ALETHEIA Revista de Psicologia Nº 43-44 - Jan./Ago. 2014 ISSN: 1981-1330 ASSOCIAÇÃO EDUCACIONAL LUTERANA DO BRASIL (AELBRA) Presidente Paulo Seifert Diretor Executivo Romeu Forneck Reitor Marcos Fernando Ziemer Pró-Reitor de Planejamento e Administração Romeu Forneck Pró-Reitor Acadêmico Ricardo Willy Rieth Pró-Reitor Adjunto de Ensino Presencial Pedro Antonio González Hernández Pró-Reitor Adjunto de Ensino a Distância Pedro Luiz Pinto da Cunha Pró-Reitor Adjunto de Pós-Graduação, Pesquisa e Inovação Erwin Francisco Tochtrop Júnior Pró-Reitor Adjunto de Extensão e Assuntos Comunitários Valter Kuchenbecker Capelão Pastor Lucas André Albrechtt ALETHEIA Revista de Psicologia da ULBRA Disponível on-line pelo portal PePSIC: http://pepsic.bvs-psi.org.br/scielo.php Indexadores: Index-Psi Periódicos (CFP); LILACS (BIREME); IBSS; PsycINFO (APA); PePSIC; Latindex; CLASE; Redalyc Editora Profª. Ms. Fernanda Pasquoto de Souza Editora Associada Profª Drª Aline Groff Vivian Conselho editorial Profª Drª Ligia Braun Schermann Profª Drª Silvana Soriano Frassetto Conselho Científico Dr. Adolfo Pizzinato (PUCRS, Porto Alegre/RS) Dra. Ana Maria Jacó-Vilela (UERJ, Rio de Janeiro/BR) Dra. Cristina Maria Leite Queirós (Universidade do Porto/PO) Dra. Dóris Vasconcelos Salençon (Sorbonne, Paris/FR) Dr. Eduardo A. Remor (UAM, Madrid/ES) Dr. Fábio de Oliveira (USP, São Paulo/SP) Dr. Francisco Martins (UnB, Brasília/BR) Dr. Hugo Alberto Lupiañez (UDA - Mendoza/AR) Dra. Isabel Arend (UG, Bangor/UK) Dr. João Carlos Alchieri (UFRN, Natal/BR) Dr. Jorge Béria (ULBRA, Canoas/BR) Dr. José Carlos Zanelli (UFSC - Florianópolis/SC) Dra. Liliana Andolpho Magalhães Guimarães (USP, São Paulo Dr. Marcus Vinicius de Oliveira Silva (UFBA - Salvador/BA) Dra. Maria Lúcia Tiellet Nunes (PUCRS, Porto Alegre/RS) Dra. Maria Inês Gasparetto Higuchi (CEULM, Manaus, AM) Dra. Marília Veríssimo Veronese (UNISINOS, São Leopoldo/RS) Dr. Mário Cesar Ferreira (UnB, Brasília/BR) Dr. Makilim Nunes Baptista (USF-Itatiba,SP) Dr. Pedro Gil-Monte (UV-Valência/ES) Dr. Ramón Arce (USC, Santiago de Compostela/ES) Dr. Ricardo Gorayeb (FMRP-USP, Ribeirão Preto/BR) Dra. Rita de Cássia Petrarca Teixeira (ULBRA – Gravataí/BR) Dra. Suzana Alves (Edinburgh College of Art – UK) Assistente editoriai Claudia Corrêa da Rocha EDITORA DA ULBRA Diretor: Astomiro Romais Coordenador de periódicos: Roger Kessler Gomes Capa: Everaldo Manica Ficanha Editoração: Roseli Menzen PORTAL DE PERIÓDICOS DA ULBRA Gerência: Agostinho Iaqchan Ryokiti Homa Solicita-se permuta. We request exchange. On demande l’échange. Wir erbitten Austausch. Endereço para permuta/exchange Universidade Luterana do Brasil - ULBRA Biblioteca Martinho Lutero - Setor de Aquisição Av. Farroupilha, 8001 - Prédio 5 CEP: 92425-900 - Canoas/RS - Brasil Fone: (51) 3477.9276 - E-mail: [email protected] Matérias assinadas são de responsabilidade dos autores. Direitos autorais reservados. Citação parcial permitida, com referência à fonte. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP A372 Aletheia / Universidade Luterana do Brasil. – N. 1 (jan./jun. 1995). – Canoas : Ed. ULBRA, 1995v. ; 27 cm. . Semestral, jan./jun. 1995-jul./dez. 2009; quadrimestral, jan./abr. 2010 - ISSN 1413-0394 1. Psicologia – periódicos. I. Universidade Luterana do Brasil. CDU 159.9(05) Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Martinho Lutero – ULBRA/Canoas Aletheia REVISTA DE PSICOLOGIA DA ULBRA Consultores 2014 Adriana Fleck Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Adriana Serafini Jung Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) Alessandra Turini Bolsoni Silva Universidade Estadual Paulista (UNESP) Amadeo Weinmann Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Ana Merces Bahia Bock Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Ana Paula Correa Freitas Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Andrea Gabriela Ferrari Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Ângela Helena Marin Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) Caroline Rubin Rossato Pereira Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) Clarissa De Antoni Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) Celso Gutfreind Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) Cenita Pereira Borges Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC) Débora Silva de Oliveira Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha (CESUCA) Denise Aerts Universidade Luterana do Brasil (ULBRA) Denise Morsch Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRJ) Denise Steibel Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Evanisa de Maio Brum Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha (CESUCA) Fernanda Pasquotto de Souza (ULBRA) Universidade Luterana do Brasil (ULBRA) Francielle Molon da Silva Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) Gláucia Grohs Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Isabela Machado da Silva Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Juliane Calegaro Borsa Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRJ) Leda Rubia Corbulim Maurina Universidade Luterana do Brasil (ULBRA) Leopoldo Fulgêncio Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) Lia Mara Netto Dornelles Universidade de Caxias do Sul (UCS) Lilian Palazzo Universidade Luterana do Brasil (ULBRA) Lucia Marques Stenzel (UFCSPA) Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) Maria Consuêlo Passos Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) Marisa Campio Müller Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Marúcia Bardagi Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Mary Sandra Carlotto Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Paula Von Mengden Campezatto Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Raquel de Melo Boff Unidade Integrada Vale do Taquari de Ensino Superior (UNIVATES) Silvana Soriano Frassetto Universidade Luterana do Brasil (ULBRA) Silvia Abu-Jamra Zornig Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRJ) Simone Bicca Charczuk Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) Sonia Liane Reichert Rovinski Faculdades Riograndenses (FARGS) Tagma Marina Schneider Donelli Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) Tânia Rudnicki Instituto de Educação e Pesquisa - Associação Hospitalar Moinhos de Vento (HMV) Vicente Cassepp-Borges Universidade Federal Fluminense (UFF) Viviane Rodrigues Unidade Integrada Vale do Taquari de Ensino Superior (UNIVATES) Aletheia, revista quadrimestral editada pelo curso de Psicologia da Universidade Luterana do Brasil, publica artigos originais, relacionados à Psicologia, pertencentes às seguintes categorias: artigos de pesquisa, artigos de atualização, resenhas e comunicações. Os artigos são de responsabilidade exclusiva dos autores, e as opiniões e julgamentos neles contidos não expressam necessariamente o pensamento dos Editores ou do Conselho Editorial. Sumário 7 Editorial Artigo internacional 9 O papel das crianças e dos jovens na constituição das identidades profissionais de educadores/ professores/formadores de professores The role of children and young people in the constitution of professional identities of educators/teachers/teacher educators Leanete Thomas Dotta; Margarida Marta; Rosa Ester Tártato Soares; Luciana Matiz Artigos empíricos 24 Motivos da busca de atendimento psicológico em uma clínica escola da Região Metropolitana de Porto Alegre/RS – Pesquisa documental Reasons of Search for Psychological Care in a School Clinic in Porto Alegre’s Metropolitan Area – Documentary Research Fernanda Pasquoto de Souza; Débora de Freitas Gonçalves Santos; Aline Groff Vivian 37 Família e monoparentalidade feminina sob a ótica de mulheres chefes de família Family and female single parenthood under the view of women heads of household Sabrina Daiana Cúnico; Dorian Mônica Arpini 50 A percepção de psicodramatistas e gestalt-terapeutas sobre os fatores facilitadores de integração entre as suas abordagens The perception of psychodramatists and gestalt therapists about the factors that facilitates integration between their approaches Érico Douglas Vieira; Luc Vandenberghe 66 Representações sociais sobre a psicologia e o psicólogo em universitários de uma faculdade privada de Rondônia, Brasil Social representations of psychology and psychologist at private university of the Rondônia, Brazil Cleber Lizardo de Assis; Géssica Alves de Souza Matthes 91 Equilibristas embriagados: a dinâmica familiar alcoolista pelos vieses da Psicoterapia Familiar Sistêmica Drunken juggler: The alcoholic family dynamics by biases of Systemic Family Psychotherapy Marciana Zambillo; Cláudia Mara Bosetto Cenci 105 Assertividade em mulheres dependentes de crack Assertiveness for women’s crack dependent Márcia Cristina Henrique de Souza; Bruna Krimberg Von Mühlen; Leda Rúbia Maurina Coelho; Cristiano Pereira de Oliveira; Viviane Samoel Rodrigues; Margareth da Silva Oliveira; Marlene Neves Strey 116 Abandono de tratamento de adolescentes com uso abusivo de substâncias que cometeram ato infracional Treatment’s dropout of substance abuse adolescents who committed an infraction Ilana Andretta; Jéssica Limberger; Margareth da Silva Oliveira 129 Sexualidade na adolescência: um estudo com escolares da cidade de Manaus/AM Adolescent sexuality: A school-based study in the city of Manaus/AM, Brazil Nália de Paula Oliveira; Jorge Umberto Béria; Lígia Braun Schermann 147 Integrando método clínico e investigação empírica para a compreensão do abandono em psicoterapia psicanalítica Combining clinical method and empirical research to understand dropout in psychoanalytic psychotherapy Aline Alvares Bittencourt; Maria Cristina Vieweger de Mattos; Farid Rodrigues Bessil; Fernanda Barcellos Serralta; Silvia Pereira da Cruz Benetti 160 Estresse em adolescentes: estudo com escolares de uma cidade do sul do Brasil Stress in adolescencents: A study with schoolars from a city in southern Brazil Lígia Braun Schermann; Jorge Umberto Béria; Maria Helena Vianna Metello Jacob; Guilherme Arossi; Mariana Canellas Benchaya; Nádia Krubskaya Bisch; Sofia Rieth 174 Autoestima e cuidados pessoais em mulheres de 60 a 75 anos Self-esteem and personal care in women aged between 60 and 75 years Aparecida Duridan; Daiane Ferreira dos Santos; Ana Lucia Gatti 188 Dependência de álcool e recaída: considerações sobre a tomada de decisão Alcohol dependence and relapse: Some considerations concerning decision-making Artigos teóricos Ana Cristina Bertagnolli; Christian Haag Kristensen; Daniela Schneider Bakos 203 Representações parentais: bases conceituais e instrumento de avaliação Parental representation: Conceptual basis and an instrument of assessment Paula Casagranda Mesquita; Sílvia Pereira da Cruz Benetti 213 Pesquisa em psicoterapia e psicanálise Research in psychotherapy and psychoanalysis Paula von Mengden Campezatto; Maria Lucia Tiellet Nunes; Milena da Rosa Silva 227 A família no acompanhamento de sujeitos psicóticos: os encargos subjetivos oriundos do sofrimento psíquico The family follow up of a psychotic person: Subjective burdens from distress Nayara Gomes Braga; Nathália de Freitas Costa Fernandes; Tiago Humberto Rodrigues Rocha 239 Compartilhando saberes: relato de uma intervenção com professores Sharing knowledge: Report of an intervention with teachers Relato de experiência Magda Pozzobon; Fernanda Aparecida Szareski Pezzi; Angela Helena Marin Resenha 248 Avaliação dos comportamentos dependentes Leda Rúbia Maurina Coelho; Margareth da Silva Oliveira 252 Instruções aos autores 258 Instructions to authors 264 Instrucciones a los autores 6 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Editorial A revista Aletheia veicula mais um fascículo duplo com publicações científicas relevantes dentro das diferentes áreas de conhecimento que têm aderência ao campo da psicologia. Agradecemos a colaboração dos membros do Conselho Editorial, professores, comunidade científica e, principalmente, dos autores que escrevem para nosso periódico. Gostaríamos de convidá-los para continuarem submetendo artigos e avisar que estamos recebendo estudos para as próximas edições. Os artigos publicados neste número dividem-se em um artigo internacional, 11 artigos empíricos, três teóricos, dois relatos de experiência e uma resenha. Como artigo internacional, temos o trabalho dos autores Leanete Thomas Dotta, Margarida Marta, Rosa Ester Tártato Soares e Luciana Matiz, sobre o papel das crianças e dos jovens na constituição das identidades profissionais de educadores/professores/ formadores de professores. Como primeiro artigo empírico, apresentamos uma pesquisa documental realizada em uma clínica escola de psicologia da Região Metropolitana de Porto Alegre/RS, de autoria de Fernanda Pasquoto de Souza, Débora de Freitas Gonçalves Santos e Aline Groff Vivian. Trata-se de uma pesquisa que busca identificar os principais motivos de procura por atendimento psicológico em um serviço-escola, utilizando como metodologia o levantamento retrospectivo documental, de consulta às fichas de triagens realizadas no serviço no período de janeiro de 2008 até dezembro de 2012. As autoras Sabrina Daiana Cúnico e Dorian Mônica Arpini abordam as concepções de família trazidas por mulheres chefes de família de periferia urbana e, ainda, identificam como as mães entendem seu lugar nesse contexto familiar. Já Érico Douglas Vieira e Luc Vandenberghe falam sobre os fatores facilitadores da integração entre duas abordagens: o Psicodrama e a Gestalt-terapia. Contamos também com a pesquisa quantitativa de Cleber Lizardo de Assis e Géssica Alves de Souza Matthes sobre a Teoria das Representações Sociais, buscando identificar as representações sociais sobre a Psicologia e o psicólogo em universitários de uma faculdade privada de Rondônia. As pesquisadoras Marciana Zambillo e Cláudia Mara Bosetto Cenci apresentam um estudo de caso de uma família com um de seus membros identificado com problemas relacionados ao uso abusivo de álcool. Também relacionado ao estudo da dependência de substâncias, as autoras Márcia Cristina Henrique de Souza, Bruna Krimberg Von Mühlen, Leda Rúbia Maurina Coelho, Cristiano Pereira de Oliveira, Viviane Samoel Rodrigues, Margareth da Silva Oliveira e Marlene Neves Strey falam sobre assertividade em mulheres dependentes de crack. Ainda sobre o uso abusivo de substâncias, Ilana Andretta, Jéssica Limberger e Margareth da Silva Oliveira têm o objetivo de verificar fatores relacionados ao abandono precoce do tratamento de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa em meio aberto, encaminhados para tratamento por uso de drogas. Trazendo o tema sexualidade na adolescência, um estudo com escolares da cidade de Manaus/AM, contamos com autores Nália de Paula Oliveira, Jorge Umberto Béria, Lígia Braun Schermann. As pesquisadoras Aline Alvares Bittencourt, Maria Cristina Vieweger de Mattos, Farid Rodrigues Bessil, Fernanda Barcellos Serralta, Silvia Pereira da Cruz Benetti, com o artigo Integrando método clínico e investigação empírica para a compreensão do abandono em Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 7 psicoterapia psicanalítica. Finalizando a sessão de artigos empíricos, contamos com o estudo dos autores Lígia Braun Schermann, Jorge Béria, Maria Helena Vianna Metello Jacob, Guilherme Arossi, Mariana Canellas Benchaya, Nadia Krubskaya Bisch e Sofia Rieth, uma pesquisa analítico-transversal com objetivo de avaliar a prevalência e os fatores associados ao estresse em adolescentes escolares de uma cidade do Sul do Brasil, e o estudo dos pesquisadores Aparecida Duridan, Daiane Ferreira dos Santos, Ana Lucia Gatti abordando o tema autoestima e cuidados em mulheres de 60 a 75 anos. Na sessão de artigos teóricos, contamos com a colaboração dos pesquisadores Ana Cristina Bertagnolli, Christian Haag Kristensen e Daniela Schneider Bakos, com o estudo dependência de álcool e recaída: considerações sobre a tomada de decisão; também contamos com a participação das autoras Paula Casagranda Mesquita e Sílvia Pereira da Cruz Benetti, que abordam as bases conceituais do constructo da representação parental, na perspectiva da psicanálise contemporânea, a partir da contribuição da teoria das relações objetais e da teoria do apego; por fim, as pesquisadoras Paula von Mengden Campezatto, Maria Lucia Tiellet Nunes e Milena da Rosa Silva trazem um importante estudo sobre a pesquisa em psicoterapia e psicanálise. Na categoria relato de experiência, contamos com a participação dos autores Nayara Gomes Braga, Nathália de Freitas Costa Fernandes e Tiago Humberto Rodrigues Rocha, escrevendo sobre a família no acompanhamento de sujeitos psicóticos e os encargos subjetivos oriundos do sofrimento psíquico; também contamos com o relato de experiência dos pesquisadores Magda Pozzobon, Fernanda Aparecida Szareski Pezzi e Angela Helena Marin com o título Compartilhando saberes: relato de uma intervenção com professores. Encerrando esse número, publicamos a resenha das pesquisadoras Leda Rúbia Maurina Coelho e Margareth da Silva Oliveira sobre a segunda edição do livro Avaliação dos Comportamentos Dependentes, organizado por Dennis Donovan e Alan Marlatt. Profa. Ms. Fernanda Pasquoto de Souza Editora Profa. Dra. Aline Groff Vivian Editora Associada 8 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Aletheia 43-44, p.9-23, jan./ago. 2014 O papel das crianças e dos jovens na constituição das identidades profissionais de educadores/professores/ formadores de professores Leanete Thomas Dotta Margarida Marta Rosa Ester Tártato Soares Luciana Matiz Resumo: As transformações da sociedade têm afetado, direta e indiretamente, a escola, atribuindolhe um caráter complexo e, por consequência, promotor de reconfigurações identitárias. Este artigo propõe-se a analisar o papel das crianças e jovens na re(constituição) das identidades profissionais de educadores, professores e formadores de professores. Foram utilizados dados e análises de cinco investigações realizadas pelas autoras. A noção de identidade profissional (Dubar, 1997; Lopes, 2007), o conceito de socialização (Berger & Luckmann, 1996) e o conceito de saberes profissionais (Tardif, 2002) fundamentaram o estudo. Os resultados indicam que: as crianças e jovens são o outro significativo central na (re)constituição identitária; as relações de proximidade, afeto e reconhecimento do saber são a base da (re)construção das identidades; os saberes profissionais são (re)configurados a partir das relações estabelecidas entre educadores/professores/formadores de professores e crianças/alunos/estudantes, devolvendo sentido maior ou menor, consoante o nível de ensino. Palavras-chave: Identidades Profissionais; Educadores/Professores/Formadores de Professores; Crianças e Jovens. The role of children and young people in the constitution of professional identities of educators/teachers/teacher educators Abstract: The changes in society have affected, directly and indirectly, the school, giving it a complex character, promoting identity reconfigurations. This article aims to analyze the role of children and youth in re (constitution) of educators, teachers and teacher educator’s professional identities. We used data from five studies that were conducted by the authors. The theoretical background is the notion of professional identity (Dubar, 1997; Lopes, 2007), the concept of socialization (Berger and Luckmann,1996) and the concept of professional knowledge (Tardif, 2002). The results indicate that children and youngsters are the significant other of centrality in the re (constitution) of identity; the proximity relations, affection and acknowledgement of knowledge are a central aspect of the (re)construction of identity; professional knowledge is (re)configured from the relationships established among educators/teachers/ teachers’ educators and children/ students, being more or less significant according to the level of teaching. Keywords: Professional identity; Teachers/Trainers/Teacher trainers; Children and youngsters. Introdução As crianças e jovens que, naturalmente, passam por transformações físicas, cognitivas, emocionais e sociais inerentes ao desenvolvimento humano, quando são inseridas no contexto da educação formal, assumem características diversas (Alarcão, 2001; Alarcão, 2008; Fernandes, Bertelli & Almeida, 2011) que moldam e que são moldadas pelo contexto educativo. Tais características, variadas e em constante transformação, podem ser entendidas a partir da ideia da transição ecológica, ou seja, como mudanças de papel ou ambiente que ocorrem no percurso do indivíduo e ao longo do seu ciclo vital (Marta & Lopes, 2012). Por exemplo, uma criança quando ingressa na educação pré-escolar realiza uma transição ecológica, quando passa para o nível seguinte processa outra transição e assim sucessivamente até o ensino superior – os seus papéis e mundos são diferentes, as suas responsabilidades também. Neste sentido, os papéis ou funções desempenhadas parecem ter um poder mágico de modificar a forma como o indivíduo, em contexto educacional, é tratado, como ele age, o que ele pensa, sente e como trabalha. O indivíduo constrói-se na interseção das suas características pessoais e das características do ambiente, da sua história passada, presente e de suas projeções futuras, num processo onde a interação e as relações ocupam lugar de centralidade. Este artigo, numa abordagem do tipo meta-analítica, tem o objetivo de discutir o papel das crianças/alunos/estudantes1 na constituição identitária de educadores da Educação Pré-Escolar, de professores do Ensino Básico e Secundário e de formadores de professores no Ensino Superior. Constitui-se, a partir de cinco investigações no âmbito da educação pré-escolar, o ensino básico, secundário (realizadas no contexto português) e o ensino superior (realizada no contexto brasileiro), que, nos seus resultados, evidenciam as representações que os educadores e os professores constroem sobre aqueles que estão sob a sua responsabilidade educativa/formativa e que influenciam as suas identidades profissionais. Embora, os estudos em questão não tivessem, originalmente ou especificamente, o objetivo de discutir o papel das crianças/alunos/ estudantes nas identidades dos professores, forneceram dados que possibilitaram as discussões pretendidas. A análise transversal dos dados contribuem, por um lado, para uma articulação entre as representações das crianças/alunos/estudantes dos professores nos diferentes níveis de ensino. Por outro lado, ilumina as especificidades vividas e sentidas nas respectivas paisagens educativas (Clandinin & Connelly, 2002) e que interferem na construção das identidades profissionais docentes. As investigações que estão na origem deste artigo, embora tenham as suas especificidades em termos de contextos e sujeitos, possuem aspetos centrais comuns que possibilitaram a reflexão conjunta sobre os resultados alcançados. Foram investigações de natureza qualitativa e interpretativa, “desenvolvidas em situação natural, rica em dados descritivos, que tem um plano aberto e flexível, focalizando a realidade de forma complexa e contextualizada” (Ludke & André, 1986, p.18), possibilitando perspetivas que ultrapassam a simples apreensão, uma vez que levam a pensar e a abrir novos caminhos para a ação, quer de forma individual, grupal, organizacional ou societal (Bruyne, Herman & Schoutheete, 1991). Em termos metodológicos, os estudos analisados utilizaram entrevistas que foram submetidas à análise de conteúdo (Bardin, 2002). Segundo a terminologia presente na legislação educacional: criança – que frequenta a Educação Pré-Escolar; aluno – que frequenta a Educação Básica e Ensino Secundário; estando estes dois primeiros termos indicados na Lei n.º 46/86, de 14 de outubro de 1986; e, estudante – que frequenta o Ensino Superior, conforme terminologia presente na Lei n.º 49/2005, de 30 de agosto de 2005. 1 10 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 As discussões presentes neste artigo serão fundamentadas pela noção identidades profissionais de Claude Dubar (1997) e de Amélia Lopes (2007), pelo conceito de socialização de Berger e Luckmann (1996) e pelo conceito de saberes profissionais de Tardif (2002). O artigo encontra-se organizado em duas partes. Na primeira, é explicitada a abordagem teórica que suporta as discussões e reflexões e a abordagem metodológica que fundamente a construção do artigo. Na segunda parte, são apresentados os estudos utilizados e as suas respectivas contribuições no que se refere ao tema central deste artigo. Na sequência, são sistematizadas as discussões e reflexões sobre a relação entre as representações dos educadores/professores/formadores de professores sobre as crianças/alunos/estudantes e as identidades profissionais docentes. Abordagem teórica Identidades profissionais docentes e saberes docentes A sociedade é uma realidade, simultaneamente, objetiva e subjetiva e deve ser entendida como um processo dialético em curso. O indivíduo não nasce membro da sociedade, mas sim com predisposição para a sociabilidade e para tornar-se membro da sociedade por meio de dois processos – a socialização primária e a socialização secundária (Berger & Luckmann, 1996). A socialização primária diz respeito à socialização que o indivíduo experimenta na infância e pela qual torna-se membro da sociedade. Ela promove a criação, na consciência, de uma abstração progressiva dos papéis e atitudes dos outros particulares para os papéis e atitudes em geral, denominado o “outro generalizado”. A formação na consciência do outro generalizado marca uma fase decisiva na socialização. Significa a interiorização da sociedade enquanto tal e da realidade objetiva nela estabelecida. Ao mesmo tempo, significa o estabelecimento de uma identidade coerente e contínua. Na socialização primária é construído o primeiro mundo do indivíduo e implica sequências de aprendizagem, socialmente definidas, onde a linguagem possibilita a interiorização de vários esquemas motivacionais e interpretativos com valor institucional definido. A socialização primária termina quando o conceito do outro generalizado é estabelecido na consciência do indivíduo. Assim, torna-se um membro efetivo da sociedade, possuindo, subjetivamente, uma personalidade e um mundo. Porém, essa interiorização da sociedade, da identidade, da realidade não se dá definitivamente. A socialização nunca é total e nem está acabada. A socialização secundária consiste nos processos subsequentes que introduzem um indivíduo já socializado em novos setores do mundo objetivo de sua sociedade; é a interiorização de “submundos” institucionais ou baseados em instituições, cuja extensão e caráter são determinados pela complexidade da divisão do trabalho e concomitante distribuição social do conhecimento. Portanto, a socialização secundária é “(...) a aquisição do conhecimento de funções específicas, funções direta ou indiretamente com raízes na divisão do trabalho” (Berger & Luckman, 1996, p.185). Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 11 Através da análise dos mundos construídos mentalmente pelos indivíduos, a partir da sua experiência social, é possível identificar as identidades profissionais. “Estas ‘representações ativas’ estruturam os discursos dos indivíduos nas suas práticas sociais ‘especializadas’ graças ao domínio de um vocabulário, à interiorização das ‘receitas’, à incorporação de um ‘programa’” (Dubar, 1997, p.100). Entre as dimensões das representações ativas, está a relação com a linguagem, ou seja, as categorias que o indivíduo usa para descrever uma situação vivida, como articula os constrangimentos externos e os desejos internos, as obrigações exteriores e os projetos pessoais, as solicitações do outro e as iniciativas pessoais. Assim, para Dubar (1997), a constituição identitária resulta de dois processos heterogéneos: o primeiro refere-se às atribuições de identidades pelas instituições e pelos agentes que se relacionam diretamente com o indivíduo – são as identidades virtuais. O segundo processo é a incorporação da identidade pelo próprio indivíduo fazendo uso de categorias legítimas para si mesmo e para os outros – são as identidades reais. A não coincidência entre os dois processos resulta na elaboração de estratégias identitárias que podem visar, ou a acomodação da identidade para si à identidade para os outros, ou a assimilação da identidade para o outro à identidade para si. Trata-se, respectivamente, da dupla transação – biográfica/subjetiva e relacional/objetiva. O processo identitário biográfico é definido como uma construção no tempo, pelo indivíduo, de identidades sociais e profissionais com base nas categorias oferecidas pelas sucessivas instituições – família, escola, mercado de trabalho, empresas – e consideradas, simultaneamente, como acessíveis e valorizadas; o processo identitário relacional refere-se ao reconhecimento, em tempo e espaço determinados de legitimação, das identidades associadas aos saberes, competências e imagens de si propostas e expressas pelos indivíduos nos sistemas de ação. A forma como esses dois processos se articulam e se complementam representa a projeção no espaço e no tempo identitário de uma geração, confrontada com as outras, na sua caminhada biográfica, bem como o seu desenvolvimento espacial, onde é reconhecida e socialmente legitimada. A transação biográfica diferencia-se em termos de ruptura e continuidade, e a transação relacional diferencia-se em termos de reconhecimento e não reconhecimento. A identidade social não é simplesmente transmitida de uma geração para outra, como é defendido na perspetiva durkheimiana. Ela é construída pelas diferentes gerações baseada em categorias e posições herdadas da geração precedentes e, ao mesmo tempo, por estratégias identitárias desenvolvidas nas instituições que os indivíduos atravessam e para cuja transformação contribuem. Esta construção identitária adquire importância particular no campo do trabalho, do emprego e da formação e, também, ganha forte legitimidade para o reconhecimento da identidade social e para a atribuição de estatuto social (Dubar, 1997). Dubar (1997), a partir de Berger e Luckman, entende que a incorporação de saberes especializados, chamados de saberes profissionais, são maquinismos conceituais aos quais estão subjacentes, vocabulário, receitas, um programa formalizado – um verdadeiro universo simbólico. Os saberes profissionais ocupam lugar de centralidade nas identidades profissionais, sendo a sua principal fonte de reconhecimento. Tal 12 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 reconhecimento implica a presença dos outros significativos que, por sua vez, se destacam na economia da conservação da realidade. São importantes para a progressiva confirmação de elementos cruciais da realidade chamada identidade. Para manter a confiança de que é verdadeiramente a pessoa que pensa que é, o indivíduo necessita da confirmação implícita e explícita dessa identidade por parte dos outros significativos para ele. Assim, os outros significativos, na vida do indivíduo, são os principais agentes de conservação da sua realidade subjetiva. Se os saberes profissionais são a principal fonte de reconhecimento por parte dos outros significativos, quem são os outros significativos no campo profissional da docência? Partimos do pressuposto de que o ensino se dá predominantemente pelas relações entre educadores/professores/formadores de professores e crianças/alunos/estudantes e que estes últimos possuem importância de primeira ordem como outros significativos, embora não sejam os únicos. Será no trabalho com crianças e jovens que os educadores/professores/ formadores procuram o sentido da sua atividade e o reconhecimento dos outros. Apesar da centralidade do campo de trabalho na identidade profissional, ela não pode ser limitada exclusivamente a ele. Deve contemplar, também, as referências nos contextos sociais, evidenciando os aspetos de identificação e de diferenciação. Nesse sentido, Lopes (2007, p.12) define a construção da identidade profissional como “[…] um constructo de caráter comunicacional e epistemológico informando as relações de formação aos níveis pessoal, interpessoal, organizacional e societal”, que implica a ideia de que não se vive, nem se trabalha de forma isolada. O constructo ecológico de Lopes remete-nos à definição de Tardif e Lessard (1999) sobre “identidade profissional compósita”. Nessa perspetiva educadores/professores/ formadores de professores exigiriam de si próprios um trabalho reflexivo com variadas posturas, atitudes, habilidades e conhecimentos que lhes permitisse adaptar-se aos novos cenários, procurar respostas para as necessidades emergentes e, de preferência, em equipe. A forma como os sujeitos articulam os atos de atribuições e os atos de pertença (Dubar, 1997) estão na origem da construção dos saberes especializados ou saberes profissionais. Tardif (2002) caracteriza como saberes docentes os pensamentos, ideias, juízos, discursos e argumentos que seguem certas exigências de racionalidade. Tal racionalidade é constituída quando o sujeito tem consciência em relação ao ato exercido, ou seja, manifesta-se quando o sujeito é capaz de justificar as suas ações por meio da razão, procedimentos ou discursos. Por outro lado, os saberes profissionais dos educadores/professores/formadores de professores são plurais, compósitos, heterogéneos, temporais, pois trazem à tona, no próprio exercício do trabalho, conhecimentos e manifestações do saber fazer e do saber ser bastante diversificados, provenientes de fontes variadas. A educação das crianças/jovens assenta numa “[…] construção contínua da pessoa humana dos seus saberes e aptidões […]” (Relatório Delors, 1996, p.16). O mesmo relatório apela ao cidadão autónomo, crítico e capaz de formular juízos que lhe permitam decidir e viver em qualquer lugar e em qualquer momento numa perspetiva ecológica da vida. Acentua-se, assim, a importância da ligação da criança/jovem ao mundo através do pensamento e da ação, identificam-se as competências que esta pode Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 13 e deve desenvolver, sem contudo recorrer a estereótipos uma vez que cada indivíduo é único e singular. Os saberes profissionais não se reduzem a um sistema cognitivo que, a exemplo de um computador, processa as informações a partir de programas anteriormente definidos, sem relação com o contexto da ação no qual está inserido ou com a história que o precede. Os saberes profissionais são, a um só tempo, existenciais, sociais e pragmáticos (Tardif & Raymond, 2000). Percurso metodológico Este estudo configura-se com um tipo de metanálise, a inspirada na metaetnografia (Noblit & Hare, 1983, 1988) que objetiva integrar, interpretar e analisar os resultados de um conjunto de investigações qualitativas já existentes. O processo envolve a identificação e a desconstrução de resultados obtidos em investigações anteriores, organizando-os em um novo conjunto, a fim de reinterpretar os resultados e, assim, alcançar um significado mais amplo. As unidades de análise são os resultados de cinco investigações que possuem como objetivo comum a discussão da construção das identidades profissionais no campo da educação. Foi no interior do grupo de pesquisa EPSAI & Formação (Escola Pública, Saberes, Identidades & Formação) que germinaram as reflexões sobre o papel das crianças/alunos/estudantes nas identidades profissionais docentes nos diferentes níveis de ensino, que estão na origem deste artigo. O referido grupo de investigação tem por objetivo a articulação das problemáticas e dos conhecimentos provenientes de diversas áreas de educação e formação centralizados nos interesses da escola pública e nas identidades profissionais. Os estudos selecionados para serem a fonte da metanálise foram, inicialmente, as investigações realizadas pelas autoras do artigo, no âmbito da educação pré-escolar, do 2º e 3º Ciclo do Ensino Básico (CEB)2 e ensino secundário (no contexto do ensino português) e Ensino Superior (contexto brasileiro). Para completar o quadro de análise pretendido – educação pré-escolar ao ensino superior – foi inserido um estudo sobre 1º Ciclo do Ensino Básico, realizado por um outro integrante do grupo de pesquisa, mas que não participou como autor do artigo. Apresentação e discussão dos dados As crianças e as identidades profissionais de educadores de infância A educação pré-escolar possui um espaço peculiar no contexto do sistema educativo português. Diferentemente dos outros níveis de ensino, reparte a sua oferta educativa, de forma quase equivalente, entre o setor público e o setor privado. Em 2011, Marta realizou um estudo, no âmbito da tese de doutoramento, intitulado “A construção da identidade dos educadores de infância em Portugal na primeira década do 2 O 1º CEB correponde aos quatro primeiros anos do Ensino Fundamental, o 2º CEB corresponde ao 5º e 6º ano do Ensino Fundamental, o 3º CEB equivale ao 7º, 8º e 9º ano do Ensino Fundamental, e o ensino secundário corresponde ao ensino médio – do sistema de ensino brasileiro. 14 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 novo milénio: entre o público e o privado”. O objetivo foi indagar sobre as transformações ocorridas nas identidades profissionais de educadores de infância do setor público e do setor privado ao longo da primeira década do séc. XXI. Essas transformações foram estudadas a partir da abordagem teórica da egoecologia de Mariza Zavalloni (1984). O uso do referencial justificou-se pela possibilidade de interseção entre a biografia pessoal e a história social e, assim, ressituar os profissionais entrevistados na ecologia social. No estudo colaboraram 59 educadores de infância de agrupamentos de escolas e de instituições privadas. Foram utilizadas entrevistas elaboradas com base no Inventário de Identidade Social (Zavalloni, 1984). As narrativas dos educadores de infância do setor público e do setor privado revelaram a criança como o epicentro na (re)configuração das identidades profissionais, evidenciando a representação da mesma no seu percurso pessoal e profissional. A imagem transmitida pelos entrevistados foi de seriedade pessoal e profissional. Demostraram ter uma ação refletida e avaliada (sozinho e/ou em conjunto com a equipe), sempre na perspetiva de novas estratégias, de novas atitudes, para proporcionar à criança uma educação de infância com uma visão caleidoscópica do mundo, onde pode voar dando “[…] asas aos pensamentos” (AC23, Ref2) (Marta, 2011, p.305). A autora inferiu, ainda, que as relações com as crianças, com colegas, pais e comunidades educativas e locais ocupam um lugar nuclear no percurso profissional. Identificou uma procura do saber agir e de saber gerir as emoções possibilitando uma entrega total às crianças – retratando um saber conviver com a vida pessoal e com a vida profissional. As identidades profissionais dos educadores de infância pareceram ser construídas em lugares de vida recheada de diferentes subjetividades. E é nestes mundos – setor público e setor privado –, que os educadores edificam e (re)configuram as suas identidades profissionais sob e através do olhar dos outros e da própria sociedade. É possível verificar, a partir dos resultados desse estudo, que os saberes profissionais dos educadores se constituem nuclearmente com e para as crianças que estão sob sua responsabilidade educativa. Assumem também importância como outros significativos os colegas, pais e comunidade na sustentação da realidade profissional dos educadores. Alunos e a construção das identidades profissionais de professoras do 1º. Ciclo da Educação Básica O artigo publicado por Fátima Pereira (2007) refere-se a uma investigação sobre o discurso de professoras do 1.º CEB acerca das crianças e as relações educativas que se estabelecem em contexto escolar. Trata-se de um estudo comparativo dos discursos de dois grupos de professores, recolhidos em um dado intervalo de anos – 1990 e 2003, por meio de entrevistas elaboradas com base no Inventário de Identidade Social (Zavalloni) e entrevistas do tipo biográficas. Os dados obtidos resultaram na configuração de ideaistipo sobre a relação aluno-criança e a relação educativa-currículo. São esses ideaistipo (Bruyner, Herman & Schoutheete, 1991) e as respectivas análises da autora que forneceram elementos relevantes para a discussão sobre a influência do papel dos alunos na constituição identitária dos professores do 1º Ciclo do Ensino Básico. Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 15 As conceções sobre a infância presentes na análise das entrevistas realizadas em 1990, revelaram uma imagem de infância ambígua e contraditória, que não partilhava a mesma categoria social quando se encontrava fora e dentro do contexto escolar: poucas eram as referências com relação aos processos de ensino-aprendizagem e as conceções sobre a relação educativa inseriam-se no âmbito dos afetos e das emoções, refletindo dualidade entre o ser criança e ser aluno; uma admissão da idiossincrasia e diversidade dos alunos, em oposição às intenções de fazer convergir as suas atitudes com os modos de trabalho escolar padronizados; dificuldade de motivar os alunos diante da ideia de que a escola é uma dimensão da vida das crianças que lhes é exterior e estranha. Se por um lado as professoras possuíam uma visão rousseauniana de criança, por outro, possuíam uma visão de aluno como um ser dotado de vontade própria e com capacidade de trabalho incompatível com o que era referido na condição de criança. Apesar da presença da intenção de instruir, destacou-se nos discursos das professoras as dificuldades e frustrações sentidas na sua realização, quer pelas características dos alunos, quer pelas próprias incapacidades nos domínios do saber e das competências profissionais. A partir dos dados recolhidos em 2003, a autora identificou que o conceito de aluno sobressaía no discurso das professoras, identificou ainda a coexistência de conceções instituídas sobre o aluno e conceções inovadoras e configuradoras de uma grande diversidade de modos de ser aluno. Tratava-se de um aluno que não permitia a indiferença das professoras, uma vez que interferia nas suas vidas forçando a reflexão sobre o que faziam, a mudar os seus modos de ser professoras e a procurar recursos e desenvolver estratégias no sentido de os cativar para a aprendizagem. Os alunos exerciam formas de poder que as professoras contrariavam com dificuldade. Segundo a autora, a ideia de aluno como criança e a relação educativa que se consolida pelo afeto pode estar na origem das ambiguidades reveladas diante da necessidade de tomar decisões imediatas no contexto de sala de aula. No âmbito da comparação dos resultados dos dois momentos envolvidos, a autora identificou que, apesar da existência de uma mudança nos discursos, algumas regularidades se mantinham, nomeadamente o conflito entre o controle e a expressão dos afetos, as dificuldades na gestão da relação educativa e em individualizar o ensino. A análise da autora permite identificar a ambiguidade de sentidos atribuídos pelas professoras a criança/aluno, nomeadamente na interface entre o afeto e o ensinar (e suas implicações), como central na constituição dos saberes profissionais e por conseguinte das identidades profissionais das professoras. Alunos e a construção das identidades profissionais de professoras do 2º. Ciclo da Educação Básica Soares (2009) realiza uma investigação sobre a construção de identidades e experiências profissionais, no âmbito do ensino regular e do Programa Integrado de Educação e Formação (PIEF). A questão central situou-se, simultaneamente, em compreender como as experiências profissionais dos professores podem interferir na construção da identidade profissional docente, assim como conhecer de que forma políticas de inclusão, mais especificamente o PIEF, podem constituir-se como modelo a importar para o ensino regular. 16 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 O discurso dos entrevistados estava fortemente marcado por preocupações sobre a educação e exclusão social, construção de identidade profissional e a dimensão social do professor, dando conta de como os momentos vividos em contexto escolar e de sala de aula são significativos na construção de um novo olhar sobre a educação, salientando o impacto que a aprendizagem experiencial tem na reconfiguração da identidade profissional docente. Os dados foram recolhidos por meio de entrevistas semidiretivas, com professores do 2º ciclo do ensino básico, quatro docentes do ensino regular e quatro d PIEF, e incidiram, essencialmente, sobre a reflexão dos professores a propósito do seu percurso pessoal e profissional, práticas da sala de aula, transformações significativas relativamente à forma de entender a escola, a educação e o aluno. Sendo que, para efeitos das discussões deste artigo, são utilizadas as análises relativas às reflexões dos professores sobre os alunos. Os resultados foram bastante consonantes, em ambos os grupos de professores, relativamente à identificação de problemas relacionados com a educação atual e nas questões que se prendem com o ser professor. A dimensão relacional e social que sobressai no estudo revela que o aluno não é um mero aprendente, mas a razão de ser do trabalho do professor, que ultrapassa a transmissão de conhecimento tendo forte impacto na vida pessoal e profissional do docente. É marcante o discurso sobre a necessidade do professor atender e investir, primeiramente, na relação com o aluno, sendo esta construída numa lógica comunicacional. Os dados indicaram ainda que o aluno é o principal impulsionador de mudança na prática docente. Outros registros deram conta de que os professores precisavam recorrer, no momento da aula, a metodologias e estratégias que não estavam previstas no plano de aula, como resposta de mobilização ou participação do aluno. Foi o caso das turmas PIEF onde, muitas vezes, não era o conteúdo a parte mais importante da aula, mas a pertinência da matéria para a vida pessoal do jovem. Foi verificado um forte investimento na dimensão social e afetiva dos professores, embora esse registro tenha sido mais intenso nos professores do PIEF. Por fim, este estudo mostrou que foi no contexto mais desafiante que os professores sentiram necessidade de alterar as suas práticas e de reconstruir a sua identidade pessoal e profissional como resposta aos desafios colocados. Em termos de saberes profissionais, o estudo permite destacar que o aluno impulsiona à pesquisa de um aprender permanente por parte dos professores, ou seja, as características dos alunos – pessoais, sociais e cognitivas, mobilizam os professores no sentido de superarem a ideia de saberes acabados, bem como da perceção da importância do aspeto relacional no seu trabalho docente. Alunos e a construção das identidades profissionais de professoras do 3º. Ciclo da Educação Básica e do Ensino Secundário Matiz (2013) realizou um estudo sobre a construção da identidade de professores de diferentes gerações, do 3º CEB e do Ensino Secundário em contexto de mudança. Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 17 Partindo da conceção de Nias (1996) a autora segue o pressuposto do comprometimento emocional dos professores com muitos dos aspetos do seu trabalho como uma necessidade profissional. Entende que os professores vivem a sua profissão a tempo inteiro, não estabelecem uma separação entre a dimensão profissional e a pessoal, uma vez que a sua prática assenta e orienta-se na aprendizagem dos alunos, que por sua vez, se processa através de relacionamentos que possuem uma componente emocional. Os dados foram alcançados por meio de entrevistas de cunho narrativo biográfico, com trinta e dois professores. Para a análise aqui pretendida foram destacados os aspetos que os professores realçaram como positivos e negativos no seu relacionamento com os alunos e no modo como isso afeta sua identidade profissional. Os professores envolvidos no estudo expressaram como sentimentos de satisfação pessoal e profissional o relacionamento positivo que mantêm com os alunos, em termos da transmissão de conhecimentos, do trabalho em sala de aula, da realização de projetos, em visitas de estudo, ou do simples convívio nos intervalos. Manifestaram ainda o sentimento de que podem fazer a diferença na vida dos alunos e que eles mais tarde vão reconhecer, vão recordar como foi importante a influência que o professor teve na sua formação académica e na construção da visão do mundo. Por outro lado, os professores reconhecem que os alunos também podem ser uma fonte de desilusão. Por exemplo, quando alguns alunos não reconhecem o papel do professor, demonstrando desrespeito e confrontando-o sistematicamente na sua profissionalidade, ao revelarem desinteresse pela disciplina e pela escola. Perante estas situações os professores sentem-se frustrados por não conseguirem desempenhar o seu papel de ensinar, sentindo, ainda, que os alunos esperam que o professor seja um entertainer e apenas facilite na avaliação. É possível verificar que os professores consideram os relacionamentos com os alunos um fator essencial da sua prática quotidiana. As emoções, especialmente no que diz respeito aos sentimentos de satisfação/frustração, que caracterizam esses relacionamentos influenciam fortemente a sua identidade profissional. Estudantes e identidade profissional docente de formadores de professores Concentrada no campo da formação inicial para a docência, Dotta (2011) realizou um estudo que objetivou conhecer e analisar as identidades profissionais docentes de formadores de professores, que se constroem a partir de um conjunto de intervenientes, como o tipo de instituição, o curso e as disciplinas nas quais os formadores atuam. Os formadores de professores apontam características dos estudantes que podem ser agrupadas segundo aspetos psicossociais: estudantes trabalhadores, heterogeneidade em termos de idades, com problemas familiares, oriundos de várias profissões (no caso dos mais velhos), que moram distante da universidade, estudantes muito jovens; e segundo aspetos académicos: pouco questionadores, participativos e curiosos; desinteressados; sem gosto pelo estudo, leitura e reflexão; desinteresse por algumas disciplinas; pouco comprometidos e por vezes indisciplinados; com dificuldades na leitura, escrita e interpretação; problemas de identificação com o 18 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 curso, com falta de conhecimentos prévios, imaturidade, pouco politizados, com pouca bagagem cultural. Tais características vão na contramão das expectativas dos formadores com relação aos estudantes, uma vez que eles esperam que os estudantes aprendam os conteúdos ensinados, que manifestem vontade de aprender, que tenham consciência de que não existem receitas prontas, que aprendam os conteúdos, mas que também aprendam onde procurá-los, que tenham bom desempenho como profissionais, que sejam pessoas melhores, e que saibam como funciona uma escola. Esperam ainda que seus alunos adquiram o que é fundamental da disciplina, que percebam que o curso escolhido é o que realmente querem para a vida, que sejam melhores que o formador. Entretanto, alguns formadores não deixam de apontar a presença de alunos altamente motivados, comprometidos, responsáveis e interessados. A referência aos estudantes “dominadores” das tecnologias também é recorrente. A conciliação entre as características dos estudantes apontadas e as expectativas dos formadores encontra-se nas representações dos formadores sobre do planejamento: consideração às especificidades dos estudantes e das turmas; cuidado em promover a adaptação da linguagem científica às condições de entendimento dos alunos; necessidades da turma; atenção aos conhecimentos trazidos pelos alunos. Portanto, as características dos estudantes fazem parte das dinâmicas que movem o desenvolvimento dos saberes profissionais práticos e que estão em constante mudança. A representação de criança/aluno/estudante e as identidades profissionais de educadores/professores/formadores de professores Nos contextos de trabalho dos profissionais da educação, desde a educação préescolar ao ensino superior, as representações sociais fazem-se sentir no estatuto atribuído à profissão, nas funções, na opinião da comunidade educativa e nas políticas educativas. Pode-se inferir, através das análises dos estudos em causa, que, para os professores de todos os níveis de ensino, as crianças, os alunos, os estudantes são a razão de ser do seu trabalho; é para e com eles que o professor trabalha e, por isso, os relacionamentos são tão importantes na consolidação da identidade profissional do professor. Em qualquer dos contextos educativos a dimensão relacional e social é crucial, definindo-se numa lógica comunicacional onde o sujeito é agente ativo e participativo no presente e no projeto de um futuro de cidadania. A ação profissional é sentida e vivida pelos entrevistados como catalisadora, construtora e orientadora. Por conseguinte, os desafios profissionais são ao nível das mudanças individuais da criança/aluno/estudante e ao nível das mudanças socioeconómicas, políticas e culturais que interferem nos contextos educativos. Aí reside o núcleo central da dupla transação identitária, onde o Eu pessoal do educador/professor/formador de professores e o Eu profissional são (re)configurados pelas formas de ser e de agir ao longo da vida profissional. Estas (re)configurações conduzem o educador/professor/formador de professores a uma reflexão sobre a sua experiência e ao reinterpretá-la, reavaliá-la e reconstruí-la, tomam consciência da sua ação, cujas percepções os levam a compreender melhor o seu percurso profissional e, em simultâneo, o pessoal. Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 19 Neste sentido, aparece explícita a necessidade da inovação, no contexto sala de atividades/sala de aulas, como a melhor resposta aos interesses dos discentes, apelando à participação e à aceitação de diferentes posturas. Ora, se a criança/aluno/estudante é a âncora da ação profissional, significa que tudo gravita à sua volta, ou seja ele é o outro significativo de maior relevância no percurso profissional onde a dimensão pessoal e profissional parecem ser diluídas no caminho do docente. A capacidade de organizar, de planejar, de (re)estruturar o trabalho prende-se com o acumular de conhecimentos pedagógicos e científicos, com as pretensões ou crenças que os educadores/professores/formadores de professores têm em relação ao desenvolvimento da criança/aluno/estudante – eixo nuclear da profissão –, na qual promovem um conjunto de capacidades e aptidões a fim de saberem viver em grupo, de se inserirem no mundo trabalho e na sociedade local e global. Se por um lado há aspetos comuns presentes nas identidades dos educadores/ professores/formadores de professores no que se refere, principalmente, ao outro significativo – criança/aluno/estudante e no aspeto relacional, em termos pessoais e profissionais, por outro lado há um conjunto de aspetos que indicam especificidades segundo os diferentes níveis de ensino. A ação educativa do educador de infância é específica e diferencia-se dos outros docentes pelo fato da conceção de infância ser uma etapa onde se associam as realizações afetivas, intelectuais, sociorrelacionais cujo impacto interfere no processo de humanização da criança. O fato da educação de infância ser um dos contextos de socialização primária atribui-lhe especificidades enquanto primeira etapa da educação básica. No 1.º CEB, estão presentes sentimentos de frustração decorrentes da ambiguidade de o caráter afetivo da educação e a necessidade de cativar os alunos para as aprendizagens curriculares. De forma similar nos níveis subsequentes (2.º, 3.