente dubitável e por fazer parte do legado dos
santos de cemitério, grupos de santos notadamente discriminados pela Igreja Católica. Citando
novamente Nora e Le Goff (1974) a história nova se afirma como tal, ao anexar novas disciplinas
fora do território da história. Na análise sobre a santidade de Maria Bueno é imprescindível
a anexação do campo social, pois por Maria Bueno se tratar de um personagem carente de
documentos históricos oficiais, se torna impossível estudá-la sem levar em conta aspectos
sociais como a subjetividade da fé, o lugar social onde Maria Bueno formou seu caráter humano
e as transformações sociais que ocorreram na mentalidade de seus devotos para elevá-la de
condenada, à mártir e posteriormente santa.
CONTEXTO HISTÓRICO COMO FATOR DETERMINANTE EM UMA ANÁLISE
Para nos ajudar a pensar os aspectos da vida e culto pós-morte de Maria Bueno consideramos
necessário primeiro entender o contexto histórico em que ela viveu e o que levou as pessoas, a
considerar Maria Bueno como uma santidade. Dialogando com Certeau (1974), o lugar social
consiste na época e no local onde aconteceu o fato histórico a ser estudado. Segundo o autor
não se trata apenas de uma local físico, mas de todas as influencias pela qual o objeto histórico
passou até construir seu caráter humano. Poder-se-ia dizer que fatos desde o nascimento até
sua morte, e como cada um deles foi recebido pelo personagem e futuramente como esses
acontecimentos definiram seu modo de pensar e agir, e como influenciaram em suas escolhas.
Somente a partir do lugar social, é possível compreender os aspectos históricos constitutivos
Anais do X Seminário de Ciências Sociais - Tecendo diálogos sobre a pesquisa social
Universidade Estadual de Maringá | Departamento de Ciências Sociais
22 a 26 de Outubro de 2012
84
MARIA BUENO: UM DIÁLOGO SOBRE RELIGIOSIDADE CATÓLICA
em Maria Bueno.
Para compreender como uma mesma figura mítica pode tomar diferentes conotações de
acordo com quem a aborda, Roger Chartier em sua obra “Textos, Impressão, Leituras” (1992)
nos auxilia na análise de como as pessoas interpretam a figura de Maria Bueno. No trecho
abaixo, de sua obra, exemplifica-se bem esse conceito de leitura e interpretação:
A questão é simples: como é que um texto, que é o mesmo para todos que leem,
pode transformar-se em instrumento de discórdia e de brigas entre seus leitores,
criando divergências entre eles e levando cada um, dependendo de seu gosto
pessoal, a ter uma opinião diferente? (CHARTIER, 1992, p.02)
Quando Chartier fala a respeito de leitura, não se refere apenas aos textos impressos e
livros, mas a toda leitura que um ser humano faz, a partir de seu próprio olhar e convicções,
a respeito de um dado personagem ou de um fato histórico. Para Chartier, o homem-comum
tem o direito de julgar os acontecimentos de acordo com sua bagagem cultural, ele vê os fatos
e tira conclusões de acordo com a educação que recebeu a época em que vive e os valores
pessoais. Portanto a mesma atitude de um personagem pode ser interpretada para o bem ou para
o mal de acordo com a testemunha ocular. Já para um historiador cabe apenas compreender o
fato, tomando cuidado de analisar cada objeto em seu contexto histórico para não cometer o
anacronismo. Ressaltando mais uma vez que a historia de Maria Bueno é feita em sua quase
totalidade de relatos orais, a metodologia de Chartier quanto à interpretação de leitura se torna
indispensável. De acordo com o autor a crença e descrença andam juntas, e a aceitação da
verdade naquilo que se lê ou ouve não diminui as dúvidas fundamentais a cerca dessa suposta
autenticidade.
JORNAIS: FONTE DE CONHECIMENTO POPULAR DE UMA ÉPOCA
Para o desenvolvimento de nossa pesquisa, o uso do periódico foi imprescindível como
documento histórico, principalmente ao narrar sua morte trágica, pois através dessa morte é
que se cria o mito de Maria Bueno. Este artigo propõe um espaço para a apresentação de tais
análises.
Por meio da metodologia de Luca (2008), pretendemos compreender como a morte de
Maria Bueno foi recebida pela sociedade do final do século XIX, como as pessoas a descreviam
antes do mito de santificação. E principalmente quando e de que forma começou a surgir a
devoção por ela até que fosse afirmada santa por seus fiéis
O principal jornal a ser analisado é “A Gazeta do Povo”, a partir do levantamento das
reportagens sobre Maria Bueno no decorrer do desenvolvimento da pesquisa, além de outros
periódicos da época de sua morte. Por muito tempo acreditou-se que apenas documentos oficiais
eram dignos se serem objetos históricos, ignorando outras fontes históricas, como os jornais. De
Anais do X Seminário de Ciências Sociais - Tecendo diálogos sobre a pesquisa social
Universidade Estadual de Maringá | Departamento de Ciências Sociais
22 a 26 de Outubro de 2012
85
TÔNIA KIO F. PICCOLI; SOLANGE R. DE ANDRADE; VANDA F. SERAFIM
acordo com os críticos do periódico como fonte metodológica, isto ocorria porque os jornais
apresentam registros fragmentários do presente e porque fornecem uma visão parcial, distorcida
ou subjetiva dos fatos; como afirma Tania Regina de Luca (2008) no capítulo “História dos, nos
e por meio dos periódicos”, contido na obra “Fontes Impressas”. Porém, como observa Luca,
esse panorama começou a mudar a partir da década de 1930, com a Escola do Annales que abriu
a disciplina histórica para uma nova forma de abordagem do contemporâneo, usando elementos
do cotidiano para analisar objetos antes relegados ao anonimato.
