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“Madame Bovary”, Gustave Flaubert. – Trechos selecionados
(...) Páginas 63-64
Charles tinha boa saúde e um óptimo aspecto; a sua reputação estava
definitivamente estabelecida. Os camponeses estimavam-no por não ser orgulhoso.
Acariciava as crianças, nunca entrava na taberna e, além disso, inspirava confiança
pela sua moralidade. Acertava sobretudo com os catarros e as doenças de peito.
Tendo muito receio de matar os doentes, Charles, realmente, pouco mais receitava do
que calmantes, de quando em quando um emético, um escalda-pés ou sanguessugas.
Não é que tivesse medo da cirurgia; sangrava abundantemente as pessoas, como se
fossem cavalos, e tinha um pulso de ferro para arrancar dentes.
Sentia-se, além disso, mais irritada com ele. Com a idade, charles ia adquirindo
certos hábitos grosseiros; à sobremesa entretinha-se a cortar as rolhas das garrafas
vazias; depois de comer passava a língua sobre os dentes; quando comia a sopa,
fazia barulho de cada vez que engolia e, como tivesse começado a engordar, os olhos,
já de si pequenos, pareciam subir-lhe para a testa, empurrados pelas bochechas.
Emma, às vezes, metia-lhe para dentro do colete a orla vermelha das
camisolas, compunha-lhe a gravata, ou punha de parte as luvas desbotadas que ele
se dispunha ainda a usar; e não era, como pensava charles, por causa dele; era por
ela própria, por expansão do seu egoísmo, por irritação nervosa.
Às vezes também lhe falava de alguma coisa que tivesse lido, como do trecho
de um romance, de uma peça nova, ou de histórias curiosas da alta-roda que vinham
no folhetim porque, afinal, charles sempre era alguém, sempre com disposição para
ouvir e pronto para dar a sua aprovação. Muitas confidências fazia ela à cadelinha
galga! e tê-las-ia feito até às achas do fogão e ao pêndulo do relógio.
No íntimo da sua alma, contudo, esperava um acontecimento. como os
marinheiros aflitos, percorria com os olhos desesperados a solidão da sua vida,
procurando ao longe alguma vela branca nas brumas do horizonte. Não sabia ela qual
seria esse acaso, o vento que lho traria para perto, nem para que praia se sentiria
levada, se seria chalupa ou navio de três pontes, carregado de angústias ou cheio de
felicidades até às escotilhas mas todas as manhãs, ao acordar, esperava que viesse
naquele dia e escutava todos os ruídos, levantava-se em sobressalto, surpreendia-se
de que não tivesse vindo; depois, quando o sol se punha, cada vez mais triste,
desejava estar já no dia seguinte.
Voltou a primavera. Emma sentia falta de ar com os primeiros calores, quando
as pereiras floriam a partir do princípio de julho contou pelos dedos quantas semanas
lhe faltavam para chegar ao mês de outubro, pensando que o marquês de andervilliers
talvez desse ainda outro baile em Vaubyessard. mas setembro passou completamente
sem cartas nem visitas.
Após o aborrecimento daquela decepção, o coração ficou-lhe novamente vazio
e começou outra vez a série dos dias todos iguais. Iam então agora seguir-se assim
em fila, idênticos uns aos outros, inumeráveis, nada trazendo de novo! As outras
existências, por muito monótonas que fossem, contavam, pelo menos, com a
possibilidade de qualquer acontecimento. Imprevisto. uma aventura trazia às vezes
consigo peripécias sem fim e o cenário transformava-se. mas, para ela, nada
acontecia. deus assim o quisera! o futuro era um corredor todo escuro que tinha ao
fundo uma porta bem fechada.
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(...) Páginas 103 – 104
Léon não sabia, quando saía de casa dela desesperado, que emma se
levantava logo a seguir para o ver na rua. Preocupava-se com o que ele fazia,
espiava-lhe o aspecto do rosto, inventou uma história complicada como pretexto para
lhe visitar o quarto. a mulher do farmacêutico parecia-lhe muito feliz por dormir debaixo
do mesmo tecto, e os seus pensamentos iam constantemente pousar naquela casa,
como os pombos do Leão de Ouro que ali iam molhar, nas goteiras, as patas cor-derosa e as asas brancas. Mas, quanto mais emma tomava consciência do amor, mais o
recalcava, para que não aparecesse e o fazer diminuir. Sentia o desejo de que Léon
lhe adivinhasse o sentimento, e imaginava circunstâncias de acaso, catástrofes que
pudessem contribuir para isso. o que a detinha era, sem dúvida, a inércia ou o receio,
e também o pudor. Imaginava que o tinha repelido demasiado, que já não havia
oportunidade e que tudo estava perdido. Também o orgulho, a satisfação de poder
dizer: "sou virtuosa", e de olhar para o espelho assumindo poses de resignação, a
consolava um pouco pelo sacrifício que acreditava estar fazendo.
Então, os apetites da carne, as cobiças do dinheiro e as melancolias da paixão,
tudo se confundia num mesmo sofrimento, e, em vez de procurar afastar daí o
pensamento, ainda mais se prendia ao mesmo, excitando-se à dor e procurando para
isso todas as ocasiões. Irritava-se com um prato mal servido ou com uma porta
entreaberta, lastimava-se pelo veludo que lhe faltava, pela felicidade que não tinha,
por as suas aspirações serem demasiado elevadas e por a casa ser acanhada de
mais.
O que a exasperava é que Charles não dava a impressão de suspeitar do seu
suplício. A convicção que ele tinha de a fazer feliz parecia-lhe um insulto imbecil e a
segurança que revelava a esse respeito ingratidão. Por causa de quem se comportava
ela tão escrupulosamente? Não era ele o obstáculo a toda a felicidade, o motivo de
toda a desgraça, como que o bico da fivela a travar aquela complexa correia que por
todos os lados a amarrava?
Então voltou contra ele todo o ódio acumulado pelos seus aborrecimentos e
cada esforço que fazia para o reduzir servia apenas para o aumentar, pois esse
esforço inútil ia acrescentar-se aos outros motivos de desespero e contribuía ainda
para maior afastamento. A sua própria docilidade lhe causava revolta. a mediocridade
doméstica incitava-a a fantasias luxuosas; a ternura matrimonial, a desejos adúlteros.
Preferiria que Charles lhe batesse, para poder com mais justiça detestá-lo, vingar-se
dele. por vezes assustava-se com as atrozes conjecturas que lhe vinham à ideia; e era
necessário continuar a sorrir, escutar as suas próprias repetições de que ele era feliz,
fazer de conta que o era, dar a entender isso aos outros!
Enojava-se, entretanto, daquela hipocrisia. Tinha tentações de fugir com Léon
para qualquer parte, muito longe, tentar um destino novo; mas logo se lhe abria na
alma um abismo de confusão, cheio de negrume. "ainda por cima, não me ama",
pensava ela; "qual vai ser o meu futuro? que ajuda posso esperar, que consolação,
que alívio?"
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“Madame Bovary”, Gustave Flaubert. – Trechos selecionados