º CEB e secundário) o sentimento de frustração e de desânimo prende-se com a “força” que o professor precisa ter para se fazer ouvir, talvez mais relacionado com a questão da autoridade no contexto sala de aula e com uma crescente preocupação para com os conteúdos científicos, em contraposição com as características dos “novos” alunos. Esses sentimentos parecem alheios à educação pré-escolar e ao ensino superior que incidem no bem-estar da criança/estudante, mas em nuances diferentes: se no primeiro esse bem-estar se relaciona com o processo de socialização e integração no grupo de pares, mais numa interseção entre a ética do cuidado e a ética educativa, no ensino superior está correlacionado com aquisição de saberes científicos para a inserção no mundo de trabalho, sem contudo desconsiderar as angústias dos professores e, também, as características de estudantes que não coincidem integralmente com as expectativas. Estes sentimentos vêm reforçar as questões dos saberes profissionais que constituem os conteúdos assimilar e acomodar no desenvolvimento dos discentes, corporizando-se nas relações entre uns e outros, revestidas no reconhecimento das respectivas profissões. Constatamos que o reconhecimento dos alunos é um dos fatores 20 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 que o professor mais valoriza e, quando isso não acontece, a sua identidade é fortemente abalada pela angústia e pela insatisfação profissional. Nestes cenários movediços as identidades profissionais do educador/professor/ formador de professores se debatem entre os seus valores, a sua ética profissional, as suas expectativas e as expectativas dos outros e da própria sociedade. Considerações finais Neste artigo procurou-se conhecer a representação da criança e dos jovens na construção das identidades profissionais através de cinco estudos empíricos. Não foi intenção fazer um estudo comparativo entre os diferentes níveis de ensino, mas abranger as diversas perspetivas docentes para se compreender a edificação das identidades e obter uma imagem real e alargada dos profissionais acerca da representação da criança e dos jovens. Ficaram visíveis os indicadores dessa representação: a relação de proximidade e o reconhecimento. Indicadores que não dependem só da representação da criança e dos jovens, mas, também, das características dos contextos de trabalho, das políticas públicas e comunidade social. A relação de proximidade entre discente e docente acompanha todo o percurso educativo e profissional, ganhando maior ou menor visibilidade no modo como é intersetada com a construção do saber ser e do saber estar e do saber agir. A relação afetiva, com uma forte incidência na educação pré-escolar e no 1.º CEB, vai diluindo fronteiras à medida que vão avançando no percurso académico, mas, sem nunca deixar de existir. O outro indicador prende-se com o reconhecimento da ação educativa/ formativa, sendo atribuída como uma mais-valia nas configurações identitárias. O reconhecimento do outro é gradativo e os intervenientes vão mudando ao longo da construção dos saberes. O estudo permitiu constatar que os educadores/professores/formadores de professores precisam dos outros significativos como um espelho do seu desenvolvimento pessoal e profissional onde o Eu e o Nós (re)edificam as identidades num ambiente institucional, através da ação e da relação. Referências Alarcão, I. (2001). Para uma concetualização dos fenômenos de insucesso/sucesso escolares no ensino superior. In J. TAVARES & R. A. Santiago (Org). Ensino superior: (In)sucesso académico. Porto: Porto Editora. p.13-23. Bardin, L. 2002. Análise de Conteúdo. Lisboa, Portugal: Edições 70. Berger, P., L. & Luckmann, T. (1996). A construção social da realidade. 26.ed. Petrópolis: Vozes. Bruyne, P., Herman, J. & Schoutheete, M. (1991). 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CIIE – Centro de Investigação e Intervenção Educativas Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação Universidade do Porto. Rosa Ester Tártato Soares: Professora, Mestre em Ciências da Educação Escola Básica de Rio Tinto nº 2. Luciana Matiz: Investigadora de Pós-doutorado Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação Universidade do Porto. Endereço para contato: [email protected] Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 23 Aletheia 43-44, p.24-36, jan./ago. 2014 Motivos da busca de atendimento psicológico em uma clínica escola da Região Metropolitana de Porto Alegre/RS – Pesquisa documental Fernanda Pasquoto de Souza Débora de Freitas Gonçalves Santos Aline Groff Vivian Resumo: O presente estudo busca a identificação dos principais motivos de busca dos pacientes que procuram atendimento psicológico em uma Clínica Escola da Região Metropolitana de Porto Alegre/RS. Utilizou-se uma metodologia levantamento retrospectivo documental, de consulta às fichas de triagens realizadas na Clínica Escola no o período de janeiro de 2008 até dezembro de 2012. A amostra do presente estudo foi composta pela análise de 229 prontuários de pacientes adultos que passaram pelo serviço-escola, incluindo os atendimentos não finalizados até o momento da realização da pesquisa. Constatou-se que a maior parte dos atendimentos realizados na clínica-escola foi do sexo feminino (79,9%), com uma faixa etária que variou entre 30 e 39 anos (26,3%) com Ensino Médio Completo (37,6%). Entre os principais motivos de busca por atendimento psicológico constamos que as queixas referentes aos Transtornos de Humor prevalecem com 47,7%, seguida por 26,8% possuíam transtornos relativos à ansiedade e 15,5% buscaram atendimento por queixas relacionadas a problemas psicossociais e ambientais. Palavras-chave: Motivos de busca; Clínica-escola; Atendimento Psicológico. Reasons of Search for Psychological Care in a School Clinic in Porto Alegre’s Metropolitan Area – Documentary Research Abstract: This study aims to identify the main reasons why patients search for psychological care in a School Clinic of Porto Alegre/RS. We used a retrospective documentary research methodology, by examining patients’ triages performed in the School Clinic from January/2008 to December/2012. The sample of this study is composed by the analysis of medical records from 229 adult patients who went through the service, including the cases which were not concluded up to the moment of this research making. It was verified that the most of the people assisted in the School Clinic are females (79.9%), with ages ranging from 30 to 39 years old (26.3%), and who have accomplished High School education (37.6%). Among the main reasons of search for psychological care, it was found that complaints related to Mood Disorders prevail with 47.7%, followed by 26.8% of people with disorders related to anxiety, and 15.5% of patients looked for psychological care due to complaints associated with psychosocial and environmental issues. Keywords: Reasons of search; School clinic; Psychological Care. Introdução As clínicas escolas (CEs) foram instituídas após 27 de agosto de 1962, baseadas na Lei 4.119 que dispõe sobre os cursos de formação em Psicologia e, que regulamenta a profissão de Psicólogo (Brasil, 1962). Neste momento definiu-se que os cursos de Psicologia deveriam organizar serviços de atendimento para que os alunos pudessem praticar os ensinamentos adquiridos em sala de aula sob a supervisão de um docente. As CEs foram instituídas com o objetivo de atender à necessidade de formação nos cursos de Psicologia, possibilitando a aplicação na prática das técnicas psicológicas aprendidas durante a graduação. Segundo Peres, Santos & Coelho, (2003), as clínicas possuem um papel importante para a formação de profissionais adequadamente habilitados, capazes de atuar, com seus conhecimentos e práticas, diante das demandas atuais da sociedade. Segundo Mazer e Melo-Silva (2010), o estágio, seja em que âmbito aconteça, possui papel fundamental para o estudante de psicologia no que se refere à formação da identidade profissional. Neste ambiente o aluno dispõe de contato direto com a área de atuação, recebendo orientação para suas atividades. “É por meio dos estágios na graduação e da supervisão que recebe dos professores que o estudante aprende realmente a ser psicólogo” (Mazer & Melo-Silva, 2010). As CEs cumprem, além do papel de complementação acadêmica, com a atuação supervisionada na prática clínica pelos estudantes em final de formação (Campezatto & Nunes, 2007), mas também um papel social, prestando atendimento e serviços de Psicologia à população em geral. Além disso, os atendimentos de Psicologia nas CEs oferecem ajuda a uma parcela da população que necessitada de auxílio, os pacientes são atendidos por alunos em formação gratuitamente ou a um valor simbólico (Honda & Yoshida, 2012; Santeiro 2008). Melo-Silva, Santos & Simon, (2005) referem que o termo clínica-escola veio a ser substituído por Serviço – Escola a partir de 2004, quando ocorreu o 12º Encontro de Clínicas-Escola do Estado de São Paulo, este nome passou a ser utilizado com o propósito de abranger maior número de intervenções psicológicas. Segundo as considerações de Herzberg e Chammas (2009), com esta mudança amplia-se também o entendimento de que as intervenções nestes ambientes ultrapassam a atuação clínica, sendo possível a viabilidade da estruturação de intervenções de acordo com a realidade e necessidades observadas pelo local. O Serviço Escola (SE) referente a esta pesquisa oferece atendimento há 20 anos à comunidade da região metropolitana de Porto Alegre /RS, neste local são oferecidos serviços de fisioterapia e fonoaudiologia, além de atividades de extensão, pesquisa e práticas disciplinares. Os atendimentos realizados SE compreendem duas abordagens teóricas, a cognitivo-comportamental e a psicanalítica, os atendimentos são realizados por estudantes de psicologia através de estágios curriculares supervisionados em Psicologia. No SE os estudantes realizam supervisão da prática clínica, seminários teóricoclínicos, entrevistas iniciais (triagens) de pacientes, buscando o acolhimento inicial, a identificação do motivo da consulta, levantamento da hipótese diagnóstica e a indicação de encaminhamento ou atendimento no local. No SE é oferecido além de psicoterapia individual, o psicodiagnóstico e a consultoria psiquiátrica, realizada por um psiquiatra do local, para os pacientes indicados através do atendimento psicoterápico individual. Deste modo, é possível perceber a relevância da realização de pesquisas para o conhecimento e desenvolvimento de novos parâmetros de serviços oferecidos pelos SEs (Serviços-Escolas). Estudos que possam caracterizar o funcionamento das SEs, identificar o levantamento de queixas mostram-se indispensáveis para aperfeiçoar o planejamento de medidas mais efetivas e da eficiência dos serviços oferecidos, fundamentando práticas que Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 25 atendam as necessidades da população, delineando ações mais produtivas, possibilitando a ampliação dos atendimentos prestados, procurando e adequando as necessidades percebidas, visando à manutenção e a qualidade do atendimento (Boaz & Nunes, 2010; Herzberg & Chammas, 2009). O presente estudo busca identificar os principais motivos de busca de atendimento psicológico em uma Clínica Escola de Psicologia da região metropolitana de Porto Alegre/ RS, abrangendo a faixa etária adulta (acima de 19 anos), visando à identificação do perfil dos pacientes atendidos no período de 2008 a 2012. Cabe salientar que esta pesquisa faz parte de um estudo mais abrangente intitulado Perfil Sociodemográfico de pacientes atendidos em uma Clínica Escola de Psicologia de 2008 a 2012 que tem como objetivo mapear o perfil dos usuários do serviço de Psicologia neste período. Método O método utilizado no estudo trata-se de um levantamento retrospectivo e quantitativo, realizado através de pesquisa documental que, segundo Oliveira (2007), é aquela que recorre a materiais que ainda não receberam tratamento analítico, chamadas fontes primárias. A amostra foi composta pela análise de prontuários de pacientes que foram atendidos em um Serviço-Escola de Psicologia da região Metropolitana de Porto Alegre, compreendendo o período de janeiro de 2008 até dezembro de 2012. A coleta de dados foi realizada mediante autorização da Coordenação do Serviço-Escola. Os prontuários são fichas que possuem os dados de frequência do atendimento e motivo da procura por tratamento psicológico. Neste estudo, foram utilizados 229 prontuários de pacientes que passaram pelo serviço-escola. Foram utilizados os seguintes dados: sexo, idade, escolaridade, ocupação profissional, fonte de encaminhamento, tempo de tratamento, tipos de términos dos atendimentos, número de sessões realizadas e motivos de término. Para a classificação das queixas, foram utilizados os critérios diagnósticos do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM –IV- TR. Após coleta dos dados, foi constituído um banco de dados contemplando as variáveis da pesquisa mencionadas anteriormente. Essa análise constituiu em descrever as características gerais da amostra com relação às variáveis sociodemográficas e clínicas, e a partir da sua interpretação foi possível identificar o perfil dos usuários atendidos pelo Serviço-Escola de Psicologia em questão. Na análise estatística, as variáveis quantitativas foram descritas por média e desvio padrão ou mediana e amplitude interquartílica. As variáveis qualitativas foram descritas por frequências absolutas e relativas. Para avaliar a associação entre as variáveis categóricas, o teste qui-quadrado de Pearson foi utilizado. Em caso de significância estatística, o teste dos resíduos ajustados foi aplicado. O nível de significância adotado foi de 5% (p≤0,05) e as análises foram realizadas no programa estatístico Statiscal Package for the Social Sciences- SPSS, versão 17 para Windows. É importante informar que todas as pessoas que buscam atendimento no Serviço Escola são informadas da possibilidade de que seus dados sejam utilizados em atividades de pesquisa, deixando autorizado o acesso a essas informações para este fim, mantendo-se sigilo mediante o compromisso da não identificação dos pacientes. 26 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Resultados A amostra do presente estudo foi composta pela análise de 229 prontuários de pacientes adultos, com idade acima de 19 anos. O período dos documentos analisados compreende os anos de 2008 até 2012, incluindo os atendimentos não finalizados até o momento da realização da pesquisa. Tabela 1 – Caracterização da Amostra – Sexo e Idade, Nível de Escolaridade, Ocupação dos Pacientes Atendidos. Variáveis n=229 n (%) Idade (anos) – média ± DP 19-29 30-39 40-49 50-59 ≥ 60 41,7 ± 14,0 49 (21,5) 60 (26,3) 53 (23,2) 39 (17,1) 27 (11,8) Sexo – n (%) Masculino Feminino 46 (20,1) 183 (79,9) Escolaridade – n (%)(n=186) Ensino fundamental incompleto Ensino fundamental completo Ensino médio incompleto Ensino médio completo Ensino superior incompleto Ensino superior completo 46 (24,7) 11 (5,9) 26 (14,0) 70 (37,6) 22 (11,8) 11 (5,9) Profissão – n(%) (n=172) Com ocupação Sem ocupação 109 (63,4) 63 (36,6) Diante da análise de 229 prontuários de atendimentos, constata-se que a maior parte dos atendimentos realizados no serviço-escola em questão é do sexo feminino, com 79,9% em relação aos pacientes do sexo masculino com 20,1%. Diante dos prontuários analisados, em uma faixa etária que compreendem idades entre 19 e 79 anos, pode-se constatar que a maior parte dos pacientes atendidos tinham idades entre 30 e 39 anos de idade (26,3%), seguidos dos que possuem idades entre 40 e 49 anos (23,2%),19 e 29 anos (21,5%) e, por fim,11,8% dos pacientes atendidos tinham idade igual ou superior a 60 anos. Conforme a Tabela 1 pode-se observar que à escolaridade dos pacientes atendidos no SE, 37,6% possuem Ensino Médio Completo e 24,7% possuem Ensino Fundamental Incompleto, sendo que os dados de Ensino Fundamental Completo e de Ensino Superior Completo obtiveram a mesma porcentagem, 5,9% dos atendidos. Quanto aos aspectos referentes à ocupação dos pacientes atendidos no SE foi possível observar que 63,4% não possuem nenhuma ocupação ou trabalho. Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 27 Figura 1 – Motivos de busca de atendimento dos pacientes atendidos. A Figura 1 expressa a distribuição dos pacientes por motivos de busca de atendimento, constatou-se que as principais queixas apresentadas como motivo de busca para atendimento no SE, foram às queixas referentes aos Transtornos de Humor com 47,7%, seguida por 26,8% que procuraram o atendimento por apresentarem transtornos relativos à ansiedade e, 15,5% buscaram atendimento por apresentarem queixas relacionadas a problemas psicossociais e ambientais. Podemos observar que entre as outras queixas apresentadas na Figura 1 estão o luto com 3,6%, condições médicas gerais e disfunções sexuais apresentaram igualmente o índice de 2,3% dos casos, seguidos pelas referentes aos transtornos alimentares com 1,4% e, 0,5% dos casos por abuso de substância. Figura 2 – Distribuição dos pacientes por fonte de encaminhamento. 28 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Conforme a Figura 2 a busca pelo atendimento psicológico no SE aconteceu em 58,2% dos casos de maneira espontânea, sendo que dos pacientes que buscaram a clínica através de outros encaminhamentos, como aqueles realizados por médicos clínicos gerais e demais profissionais da área da saúde, como fisioterapeutas e fonoaudiólogos chegam a 23,6% dos casos. Dos pacientes atendidos no SE 17,8% buscaram atendimento após serem encaminhados por outros profissionais de saúde mental, como médicos psiquiatras, neurologistas e psicólogos e, somente 0,4% foram encaminhados por instituição escolar. Figura 3 – Motivo de término do atendimento psicológico. A Figura 3 mostra os dados referentes ao tipo de encerramento dos pacientes atendidos no SE. Constatou-se que 56,3% dos atendimentos finalizados ocorreram por motivo de desistência do paciente quanto apenas 23,4% tiveram alta e os que receberam encaminhamentos a outros locais ou profissionais chegam a 18% dos casos. Na presente pesquisa foram incluídos os pacientes que iniciaram atendimento até o mês de dezembro de 2012, destes atualmente 2,3% permanecem em atendimento. Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 29 Figura 4 – Associação entre a passagem para outro estagiário e o encerramento (p<0,001). De acordo com a Tabela 2 foi possível constatar associação entre a passagem para outro estagiário e o encerramento do atendimento (p<0,001). Dos 229 prontuários analisados, 218 continham informações sobre a passagem para outro profissional/estudantes durante o atendimento psicoterápico realizado no SE. Dos atendimentos realizados 14,7% dos pacientes atendidos passou por este processo de passagem para outro terapeuta. Tabela 2 – Distribuição dos pacientes atendidos no SE quanto aos serviços oferecidos. Variáveis Amostra total Abordagem – n(%) Psicanálise Psicodiagnóstico TCC Passagem para outro estagiário – n(%) Sim Não Nº de sessões – mediana (P25 – P75) <4 4 – 12 13 – 24 > 24 Consultoria – n(%) Sim Não 118 (55,4) 1 (0,5) 94 (44,1) 218 183 32 (14,7) 186 (85,3) 11 (3 – 22) 46 (25,1) 56 (30,6) 43 (23,5) 38 (20,8) 187 *p<0,05 30 n (%) 213 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 35 (18,7) 152 (81,3) Pode-se constatar a partir dos dados apresentados na Tabela 2 quanto aos serviços oferecidos no SE pesquisado que 55,4% dos pacientes realizaram atendimento psicológico na abordagem psicanalítica, 44,1% foram atendidos na abordagem cognitivo-comportamental, e apenas 0,5%, um paciente, realizou apenas avaliação psicodiagnóstica. Considerando a consultoria psiquiátrica oferecida pelo local obtivemos 187 prontuários para análise, neste item constamos que 81,3 % dos casos não participaram da consultoria. Dados referentes à Tabela 6 mostram informações quanto ao número de sessões realizadas, sendo que dos 229 prontuários analisados apenas 183 continham dados sobre item, destes 30,6% dos pacientes tiveram de 4 a 12 sessões, 25,1% realizaram no máximo 4 atendimentos, 23,5% dos pacientes atendidos realizaram de 13 a 24 sessões e 20,8% compareceram a mais de 24 sessões. Discussão Foram analisados 229 prontuários de atendimentos, constatou-se que a maior parte dos atendimentos realizados no Serviço-Escola é do sexo feminino, totalizando 79,9% em comparação com o sexo masculino com 20,1%. A predominância do sexo feminino é demonstrada por autores como Maravieski e Serralta (2011) realizado em uma CE da região metropolitana de Porto Alegre/RS no período de 2003 a 2007. Naquele estudo a prevalência de atendimentos de adultos (acima de 21 anos) foi de 62,1%, e por Costa, Herek, Marutti, Piffer & Camargo, (2007) em um estudo realizado no Paraná com 65% de mulheres, enquanto Gatti e Jonas (2007), apontaram que 75,13% dos pacientes atendidos em seu SE eram mulheres. No estudo de Campezatto e Nunes (2007), dados referentes ao motivo de maior procura do sexo feminino por atendimento psicológico na literatura existente são insuficientes, o que dificulta associar a uma única causa a maior procura de mulheres adultas por psicoterapia, refere que, para este público, a psicoterapia pode estar associada ao espaço proporcionado de autoconhecimento, reflexão e esperada melhora. Conforme Romaro e Oliveira (2008) a maior procura das mulheres pelo atendimento psicológico pode estar relacionada à maior facilidade e aceitação sociocultural para a exposição de seus problemas ou expressão dos seus sentimentos, enquanto os homens sofrem maior pressão da sociedade na expressão de seus sentimentos ou problemas, que podem ser vistos como uma forma de fraqueza. As principais queixas apresentadas como motivo de busca para atendimento no SE estudado foram as referentes aos transtornos de humor com 47,7%, seguida por 26,8% que procuraram a clínica por apresentarem transtornos relativos à ansiedade e, 15,5% buscaram atendimento por apresentarem queixas relacionadas a problemas psicossociais e ambientais. Podemos observar que entre as outras queixas apresentadas estão o luto com 3,6%, condições médicas gerais e disfunções sexuais apresentaram igualmente o índice de 2,3% dos casos, seguidos pelas referentes aos transtornos alimentares com 1,4% e, 0,5% dos casos por abuso de substância. De acordo com a pesquisa realizada por Maravieski e Serralta (2011), os principais motivos de busca foram os sintomas depressivos (26%) e de ansiedade (13,7%). Em Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 31 uma pesquisa realizada por Bortolini, Pureza, Andretta & Oliveira, (2011) também em um SE, os dados encontrados corroboram com os achados desta pesquisa, no estudo foi identificado como queixa principal os transtornos de humor em 38% dos casos, seguidos por 27,20% das queixas que culminaram em atendimento estavam relacionadas aos transtornos de ansiedade. Podemos identificar queixas semelhantes aos identificados na pesquisa de Campezzatto e Nunes (2007) que sinalizam como queixas principais encontradas em um SE, um total de 27,88% dos sujeitos pesquisados apresentavam sintomas relacionados aos transtornos de humor, com quadros de depressão, agressividade e de ansiedade. Em outro estudo realizado em um SE na cidade de Guaíba/RS, realizado por Villwock, Coelho, Predebon, Mansur, Hoppe, Fronckowiak, & Devit, (2007) as queixas mais expressivas apresentadas pelos pacientes adultos corroboram os dados deste estudo. As autoras contataram que o principal motivo de busca por atendimento naquele SE foi a depressão (15,2%), seguida pela ansiedade (13,6%) dos casos. Conforme a Figura 2 a busca pelo atendimento psicológico no SE aconteceu em 58,2% dos casos de maneira espontânea, sendo que 23,6% dos pacientes buscaram a clínica através de outros encaminhamentos, como aqueles realizados por médicos clínicos gerais e demais profissionais da área da saúde, como fisioterapeutas e fonoaudiólogos. Dos pacientes atendidos 17,8% buscaram atendimento após serem encaminhados por outros profissionais de saúde mental, como médicos psiquiatras, neurologistas e psicólogos e, somente 0,4% foram encaminhados pela escola. Estes dados estão de acordo com o estudo de Maravieski e Serralta (2011), que constata 50,8 % foram por procura espontânea. Outra pesquisa realizada por Lahm e Boeckel (2008), em SE no município de Taquara/RS com 22 indivíduos, informa que 60% das pessoas que buscaram atendimento na clínica o fizeram espontaneamente. A Figura 3 mostram dados referentes aos tipos de encerramento dos pacientes atendidos na SE. Constatou-se que 56,3% dos atendimentos finalizados ocorreu por motivo de desistência do paciente quanto apenas 23,4% tiveram alta, sendo que os encaminhamentos a outros locais ou profissionais chegam a 18%. Na presente pesquisa foram incluídos os pacientes que iniciaram atendimento até o mês de dezembro de 2012, destes atualmente 2,3% permanecem em atendimento. No estudo realizado por Maravieski e Serrlata (2011) encontramos um índice também bastante expressivo de desistência do tratamento psicoterápico, 42,4% dos casos haviam desistido do atendimento por escolha unilateral com ou sem aviso prévio ao terapeuta. Estudos realizados em SE que tratam sobre o abandono da psicoterapia possuem número dentro da média observada na presente pesquisa (Bortolini et al., 2011; Campezatto & Nunes, 2007; Lhullier, Nunes, Antochevis, Porto & Figueiredo, 2000). Conforme o estudo de Milagre e Dias (2012), sobre o abandono do atendimento psicológico em uma SE, não é possível identificar um único fator determinante na desistência do atendimento, foi percebido que o abandono compreende vários aspectos, que vão desde a localização da clínica, a condução do estagiário no atendimento, as condições financeiras do paciente, tempo de espera para o atendimento e a “resistência” do paciente, entre outros. Segundo as autoras o que se pode fazer a fim de evita-los 32 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 é uma constante reflexão dos meios e serviços ofertados pelo local, considerando as características e o perfil dos pacientes atendidos, possibilitando uma constante adequação dos serviços oferecidos. De acordo com os dados obtidos relativos ao número de sessões realizadas no SE estudado foi constatado que 30,6% dos pacientes foram atendidos em média de 4 a 12 sessões antes do abandono, encaminhamento ou término. É importante destacar que este dado pode indicar que estes pacientes desistiram do atendimento ou foram encaminhados a outros locais e serviços de psicologia. Conforme estudo de Enéas, Faleiros & Andrade, (2000) sobre psicoterapias breves com adultos, a duração média em um SE estudada foi de 9 a 12 sessões e, embora os autores sinalizem que não há consenso sobre a duração adequada da psicoterapia breve, o modelo adotado pelas SEs atendem a proposta do estágio, oferecendo aos estudantes condições de acompanhamento de um processo completo. Segundo os autores o tempo de duração menor pode ainda, favorecer a obtenção de índices menores de interrupção do tratamento, embora possam não influenciar que aspectos subjetivos dos pacientes os levem a desistir da psicoterapia. Conforme Figura 4 foi possível constatar associação entre a passagem para outro estagiário e o encerramento do atendimento (p<0,001), podendo assim identificá-lo como fator de proteção. No SE estudado, fonte para esta pesquisa é realizado um processo de passagem de terapeuta, nos casos em que seja necessária uma mudança, isto ocorre devido ao término do estágio do estudante de psicologia. Neste processo, até a troca definitiva, o paciente é preparado para a mudança de terapeuta, sendo realizadas algumas sessões com os dois terapeutas a fim de proporcionar melhor adaptação do paciente à passagem. No presente estudo, dos atendimentos realizados tivemos o resultado que 14,7% dos pacientes passaram por este o processo de passagem para outro terapeuta. Já as autoras Vivian, Santos e Souza, 2014, observaram que a troca de terapeuta não é um motivo de desistência do tratamento, mas sim, que a maioria (56%) que foi atendida por mais de um terapeuta continuou o tratamento e teve alta. Em outro estudo comparativo em uma SE de Psicologia com pacientes que receberam acompanhamento de passagem com dois terapeutas até a finalização da troca de profissional e, aqueles que não participaram do mesmo processo foi possível identificar que o índice de abandono da terapia foi menor no grupo em que houve o trabalho de passagem (Lhullier et al., 2000). Pode-se constatar a partir dos dados apresentados na tabela 6 quanto aos serviços oferecidos no SE pesquisado, que 55,4% dos pacientes realizaram atendimento na abordagem psicanalítica, 44,1% na abordagem da teoria cognitivo comportamental e 0,5% realizou atendimento com a finalidade de psicodiagnóstico. Observa-se que os números de pacientes atendidos entre uma abordagem e outra são próximos, podemos relacionar isto ao processo de triagem. O processo de triagem ocorre no SE no momento inicial de atendimento ao paciente, trata-se de 3 a 4 sessões de avaliação do paciente, neste processo é possível realizar a coleta de dados, a identificação o motivo de busca pelo atendimento psicológico, possibilitando o planejamento do tratamento e a identificação da abordagem mais adequada para cada caso. Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 33 Segundo estudos que tratam sobre os procedimentos de recepção dos pacientes em SE, sejam eles chamados de triagens, entrevistas iniciais ou de acolhimento é possível perceber a importância de tais procedimentos. Os primeiros contatos dos pacientes em um SE proporcionam a identificação das demandas, o conhecimento do perfil do paciente e, possibilitam identificar o tratamento mais indicado ao paciente que procura o atendimento psicológico (Campezato & Nunes, 2007) embora, segundo Bortolini et al., (2011), existam poucos estudos que tratem especificamente dos atendimentos na abordagem cognitivo comportamental. Considerações finais Considerando os estudos referentes aos públicos usuários de SEs, é possível perceber a relevância de pesquisam que possibilitem a identificação da natureza, motivos de busca e de encaminhamento para os serviços de psicologia disponíveis nestes locais, visto que estes conhecimentos vêm ao encontro tanto do aprimoramento das práticas clínicas dispendidas à população, quanto para a criação de novos serviços ou modalidades de atendimento (Peres et al., 2003). O presente estudo identificou os principais motivos de busca de atendimento em um SE de Psicologia trouxe resultados relevantes. Conhecer o perfil da clientela e suas respectivas demandas de atendimento psicológico em um Serviço Escola é um procedimento que pode contribuir de forma significativa, tanto para as discussões e reflexões sobre as práticas preventivas em psicologia e saúde, quanto para a verificação das condições de oferta dos serviços prestados às diferenciadas solicitações da comunidade. Durante a realização da pesquisa observou-se alguns fatores que foram limitadores neste estudo. Na coleta de dados, percebeu-se que algumas informações dos prontuários analisados estavam incompletas, o que impossibilitou as sua utilização. Outro fator importante foi à identificação das queixas, muitos prontuários continham mais de uma queixa descrita como motivo de busca por atendimento, optando-se por padronizar as queixas de acordo com DSM – IV-TR. Atualmente o local estudado passa por processo de informatização e padronização dos seus dados, os prontuários dos pacientes constituirão um banco de dados do serviço escola, possibilitando sanar a limitação encontrada durante a coleta de dados da pesquisa. Este processo vem contribuir e possibilitar um acesso mais fácil às informações dos pacientes do local, com a padronização dos prontuários em um sistema informatizado os dados servirão como fonte de informação, possibilitando a identificação dos mesmos de forma mais rápida e efetiva. Diante da pesquisa realizada, percebe-se a relevância de estudos que visem à identificação do perfil dos pacientes de CE e seus motivos de busca por atendimento psicológico, para que se possa auxiliar no planejamento de modelos de atendimento à população que procura esse tipo de serviço, visando ampliar e desenvolver mais ações neste contexto, que atendam tanto à demanda da clientela quanto enriqueçam a formação do alunoestagiário nas atuações clínicas. 34 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Referências APA (American Psychiatric Association). (2002). DSM-IV-TR: Manual estatístico de transtornos mentais. Porto Alegre, RS: Artmed. Brasil. (1962). Lei nº 4.119 de 27 de agosto de 1962. Disponível em: <http://site.cfp.org. br/legislacao/leis-e-normas>. Acessado em: <04 de maio de 2013>. Boaz, C. & Nunes, M. L. T. (2010). Revisão da literatura brasileira sobre a problemática do desenvolvimento de crianças assistidas por clínicas-escola, Aletheia, 33, 151-165. Bortolini, M., Pureza, J. 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Professora Titular da Universidade Luterana do Brasil, (ULBRA Canoas). Débora de Freitas Gonçalves Santos: Acadêmica do Curso de Psicologia. Universidade Luterana do Brasil, Canoas, RS. Aline Groff Vivian: Psicóloga, Mestre e Doutora em Psicologia (UFRGS). Professora Titular da Universidade Luterana do Brasil, (ULBRA – Canoas). Endereço para contato: [email protected] 36 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Aletheia 43-44, p.37-49, jan./ago. 2014 Família e monoparentalidade feminina sob a ótica de mulheres chefes de família1 Sabrina Daiana Cúnico Dorian Mônica Arpini Resumo: O presente estudo teve por objetivo compreender as concepções de família trazidas por mulheres chefes de família de periferia urbana, bem como identificar como as mães entendem seu lugar nesse contexto familiar. A pesquisa foi realizada com dez mulheres, mães, que compunham uma família monoparental e que residiam em periferia urbana. Os instrumentos de coleta de dados utilizados foram entrevistas semiestruturadas e grupos focais, sendo a análise feita por meio da análise de conteúdo temática. Os resultados apontaram para uma sobrecarga devido ao acúmulo de funções e certo apego ao modelo nuclear de família, gerando sentimentos de fragilidade e insatisfação entre as mães entrevistadas. Nesse sentido, destaca-se a importância da realização de intervenções que deem conta das questões que se apresentam após o fim do relacionamento amoroso, em especial quando se trata de famílias de periferia urbana, as quais representam um número expressivo da realidade brasileira. Palavras-Chave: Relações familiares; Família; Monoparentalidade. Family and female single parenthood under the view of women heads of household Abstract: This study aimed to understand the meanings attributed to family by women heads of households in urban periphery, as well as identifying how mothers understand their place in the family context. This research was composed by ten women, mothers, who constituted a monoparental family, living in urban periphery. Data were collected through of semi-structured interviews and focus groups, both analyzed according to the thematic content analysis. The results pointed to an overload, due to accumulation of functions and certain attachment to the nuclear family model, generating feelings of fragility and dissatisfaction among those interviewed. In that sense, stands out the importance of promoting interventions to deal with these issues that arise after the end of the relationship, especially when it comes from families living in the urban periphery of the cities, condition experienced by a significant number of families of the Brazilian society. Keywords: Family relations; Family; Single parenthood. Introdução A família nuclear – caracterizada pela composição pai, mãe e filhos – emergiu juntamente com a classe burguesa do século XVIII, sendo caracterizada pelo amor entre o casal, sua união em benefício do bem estar dos filhos, a valorização da maternidade e o estabelecimento de relações diferenciadas entre homens e mulheres (Reis, 2010; Roudinesco, 2003). Evidentemente, o fortalecimento deste modelo familiar impactou diretamente na vida de homens e mulheres. Neste arranjo, a mulher considerada frágil e pouco predisposta à atividade intelectual, estaria mais apta a abnegar de seus desejos, 1 Apoio e financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). ficando encarregada dos filhos e do cuidado com a casa. Isto é, coube às mulheres a responsabilidade pela vida privada da família. Em contrapartida, o homem, visto como mais forte e vigoroso, foi encarregado do provimento material, bem como da direção moral da esposa e de seus filhos, voltando-se, portanto, para a vida pública (Badinter, 1985; Reis, 2010; Roudinesco, 2003). No contexto atual, a família nuclear coexiste com uma gama de outros arranjos familiares ricos em complexidade, tais como as famílias homoparentais ou homoafetivas, famílias monoparentais, famílias recompostas ou reconstituídas, etc. Diversos são os fatores que tiveram influência na consolidação destes modelos familiares, dentre os quais: as lutas de emancipação feminina e a possibilidade de divórcio (Bossardi, Gomes, Vieira & Crepaldi, 2013; Reis, 2010; Roudinesco, 2003; Silva, 2010). Partindo da premissa de que o divórcio é um momento de transformação, entendese que geralmente ele irá culminar em uma reorganização familiar, que pode ter caráter singular (famílias monoparentais) ou conjugal (famílias recompostas) (Grzybowski, 2002; Warpechowski & Mosmann, 2012). Estas observações visam destacar que, embora a estrutura se altere com a dissolução da conjugalidade, a família, enquanto organização, se mantém (Brito, 2014; Cano, Gabarra, Moré & Crepaldi, 2009; Cúnico & Arpini, 2013). Nesse contexto de mudanças, cada vez mais mulheres estão ocupando a posição social que durante muito tempo foi de exclusividade masculina: a de chefes de suas famílias2 (Pinto et al., 2011; Macedo, 2008). De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), estima-se que o número de mulheres nesta condição aumentou de 22,2% para 37,3% entre 2000 e 2010. Destas, em torno de 17% dizem respeito às configurações familiares em que a chefia é exercida por mulheres com filhos e sem cônjuge (IBGE, 2012). Em face dessa abordagem, faz-se necessário ressaltar o conjunto de mudanças realizadas pelo IBGE, a partir do censo de 1980, que acompanharam o movimento das transformações sociais, em especial no que se refere à queda do sistema patriarcal familiar. A primeira mudança se deu quando o recenseador passou a atribuir ao informante à tarefa de designar a pessoa que, segundo ele, detém a chefia familiar. Outra mudança importante ocorreu a partir da década de 90 com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio – PNAD, a qual introduziu o conceito de “pessoa de referência” no lugar de “chefe do domicílio”. Assim, foi deixada ao informante a tarefa de nominar a pessoa (homem ou mulher) que era responsável pela casa, indo de encontro a uma lógica dominante de que a figura masculina – marido ou pai – era sempre o chefe, mesmo em circunstâncias de inatividade (Macedo, 2008). Considerando a especificidade das famílias de periferia urbana, estudos têm demonstrado que, de fato, muitas das famílias são chefiadas por mulheres que desempenham papel fundamental na educação dos filhos, na estruturação do cotidiano e na manutenção da casa (Carloto, 2005). Contudo, não é raro encontrar casos em que, mesmo que as mulheres sustentem economicamente suas famílias, frequentemente elas 2 Neste estudo, o termo “mulheres chefes de família” será utilizado como equivalente a “famílias monoparentais femininas”. 38 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 sigam designando, em algum nível, um “chefe” masculino. Ou seja, nestas famílias a identificação masculina com a autoridade moral – a que confere respeitabilidade à família – não necessariamente se altera mesmo quando se tem a mulher no papel de provedora (Sarti, 1994). Vale mencionar que as famílias monoparentais femininas não necessariamente são decorrentes de um divórcio ou de uma separação conjugal. Elas podem ser compostas por mulheres solteiras, viúvas ou ainda por mulheres que coabitam com os filhos, parentes e outros agregados (Macedo, 2008; Nixon, Greene & Hogan, 2012). Grande parte delas, no que tange às periferias urbanas, são provenientes de uma gravidez precoce ou não planejada, instabilidade familiar e/ou abandono (Pinto et al., 2011) e não, necessariamente, pela adoção de um modelo alternativo de relações familiares (Amazonas, Damasceno, Terto & Silva, 2003). Desta forma, estas famílias são, em grande parte, associadas às situações de vulnerabilidade econômica, uma vez que a mulher, além de ser a provedora do sustento familiar também assume funções domésticas e de cuidado com os filhos, o que a vincula em trabalhos mal remunerados em tempo parcial ou intermitente (Carloto, 2005; Costa & Marra, 2013). De fato, ao passo que é o trabalho e a emancipação feminina os responsáveis pela inserção das mulheres de classe média no mercado de trabalho, no que tange às mulheres de periferia urbana, o elemento motivador para esta inserção é, na maioria das vezes, a luta pela sobrevivência (Costa & Marra, 2013). Contudo, concorda-se com Macedo (2008), que ressalta a importância de que outros aspectos sejam levados em consideração ao se trabalhar com esta configuração familiar, como a etapa do ciclo de vida, a raça e a etnia, participação em redes de apoio e solidariedade, natureza do vínculo mantido – ou a inexistência dele – com o pai de seus filhos, de modo a não vitimizar as mulheres que vivem nesse panorama. A partir destas considerações, o objetivo deste estudo foi compreender as concepções de família trazidas por mulheres chefes de família de periferia urbana, bem como identificar como as mães entendem seu lugar neste contexto familiar. Método Trata-se de uma pesquisa de caráter qualitativo (Minayo, 2012), a qual tem por foco a exploração das opiniões e representações sociais sobre a temática que se pretende investigar (Gomes, 2012). Assim, o pesquisador buscará apreender a complexidade desta experiência, estabelecendo significados para o fenômeno investigado a partir da visão dos participantes (Creswell, 2010). Integraram este estudo dez mulheres, mães, que compunham uma família monoparental e que eram residentes em uma periferia urbana do interior do Rio Grande do Sul. Na escolha pelas participantes, não houve qualquer restrição em relação ao estado civil das mesmas, bastando que não residissem com o pai do(s) filho(s) ou outro companheiro. As mulheres tinham entre 22 e 49 anos, sendo sete delas solteiras, uma separada e duas divorciadas. O tempo médio de separação da última relação amorosa variou de nove meses a quatro anos e apenas uma das entrevistadas possuía outro relacionamento no momento em que a entrevista foi realizada. Todas as participantes estavam empregadas, sendo este conjunto representado pela mais diversa gama de Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 39 profissões como, por exemplo: garçonete, auxiliar de serviços gerais, confeiteira, atendente entre outras. Das dez entrevistadas, somente quatro não recebiam pensão alimentícia, sendo que destas três já haviam entrado com uma ação judicial para solicitar o pagamento e apenas uma relatou não ter interesse em receber nenhuma quantia do ex-companheiro. O estudo foi conduzido por meio da realização de entrevistas semiestruturadas e grupos focais. A utilização da entrevista se deu por entender-se que seu emprego, em uma pesquisa qualitativa, auxilia a explorar em profundidade os pontos de vista dos entrevistados (Gaskell, 2005). Os grupos focais foram empregados como instrumento complementar às entrevistas semiestruturadas. Sua utilização foi pensada em função de se esperar que no grupo, através da possibilidade de troca e da circulação das experiências vivenciadas pelas mães, elementos que por ventura possam não ter se revelado nas entrevistas viessem à tona neste momento, de forma a enriquecer a pesquisa através deste instrumento (Barbour, 2009). A partir de consulta ao cadastro do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, foram contatadas àquelas mulheres que atendiam aos critérios de inclusão. Os contatos foram feitos por telefone e as entrevistas foram realizadas respeitando a disponibilidade de cada participante e a partir de seu consentimento verbal e escrito (assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido). Todas as entrevistas aconteceram nas dependências do CRAS e foram gravadas e transcritas na íntegra para posterior análise. Esta fase da pesquisa aconteceu no período de janeiro a março de 2013. Na etapa de realização das entrevistas, as mulheres foram convidadas para participarem de um segundo momento da pesquisa, envolvendo os grupos focais. Ainda que no momento da entrevista individual todas as participantes tenham concordado em dar seguimento às suas participações na pesquisa, das dez entrevistadas, seis foram as que compareceram nos grupos nos horários previamente agendados. Em relação às ausências das quatro mães, cabe informar que as justificativas estiveram basicamente relacionadas ao trabalho, como por exemplo: indisponibilidade de tempo em função da rotina de trabalho e necessidade de substituição de colegas que faltaram ao serviço. Desta forma, realizaram-se dois encontros contendo três mães em cada um deles. Os grupos foram disparados por duas situações problemas, elaboradas a partir da realização e análise das entrevistas individuais. Uma das situações se referia ao afastamento paterno após o final da relação amorosa e a outra ao advento da gestação em um momento instável no relacionamento do casal. Do mesmo modo que as entrevistas, os grupos foram gravados e transcritos na íntegra. Esta fase da pesquisa aconteceu durante o mês de maio de 2013. Para a análise dos dados, utilizou-se como referência a Análise de Conteúdo Temática proposta por Bardin (2011). Desta forma, realizou-se a leitura individual de cada entrevista – leitura inicial flutuante – possibilitando que fossem constatados aspectos comuns entre as narrativas das entrevistadas, que foram ao final analisadas conjuntamente. Esta análise da totalidade do material das entrevistas impulsionou a criação das situações problemas já referidas. Em seguida, realizou-se a leitura individual das transcrições dos dois grupos realizados. 40 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Após a leitura exaustiva das entrevistas e dos grupos focais, individualmente e após em conjunto, o que permitiu a familiarização da pesquisadora com os dados obtidos, foi realizada a decomposição do material em temas-eixo (Bardin, 2011). Estes temas foram postos em quadros para melhor visualização, sendo as colunas preenchidas com os conteúdos retirados das entrevistas e dos grupos. Tais quadros forneceram a base das categorias estabelecidas para a análise. As categorias de análise foram construídas em função da força discursiva com que se fizeram presentes, das temáticas que se repetiram e ganharam mais ênfase nas colocações das mães. Certamente outros olhares, concepções e singularidades se fizeram presentes, mas não tiveram a força de tornarem-se categorias temáticas. Cabe mencionar que este estudo foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Maria e aprovado antes de sua execução, em conformidade com as diretrizes do Conselho Nacional de Saúde, sob o número CAAE 05021912.7.0000.5346. A fim de preservar a identidade das participantes, as falas serão apresentadas pela letra M (mãe), seguidas do número que representa a ordem da realização das entrevistas e serão diferenciadas pelas letras E (entrevista) e G (grupo) de modo a ilustrar em que momento tal narrativa veio à tona. Resultados e discussão Os resultados serão apresentados e discutidos conjuntamente a partir das categorias de análise: “A família seria pai, mãe e filhos, né?”: o apego ao modelo nuclear e “Eu me sinto extremamente carregada”: a mãe na família monoparental de periferia urbana, utilizando-se de recursos teóricos e recortes das entrevistas e dos grupos. “A família seria pai, mãe e filhos, né?”: o apego ao modelo nuclear Com a legitimação do divórcio, ocorrida no Brasil em 1977, o número de dissoluções matrimoniais cresceu aceleradamente e evidenciou diferentes modelos e padrões de família para além da família nuclear (Vieira & Souza, 2010; Wagner, 2002). No entanto, os posicionamentos assumidos pelas participantes deste estudo, mulheres que compõem famílias monoparentais, elucidaram que a família nuclear segue no imaginário social como sendo o ideal de família, conforme bem o demonstram os recortes a seguir. “Atualmente não porque falta um marido, né? [se constituiu a família que gostaria] Eu casei pensando que ia ser pra sempre, mas não foi o que aconteceu (...) eu sempre ouvi falar que o pai é a cabeça da família, né, então... se não tem o pai, não tem uma família fundamentada, né?” (M2- E). “Não, porque a família seria pai, mãe e filhos, né? [se constituiu a família que gostaria] seria os meus filhos, eu, meus filhos e um pai, né, e não foi isso que aconteceu” (M4- E). “Eu sempre digo [para o filho] ‘o que tu tá vendo, não é assim a família, família é pai, mãe, filho, tudo junto, então tu procura fazer uma família, sabe, que não tenha essa separação, essas coisas’ (...) então eu sempre procuro dar esse conselho pra ele, sabe, que na verdade a família não é a mãe e o filho, geralmente, tem que ter o... a família é o pai junto, né? (M1-G). Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 41 Depreende-se, a partir das falas das participantes, que as posições evidenciadas neste estudo parecem não estar em consonância com as mudanças sociofamiliares que se vivenciam atualmente. Com efeito, ao mesmo tempo em que a situação concreta de muitas das famílias de periferia urbana – a falta do pai biológico, o papel da mulher na manutenção da casa e a desproteção das crianças – as afasta da realização familiar aos moldes do modelo nuclear burguês, ela também o legitima como sendo o modelo ideal de família, impedindo-o que desapareça (Amazonas et al., 2003; Peres, 2001). Interessa observar ainda que, para muitas das mães entrevistadas, a separação se configurou como sendo um marco, o qual estabeleceu o “fim” da família com a qual idealizavam. “Olha... ao meu ver sim, até a separação acredito que sim [se constituiu a família que gostaria] Pra mim é... acreditava ter uma família” (M6-E) A família nuclear parece assumir para estas mães a condição de família modelo, aquela que é buscada e desejada, uma vez que representaria o “sucesso” de uma configuração familiar. Isto justificaria os posicionamentos assumidos pelas participantes que parecem estar atravessados por uma certa insatisfação com a família que hoje constituem. Dados semelhantes foram encontrados no estudo de Peres (2001), o qual, após ter acompanhado famílias de periferia urbana de Goiânia, identificou que para diversos pais e mães o sentimento era de não ter conseguido formar a família desejada ou em conformidade com as suas expectativas. Nesse ensejo, observa-se “uma espécie de sentimento nostálgico de estabilidade que acaba conduzindo as pessoas a se apoiarem em modelos de família hoje difíceis de sustentar” (Reis, 2010, p.106). Desse modo, mesmo com a diversificação cada vez mais intensa de arranjos familiares, ainda é na configuração familiar nuclear que muitas pessoas, incluídas aqui as participantes desta pesquisa, parecem se apoiar. Pode-se pensar que isto se dê em função dos papéis de pai, mãe e filhos estarem, de certa forma, mais claramente definidos na família nuclear (Pereira, 2011; Reis, 2010), o que acaba por reforçar uma certa condição de solidez deste modelo frente às demais configurações familiares. À parte das transformações vividas pela família contemporânea, nas famílias de periferia urbana, os padrões patriarcais e os valores tradicionais do homem como sendo o mediador entre a família e o mundo externo ainda persistem, reafirmando a ideia de autoridade masculina e fragilizando socialmente aquelas famílias em que não há um homem no ambiente familiar (Sarti, 1994; 2005). As falas a seguir são exemplares nesse sentido. “Um pai é um... que que eu vou te dizer, a família, né, os filhos, o pai e a mãe, é uma estrutura, né, o momento que tu não tiver um pilar, tu já sente o desequilíbrio, né, tu vai ver que aquilo ali não vai ser fácil” (M10-E). “Ai, a importância de um pai... ah, eu acho que é a estrutura né, o pai e a mãe junto é mais fácil de manter a estrutura da vida, da criança, de tudo, entendeu, até mesmo pra educar, pra tudo, né? (M8-E.) “Eu acho que é muito importante [a presença do pai no ambiente familiar]. Tinha que ter... em casa teria que ter a presença do pai” (M9-E). Nesta perspectiva, observa-se que o papel da mulher na família se dá dentro de uma estrutura em que o homem é essencial para a própria concepção do que é família 42 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 (Sarti, 2005). Assim, a presença masculina em casa parece se tornar, para estas mães, fundamental. Nesse ensejo, percebe-se que, ainda que as participantes componham um arranjo familiar contraditório à lógica patriarcal, é possível perceber resquícios dela em seus relatos (Perucchi & Beirão, 2007). Contudo, é interessante pontuar que, embora boa parte das entrevistadas tenha relatado que não compõem a família tal como gostariam, não resta dúvida de que a família, embora em configurações diversas, ainda continua sendo reivindicada como o único valor seguro ao qual ninguém quer renunciar (Roudinesco, 2003), tal como indica a fala a seguir. “Pra mim família é um alicerce de tudo, né, é o que tu tem, né? Sem família, o que que tu é? (...) é o que te estrutura pra ti seguir em frente, né? porque tu sozinho o que que tu é? Tu não é nada. Eu penso que família é isso, família é tudo, né, se tu analisar não tem o que...qual é a pessoa que vive sem ninguém? Ninguém vive sem ninguém, né, é o meu pensamento sobre família...(M10-E). Entende-se que é na família que irão acontecer as primeiras identificações, as quais servirão de base para identificações futuras. Ademais, é considerando que a família é a principal formadora da identidade e responsável pela produção dos comportamentos de seus membros (Amazonas et al., 2003), que se reforça a importância de que ela seja vivida em sua plenitude. Isto porque se considera que o mais importante é a qualidade das relações estabelecidas entre seus membros, independentemente da configuração que a família possua (Grzybowski, 2002; Wagner, 2002). “Eu me sinto extremamente carregada”: a mãe na família monoparental de periferia urbana Notadamente, no que se refere à estrutura familiar, o número de lares chefiados por mulheres tem aumentado consideravelmente (Bossardi et al., 2013; Carloto, 2005; Pinto et al., 2011; Macedo, 2008). Entre os desafios que se apresentam às mulheres chefes de família de periferia urbana está a importância atribuída ao lugar do homem/pai no contexto familiar. Mesmo quando ele não é o provedor da casa, como é o caso das participantes deste estudo, a sua “presença” permanece necessária, uma vez que ele garante o respeito e representa a autoridade moral familiar (Sarti, 1994; 2005). “Eu sempre coloquei pros meus filhos assim: respeito, porque ele pode não estar em casa, mas ele é responsabilidade... é responsável pela casa (...) acho que criei eles achando que o pai dentro de casa era a responsabilidade e o respeito” (M3-E). “Eu acho que primeiramente um pai ele põe respeito dentro de casa, né, aquela coisa... família é o homem da casa, né, é o homem da casa” (M5-E). É neste contexto que cumprir o papel de provedora da família não se configura como sendo o maior problema para a mulher de periferia urbana, acostumada a trabalhar (Pinto et al., 2011; Sarti, 2005). O problema está em sustentar e manter a dimensão do respeito e da autoridade que é tradicionalmente conferida pela presença masculina (Perucchi & Beirão, 2007; Sarti, 2005). No entanto, inegavelmente, tem-se observado que a mulher que assume a monoparentalidade familiar tende a enfrentar certa dificuldade econômica (Nixon, Greene & Hogan, 2013; Perucchi & Beirão, 2007; Wallerstein & Kelly, 1998), principalmente quando passa a ser a única provedora do lar, conforme indica o relato a seguir. Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 43 “Eu disse ‘olha gurias, por mais que tu dê o primeiro passo para a separação, é doído, é bastante complicado porque tu se vê sozinha, tu se vê na parte financeira assim, mal, tu tem que arcar com tudo, sabe, tu não saber da onde que tu vai conseguir tirar, tu não tem ninguém que cuide do teu filho pra ficar, pra tu sair pra trabalhar’ (M1-G). Consoante aos dados trazidos pela literatura (Carloto, 2005; Cúnico & Arpini, 2014), algumas mães relataram não contar com o apoio do ex-companheiro, o qual também teria se afastado física e afetivamente dos filhos após o término da relação. Nesse contexto, o que se percebe, é que o crescimento da participação da mulher no mercado de trabalho, o que possibilita que elas sustentem economicamente suas famílias, não é proporcional ao crescimento dos homens na vida doméstica e de cuidado com os filhos, ainda que existam muitos pais que desempenhem tais funções (Badinter, 1985; Freitas et al., 2009; Staudt & Wagner, 2008). “Ele é uma pessoa que não tem compromisso com nada, sabe... isso daí eu sinto muita falta porque nesse lado me sufoca demais porque é elas, tem o trabalho, tem elas, tem o... é tudo, sabe, e é eu, se elas tem que comer é eu, sabe, se elas tem que ir pro médico sou eu, nada é com ele, sabe, ele não se preocupa com nada (M10-E). Diante desta falta de suporte, a mãe se vê como a única responsável pela família e pode passar a assumir uma dupla jornada de trabalho para suprir as necessidades da casa (Nixon, Greene & Hogan, 2013; Perucchi & Beirão, 2007; Rocha-Coutinho, 2013). Além disso, a necessidade de cuidar dos filhos é, muitas vezes, um empecilho para que as mulheres obtenham trabalhos mais bem remunerados e com registro em carteira, o que as leva a optarem por serviços informais ou com horários não tão rígidos (Pinto et al., 2011). “Eu não posso largar tudo, vamos supor, eu faço faxina hoje porque eu não posso ter um emprego fixo assim né, por causa delas, porque eu tenho que tá sempre correndo com elas assim, entende? (...) também não posso largar o meu serviço, se eu não trabalhar eu não como, entende?” (M2-E). Nesta perspectiva, tornou-se visível o interesse das mães em contar com a participação do ex-companheiro, principalmente para compartilhar responsabilidades e problemas (Carloto, 2005; Nixon, Greene & Hogan, 2013). Questões relacionadas à tomadas de decisões e à sexualidade dos filhos foram alguns pontos explicitados pelas entrevistadas, tal como ilustra a fala desta mãe. “Assim... quando as filhas arrumam um namorado, né... aí quer ir pra casa do namorado, quer sair, né? Aí tu fica em dúvida... “Será que eu deixo ir? Será que não?”, né? Aí eu fico pensando, se o pai dela tivesse aqui, né... talvez a gente podia conversar e discutir, né? Daí tu tem que resolver tudo sozinha, né. Eu acho falta, né, de uma opinião, né”?(M7-E). Nesse âmbito, as mães se reconheceram desempenhando concomitantemente as funções de pai e mãe no que tange ao cuidado com os filhos. Tal situação aumentava a sensação de estarem sobrecarregadas, uma vez que também eram responsáveis pela manutenção da casa (Grzybowski & Wagner, 2010; Hernández & Pérez, 2009; Pinto et al., 2011; Rocha-Coutinho, 2013). “E... faz falta o pai, porque a gente tem que fazer dois papel ao mesmo tempo, né, tanto fora de casa quanto dentro de casa, então é difícil, é bem difícil (...) se eu tivesse 44 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 um marido, né, eu poderia ter um esteio dentro de casa, né? Eu poderia ter mais uma segurança a mais, né, dentro de casa...”(M2-E). “Eu que tenho que repreender, eu tenho que bater, eu tenho que por ele de castigo, eu tenho que ser boa, tenho que ser má, tenho que ser pai, tenho que ser mãe, sabe? (M4-E). “Eu me sinto extremamente carregada, eu tenho que alimentar, eu tenho que educar, eu tenho que fazer tudo sozinha, sabe, o meu papel e o papel deles, né? (...) Se o pai tivesse ali presente, a gente ia dividir as... né, eu não digo presente comigo, entendeu, eu digo presente com os filhos, né? A gente ia poder dividir um pouco dessa... que é uma carga, uma carga que a gente carrega bem pesada, né?” (M8-E). Os aspectos acima referidos remetem ao excesso de funções que a mulher chefe de família agrega quando não conta com o suporte do homem/pai dentro do ambiente familiar. Nesse contexto, chama-se a atenção para a fala da participante M8, quando esta diz “eu não digo presente comigo, entendeu, eu digo presente com os filhos, né?”, o que parece deixar claro que a demanda por este suporte está relacionada ao envolvimento do pai com seus filhos e não necessariamente a um anseio por restabelecer o relacionamento desfeito. De forma geral, a ausência do pai pode colaborar para uma mudança na relação entre a mãe e seus filhos, levando a mãe a ser mais rigorosa na intenção de preencher o vazio deixado pelo pai (Perucchi & Beirão, 2007). Da mesma forma, em função da sobrecarga de funções, algumas mães podem acabar por descarregar esta tensão nos filhos (Wallerstein & Kelly, 1998). A fala a seguir é elucidativa nesse sentido. “Às vezes eu to muito cansada, eu to muito... to muito solitária de vez em quando, to muito entediada, to muito... to muito irritada de vez em quando (...) me da vontade de bater nele assim por pouca coisa que ele faça, pra mim descarregar. Eu sei que isso não é certo, isso é errado, isso é horrível, mas eu acho que eu aproveito a hora que ele faz alguma coisa e que eu vou bater nele, eu acho que eu descarrego muito nele” (M4-E). Tradicionalmente, o trabalho feminino foi, e por vezes ainda o é, considerado como complementar ao salário do marido no orçamento familiar. Além disso, as mulheres ainda são vistas como as responsáveis pelos trabalhos domésticos e, em especial, pelo cuidado com os filhos. Assim, ao tomarem para si a chefia de suas famílias, as mães parecem ter que dar conta destes dois mundos – a flexibilidade em relação ao emprego e o cuidado e o gerenciamento da casa –, o que as coloca, frequentemente, no limite de um esgotamento nervoso (Castells, 1999), tal como a fala anterior ilustrou. Nesta perspectiva, compreende-se a razão pela qual as mães que integraram este estudo tenham afirmado com tanta clareza qual é a importância da presença do pai, no que para elas constituiria um modelo familiar exemplar. Assim, quando esta figura importante falta, os desdobramentos dessa ausência se fazem sentir também no estado psicológico da mãe e consequentemente na sua relação com seus filhos, o que talvez explique a utilização frequente da palavra sobrecarga – remetendo-se a um acúmulo de funções. Por outro lado, ainda que a demanda pelo compartilhamento de tarefas tenha sido amplamente mencionada pelas entrevistadas, é importante refletir até que ponto as mães realmente tornam possível este compartilhamento. Não se pode negar que muitas mulheres não conseguem se desvencilhar do modelo que lhes aprisiona, de mãe dedicada Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 45 e principal responsável pelos filhos, ainda que se descubram sobrecarregas com o cuidado das crianças e seu exercício profissional. Para muitas delas, “dividir essa função com o pai seria vivenciado como um poderoso abalo em sua identidade, algo que temem não suportar” (Reis, 2010, p.118). Neste cenário de mudanças significativas no cenário familiar, duas transformações se impõem. Uma delas envolve as mães e a necessidade de que elas abram espaço para que os pais ocupem um lugar importante dentro da família e possam desenvolver o seu papel, compartilhando de forma mais igualitária as funções da parentalidade. A outra, diz respeito aos homens/pais, no sentido de reescreverem seu lugar na relação com os filhos. Nesse sentido, pode-se apontar a guarda compartilhada como uma estratégia para conduzir a responsabilização parental, evitando que o pai “naturalmente” se ausente do exercício da parentalidade e, assim, possa atender ao desejo manifestadas pelas mães de poderem compartilhar as decisões e atribuições que dizem respeito aos seus filhos, o que lhes deixaria, sem dúvida, menos sobrecarregadas. Considerações finais O contexto atual é caracterizado pelas inúmeras transformações pelas quais a família tem passado, sendo as famílias monoparentais femininas uma realidade cada vez mais frequente. Como em qualquer configuração familiar, há inúmeros desafios que se apresentam a essas mulheres que são chefes de suas famílias. A dupla jornada de trabalho, a dificuldade em conseguirem empregos melhor remunerados e a falta de apoio do excompanheiro para partilhar responsabilidades, pode fazer com que as mães sintam-se sobrecarregadas devido ao acúmulo de funções. Além destas questões, muitas participantes relataram com certa nostalgia que não constituíram a família tal como gostariam em função de hoje não comporem uma família na qual o pai se encontra presente. Nesse sentido, pode-se pensar que o apego ao modelo nuclear, muitas vezes legitimado pelos próprios meios de comunicação, poderia estar impedindo uma vivência mais plena da família, gerando sentimentos de fragilidade e insatisfação entre seus membros, como os que foram relatados pelas mães entrevistadas. Nesse sentido, urge a realização de intervenções que deem conta das questões que se apresentam após o fim do relacionamento amoroso, em especial quando se trata de famílias de periferia urbana, as quais representam um número expressivo da realidade brasileira e são, muitas vezes, caracterizadas pela vulnerabilidade social que estão expostas. Entre as intervenções possíveis, pode-se referir o trabalho desenvolvido pelo Núcleo de Práticas Judiciárias da instituição na qual as pesquisadoras estão vinculadas, que oferece um serviço de acompanhamento aos pais que vivenciaram uma separação conjugal, com foco na parentalidade. Pode-se pensar ainda em serviços como os desenvolvidos pelos Centros de Referência e Assistência Social (CRAS), que oferecem grupos com mulheres e que podem abordar as questões que envolvem o final da relação conjugal e o exercício da parentalidade. Iniciativas como as oficinas de parentalidade destinadas aos pais em processo de separação e que auxiliam no entendimento dos papéis 46 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 e no exercício destes após a separação, também são bons exemplos de intervenções que podem ser multiplicadas, no sentido de atender as demandas dos pais no contexto da família pós-separação. Considerando as limitações do estudo, que teve como foco somente a participação de mães, sugere-se a realização de pesquisas que abarquem a realidade das famílias monoparentais incluindo a participação de outros membros. Sugere-se ainda a realização de estudos com foco nas políticas públicas direcionadas as famílias brasileiras, sobretudo aquelas que compõem o contexto socioeconômico e cultural aqui apresentado, de forma a avaliar o alcance e a adequação de tais políticas. Referências Amazonas, M. C. L. A., Damasceno, P. R., Terto, L. M. S. & Silva, R. R. (2003). Arranjos familiares de crianças das camadas populares. 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Endereço para contato: [email protected] Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 49 Aletheia 43-44, p.50-65, jan./ago. 2014 A percepção de psicodramatistas e gestalt-terapeutas sobre os fatores facilitadores de integração entre as suas abordagens Érico Douglas Vieira Luc Vandenberghe Resumo: O objetivo deste artigo é descrever condições sugestivas de integração entre o Psicodrama e a Gestalt-terapia, tema que emergiu de uma sequência de conversações com profissionais destas abordagens. Foram entrevistados 22 profissionais que possuem um percurso significativo nas abordagens, 11 de cada escola. A teoria fundamentada nos dados foi o método utilizado, buscando-se a teorização emergente a partir dos depoimentos obtidos. Como condições que sugerem a integração foram identificadas: a abertura integrativa existente na própria abordagem; a afinidade epistemológica entre a Gestalt-terapia e o Psicodrama; a percepção dos déficits na própria abordagem; a percepção que a integração pode ampliar a prática clínica. Esses resultados apontam a existência de elementos que podem viabilizar a integração entre as psicoterapias. Palavras-chave: gestalt-terapia; psicodrama; integração em psicoterapia. The perception of psychodramatists and gestalt therapists about the factors that facilitates integration between their approaches Abstract: This article describes conditions that favor integration of Psychodrama and Gestalttherapy that emerged in conversations with professionals of these approaches. 22 professionals with substantial involvement in either of these two movements were interviewed, 11 belonging to each approach. A grounded theory analysis was used to allow theory to emerge from the contents. Conditions that favor integration are the openness that exists in the therapist’s approach; epistemological similarities with the other approach; the perception of deficits in the therapist’s approach; the appreciation of integration as a way to broaden the scope of one’s clinical practice. These results suggest that elements exist that can make psychotherapy integration viable. Keywords: gestalt-therapy; psychodrama; psychotherapy integration. Introdução As possibilidades de diálogos e trocas entre abordagens psicológicas vem despertando um crescente interesse dos pesquisadores e psicoterapeutas. Coexistem de um lado promessas de expansão da prática profissional e da compreensão dos processos clínicos através das aproximações entre saberes e, de outro, um receio de que uma “mistura” teórica resulte em combinações desordenas e produtos incoerentes (Figueiredo, 2009; Norcross, 2005). Por exemplo, o termo eclético possui uma conotação negativa no campo, revelando a ameaça que o tema da integração encerra (Gold & Stricker, 2006). Além disso, a rivalidade entre sistemas presente na história das psicoterapias persiste atualmente (Paris, 2013). No entanto, ao lado da luta ideológica, há outro impulso em direção ao estabelecimento de aproximações entre sistemas (Norcross, 2005). Watchel (2010) argumenta que os obstáculos para o vislumbre de outras formas de ver e pensar estão sendo cada vez mais removidos. Os pesquisadores e psicoterapeutas passam a olhar para as outras abordagens com algum interesse e seriedade, ficando expostos a mais de uma maneira de pensar e praticar a psicoterapia. Surge na década de 1990 o chamado Movimento de Integração em Psicoterapia, caracterizado pela congregação de profissionais que buscam ultrapassar as próprias fronteiras para ver o que pode ser aprendido a partir de outras formas de fazer psicoterapia (Hawkins & Nestoros, 1997; Norcross, 2005). Este movimento possui associações e revistas científicas nos Estados Unidos e na Europa. No cenário brasileiro detectam-se produções esparsas sobre aproximações entre abordagens. Parece predominar o receio descrito acima quanto à perda da coerência decorrente da integração. A partir das tensões descritas entre impulsos para a integração e o receio presente no campo, surgiu a ideia de investigar, através de uma pesquisa qualitativa, como eram as condições que estimulam aproximações entre a Gestalt-terapia e o Psicodrama. Objetivou-se estudar as perspectivas de psicodramatistas e gestalt-terapeutas a partir das suas narrativas quando instados a refletirem sobre as possibilidades de pontes entre a abordagem de cada um e a outra. Na prática clínica e docente dos autores deste artigo houve a percepção de semelhanças e afinidades entre as duas abordagens e a constatação da escassez de estudos sobre esta aparente unidade. A partir disso, cresceu a motivação para investigar mais profundamente este possível espaço de interseção. A expectativa era encontrar nas ponderações dos entrevistados os fatores em comum entre as duas escolas tais como as bases filosóficas existenciais, humanistas e fenomenológicas como a condição principal promotora de aproximações. Apesar de este aspecto ter surgido, outros pontos inesperados emergiram das narrativas e averiguaram-se mais importantes como a constatação de que as abordagens foram construídas graças a intercâmbios com diversos saberes, a consciência de falhas da abordagem de filiação que estimulam buscas externas, a percepção de que a complexidade da prática clínica demanda estudar outros conceitos, dentre outros aspectos que serão descritos. Pretende-se que a análise das experiências dos psicodramatistas e gestalt-terapeutas entrevistados possa fomentar outros estudos sobre integração entre estas duas escolas e auxiliar o campo das psicoterapias nas reflexões sobre as condições de abertura para a aproximação entre outras abordagens. Método A Teoria Fundamentada nos dados, metodologia de natureza qualitativa, foi adotada neste estudo. Consiste numa forma de coletar e analisar material através de diretrizes sistemáticas e flexíveis com o objetivo de construir uma teoria fundamentada nos próprios dados (Charmaz, 2009). O agnosticismo teórico consiste na recusa do pesquisador em alinhar sua interpretação precocemente com uma posição teórica já articulada e com estudos existentes na área. O pesquisador deve se aproximar da realidade empírica sem hipóteses preconcebidas objetivando a construção de códigos e categorias a partir dos dados. Através de um ajuste adequado aos dados, procura-se uma compreensão conceitual e abstrata da realidade estudada (Pidgeon & Henwood, 2009). Apesar de prescindir de hipóteses para a construção do estudo, os pesquisadores possuem interesses iniciais de Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 51 pesquisa. No entanto, são necessárias comparações constantes destes interesses com os dados emergentes (Lyn & Morse, 2013). Para a coleta de dados a entrevista intensiva foi utilizada. Esta ferramenta permite reflexões minuciosas e a possibilidade de exploração detalhada sobre um tema do qual os entrevistados tenham experiências consideráveis. Permite, ainda, insights consideráveis dos participantes e a oportunidade de abordar aspectos emergentes durante a conversa (Charmaz, 2009). Como participantes da pesquisa, buscamos entrevistados com base em dois critérios: a disponibilidade em fornecer a entrevista e a capacidade de dar informações. Os primeiros participantes foram buscados através da rede de relacionamentos do pesquisador. Iniciado o processo das entrevistas, outros informantes foram indicados pelo próprio entrevistado. Tal procedimento de constituição de amostra denomina-se snowballing. A partir da disponibilidade em dar informações, o participante assinava um termo de consentimento e autorizava a gravação em áudio da entrevista. Onze entrevistas aconteceram nos consultórios dos profissionais, a partir de agendamento prévio. Duas entrevistas aconteceram via Skype. Em algumas situações, o pesquisador precisou se adequar às particularidades do momento em que o participante tinha a disponibilidade em fornecer a entrevista. Neste sentido, nove entrevistas foram realizadas durante congressos de Psicodrama e de Gestalt-terapia. Neste caso, o entrevistador procurava uma sala adequada no local do evento para a realização da entrevista. A inserção do entrevistador e entrevistados neste ambiente de congresso pode ter funcionado como um efeito de imersão, estimulando as reflexões durante as conversações. As vinte e duas entrevistas foram realizadas entre fevereiro de 2012 e outubro de 2013. As entrevistas foram baseadas nos seguintes eixos norteadores: trajetória na própria abordagem; grau de conhecimento da outra abordagem; pontos em comum entre a Gestaltterapia e o Psicodrama; reflexões sobre características das duas abordagens; possibilidades de integrações entre as abordagens. Os participantes foram 22 profissionais, onze psicodramatistas e onze gestaltterapeutas. Foram entrevistados 14 mulheres (06 psicodramatistas e 08 gestalt-terapeutas) e 08 homens (05 psicodramatistas e 03 gestalt-terapeutas). Dezessete são professores de formação na abordagem (07 de Psicodrama e 10 de Gestalt-terapia) e seis são professores universitários (05 de Gestalt-terapia e 01 de Psicodrama). O papel de pioneirismo em âmbito regional e nacional foi exercido por 10 informantes (06 gestalt-terapeutas e 04 psicodramatistas). Temos 10 donos de institutos de formação (06 gestalt-terapeutas e 04 psicodramatistas). Por fim, oito são autores de livros na abordagem (06 gestalt-terapeutas e 05 psicodramatistas). A amostra é constituída por informantes que possuem percurso respeitado em suas comunidades. Além disso, o número considerável de pioneiros e donos de institutos sinaliza a possibilidade de serem profissionais profundamente comprometidos com os interesses de suas comunidades. Possuem uma sólida trajetória na abordagem, pois todos possuem experiência prática relevante, além de terem contato constante com conceitos através de atividade docente e de produção intelectual. O encerramento da busca de novos participantes se deu pela análise de que as perguntas de pesquisa foram respondidas. 52 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 As entrevistas foram gravadas, transcritas textualmente e geraram o material a ser analisado. A análise foi feita pelos dois autores que constituiam o painel de pesquisa, ambos psicólogos clínicos. As categorias construídas foram resultado da investigação das entrevistadas sem nenhuma adoção de hipótese ou a priori. A intenção era conhecer algo novo que pudesse emergir das narrativas. A análise dos dados se inicia com a codificação aberta da Teoria Fundamentada que representa uma primeira tentativa para nomear os segmentos de dados para a compreensão do assunto em pesquisa. A codificação pretende promover um salto dos eventos concretos para os insights teóricos (Charmaz, 2009). Os segmentos de dados, que são os trechos das entrevistas, foram nomeados na margem. Foram realizadas sucessivas discussões a respeito da codificação entre a equipe de pesquisa para a ampliação da análise. Cada entrevista foi estudada minuciosamente. As transcrições das entrevistas foram comparadas com a finalidade de identificar padrões em comum. Várias revisões dos códigos iniciais geraram códigos focados, que eram mais refinados. Estes foram organizados em famílias a partir de suas semelhanças formando categorias e subcategorias. Esta organização gerou uma tabela com os conjuntos de códigos agrupados em categorias. A cada nova entrevista, novos códigos emergiam e eram inseridos na tabela. Várias reconfigurações dos dados foram realizadas através da comparação e análises repetitivas, experimentando várias maneiras de organizar os códigos. Comparações constantes dos dados brutos e dos códigos com as categorias emergentes levaram a uma sequência de revisões em busca dos conceitos que melhor captassem os significados negociados nas entrevistas. Os temas que não estavam explícitos nos conteúdos das entrevistas, mas que estavam subjacentes às falas dos entrevistados foram escritos em memorandos. Estes textos deram suporte analítico ao desenvolvimento das categorias e dos códigos. Em suas narrativas, os participantes relataram perspectivas e experiências que identificam elementos que favorecem os diálogos integrativos e as condições que potencializam a abertura para trocas entre e o Psicodrama e a Gestalt-terapia. As categorias construídas a partir da análise dos dados foram: (01) A própria abordagem possui uma abertura integrativa; (02) As duas abordagens possuem pontos em comum; (03) Percepção de falhas da própria abordagem e (04) Ampliação da prática clínica através da integração. Os achados desta pesquisa são específicos às características desta amostra de profissionais engajados com a abordagem de filiação nos âmbitos prático, teórico e institucional. Por fim, é importante informar que este trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de Goiás sob o protocolo de número CAAE 003.0.168.000-11. Resultados A tabela 1 demonstra quais participantes contribuíram para a construção de cada código, como também o agrupamento dos códigos nas categorias que compõem o eixo das condições facilitadoras de integração. Os participantes são designados pelas letras G para gestalt-terapeutas e P para psicodramatistas. Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 53 Tabela 1 – Condições facilitadoras de integração. Categorias A própria abordagem possui uma abertura integrativa As duas abordagens possuem pontos em comum Percepção de falhas da própria abordagem Ampliação da prática clínica através da integração 54 Códigos Participantes A própria abordagem é construída pela integração de conceitos e realizou integrações desde então G5, G7, G8, P10, P11, G19 Já existem integrações entre Psicodrama e Gestalt-terapia G2, G3, G4, G5, G7, G8, P12, P14, P15, P16, G18, G19, P21 O Psicodrama e a Gestalt-terapia se encontram nas suas bases filosóficas P1, G2, G3 e G7 P10, P13, P14, P15 e P17 O Psicodrama e a Gestalt-terapia se encontram ao valorizar a vivência e a experiência presente G2, G3, G4, G5, G6, G9, P13, P14, P15 e P21 O trabalho de grupos como fator em comum G2, G3, G7 e P15 O Psicodrama e a Gestalt-terapia se encontram ao valorizar a intersubjetividade G3, P11, P13 e P21 O Psicodrama e a Gestalt-terapia se encontram nos aspectos pragmáticos G5, G6, P15 e P21 Paralelos entre conceitos das duas abordagens G5, P10, P14 e P21 A outra abordagem realiza aspecto essencial da própria G2, G3, G5 e G19 Critica vertente determinista da própria abordagem P12 e P17 Deficiências da própria abordagem estimulam buscas pessoais de integração P9, P11, P14, P15, P17 e G20 Própria abordagem tem limitações nos trabalhos com grupos G3 e G7 Própria abordagem hermética teoricamente P14 e P17 Própria abordagem frágil teoricamente P16 e P17 Outra vertente da própria abordagem é traumática e invasiva G18, G19 e G20 Própria abordagem pode ser traumática e invasiva P12 e P15 Os profissionais da própria abordagem deveriam se aprimorar mais P1, P10, P12, P17, G8, G18, G19 e G20 Todos os sistemas têm contribuições importantes para o entendimento da complexidade humana P11, P13, P15, P17 e G20 Complexidade da realidade clínica demanda ampliação da atuação G2, G8, P10, P13, G18 e G20 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 A própria abordagem possui uma abertura integrativa No exercício de reflexão sobre as características da abordagem de filiação e da outra abordagem analisada, os participantes concluem que não existe uma pureza no percurso de uma abordagem, há uma recorrente assimilação de conceitos e práticas de outros sistemas. Mesmo após o processo de criação e consolidação, a incorporação de conceitos, ideias e atitudes clínicas de outras abordagens permanece. Os participantes trazem exemplos concretos dessa observação: o Psicodrama absorveu influências do Hassidismo que é uma corrente filosófica do Judaísmo, além de ter tido uma grande influência do Existencialismo (P11). A metodologia psicodramática foi construída a partir de influências do teatro (P10, P11, P14). De acordo com muitos gestaltterapeutas, sua abordagem absorveu influências do Psicodrama principalmente no trabalho com grupos e na utilização de recursos de ação (G2, G3, G4, G5, G6, G7, G8, G18, G19 e G22). Alguns psicodramatistas também constatam esta influência do Psicodrama sobre a visão clínica de Perls (P12, P14, P15 e P21). O florescimento do Psicodrama no Brasil na década de 1970, que rompeu com a hegemonia da Psicanálise, abriu caminho para o surgimento da Gestalt-terapia (P16). Muitos aspectos do Psicodrama são amplamente utilizados pela entrevistada G5, incluindo o manejo de cenas e dramatizações. Ela usa estas técnicas para ajudá-la a realizar os objetivos da sua própria abordagem, como a presentificação da experiência, por exemplo. Para alguns gestalt-terapeutas, no entanto, a influência do Psicodrama na Gestaltterapia é prejudicial. Os workshops de demonstração de Perls eram vivenciais e catárticos, com a utilização de técnicas de dramatização. Essa forma de praticar a Gestalt-terapia deu origem a uma vertente que é rejeitada como invasiva e traumática por certos gestaltterapeutas (G18, G19 e G20). Diferente da vertente vivencial, a vertente relacional e dialógica veicula um discurso mais orientado pelas ideias de Martin Buber. Os gestaltterapeutas dialógicos formam um forte grupo dentro da comunidade gestáltica brasileira. Percebe-se no grupo dialógico uma crítica às dramatizações nos workshops feitos pelo Perls (G2, G7, G8, G18, G19, G20 e G22). As técnicas de ação são vistas como imposição da autoridade do terapeuta. Com isso, a neurose do cliente em querer se ajustar à sociedade é intensificada quando o cliente atende as expectativas do terapeuta. De acordo com certos participantes, a Gestalt-terapia influencia e é influenciada por outras abordagens, e isto é desejável (G5 e G7). A absorção das ideias de Martin Buber tornou a Gestalt-terapia mais relacional, assim como as influências de Sartre contribuíram para a valorização da ação. A influência que Perls recebeu das ideias de Bergson e Nietzche é notada (G8). O trabalho com o conceito de aqui e agora é, de acordo com o entrevistado G8, uma influência nietzschiana. Os gestalt-terapeutas atuais devem continuar explorando e cultivando estes diálogos filosóficos para que não caiam em um pragmatismo reducionista (G8). Na outra via, a Gestalt-terapia inspira alguns psicodramatistas no trabalho com atendimentos individuais (P13 e P14). O Psicodrama é uma abordagem originalmente grupal. No entanto, os psicodramatistas contemporâneos estão interessados em desenvolver a psicoterapia individual psicodramática e a Gestalt-terapia tem formulações ricas para esta modalidade. Os psicodramatistas absorvem da Gestalt-terapia a forte ênfase na construção de uma aliança terapêutica, além das técnicas adaptadas para a Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 55 situação bipessoal. Algumas técnicas de ação do Psicodrama, que foram adaptadas para o contexto gestáltico de terapia individual, agora são assimiladas da Gestalt-terapia em novos formatos pelos psicodramatistas. O livre fluxo de ideias, conceitos e atitudes clínicas entre abordagens demonstrado pelos participantes sinaliza que esta abertura integrativa perene pode abrir caminho para novas trocas. As duas abordagens possuem pontos em comum A abordagem de filiação e a outra são percebidas dentro de uma visão contextual que contém todas as outras escolas. Nesta visão, uma unidade entre o Psicodrama e a Gestalt-terapia se insinua para os participantes. Na reflexão sobre a geografia das abordagens, os pontos em comum se evidenciam dentro de um contexto com outras abordagens mais divergentes epistemologicamente. As similaridades entre as duas abordagens podem ser em parte explicadas pela influência do teatro. O teatro como veículo de expressão humana serviu de inspiração para a criação das duas abordagens, aspecto epistemológico que pode aproximá-las. Perls teve uma significativa aproximação do teatro antes de conhecer o Psicodrama. Perls foi ator de teatro e sempre teve interesse em estudar o tema (G8, G19). A expressão “medo de palco” utilizada por ele – que representa o medo do julgamento dos outros – pode ser fruto dessa influência (G19). Moreno toma posse de alguns conceitos oriundos do teatro como a ideia de catarse, da tragédia grega e o conceito de papel e, no plano metodológico, de instrumentos como protagonista, palco, plateia e diretor (P10, P11, P14). Alguns participantes também têm consciência de que as duas abordagens se unem nas críticas à Psicanálise. A Gestalt-terapia veio diretamente de uma dissidência da Psicanálise. O livro “Ego, Fome e Agressão”, de Perls, foi escrito por ele quando ainda estava no meio psicanalítico. O autor rompeu com muitos conceitos freudianos, pois sentiu que a Psicanálise valorizava demais o intelecto (G8). Perls “bebeu de várias fontes”, como a Psicologia da Gestalt e a Teoria Organísmica, conseguindo formar uma síntese nova. Ao incorporar aspectos de outras abordagens criou a Gestalt-terapia (G19, G22). Alguns psicodramatistas enfatizam a importância de contribuições psicanalíticas como o inconsciente e os mecanismos de defesas (P10, P13, P14 e P16). No entanto, sua utilização rígida pode ser um obstáculo para o entendimento do contexto do cliente. Para alguns particpantes, a Psicanálise é vista como tendo o foco no indivíduo isolado, imerso nele mesmo, como se seus sintomas surgissem “dentro” dele. O Psicodrama oferece uma visão do ser humano em relação. Os conceitos como papel e contrapapel, matriz de identidade, átomo social, sugerem que até mesmo as psicopatologias são produzidas no ambiente social (P10 e P16). Os participantes percebem que tanto o Psicodrama como a Gestalt-terapia valorizam a vivência e a experiência para além de análises verbais, pois estes podem bloquear o contato do cliente com seus sentimentos (G2, G4, G5, G6, P13, P15 e P21). As duas abordagens desenvolveram-se em oposição a uma tendência intelectualista, pois as psicoterapias que buscavam somente o insight intelectual reduziam o potencial de 56 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 expressão dos indivíduos (G2). O Psicodrama e a Gestalt-terapia possuem em comum uma visão de homem calcada nos pressupostos da Fenomenologia e do Existencialismo (P1, G2, G3, G7, P10, P14 e P17). Outro ponto de convergência é a perspectiva de uma relação horizontal entre terapeuta e cliente para romper com o poder hierarquizado do terapeuta (G3 e P13). A distância entre terapeuta e cliente dificulta a conexão e as possibilidades de mudança do cliente. É desejável que o terapeuta se apresente menos como técnico e mais como pessoa – claro que como uma pessoa qualificada – e as duas abordagens buscam isso (G2 e G3). As duas abordagens se encontram também ao valorizarem a intersubjetividade porque percebem o ser humano em função do contexto de suas relações, além de utilizarem-se da relação terapêutica como motor para as transformações dos indivíduos (G2, G3, P11, P13 e P21). A valorização do trabalho com grupos também é uma importante similaridade (G2, G3, G7 e P15). Ambas enfatizam a experiência presente, procurando trabalhar com a presentificação, com o foco no como o cliente vivencia no aqui e agora aspectos do passado e projeções futuras (G5, G6 e P9). Porém, as semelhanças filosóficas se expressam em formulações teóricas muito diversas (G6). Deve se ter o cuidado em comparar conceitos que podem parecer similares na superfície, mas que se mostram teoricamente diferentes quando examinados mais detidamente (P17). Às vezes, as similaridades mais importantes não são aquelas que aparentam serem as mais óbvias. A distinção entre figura e fundo da Gestalt-terapia se assemelha à distinção entre temas protagônicos e temas correlatos do Psicodrama (P10). O conceito de awareness da Gestalt-terapia tem ligação com o conceito de espontaneidade do Psicodrama (P21). Vários gestalt-terapeutas consideram que os psicodramatistas realizam aspectos que são centrais na Gestalt-terapia, como o contato com os sentimentos (G2), a concretização e a ação (G3 e G5) e a presentificação da experiência (G5 e G19). O Psicodrama trabalha com um enfoque sistêmico e contextual que é similar ao que a Gestalt-terapia chama de teoria de campo (G3). Assim, se torna compreensível a observação que o aprimoramento da própria abordagem conduz à semelhança com a outra abordagem (P14). Portanto, os participantes percebem aproximações entre o Psicodrama e a Gestaltterapia através dos seus pressupostos filosóficos e visão de homem que podem inseri-las no grupo das abordagens que valorizam a experiência presente, a vivência através da ação, a intersubjetividade e a horizontalidade na relação terapêutica. Percepção de falhas da própria abordagem No processo de reflexão estimulado pelas entrevistas, a visão crítica e a humildade dos participantes em reconhecer as lacunas da abordagem de filiação podem quebrar a autossuficiência e permitir a possibilidade de fertilização por influências externas. Alguns entrevistados consideram que a própria abordagem carece de fundamentos teóricos, além de não fornecerem todos os aportes metodológicos necessários para a prática (P11, P14, P15, P17 e G20). O distanciamento das tradições originais, pela desvalorização do trabalho com grupos (G5) e o engano em acreditar que somente no Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 57 atendimento individual é possível um enfoque fenomenológico (G3), prejudicaram a Gestalt-terapia. O Psicodrama também se distanciou da tradição original por desconsiderar o trabalho com as questões sociais e com o desejo de transformação social (P16). O Psicodrama inclui vertentes deterministas que vão contra a essência aberta da abordagem. As teorias da Matriz de Identidade e do Núcleo do Eu não devem ser seguidas à risca, sob pena de encaixar os sujeitos em fases do desenvolvimento (P12 e P17). Alguns psicodramatistas criticam o hermetismo teórico nos escritos de Moreno que são considerados de difícil entendimento (P14 e P17). Insistir muito nas dramatizações, impondo ao cliente a realização da técnica, pode ser contraterapêutico (P15). Falta uma teoria de desenvolvimento mais consistente (P16 e P17) e essa carência do cultivo de fundamentos teóricos, faz com que alguns psicodramatistas trabalhem de forma excessivamente pragmática. Com isso, a abordagem perde espaço na atualidade (P17). Críticas são tecidas visando os profissionais da própria abordagem que deturpam sua essência quando deixam de aprofundar e buscar o aperfeiçoamento. Isto pode, por exemplo, resultar em práticas diretivas na Gestalt-terapia que é uma abordagem essencialmente não diretiva. Há uma contradição entre uma filosofia libertária retratada nos conceitos e as práticas autoritárias de alguns profissionais na Gestalt-terapia (G8). Alguns “defeitos” humanos, como o narcisismo e a competividade, são grandes obstáculos para a prática da Gestalt-terapia (G18 e G20). Os psicodramatistas podem ficar detidos na execução das técnicas, que são eficazes, sem tentar entender as matrizes teóricas de onde surgiram. Dessa forma, prestam um desserviço à abordagem que luta para romper um preconceito de que o Psicodrama seria somente um conjunto de técnicas (P10, P12 e P17). Com a ênfase no “fazeísmo”, termo utilizado por um entrevistado (G8), os profissionais querem somente aplicar técnicas, sem uma reflexão sobre os fundamentos filosóficos (G8 e P17). Os participantes gostariam que as suas abordagens desenvolvessem um corpo teórico mais robusto e que os profissionais as representassem de forma mais adequada. Há uma insatisfação com profissionais que se prendem na execução de técnicas sem o esforço em aprofundar nos fundamentos teóricos. Estas lacunas podem abrir caminho para aprender como o outro lida com estas questões. Ampliação da prática clínica através da integração A percepção das potencialidades de outras abordagens, a complexidade da realidade que se apresenta ao profissional e a constatação da insuficiência da própria abordagem em responder a esta complexidade podem, conjuntamente, facilitar a busca por outros recursos. Há o vislumbre de que seria benéfico o estabelecimento de pontes entre abordagens e de que a prática profissional pode ser ampliada. Muitos profissionais acham enriquecedor o estudo de diversas abordagens, e para alguns isso é realmente indispensável: “A minha maior diferença é que me recuso a ficar restrita por qualquer sistema teórico, o ser humano é tão complexo que acho que precisamos de todos para ajudá-lo” (P13). A complexidade da prática clínica traz questões que uma abordagem sozinha não pode responder, estimulando o profissional para uma abertura para conhecer outros sistemas (P10 e G20). Ao dialogar com 58 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 outros sistemas, os profissionais podem se beneficiar com a riqueza que as diferentes perspectivas trazem para a compreensão do ser humano (P11, P13, P15, P17 e G20). A conexão com o cliente exige a transcendência dos modelos teóricos, o profissional não deve se prender às teorias para não ofuscar a percepção do cliente (G2, G8, P13, G18 e G20). Por exemplo, para P13 a relação terapêutica é mais importante para o sucesso do trabalho do que a teoria. Muitos profissionais entrevistados estudam diversas abordagens para contemplar a diversidade da experiência pessoal, e um dos entrevistados chega a sentir a necessidade deste estudo. A partir da fala de P9, para que a prática aconteça em sintonia com a identidade do profissional é necessário o estabelecimento de pontes com outras abordagens. As características pessoais do profissional podem facilitar a integração especialmente, a humildade intelectual que promove o cultivo de uma atitude de constante busca de estudos e melhorias (G20). A admiração pela outra abordagem pode ser um fator importante para a construção de pontes epistemológicas bem como a percepção dos aspectos em comum com a própria abordagem (P1, G5 e P13). Perceber a forma distinta como a outra abordagem trabalha algum fator que é importante na própria abordagem, fomenta uma relação de proximidade e uma vontade em aprofundar os conhecimentos na outra abordagem (P1, G5 e P13). Portanto, conseguir intervir em realidades complexas, a preocupação ética em atender eficazmente a clientela e a busca pessoal pelo aperfeiçoamento guiam os profissionais para o exercício da integração. Discussão Os estudos sobre aproximações entre abordagens são escassos na literatura e o desenho predominante é de natureza teórica. Milanello (2005) buscou compreender as compatibilidades entre Moreno e Winnicott quanto à ideia de amadurecimento psicológico. Bezerra (2007) investigou as afinidades epistemológicas entre a Gestalt-terapia e a Abordagem Centrada na Pessoa, traçando as necessidades atuais de reformulações destas escolas diante dos desafios contemporâneos. Calderoni (2010) objetivou em seu trabalho identificar as convergências e possibilidades de complementação entre o Psicodrama e a Dasenisanalyse de Medard Boss. Philippi (2004) realizou estudo teórico sobre as aproximações entre a Gestalt-terapia e as Terapias Sistêmicas quanto ao conceito de subjetividade. O que se conclui é que tais estudos de natureza teórica priorizam o ponto de vista do pesquisador e não as perspectivas dos psicoterapeutas. O presente estudo, por sua vez, procurou privilegiar as percepções dos psicodramatistas e gestalt-terapeutas sobre as possibilidades de aproximações entre suas abordagens. Foi adotado o referencial da pessoa que vive a realidade na base e não o ponto de vista do pesquisador acadêmico, nos casos de estudos bibliográficos. Nas reflexões sobre o processo de formação e desenvolvimento de sua abordagem, alguns participantes percebem uma realidade dinâmica de trocas de conceitos com outras escolas. Cada abordagem encontra-se em permanente transformação para tentar responder aos anseios de sua comunidade profissional e às necessidades da Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 59 clientela atendida. Neste sentido, a integração representa um importante papel para o enriquecimento de cada abordagem, pois a assimilação de outras ideias representa uma condição vital para o amadurecimento (Norcross, 2005). Esse fluxo integrativo é criativo e inovador, já que os aspectos assimilados sofrem modificações para a composição coerente com as ideias da abordagem (Stricker, 2010). Este insight dos participantes pode provocar uma tensão reflexiva para os que censuram ou possuem receio quanto à integração. Como exemplo da realidade dinâmica das abordagens, pode-se perceber a diferença entre a Gestalt-terapia centrada em workshops de ação, praticada em sua origem, e seu exercício atual calcado na relação terapêutica. A partir da década de 1980, os gestaltterapeutas trocaram o modelo tradicional de ação do terapeuta sobre o cliente por outro que considera ambos como pertencentes a um campo relacional. Há uma maior identificação com a chamada Gestalt-terapia relacional, que pôde ser elaborada graças à influência do filósofo Martin Buber (Frazão & Fukumitsu, 2013). Os gestalt-terapeutas encontram-se divididos entre um grupo que permanece com interesse nas contribuições dos recursos de ação do Psicodrama e o outro grupo dos gestalt-terapeutas relacionais que preferem o afastamento do Psicodrama. Este grupo tece severas críticas às técnicas de ação e esta repulsa pode ter desestimulado possíveis trocas entre as duas abordagens. Apesar de alguns bloqueios, através das narrativas dos participantes pode ser notado um canal de influência entre a Gestalt-terapia e o Psicodrama. Os psicodramatistas puderam construir modalidades individuais de atendimento clínico com a ajuda de ideias da Gestalt-terapia (Fonseca, 2000). Os achados da pesquisa e a literatura apontam para uma significativa influência que o Psicodrama exerceu sobre a Gestalt-terapia. Fritz Perls, que participou de sessões de Psicodrama dirigidas por Moreno, incorporou a técnica da cadeira vazia na Gestalt-terapia (Blatner, 1996) e as dramatizações, mas com a denominação de experimentos. No entanto, Perls já havia participado ativamente do teatro expressionista alemão antes de conhecer o Psicodrama (Lima, 2013). O trabalho de cunho experiencial da Gestalt-terapia não pode ser creditado somente pela influência do Psicodrama. É plausível supor que o Psicodrama despertou o interesse de Perls pelo seu prévio gosto pelo teatro como veículo de expressão humana. Na sua autobiografia, Perls (1979, p.248) menciona a palavra “psicodrama”, quando explica os procedimentos que adotava nos seus workshops ao pedir aos membros do grupo para verbalizarem seus sentimentos como se alguém significativo estivesse presente. Em outra obra, Perls (1988) aponta uma unidade entre sua abordagem e o Psicodrama: Há muitas escolas, além da nossa, que fazem uso do método da auto expressão como um meio de reidentificação. [...] eu gostaria de selecionar a técnica psicodramática de Moreno como uma das demonstrações mais vívidas do modo de aplicar a técnica de ir e vir (Perls, 1988, p.105) A assimilação de procedimentos técnicos pode transformar a técnica em algo novo. Enquanto no Psicodrama, a dramatização é utilizada para resgatar a espontaneidade, procurando novas respostas para situações vividas (Moreno, 1975), Perls (1988) sugeria 60 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 aos seus clientes que vivessem novamente uma situação para ganharem consciência dos modos pelos quais estavam se bloqueando e interrompendo o fluxo das experiências. Essa metamorfose é típica na assimilação integrativa, que é a incorporação de atitudes, perspectivas e técnicas provenientes de outras abordagens, porém mantendo a própria visão clínica. Os procedimentos clínicos incorporados mudam em função do novo contexto em que são utilizados, levando à acomodação da técnica assimilada que ganha uma finalidade diferente (Lampropoulos, 2001). Um espaço de unidade entre o Psicodrama e a Gestalt-terapia foi delineado. Inicialmente, a equipe de pesquisa tinha a expectativa de que as bases fenomenológicas e existenciais seriam os principais pontos em comum citados. De fato, a pouca literatura disponível que trata da unidade entre as duas abordagens é centrada na base fenomenológico-existencial compartilhada (Almeida, 2006) ou na influência de Moreno sobre o trabalho de Perls (Blatner, 1996). O presente trabalho traz alguns avanços na investigação deste espaço de unidade. Outros aspectos filosóficos e metodológicos foram apontados tais como: a valorização da presentificação da experiência, a adesão à tendência anti-intelectual em psicoterapia, o trabalho com a dimensão intersubjetiva e contextual do ser humano e a busca de uma relação terapêutica horizontal. É interessante observar que mesmo possuindo formulações teóricas muito diferentes, as abordagens possuem estas afinidades filosóficas que podem gerar condutas semelhantes dos seus profissionais. A afinidade metodológica detectada revela que o Psicodrama e a Gestalt-terapia possuem algumas concepções semelhantes sobre o papel do terapeuta, a visão de mundo e de ser humano e os mecanismos de mudança. Os participantes perceberam estas afinidades quando pensaram na inserção do Psicodrama e da Gestaltterapia dentro de um contexto global com todas as outras abordagens. Os entrevistados questionam a relação de poder entre terapeuta e cliente, argumentando em favor de uma maior horizontalidade. Neste sentido, o terapeuta deve estar presente como uma pessoa e não como um técnico distante. Ele não deve se colocar como uma autoridade que sabe mais do cliente do que ele mesmo. O terapeuta se coloca como não diretivo porque existe uma crença nos recursos saudáveis do cliente. Esta concepção sobre a horizontalidade na relação terapêutica pode estimular reflexões críticas no campo da psicoterapia sobre os caminhos da mudança e os papeis do terapeuta e do cliente no processo terapêutico. O Psicodrama e a Gestalt-terapia se inserem na Terceira Força em Psicologia, movimento constituído por psicoterapias humanistas que enfocam o aumento das capacidades expressivas dos indivíduos bem como a busca por relações sociais mais autênticas (SáJunior, 2009). A abertura para reconhecer as próprias lacunas foi outro importante aspecto da pesquisa. Tendo em vista que a amostra é constituída por profissionais profundamente engajados, o reconhecimento das falhas exigiu uma atitude corajosa e não defensiva. Gostariam que as abordagens fossem mais sólidas do ponto de vista teórico. Reprovam as atitudes tecnicistas sem fundamentação teórica dos profissionais e o distanciamento das tradições originais. Apontam contradições como práticas diretivas e teorias deterministas que contrastam com as filosofias libertárias de suas abordagens. Estas reflexões podem quebrar a autossuficiência e o fechamento e podem representar um Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 61 primeiro passo para a busca de outros sistemas que poderiam ajudar a corrigir as falhas ou suprir o profissional dos aspectos que a própria abordagem não consegue fornecer (Watchel, 2010). A inadequação de uma abordagem única para lidar com a diversidade e a complexidade dos problemas psicológicos levam os clínicos a procurarem soluções eficazes fora dos seus paradigmas particulares (Norcross, 2005). A integração pode ser uma relevante ferramenta para solucionar os impasses vividos nas comunidades de psicodramatistas e gestalt-terapeutas. A possibilidade de empoderamento do terapeuta na incursão em outros saberes também é um ponto que merece destaque. Permanecer cego às contribuições de outras escolas pode diminuir as possibilidades de ação do psicoterapeuta (Norcross, 2005). Uma única abordagem não consegue contemplar a riqueza pessoal do terapeuta e não consegue se ajustar à complexidade das realidades enfrentadas. Terapeutas que ganham experiência se afastam dos métodos puros nos quais foram treinados e se dirigem para a construção de modelos mais individualizados difíceis de serem atribuídos a qualquer abordagem isolada (Gold & Stricker, 2006). Na conduta dos terapeutas, ao buscarem desenvolver um estilo próprio, a aquisição de subsídios técnicos e teóricos é uma realidade (Neto & Penna, 2006). Mesmo sendo profissionais altamente comprometidos em divulgar e promover a abordagem de filiação, os participantes revelaram a preocupação ética em seres mais fieis às necessidades do cliente. De fato, a habilidade do psicoterapeuta em responder à individualidade do cliente livre das limitações de qualquer ideologia terapêutica, é uma exigência ética presente na discussão sobre integração. Para Gold e Stricker (2006), a recusa do psicoterapeuta em trabalhar de acordo com as necessidades do cliente devido à fidelidade à sua abordagem pode produzir uma profunda sensação de desconsideração nos clientes. Na busca de outros saberes, dois processos emergiram dos dados. Por um lado, há os profissionais que examinam conhecimentos de outras abordagens utilizando o critério da semelhança, buscando ajuda em abordagens que sejam mais afins com a própria. Há um fluxo livre em acessar uma abordagem que possui uma linguagem mais próxima. A ponte entre a Gestalt-terapia e o Psicodrama se aproxima deste processo. Outro tipo de integração é a escolha de uma abordagem mais divergente, supostamente com mais chance de poder contribuir com elementos ausentes na própria abordagem. No primeiro caso, temos o fortalecimento de elementos da própria abordagem por contribuições similares, enquanto no segundo temos a expansão da abordagem com elementos de uma abordagem complementar à própria. O presente estudo apresenta suas especificidades considerando-se as abordagens estudadas e a constituição da amostra. O trabalho está circunscrito ao espaço de interseção entre duas abordagens com afinidades filosóficas. Outros achados poderiam resultar da investigação entre abordagens mais divergentes epistemologicamente. Além disso, a amostra constitui-se de profissionais experientes, com papel de pioneirismo, donos de institutos e autores de livros. Existem limitações para se estender os achados a outros contextos e informantes. As conclusões poderiam diferir se fosse estudada a percepção de alunos de graduação ou de estudantes de cursos de formação em Gestaltterapia ou Psicodrama, por exemplo. Portanto, outros estudos analisando a percepção 62 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 de outros grupos a respeito da interseção entre estas abordagens ou investigando a integração entre escolas divergentes se fazem necessários. Considerações finais As pontes já construídas entre o Psicodrama e a Gestalt-terapia são pouco exploradas na literatura profissional. Numa sociedade competitiva, as diferenças entre as abordagens recebem muita ênfase (Norcross, 2005). Essa pesquisa pretende contribuir para diminuir essa lacuna e para estimular novos estudos. Os achados podem também servir para nortear estudos sobre condições de abertura para integração entre outras abordagens. Os pontos de unidade entre as duas abordagens aparecem nas reflexões sobre as características de cada uma dentro de um contexto mais amplo contendo as demais abordagens psicológicas. É desafiador entender de que maneira arcabouços teóricos tão diversos como os do Psicodrama e da Gestalt-terapia podem gerar atitudes clínicas semelhantes como a busca da horizontalidade na relação terapêutica, a ênfase no aqui e agora, a valorização da vivência e da experiência. Outras pesquisas podem investigar como os fatores específicos de cada abordagem fazem os fatores em comum manifestarem-se. O território das chamadas psicologias humanistas ou terceira força em Psicologia convida para futuras investigações. Pode ser enriquecedor entender as convergências, divergências e possibilidades de cooperação entre outras escolas deste grupo de abordagens. A investigação deste espaço de interseção gerou possibilidades não imaginadas no início do processo. A expectativa era de que somente a categoria dos fatores em comum fosse elaborada. As reflexões sobre as limitações da própria abordagem e sobre as possibilidades de ampliação da prática profissional revelaram a flexibilidade e ausência de dogmatismo dos participantes. Atravessou as narrativas uma atmosfera de abertura, de preocupação ética com a clientela e de curiosidade intelectual. A constatação de que as abordagens se constituíram através da incorporação de conceitos de outros saberes e de que seus impasses atuais podem ser resolvidos através de contribuições externas libera o campo para novas cooperações entre escolas. Inclusive, pode quebrar o tabu referente à conotação negativa do tema da integração. Referências Almeida, W. C. (2006). 