No trecho abaixo, Luca expressa como seria essa transformação da visão histórica:
A face mais evidente do processo de alargamento do campo de preocupação dos
historiadores foi a renovação temática, imediatamente perceptível pelo título
de pesquisa, que incluíram o inconsciente, o mito, as mentalidades, as práticas
culinárias, o corpo, as festas, os filmes, os jovens e as crianças, as mulheres,
aspectos cotidianos, enfim uma miríade de questões antes ausentes do território
da História. (LUCA, 2008, p.113)
Seguindo o discurso da autora, tais mudanças alteraram a própria concepção de
documentos, abrindo a possibilidade do jornal se tornar fonte de estudo para os historiadores.
Luca afirma ainda que a forma como um documento é escrito, é tão ou mais importante do que
seu conteúdo. Para usar um termo de Luca, o jornal é a ‘enciclopédia do cotidiano’; através da
escrita contida em suas páginas podemos visualizar uma sociedade, ou um grupo social. Isto, é,
por intermédio de um periódico enxergamos a mentalidade de uma época. O que está impresso,
expressa a importância que foi dada a cada fato histórico, tenha ele repercutido em pequena
ou grande escala. Qual o impacto de determinada notícia na opinião pública, o que anseiam os
cidadãos, pelo o que lutam? Luca propõe que, um historiador pode entender uma sociedade em
seu contexto histórico ao analisar a forma e intenções verificadas em sua forma de escrita. É
justamente a dubiedade com que Maria Bueno é retratada que nos permite pensar suas distintas
representações.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Solange Ramos de. O culto aos santos: a religiosidade católica e seu hibridismo.
In: Revista Brasileira de História das Religiões. Ano III. n.7, Mai, 2010. Disponível em:
<http://www.dhi.uem.br/gtreligiao>. P. 131-145.
ANDRADE, Solange de. A tolerância como estratégia da igreja católica frente à
religiosidade. In: Tolerância e Intolerância nas manifestações religiosas. Manoel, Ivan A.;
ANDRADE, Solange Ramos (orgs.). Franca: UNESP – FHDSS, 2010. p. 43 – 155.
ANDRADE, Solange de. A identidade Católica: entre a religião e a religiosidade. In: Manoel,
Anais do X Seminário de Ciências Sociais - Tecendo diálogos sobre a pesquisa social
Universidade Estadual de Maringá | Departamento de Ciências Sociais
22 a 26 de Outubro de 2012
86
MARIA BUENO: UM DIÁLOGO SOBRE RELIGIOSIDADE CATÓLICA
MANOEL, Ivan; ANDRADE, Solange Ramos de. Identidades Religiosas. Franca: UNESP –
FHDSS; Civitas Editora, 2008. P. 253 – 281.
ANDRADE, Solange Ramos de; SERAFIM, Vanda Fortuna. A religiosidade católica e seus
santos: o Cemitério Municipal de Maringá/PR como espaço de devoção. História Agora, v.
10, 2010, p. 103 - 136.
CERTEAU, Michel de. A operação histórica. In: LEGOFF, Jacques; NORA, Pierre (org).
História novos problemas. 4.ed. Rio de Janeiro : Francisco Alves , 1974. P. 17 – 48.
CHARTIER, Roger. Textos, impressões, leitura. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes. 1992.
HERMANN, Jacqueline. História das religiões e religiosidades. In: CARDOSO, Ciro
Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da historia: ensaios de teoria e metodologia.
Rio de Janeiro: Campus, 1997.
LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. Introdução. In: ____. Historia novos problemas. 4. ed. Rio
de Janeiro : Francisco Alves ,1974. P. 11-15.
LUCA, Tania Regina. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINKSY, Carla (org.).
Fontes Históricas. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2008. P. 111 – 154.
REFERÊNCIAS DE JORNAIS
KOSTER, Julia. Maria Bueno - Um Crime Passional e a Construção de uma “Santidade”
Popular. Disponível em: http://www.mariabueno.com.br/maria-bueno-construcao-de-umasantidade-popular/. Acesso: 21/08/2011.
SILVA, Vanusa Pereira da. Maria Bueno, mito, verdade ou crença popular. Disponível
em: http://www.sesfepar.org.br/documentos/curiosidades/HistoriadeMariaBueno.pdf. Acesso:
21/08/2011.
Anais do X Seminário de Ciências Sociais - Tecendo diálogos sobre a pesquisa social
Universidade Estadual de Maringá | Departamento de Ciências Sociais
22 a 26 de Outubro de 2012
87
Download

maria da conceição