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Journal of Psychotherapy Integration, 20(4), 406–416. _____________________________ Recebido em julho de 2014 Aceito em abril de 2015 Érico Douglas Vieira: Graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, Especialização em Psicodrama pelo Instituto Mineiro de Psicodrama Jacob Levy Moreno, Mestrado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Doutorado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, exercendo a Docência como Professor Adjunto do curso de Psicologia da Universidade Federal de Goiás – Regional Jataí. Luc Vandenberghe: Graduação e Mestrado em Psicologia Clínica da Rijks Universiteit Gent, Bélgica e Doutorado em Psicologia pela Université de l’Etat à Liège, Bélgica. É Professor Adjunto da Pontifícia Universidade Católica de Goiás e orientador dos Programas de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia e em Ciências Ambientais e de Saúde. Endereço para contato: [email protected] Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 65 Aletheia 43-44, p.66-90, jan./ago. 2014 Representações sociais sobre a psicologia e o psicólogo em universitários de uma faculdade privada de Rondônia, Brasil Cleber Lizardo de Assis Géssica Alves de Souza Matthes Resumo: A Psicologia e o Psicólogo no Brasil ainda são marcados por diversos estereótipos sociais. A partir da Teoria das Representações Sociais, busca-se identificar as representações sociais sobre a Psicologia e o Psicólogo em sujeitos universitários de uma Faculdade Privada de Rondônia. Estudo quantitativo, com instrumento próprio e uma amostra de 110 sujeitos. Resultados: o psicólogo tem importância social, como um estudioso do comportamento, da mente, das emoções e dos relacionamentos humanos, com locus de trabalho na área da saúde, escolar, jurídica, organizacional e do trabalho, e clínica; visto como uma pessoa normal, embora “complicado”, utilizando da dinâmica de grupo, escuta, testes e “conselhos” como instrumentos de trabalho; sobre a relação Psicologiaoutros campos de saber, busca-se na religião, amigos e familiares a resolução de problemas, sem diferenciar bem a Psiquiatria da psicologia. Conclui-se que uma percepção do psicólogo e da psicologia vem se modificando diante de estereótipos e representações sociais tradicionais. Palavras-chave: Representação Social; Psicólogo; Psicologia. Social representations of psychology and psychologist at private university of the Rondônia, Brazil Abstract: The Psychology and Psychologist in Brazil are still marked by many social stereotypes. From the Theory of Social Representations, we seek to identify the social representations of Psychology and Psychologist in university subjects a Private School of Rondônia. Quantitative study, with own instrument and a sample of 110 subjects; Results: psychologist has social importance, as a scholar of behavior, mind, emotions and human relationships with locus of work in health, education, legal, organizational and work, and clinic; seen as a normal person, although “complicated”, using group dynamics, listening, testing and “advice” as working tools; on the relationship psychology-other fields of knowledge, we seek in religion, friends and family problem solving, without differentiating well Psychiatry of the Psychology; We conclude that a perception of psychologists and psychology has been changing the face of traditional stereotypes and social representations. Keywords: Social Representation; Psychologist; Psychology. Introdução A Psicologia é uma profissão recente que vem conquistando mais espaço em campos de atuação e teorias, além de estar em constante crescimento e aprimoramento profissional no Brasil, desde sua regulamentação da Lei n° 4.119 de 27 de agosto de 1962 (Brasil, 1962), no entanto, ainda é uma profissão bastante estereotipada como ligada apenas à clínica e cujo profissional visto como um “médico de doido” entre outros. Tais estereótipos podem ser percebidos mesmo nesta região do Estado de Rondônia, onde o curso de psicologia tem sido ofertado e onde tem formado as primeiras turmas entre os anos de 2010 a 2012. Mas, como seria a representação social que o público universitário tem dessa profissão e profissional? Há elementos-comuns entre sua percepção e o chamado “senso comum”? Os diversos estereótipos tradicionais acerca desse profissional e profissão tem sofrido modificações? Considerando que tem havido uma imagem social distorcida e equivocada junto ao público leigo e também de profissionais do ramo acerca do psicólogo e da Psicologia, (Mello, 1975; CFP, 1988; Carvalho & Kavano, 1982; Leme, Bussab & Otta, 1989, Weber, 1991; Weber, Rickli & Liviski, 1994), assim como carece de pesquisas sobre as percepções e modos de compreensão social sobre a psicologia na região norte do país (estado de Rondônia, em especial), justifica-se a necessidade de estudos sobre a representação social dessa profissão e profissionais. Nesse sentido, objetiva-se identificar quais as Representações Sociais sobre a profissão Psicologia e o profissional Psicólogo em sujeitos universitários de uma Faculdade Privada de Cacoal-RO. A psicologia no Brasil No Brasil, a Psicologia passou a ser ensinada no início do século XIX, na Faculdade de Direito de São Paulo, como parte de uma mais abrangente “ciência do homem” e na década de 1930 é inserida no ensino superior, com a criação da primeira Universidade de Ensino Superior do País, a USP, em São Paulo, no ano de 1934, de forma que até o início daquele século “não havia no Brasil uma psicologia propriamente dita, com terminologia própria, um conhecimento definido ou uma prática reconhecida”, mas “mesmo assim, era crescente o interesse da elite brasileira pela produção e aplicação de saberes psicológicos” (Pessotti, 1988, citado por Pereira & Neto, 2003, p.21). Daí surgiram os testes de inteligência, um maior interesse pela subjetividade e uma atração por estudos do comportamento humano e com forte influência/relação com o saber médico (Pereira & Neto (2003). Segundo Pereira e Neto (2003), enquanto a psicologia desenvolvia um conhecimento especializado e conquistava um mercado consumidor de seus serviços, começaram a ser elaborados anteprojetos para a regulamentação da profissão e no dia 27 de agosto de 1962 foi aprovada a Lei nº 4.119, que regulamentou a profissão de psicólogo, ano em que foi emitido o Parecer 403 do Conselho Federal de Educação (Brasil, 1962), estabelecendo o currículo mínimo e a duração do curso universitário de Psicologia. Já num aspecto profissional, de acordo com o Catálogo Brasileiro de Ocupações (Conselho Federal de Psicologia 2008), as áreas de atuação do Psicólogo são a Psicologia Clínica, Psicologia do Trabalho, Psicólogo do Trânsito, Psicólogo Jurídico, Psicólogo Educacional, Psicólogo do Esporte, Psicólogo Social e Professor de Psicologia (Ensino Superior), no entanto, há diversas áreas de inserção atual da Psicologia e que não estão citadas nesse Catálogo. Representação social da psicologia e do psicólogo Sem nos aprofundar na história rica e fecunda da Psicologia no país, importa apresentar sucintamente o marco teórico-conceitual para, em seguida, fazer uma breve exposição do que tem se configurado em “representações sociais” da Psicologia e do Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 67 Psicólogo no Brasil. Para o criador dessa Teoria das Representações Sociais, Moscovici (2012, p.37): Essas representações, que são partilhadas por tantos, penetram e influenciam a mente de cada um, elas não são pensadas por eles; melhor, para sermos mais precisos, elas são repensadas, recriadas e reapresentadas. O conceito de Representação Social designa um conhecimento específico do senso comum, relacionado a uma forma de pensamento social, produzido e partilhado nas relações que as pessoas estabelecem entre si. Dessa forma, o profissional da Psicologia, é visto socialmente como sujeito integrado à comunidade, mas também contribui com o seu fazer cotidiano e para essas inter-relações que forjam o estabelecimento de Representações Sociais acerca de seu papel e de sua prática, o que é reconstruído de forma dinâmica entre o conhecimento científico e o chamado “senso comum” (Sancovschi, 2007; Lahm & Boeckel, 2008; Araújo, 2008; Arruda, 2002). Já para Borsezi (2006), a representação social constitui-se através de diversas mediações realizadas de diferentes formas, como os meios de comunicação de massa, principalmente os televisivos, por pessoas que já utilizaram os serviços de um Psicólogo, por exemplo. É neste “lugar” social que se formam as representações sociais que são apropriadas pelo discurso científico, a partir da análise do discurso sobre “os outros” ou sobre fenômenos como profissões – alvo deste estudo. Ou seja, este pressuposto de apropriação sugere que um discurso pode ser agrupado e estudado, de acordo com as verbalizações dos sujeitos sobre algo/alguém. Nesse sentido, adotamos alguns estudos sobre a RS da Psicologia/Psicólogo para nosso comparativo, tal como em Praça e Novaes (2004, p.2), numa pesquisa realizada em 1999, com 375 alunos de graduação na área da saúde, sobre a sua visão em relação a prática do profi ssional de psicologia, onde a maioria das respostas revela como objeto de estudo da Psicologia o comportamento e os fenômenos psicológicos; como local/área de trabalho, evidenciou-se um alto índice que apontou o hospital, a escola, a clínica e o presídio; em relação ao objetivo Profissional, revelou um maior percentual em melhorar a qualidade de vida; no item Instrumento do Psicólogo, o maior índice referiu-se a ouvir, aplicação de entrevistas, testes e dinâmicas de grupo; na categoria Características do Psicólogo, o maior índice foi de respostas observador, equilibrado e confiável; na categoria Credibilidade do Trabalho, as respostas mostraram uma representação altamente positiva em relação ao profissional de psicologia; já em relação à Imagem da Psicologia e do Psicólogo, a subcategoria “De médico, psicólogo e louco todo mundo tem um pouco”, mostra um índice percentual de 37,9% para os estudantes de outros cursos e, para os de Psicologia, 14%, considerando que, nessa subcategoria está presente a representação de que o psicólogo é “maluco”, equiparando psicólogo e louco, apontando certa forma de contradição em relação aos dados encontrados na categoria “características do psicólogo” onde aquele profissional é visto como “observador, equilibrado e confiável.” 68 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Já Weber, Paiva e Biscaia (2005)1 realizaram uma pesquisa em que foram comparados os dados de Weber (1991), com o objetivo de identificar a imagem que se tem do Psicólogo e da Psicologia em uma amostra de 400 pessoas de ambos os sexos com idade entre 18 e 60 anos, indicando: Sobre o objeto e a natureza da Psicologia, predominaram respostas como “tipo de conhecimento” (43,3%), “ciência (15,5%) e 31,8% não conseguiram definir a Psicologia, o que comparando com a pesquisa de Weber (1990) percebeu-se um declínio no número de pessoas que definem a psicologia como ciência, de 29,1% em 1990 para 15,5% dos participantes em 2002. Se referindo ao objeto da Psicologia, a maioria das respostas referiu-se a “pessoa/ ser humano/personalidade” (37,5%), “funções mentais e sentimentos” (27%) e 16,5% não sabiam definir o objeto da Psicologia. Comparando com a pesquisa de 1990, o maior resultado se referia às funções mentais e o segundo objeto mais citado foi o “comportamento humano”, o que nos mostra uma significativa diferença. (Weber, Paiva e Biscaia, 2005). Sobre a definição do Psicólogo (“quem é e o que faz o Psicólogo?”), 53,3% consideraram o Psicólogo um profissional, 34,8% não souberam especificar e 12% o definiram como uma pessoa qualquer ou um amigo, diferente da pesquisa de 1990, onde o Psicólogo era visto como uma pessoa qualquer e nesta de 2002 já é visto como um profissional (Weber, Paiva e Biscaia, 2005). De forma relacionada, sobre “o que faz um Psicólogo?”, 55% dos entrevistados apontaram como função, “ajudar, conversar e orientar o cliente”, “tratar a saúde mental” (16%) e “resolver problemas” (8,6%), diferente da pesquisa de 1990, onde a maior frequência de respostas foram em relação a “tratar de saúde mental e problemas mentais” (21,5%) e “ajudar/conversar/orientar” (20,5%). Outros elementos e categorias dessa pesquisa não serão abordados aqui, mas segundo Weber, Pavei e Biscaia (2005), pode-se perceber com essa pesquisa que, tanto em 1990 quanto em Weber (1991), a Psicologia é considerada uma profissão, mas poucos a consideram como ciência, cabendo à categoria de Psicólogos lutar para mudar essa realidade de como somos vistos por pessoas leigas. Já a pesquisa de Leme, Bussab e Otto (2008), em relação ao campo de representação ou imagem, investigou-se o que os sujeitos entendem do trabalho do Psicólogo, por categorias aproximativas como “guia espirituais” e “confidentes”. Na primeira parte, identificou-se que a maior incidência de respostas recai na aproximação em relação às profissões: aqui obteve-se respostas como “é médico de louco”, onde a aproximação é com a psiquiatria, “exerce uma função assistencial” e ainda, numa aproximação com a Psicanálise, respostas do tipo “a imagem de um paciente deitado no divã contando sua vida”, seguida pela dos guias espirituais; ocorreram ainda, além de uma “mistura de paide-santo com profissionais de segunda categoria”, “o público leigo imagina o Psicólogo como um bruxo”, “um mago com poderes de resolver problemas a curto prazo” e com igual frequência, a imagem do pai, amigo e do conselheiro (Leme, Bussab e Otto, 2008). O psicólogo ainda foi rotulado como “um profissional do blábláblá, e ainda por cima atuando apenas com a elite”, mas também como “alguém não tão necessário a sociedade, um capricho ou privilégio para algumas poucas pessoas” (Leme, Bussab e Otto, 2008, 1 Por limitação e escopo desse trabalho, recomendamos ao leitor uma leitura integral das duas pesquisas. Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 69 p.5). O emprego do rotulo “charlatão” traz a ideia de cobranças ilegítimas ao cobrar pelo serviço prestado (“um charlatão que cobra caro pelo que aprendeu numa faculdade fácil”). Segundo Leme, Bussab e Otto (2008), essa categoria de resposta está ligada ao preconceito e desconhecimento em relação ao Psicólogo. Já no âmbito geográfico de nosso estudo, no contexto da região Norte do país foi criado o Conselho Regional de Psicologia, com a Resolução do CFP n° 005/11, onde instituiu o CRP-20: “Art. 1 o – Fica criado o Conselho Regional de Psicologia da 20 a Região, de sigla CRP-20, com jurisdição nos estados de Amazonas, Acre, Rondônia e Roraima, e com sede na cidade de Manaus – AM.” (Conselho Federal de Psicologia, 2011). Dessa forma, em Rondônia o curso de psicologia é ofertado em faculdades privadas e pública das cidades de Cacoal, Pimenta Bueno, Rolim de Moura e Vilhena, Ariquemes e na Capital Porto Velho e, nesse contexto, objetiva-se verificar as percepções e representações sociais sobre essa ciência e profissão em universitários dessa região do país. Método Participaram da pesquisa 110 sujeitos de ambos os sexos (55 homens e 55 mulheres), com idade acima dos 18 anos, estudantes de uma faculdade privada da cidade de Cacoal/ RO, escolhidos aleatoriamente a partir dos cursos: Administração, Ciências Contábeis, Economia, Biomedicina, Engenharia Ambiental e Arquitetura. Os critérios para a seleção e aplicação do instrumento excluem estudantes de psicologia e pessoas que fizeram ou fazem atendimento psicológico com psicólogo, por serem considerados pelos pesquisadores, de menor contato direto e permanente com esse profissional. Para a determinação estatística da amostra, foi feito um cálculo para a configuração do tamanho da amostra com base na estimativa da proporção populacional da referida faculdade2. Foram elaborados e aplicados os seguintes instrumentos: 1) Termo de Consentimento Livre e Esclarecido; 2 – Formulário Estruturado autoaplicativo em Escala Likert, com questionário sociodemográfico integrado, criados pelos autores (em anexo). A Escala Likert consiste em um tipo de escala psicométrica, usada habitualmente em questionários e é utilizada em pesquisas de opinião, especialmente em pesquisas quantitativas, e se harmonizou com a natureza de nosso problema investigado, de modos que a associamos às categorias de análise de cunho qualitativo, permitindo um cruzamento metodológico quantitivo e qualitativo, viabilizando a apreensão das representações sociais do sujeito. 2 A fórmula para cálculo do tamanho da amostra para uma estimativa confiável da proporção populacional (p) é dada por: n – número de indivíduos na amostra; Z – valor crítico que corresponde ao grau de confiança desejado; p – proporção populacional de indivíduos que pertence a categoria que estamos interessados em estudar; q – proporção populacional de indivíduos que não pertence à categoria que estamos interessados em estudar (q = 1 – p); E – margem de erro ou erro máximo de estimativa. Identifica a diferença máxima entre a proporção amostral e a verdadeira proporção populacional (p): Grau de confiança de 95% e margem de erro de 5%; A UNESC tem 2062 alunos e 152 de psicologia Logo: q = 152/2062 = 0,073 e p = 0,926. Total de indivíduos da amostra:n = [(1,96)^2 (0,073)*(0,926)]/(0,05)^2 n = 104,92 ou seja, 105 pessoas 70 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Para a coleta de dados, foram elaboradas as seguintes categorias e suas respectivas frases evocativas criadas pelos pesquisadores a partir das pesquisas supracitadas e que serviram para que o sujeito manifestasse sua opinião e percepção a respeito da profissão Psicologia e do profissional Psicólogo: Categoria 1 – Importância e Credibilidade Profissional: A Psicologia e o Psicólogo tem importância na sociedade A Psicologia e o Psicólogo são importantes para a saúde mental das pessoas Categoria 2 – Atribuições do Psicólogo: O Psicólogo estuda e trata o comportamento humano O Psicólogo estuda e trata a mente humana O Psicólogo estuda e trata das emoções humanas O Psicólogo estuda e trata dos relacionamentos humanos O Psicólogo contribui para a saúde mental e qualidade de vida humana O Psicólogo serve para resolver problemas que o psiquiatra não resolve Categoria 3 – Áreas de Atuação do Psicólogo: O Psicólogo atua na clínica O Psicólogo atua na área da saúde O Psicólogo atua na área educacional O Psicólogo atua na área social O Psicólogo atua na área organizacional e do trabalho O Psicólogo atua na área jurídica O Psicólogo atua na área esportiva Categoria 4 – Características e Imagem Social do Psicólogo: O Psicólogo é uma pessoa bem resolvida emocionalmente O Psicólogo é uma pessoa que compreende os problemas humanos O Psicólogo é uma pessoa “complicada” O Psicólogo é uma pessoa liberal Sobre a expressão: “psicólogo é coisa para doido” Sobre a expressão: “de psicólogo e louco, todo mundo tem um pouco” Categoria 5 – Formas e Modos de Trabalho do Psicólogo: O Psicólogo utiliza da escuta em seu trabalho O Psicólogo utiliza de testes em seu trabalho O Psicólogo utiliza de dinâmicas em seu trabalho O Psicólogo utiliza de conselhos em seu trabalho Categoria 6 – Relação Psicologia e Outros Campos de Saber: A religião resolve os problemas em que a psicologia atua A psiquiatria resolve os problemas em que a psicologia atua A própria pessoa resolve os problemas em que a psicologia atua Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 71 A filosofia resolve os problemas em que a psicologia atua Amigos e familiares resolvem problemas em que a psicologia atua A coleta de dados ocorreu de forma coletiva, em sala de aula, durante o período noturno e com a duração média de 20 minutos, após uma apresentação da proposta da pesquisa e orientação de preenchimento do instrumento. Em relação à análise dos dados, foram tratados de forma quantitativa, por frequência simples, sem correlação de idade, gênero, curso e outras categorias que poderão ser analisadas em estudos posteriores, seguido de produção de gráficos no programa Excell for Windows. Resultados e discussão Para a elaboração dessa seção, retomamos a noção de “Representação social” postulada por Moscovisci (2012, p.37), especialmente quando a concebe como produto partilhado por sujeitos sociais, de modos que tais representações dinâmicas se “penetram e influenciam” na mente de cada indivíduo, seja na dimensão do pensamento e da prática cotidianas, o que a torna dinamicamente recriada a partir da interação social. Nesse sentido, ao abordarmos esse tipo de conhecimento específico do “senso comum”, devemos relacioná-lo às interações e trocas sociais que ocorrem entre a própria ciência psicológica e o contexto social em suas múltiplas dimensões (tipos de grupos sociais, recortes geográfico, de gênero e formação etc), de modos que, ao explorar a forma como se concebe o profissional Psicólgo e a sua ciência/profissão Psicologia, devemos saber que a partir dessas inter-relações se forjam o estabelecimento das Representações Sociais acerca de seu papel e de sua prática, num processo permanente e dinâmico de reconstrução entre o conhecimento científico e o chamado “senso comum” (Sancovschi, 2007; Lahm & Boeckel, 2008; Araújo, 2008; Arruda, 2002). Portanto, os dados aqui coletados e analisados referem-se a um restrito recorte contextual e de público com suas respectivas particularidades representacionais sobre o Psicólogo e a Psicologia, mas que devem ser consideradas portadoras de elementos que podem apontar certos conjuntos de sentidos que compõe o discurso social sobre essa ciência e seu profissional num contexto maior. Concordamos e defendemos a importância do psicólogo/psicologia tal como aparece em destaque em Weber, Paiva e Biscaia (2005, p.3) que ainda ressaltam ser a Psicologia muito mais complexa do que o “senso comum” faz crer, defendendo, nesse sentido, um maior conhecimento de suas possibilidades e seus limites enquanto área de conhecimento e profissão, bem como entender que as subdivisões ocorrentes não são rígidas nem estáticas, mas estão como que entrelaçadas e sempre em movimento, assim como o ser humano. Esse entrelaçar, supomos, ocorre entre o saber social e a ciência, bem como da interação entre a ciência psicológica e o social. Vamos agora aos dados e sua discussão com a literatura pertinente3: 3 Legenda para as imagens gráficas desta seção: Vermelho= discordo totalmente, Amarelo= discordo parcialmente, Marrom= tenho dúvidas, Verde= concordo parcialmente e Azul= concordo totalmente 72 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Em relação à Categoria Importância e Credibilidade Profissional, os sujeitos concordam de forma quase unânime (n=104, figura 1) que o psicólogo tem importância na sociedade, sendo o mesmo padrão de resposta que inclui a sua importância na saúde mental das pessoas (n=102, Figura 2), o que aponta um certo conhecimento desta profissão e sua possível contribuição social. Essa importância atribuída ao profissional e à ciência psicológica pode ser atribuída, por complementaridade categórica, à alta frequência de concordância de seu papel junto à atuação junto à saúde mental das pessoas, reconhecida pela maioria quase absoluta (n=102, Figura 2). Figura 1 Figura 2 A Psicologia e o Psicólogo têm importância na sociedade - TOTAL 70 66 80 70 60 67 60 50 38 40 30 50 40 35 30 20 20 10 0 A Psicologia e o Psicólogo são importantes para a saúde mental das pessoas - TOTAL 0 10 4 2 0 0 4 4 1 1 DT D.P T.D C.P C.T DT D.P T.D C.P C.T Em relação à Categoria – Atribuições do Psicólogo, a maioria compreende que o Psicólogo é um profissional que estuda e trata diversos fenômenos humanos, tais como o “comportamento humano” (n=103, Figura 3), as “emoções humanas” (n=99, Figura 4), a “mente humana” (n= 92, Figura 5), os “relacionamentos humanos” (n=87, Figura 6), o “Psicólogo contribui para a saúde mental e qualidade de vida humana” (n= 86, Figura 7). No entanto, importante salientar que a frase evocativa “O Psicólogo serve para resolver problemas que o psiquiatra não resolve” obteve um índice maior de dúvida (n=45, Figura 8), acima dos dois níveis de concordância (n= 42, Figura 8), o que nos permite inferir que os sujeitos não diferenciam bem a especificidade dessas duas profissões, posto que ambas podem tratar de questões humanas apontadas acima. Os resultados nessa categoria reforçam os resultados da pesquisa de Praça e Novaes (2004, p.15 e 16), em que a representação social da psicologia está associada às questões do comportamento e ao funcionamento psíquico, envolvendo emoções e patologias. Para Weber, Pavei e Biscaia (2005), se referindo à pesquisa realizada em 1990, constatou-se que o objeto mais citado pela população referia-se às funções mentais ou da alma e sua atuação resumia-se à manutenção da saúde mental. Esses mesmos autores, numa pesquisa de 2005, o objeto mais citado foi o “ser humano”. A partir disso, pode-se Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 73 perceber que a conceituação do objeto da psicologia atribuído pela população na verdade se refere a diversos objetos, ou seja, embora lato sensu, a psicologia tem como “fim maior’ o ser humano, sabemos que possui um objeto multifacetado em torno desse humano, sendo que ainda não se pode excluir as dimensões social, política, cultural e religiosa. Já para Tourinho, Carvalho Neto e Neno (2004, p.1), após realizar uma discussão sobre os múltiplos objetos e, portanto, olhares e práticas da Psicologia, “o sucesso de cada abordagem psicológica depende, em alguma medida, do reconhecimento do caráter multifacetado do campo da Psicologia e da capacidade de responder de modo consistente e integrado às diferentes demandas sociais que definem esse campo”. Figura 3 Figura 4 O Psicólogo estuda e trata o comportamento humano O Psicólogo estuda e trata as emoções humanas - TOTAL 70 58 60 52 50 50 45 47 40 40 30 30 20 20 10 0 60 0 10 6 1 0 1 1 1 DT D.P T.D C.P DT C.T Figura 5 T.D C.P C.T O Psicólogo estuda e trata os relacionamentos humanos - TOTAL 60 60 49 50 43 40 30 30 20 0 14 10 4 0 1 DT 37 20 15 10 50 50 40 74 D.P Figura 6 O Psicólogo estuda e trata a mente humana - TOTAL 0 5 3 D.P T.D 1 5 1 C.P C.T Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 DT D.P T.D C.P C.T Figura 7 Figura 8 O Psicólogo contribui para a saúde mental e a qualidade de vida humana - TOTAL O Psicólogo serve para resolver problemas que o Psiquiatra não resolve - TOTAL 50 50 45 45 41 40 40 35 35 30 30 25 25 26 20 20 10 1 17 15 14 15 0 45 45 10 7 0 16 4 1 1 DT D.P T.D C.P C.T DT D.P T.D C.P C.T Em relação à Categoria 3 – Áreas de Atuação do Psicólogo, os sujeitos se mostram bem informados em relação ao locus de trabalho do psicólogo, em termos de áreas de atuação profissional, sendo a que obteve o maior índice de concordância, a área da educação (n=96, Figura 9), seguido da área social (n=94, Figura 10), área da saúde (n=93, Figura 11), área organizacional e do trabalho (n= 88, Figura 12), área clínica (n= 73, Figura 13), área esportiva (n= 71, Figura 14) e área jurídica (n= 57, Figura 15). Importante salientar que a área clínica como área de atuação do psicólogo apareceu com um alto índice de dúvida (n=32), bem como um nível médio de dúvida sobre a área jurídica (n=38) e a área esportiva (n=26). Importante destacar ainda que, segundo a percepção dos sujeitos pesquisados, os dados coletados parecem contradizer aquilo que aponta a literatura pesquisada sobre as áreas de maior atuação do psicólogo no Brasil e que indicavam ser a área clínica aquela que mais absorve o profissional (Weber, Pavei & Biscaia, 2005). Por haver um alto índice de dúvida em relação a atuação na área clínica e um maior índice de concordância com a área da educação, seguida da área social, saúde, organizacional e do trabalho, esportiva e jurídica, talvez possamos inferir que essas diversas áreas mais “sociais” e “públicas”, bem como as chamadas “emergentes” tem ganhado visibilidade e destaque para tais sujeitos pesquisados, o que lhes favorece maior contato profissional nesses espaços, diferente de sua procura na própria clínica. No entanto, tal hipótese poderia ser verificada em estudos posteriores, mas importa salientar que após 10 anos daquela pesquisa referida acima, pode ter havido uma mudança sobre a representação social sobre o psicólogo e sua área de atuação. Essa mudança na percepção dos sujeitos pode ser atribuída ainda ao próprio fazer do psicólogo na atualidade, deixando como locus exclusivo a clínica e atuando especialmente junto às políticas públicas, em espaços sociais e institucionais como Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 75 CRAS, CREAS, CAPS e outros dispositivos, como fruto de uma nova postura social e política da Psicologia engendrada a partir da década de 1990, em que “a profissão foi sendo construída, ou melhor, inventada pelos psicólogos” de modos que “foram sendo inauguradas práticas e novos campos, tornando a Psicologia uma profissão de interesse social.” (Bock, 2011, p.1)4. Figura 9 Figura 10 O Psicólogo atua na área educacional - TOTAL 60 55 60 53 50 50 41 40 41 40 30 30 20 20 10 0 O Psicólogo atua na área social - TOTAL 0 10 4 10 0 2 7 4 1 DT D.P T.D 1 C.P C.T T.D C.P C.T Figura 11 Figura 12 O Psicólogo atua na área da saúde - TOTAL O Psicólogo atua na área organizacional e do trabalho - TOTAL 60 52 50 41 40 30 28 20 10 0 D.P DT 0 3 1 DT D.P T.D C.P 50 45 40 35 30 25 20 15 10 5 0 45 43 14 6 2 C.T 1 DT D.P T.D C.P C.T Foge ao escopo deste trabalho, realizar uma discussão sistemática sobre os fatores sociais e políticos que marcam essa mudança na identidade da Psicologia brasileira, especialmente, a partir da democratização do país, da emergência dos movimentos sociais, da pulsação da Psicologia Social e Comunitária e outros fatores. Para tal reflexão, remetemos ao leitor os textos de Bock, Ferreira, Gonçalves, & Furtado, (2007) e Bock (2011) 4 76 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Figura 13 Figura 14 O Psicólogo atua na área esportiva - TOTAL O Psicólogo atua na área clinica - TOTAL 45 40 35 30 25 20 15 10 5 0 45 40 35 30 25 20 15 10 5 0 40 33 32 2 1 42 8 3 1 1 DT D.P T.D 29 26 C.P DT C.T D.P T.D C.P C.T Figura 15 O Psicólogo atua na área jurídica - TOTAL 40 38 35 31 30 26 25 20 15 13 10 5 3 0 1 DT D.P T.D C.P C.T Em relação à Categoria 4 – Características e Imagem Social do Psicólogo, a subcategoria “O psicólogo é uma pessoa que compreende os problemas humanos” teve alta frequência de concordância (n= 80, Figura 16), ao mesmo tempo que apareceram nas subcategorias “O psicólogo é uma pessoa bem resolvida emocionalmente”, uma frequência de concordância (n=39, Figura 17) bem próxima da frequência de resposta “tenho dúvida” (n= 37, Figura 17), além uma alta frequência de discordância (n=34, Figura 17); Somando isso à frequência de discordâncias e dúvidas relacionadas as subcategorias “O Psicólogo é uma pessoa “complicada”, onde a maior parte dos sujeitos tiveram dúvidas ou não souberam responder (n= 36, Figura 18), além de um nível expressivo de concordância (n=32, Figura 18), parece apontar que, mesmo não sendo uma pessoa “bem resolvida emocionalmente” e “complicada”, é também aquele que compreende as pessoas que trata. Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 77 Na subcategoria “O psicólogo é uma pessoa liberal”, para os sujeitos há uma frequência maior de discordância (n= 42, Figura 19) que o de concordância (n=30, Figura 19), sendo que a maioria teve dúvida sobre essa condição (n=33, Figura 19). Valendo-se de frases populares relacionadas à imagem social do psicólogo, em relação à subcategoria “Sobre a expressão: ´de psicólogo e louco, todo mundo tem um pouco” a concordância (n= 46, Figura 20) ficou bem próxima da discordância (n= 43, Figura 20), mas na subcategoria “Sobre a expressão: ´psicólogo é coisa para doido” a frequência maior foi a discordância (n= 70, Figura 21). Esses resultados apontam uma possível “evolução” do que o público leigo pensa sobre o psicólogo e sua função, demonstrando também que o psicólogo é visto como uma pessoa “normal” (mesmo que “complicado” e não “bem resolvido emocionalmente”) e se constitua num profissional que possa compreender o sujeito e lhe ajudar na sua saúde mental, o que não se reduz a tratar de ‘doido’, confrontando certo estereótipo de que psicólogo tem bola de cristal ou que não comete erros (Bock, 2000, citado por Praça & Novaes, 2004, p.2). Com isso também pode-se dizer que o psicólogo é gente com potencialidades e fragilidades humanas como os sujeitos dos quais se trata. Tais considerações podem ser verificadas na pesquisa de Weber, Pavei e Biscaia (2005) que discutem haver erroneamente na população uma imagem distorcida e estereotipada em relação ao psicólogo, de modos que no referido estudo, os autores consideram que os resultados derrubaram alguns mitos de grande parte do imaginário social que ainda considera o psicólogo como “médico de loucos” ou que acha que “ninguém precisa procurar um psicólogo”. Figura 16 Figura 17 O Psicólogo é uma pessoa que compreende os problemas humanos - TOTAL O Psicólogo é uma pessoa bem resolvida emocionalmente - TOTAL 60 40 56 30 40 25 30 20 24 20 13 11 10 0 24 22 15 10 15 12 5 2 0 1 DT 78 37 35 50 D.P T.D 1 C.P C.T Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 DT D.P T.D C.P C.T Figura 18 Figura 19 O Psicólogo é uma pessoa “complicada” - TOTAL 40 35 36 35 20 20 15 15 10 25 25 24 25 19 33 30 30 20 O Psicólogo é uma pessoa liberal - TOTAL 8 19 17 11 10 5 5 0 0 1 DT D.P T.D 1 C.P C.T DT Figura 20 30 20 C.T Sobre a expressão: “psicólogo é coisa para doido” - TOTAL 50 22 19 16 15 C.P 60 27 21 T.D Figura 21 Sobre a expressão: “de psicólogo e louco, todo mundo tem um pouco” - TOTAL 25 D.P 52 40 30 10 20 5 10 0 18 14 9 10 0 1 1 DT D.P T.D C.P C.T DT D.P T.D C.P C.T Na penúltima categoria 5, sobre Formas e modos de trabalho do Psicólogo a frequência de respostas dos sujeitos parece apontar um certo entendimento por parte dos leigos sobre os instrumentos de trabalho utilizados pelos psicólogo, sendo as maiores concordâncias: “O Psicólogo utiliza de técnicas de dinâmica de grupo em seu trabalho” (n= 80, Figura 22), “O Psicólogo utiliza da escuta em seu trabalho” (n= 76, Figura 23), “O Psicólogo utiliza de testes em seu trabalho” (n=75, Figura 24), com o destaque na subcategoria “O Psicólogo utiliza de conselhos em seu trabalho” com uma alta frequência de concordância (n= 83, Figura 25), o que nos remete a certo imaginário persistente de que uma das atribuições do psicólogo é a de ser conselheiro. A prevalência de “conselhos” como modo de atuação do psicólogo ainda permanece forte não apenas em sujeitos sem contato direto com aquele profissional, mas ocorre Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 79 também em estudantes de psicologia, o que se constitui num forte elemento imaginário que persiste no tempo. Já as “técnicas de dinâmicas de grupo” como métodos/formas de atuação do psicólogo, apareceram como destaque e atribuímos isso a uma maior visibilidade da atuação do psicólogo junto aos diversos grupos e organizações e, talvez, a uma postura mais social e menos individualizante, embora a imagem do “aplicador de teste” ainda perdure de acordo com a percepção dos sujeitos, o que pode ser atribuído em grande parte à tradição que marcou o nascimento da psicologia e sua inserção no Brasil, onde marcadamente emergiu como ciência atrelada à psicometria, forjando um imaginário social acerca de seus métodos. (Bock, 2011). Figura 22 Figura 23 O Psicólogo autiliza testes em seu trabalho - TOTAL O Psicólogo utiliza técnicas de dinâmica de grupo em seu trabalho - TOTAL 50 45 40 35 30 25 20 15 10 5 0 44 36 24 4 2 45 40 35 30 25 20 15 10 5 0 41 34 23 5 1 1 DT D.P T.D C.P C.T DT Figura 24 T.D C.P 60 49 50 31 40 34 30 22 20 6 C.T O Psicólogo utiliza conselhos em seu trabalho - TOTAL 45 10 6 14 7 5 0 1 1 DT 80 D.P Figura 25 O Psicólogo utiliza escuta em seu trabalho - TOTAL 50 45 40 35 30 25 20 15 10 5 0 4 D.P T.D C.P C.T Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 DT D.P T.D C.P C.T Em relação à Categoria 6 – Relação Psicologia e Outros Campos de Saber, as respostas para as afirmações: “A religião resolve os problemas em que a psicologia atua” teve frequência de concordância maior (n= 41, Figura 26), embora quase a mesma frequência tenha dúvida (n=35, Figura 26), ou seja, a grande maioria de sujeitos preferem procurar na religião a solução para seus problemas psíquicos, enquanto uma grande parcela tenha dúvida sobre o que procurar, o que parece também ignorar a função que cabe à psicologia em seu diferencial da religião. Na subcategoria “A psiquiatria resolve os problemas em que a psicologia atua” a frequência de concordância (n=38, Figura 27) foi menor que a de dúvida (n=43, Figura 27), parecendo sinalizar certa indiferenciação entre essas duas categorias profissionais; Na subcategoria “A filosofia resolve problemas em que a psicologia atua”, prevaleceu uma alta frequência de dúvida (n=44, Figura 28) em relação às outras opções, apontando ainda uma possível indiferenciação desses dois campos de saberes. Já na subcategoria “A própria pessoa resolve os problemas em que a psicologia atua”, a maior parte dos sujeitos tinha dúvidas (n=38, Figura 29), enquanto aparece um nível similar de concordância (n=35, Figura 29), o que parece apontar que, apesar de considerar importante o papel do psicólogo, ainda se tem dúvida de procurá-lo para resolver seus problemas. Aliás, amigos e familiares tiveram a maior frequência de concordância (n=48, Figura 30) quando se afirmou na subcategoria “Amigos e familiares resolvem problemas em que a psicologia atua”, embora diante de um alto índice de dúvida (n=32, Figura 30). Nesta categoria pode-se observar que os entrevistados ainda encontram na religião ou em outros saberes a resolução de seus problemas, não dando exclusividade ao Psicólogo, o que, de certa forma, ocorre pelo fato da proximidade histórica de funções que as pessoas atribuem ao psicólogo e que se aproxima de demais papéis como de líderes religiosos, médicos, amigos, (Sarriera & Ribeiro, 1997, citado por Censi, 2006). Nesse sentido, é importante ressaltar que na pesquisa de Weber (1991), a maior parte da amostra não conseguiu definir psicologia ou não a consideram como ciência, o que pode influenciar na descredibilidade do profissional psicólogo. Assim, pode-se entender que, a partir da representação social do psicólogo apontadas nas frequências de respostas dos sujeitos, ao trabalhar sob influência do modelo médico e sacerdotal, os processos de ancoragem e objetificação auxiliam na construção da representação social da psicologia, pois os sujeitos ancoram o desconhecido, o distante e não familiar, em algo que conhecem, ou seja, o trabalho do médico, sendo que tal lógica pode ser aplicada ao sacerdote, a outras categorias profissionais que guardam similaridades e de certa forma ao amigo. O próprio fazer do psicólogo, devido aos múltiplos objetos, teorias e metodologias que fundam a sua ciência e profissão, vão marcando sua identidade multifacetada e produzindo uma representação social também diversificada na sociedade, na academia e no próprio meio psi, de modos que, “os discursos e fazeres dos psicólogos repercutem crenças, desconfianças, interesses, projetos, necessidades e expectativas socialmente enraizadas“ (Tourinho et al., 2004, p.23). Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 81 Figura 26 Figura 27 A religião resolve os problemas em que a psicologia atua - TOTAL A psiquiatria resolve os problemas em que a psicologia atua - TOTAL 40 50 45 40 35 30 25 20 15 10 5 0 35 35 30 25 20 22 22 19 15 9 10 5 0 1 DT 50 45 40 35 30 25 20 15 10 5 0 D.P T.D C.P 43 19 9 1 C.T DT T.D C.P C.T Figura 29 A filosofia resolve os problemas em que a psicologia atua - TOTAL A própria pessoa resolve os problemas em que a psicologia atua - TOTAL 40 38 35 30 25 21 22 20 21 17 15 16 17 13 10 6 5 0 1 DT D.P T.D 1 C.P C.T DT Figura 30 Amigos e familiares resolvem os problemas em que a psicologia atua - TOTAL 35 32 31 30 25 20 15 15 17 14 10 5 0 1 DT 82 D.P Figura 28 44 19 14 D.P T.D C.P C.T Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 D.P T.D C.P C.T Conclusão A Psicologia como uma ciência e profissão tem conquistando mais espaço social, profissional e político, estando, portanto, em constante aprimoramento no Brasil, desde que ganhou oficialidade em 27 de agosto de 1962, entretanto, nesses cinquenta anos ainda não produziram uma plenitude de compreensão sobre seu papel e natureza junto à sociedade, ao chamado “senso comum”, mesmo que este seja um público universitário. Caberia indagar se tal “plenitude” será alcançada um dia, posto que uma representação social de qualquer fenômeno, seja de uma profissão e de seu profissional, modificam de forma dinâmica no próprio campo científico-profissional e na interação social. Podemos concluir, tomando por base nos dados junto aos 110 sujeitos de ambos estudantes universitários de uma faculdade privada de Cacoal-RO, que a representação social da Psicologia enquanto ciência e do Psicólogo enquanto profissional, possui os seguintes traços constitutivos: há um reconhecimento da importância do profissional psicólogo e de sua ciência, especialmente no cuidado da saúde mental; em relação às atribuições do psicólogo, este estuda e trata as emoções humanas, a mente humana, os relacionamentos humanos, no entanto, os sujeitos não diferenciam bem a especificidade da Psicologia em relação a outros conhecimentos e disciplinas, como a Psiquiatria, a Filosofia e a Religião. Em relação à percepção sobre as áreas de atuação da psicologia, a área clínica já não é tão predominante como em alguns anos, apresentando um maior índice de concordância com a percepção da presença profissional na área da educação, área social, da saúde, organizacional e do trabalho, esportiva e jurídica, talvez por serem áreas mais “sociais” e “públicas”, o que pode favorecer um maior contato com o profissional e que aponta uma nova face social da Psicologia engendrada nas três últimas décadas. Esse mesmo público leigo vê o psicólogo como uma pessoa “normal” (e mesmo que “complicado” e não “bem resolvido emocionalmente”) e como um profissional que pode compreender o sujeito e lhe ajudar na sua saúde mental, o que não se reduz a tratar de ‘doido’, tal como apontam certos estereótipos (“psicólogo é para louco”, por exemplo). Em relação às formas e métodos utilizados, para os sujeitos pesquisados, o psicólogo utiliza de técnicas de dinâmica de grupo, da escuta, de testes e de conselhos em seu trabalho, sendo que essa última representação nos remete à persistência de um imaginário desse profissional como conselheiro. Já em relação à especificidade da atuação da Psicologia, especialmente em relação a outros saberes ou campos, seja a religião, a psiquiatria, a própria pessoa, os amigos e a família, foram apontados como possíveis solucionadores dos problemas dos sujeitos, embora haja uma afirmação da importância da Psicologia, mas sob algumas dúvidas sobre sua efetividade, o que pode indicar um possível desconhecimento ou indiferenciação entre esses elementos e saberes. A referente pesquisa abrange apenas uma pequena amostra da população universitária da região de Cacoal-RO, embora significativa estatisticamente sobre o público da faculdade escolhida, com o objetivo de verificar a visão desse público leigo para com o profissional psicólogo e com própria profissão de psicologia. Nesse sentido, destacamos o alcance da pesquisa para o âmbito local e micro-regional, mas também Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 83 seu limite e a não pretensão de grandes generalizações para outros contextos e públicos; apontamos e defendemos, portanto, a necessidade de novas investigações que investiguem tanto a mesma categoria de sujeitos, como outras categorias profissionais, com recorte de gênero, estrato socioeconômico e geografia, de modos a obtermos um quadro mais amplos sobre as representações sociais sobre a Psicologia e o Psicólogo. Finalmente, entendemos que, para ser reconhecida pelo público em geral, pode ser necessário uma maior divulgação desta ciência e profissão, com o incentivo das universidades, dos Conselhos de classe e dos próprios profissionais em realizar pesquisas e campanhas que favoreçam o conhecimento e a credibilidade do saber psicológico, além de trabalhos que desmistifiquem as diversas imagens e estereótipos do profissional Psicólogo e da ciência/profissão Psicologia. Importa salientar, finalmente, que a Psicologia é uma ciência ainda jovem e uma profissão mais jovem ainda e, portanto, em construção no país, tornando-se cada vez mais conhecida e importante na dinâmica social, embora carregada de estereótipos e incompreensões, até que, enfim, possa se tornar numa “ciência da vida cotidiana”. Referências Araújo, M. C. (2008). A teoria das representações sociais e a pesquisa antropológica. Revista Hospitalidade. 2(1), 98-119. Arruda, A. (2002). 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Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 85 ANEXOS UNESC Faculdades Integradas de Rondônia Graduação em Psicologia E-Mail: [email protected] – Internet: www.unescnet.br Ψ PESQUISA EM PSICOLOGIA: “CULTURA PSI NA AMAZÔNIA OCIDENTAL”: REPRESENTAÇÕES SOCIAIS SOBRE A PSICOLOGIA E O PSICÓLOGO EM UNIVERSITÁRIOS DE UMA FACULDADE PRIVADA DE CACOAL-RO QUESTIONÁRIO SOCIODEMOGRÁFICO I – IDENTIFICAÇÃO Nome: ________________________________________________________________ ______________________________________________________________________ II – DADOS SOCIODEMOGRÁFICOS 1- Idade: ____________ 2 - Estado civil: ( ) Solteira/o ( ) Casada/o ( ) Separada/o ( ) Viúva/o ( ) União estável 3- Escolaridade: ( ) Nenhuma ( ) Ensino Fundamental: ( ) Incompleto ( ) Completo ( ) Ensino Médio: ( ) Incompleto ( ) Completo ( ) Ensino Superior: ( ) Incompleto ( ) Completo 4 - Profissão/ocupação (atual):_________________________________________________________________ 5 - Renda Familiar: ( ) Menos de um salário mínimo ( ) De 1 a 3 salários ( ) De 4 a 7 salários ( ) Acima de 10 salários 6 - Tem filhos: ( ) Sim ( ) Não – Quantos: _______ 86 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 87 13- O psicólogo atua na área organizacional e do trabalho 12- O psicólogo atua na área social 11- O psicólogo atua na área educacional 10- O psicólogo atua na área da saúde 9 – O psicólogo atua na área clínica 8- O psicólogo serve para resolver problemas que o psiquiatra não resolve 7- O psicólogo contribui para a saúde mental e qualidade de vida humanas 6- O psicólogo estuda e trata dos relacionamentos humanos 5- O psicólogo estuda e trata das emoções humanas 4- O psicólogo estuda e trata a mente humana 3- O psicólogo estuda e trata do comportamento humano 2- A Psicologia e o Psicólogo são importantes para a saúde mental das pessoas 1- A Psicologia e o Psicólogo tem importância na sociedade Afirmativas Discordo Totalmente Discordo Parcialmente Tenho dúvida Concordo Parcialmente Instruções Apresentaremos diversas frases relacionadas à Psicologia e ao Psicólogo. Pedimos que leia atentamente e marque na coluna à direita, a resposta que melhor represente a sua opinião. Concordo Totalmente REPRESENTAÇÕES SOCIAIS SOBRE A PSICOLOGIA E O PSICÓLOGO EM UNIVERSITÁRIOS DE UMA FACULDADE PRIVADA DE CACOAL-RO FORMULÁRIO 88 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Cacoal, _____de _________________de 2013 – Discordo Totalmente Discordo Parcialmente Assinatura:_________________________________ 30- Amigos e familiares resolvem os problemas em que a Psicologia atua 29- A filosofia resolve os problemas em que a Psicologia atua 28- A própria pessoa resolve os problemas em que a Psicologia atua 27- A psiquiatria resolve os problemas em que a atua 26- A religião resolve os problemas em que a Psicologia atua 25- O psicólogo utiliza de conselhos em seu trabalho 24- O psicólogo utiliza de dinâmicas em seu trabalho 23- O psicólogo utiliza de testes em seu trabalho 22- O psicólogo utiliza da escuta em seu trabalho 21- Sobre a expressão: “de psicólogo e louco, todo mundo tem um pouco” 20- Sobre a expressão: “psicólogo é coisa para doido” 19- O psicólogo é uma pessoa liberal 18- O psicólogo é uma pessoa “complicada” 17- O psicólogo é uma pessoa que compreende os problemas humanos 16- O psicólogo é uma pessoa bem resolvida emocionalmente 15- O psicólogo atua na área esportiva 14- O psicólogo atua na área jurídica Afirmativas Tenho dúvida Concordo Parcialmente Concordo Totalmente UNESC Faculdades Integradas de Rondônia Graduação em Psicologia E-Mail: [email protected] – Internet: www.unescnet.br Ψ TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO TÍTULO DA PESQUISA: REPRESENTAÇÕES SOCIAIS SOBRE A PSICOLOGIA E DO PSICÓLOGO EM UNIVERSITÁRIOS DE UMA FACULDADE PRIVADA DE CACOAL-RO Prezado Sr(a), Você está sendo convidado a participar de uma pesquisa que estudará e Identificaráas representações sociais que a população tem a respeito da profissão Psicologia e o profissional Psicólogo. • A sua participação nesse estudo consiste em oferecer informações que se dará através de um questionário. • Seus dados pessoais e outras informações que possam lhe identificar serão mantidos em sigilo e os resultados gerais obtidos nesta pesquisa serão utilizados apenas para alcançar os objetivos propostos. • Sua participação é muito importante e voluntária. Você não terá nenhum gasto e também não receberá nenhum pagamento por participar desse estudo. As informações obtidas nesse estudo serão confidenciais, sendo assegurado o sigilo sobre sua participação, quando da apresentação dos resultados em publicação científica ou educativa, uma vez que os resultados serão sempre apresentados como retrato de um grupo e não de uma pessoa. Você poderá se recusar a participar ou a responder algumas das questões a qualquer momento, não havendo nenhum prejuízo pessoal se esta for a sua decisão. Os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido, assinados pelos sujeitos da pesquisa, deverão, obrigatoriamente, ser arquivados pelo pesquisador responsável, durante um período mínimo de 5 (cinco) anos após o encerramento do estudo (Res. CNS 196/96 – Item IX.2.e). Os resultados dessa pesquisa servirão para conhecimento acadêmico e científico sobre as representações sociais da população de Cacoal-RO a respeito da Psicologia e do profissional de psicologia. Você receberá uma cópia deste termo onde consta o telefone e o endereço do pesquisador responsável, podendo tirar suas dúvidas sobre o projeto e sua participação, agora ou a qualquer momento, com o Pesquisador responsável: Prof. Ms. Cleber Lizardo Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 89 de Assis e a Acadêmica de Psicologia Gessica Alves de Souza Matthes. Rua dos Esportes, 1038, Incra, Cacoal – RO, Tel. (69) 3441-4503 Cacoal, ____ de ________________ de 2013. Dou meu consentimento de livre e espontânea vontade para participar deste estudo. Nome do participante:_______________________________________________ Assinatura do participante:____________________________________________ Data:____/_____/_____ Obrigado pela sua colaboração e por merecer sua confiança. Nome do Pesquisado-: Cleber Lizardo de Assis Assinatura do pesquisador:____________________________________________ Data:____/_____/_____ _____________________________ Recebido em agosto de 2014 Aceito em janeiro de 2015 Cleber Lizardo de Assis: Mestre em Psicologia/PUC-MG, Professor das Faculdades Integradas de CacoalUNESC/RO; Doutorando em Psicologia, USAL/AR. Géssica Alves de Souza Matthes: Graduanda em Psicologia pelas Faculdades Integradas de Cacoal- UNESC/RO. Endereço para contato: [email protected] 90 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Aletheia 43-44, p.91-104, jan./ago. 2014 Equilibristas embriagados: a dinâmica familiar alcoolista pelos vieses da Psicoterapia Familiar Sistêmica Marciana Zambillo Cláudia Mara Bosetto Cenci Resumo: Apresenta-se, a partir da psicoterapia familiar sistêmica, um estudo de caso de uma família com um de seus membros identificado com problemas relacionado ao uso abusivo de álcool. Tem-se como objetivo compreender como o desenvolvimento do sintoma (usar e abusar de álcool) retroalimenta a homeostase familiar a partir de um estudo de caso. A coleta dos dados foi realizada a partir do atendimento psicoterápico ocorrido durante 20 sessões em uma clínica-escola de Instituição de Ensino Superior. O estudo demonstrou que o uso abusivo de álcool se desenvolve como sintoma familiar para encobrir conflitos ou disfunções nas relações. No caso da família estudada, o sintoma encobria a comunicação disfuncional. O desejo e a busca por abstinência ocorria, mas a manutenção da mesma era incerta, uma vez que se fazia necessária para a homeostase do sistema. A partir da intervenção pode-se considerar que as mudanças na família são possíveis, houve definição e demarcação das fronteiras do sistema e subsistema familiar, desde que haja reflexão, construção de novos significados e transformações no modo de funcionar da família como um todo. Neste estudo foram atingidos uma melhora na expressão dos afetos, abertura para comunicação assertiva, entendimento da corresponsabilidade no sistema familiar. Palavras-chave: uso abusivo de álcool; dinâmica familiar; psicoterapia familiar sistêmica. Drunken juggler: The alcoholic family dynamics by biases of Systemic Family Psychotherapy Abstract: Presents, from the systemic family therapy, a case study of a family with one member identified as related to alcohol abuse problems. Has been aimed at understanding the development of the symptom (use and abuse of alcohol) feeds back the family homeostasis from a case study. Data collection was conducted from psychotherapy occurred during 20 sessions in a clinical school of Higher Education Institution. The study showed that alcohol abuse develops as a family symptom to cover dysfunction or conflicts in relationships. In the case of the family studied, the symptom covered the dysfunctional communication. The desire to search for the withdrawal occurred, but maintaining it was uncertain since it was required for the homeostasis of the system. From the intervention can be considered that changes in the family are possible, was the definition and demarcation of the boundaries of the system and subsystem family, provided there is reflection, construction of new meanings and transformations in the way of functioning of the family as a whole. This study achieved an improvement in the expression of affect, openness to assertive communication, understanding of responsibility in the family system. Keywords: alcohol abuse; family dynamics; systemic family psychotherapy. Introdução A família pode ser considerada como instituição social, passível de ser reconhecida e analisada por diferentes enfoques teóricos. Neste artigo, propõe-se analisá-la e compreendê-la sob a ótica da Psicologia Sistêmica. A Teoria Psicológica Sistêmica entende a família como um sistema social aberto composto por elementos em constante interação, que estabelece trocas com o exterior e com a realidade circundante, interagindo duplamente com o externo, levando para ele e trazendo dele influências gerais. Essas interações e trocas cotidianas fazem da família um sistema dinâmico, em constante mudança. Mudanças que surgem como forma de sobreviver, adaptar-se e superar possíveis dificuldades que possam afetar a dinâmica do sistema ao longo do seu desenvolvimento no ciclo de vida familiar. O que é pensamento sistêmico? Vasconcellos (2005) responde este questionamento destacando três dimensões, que, segundo ela constituem uma visão de mundo sistêmico. São elas: a) Complexidade: É ver e pensar as relações existentes em todos os níveis da natureza e buscar sempre a compreensão dos acontecimentos (sejam físicos, biológicos ou sociais) em relação aos contextos em que ocorrem; b) Instabilidade: É ver sempre o dinamismo das situações, pois o mundo está constantemente no “processo de tornarse” sendo assim configura-se em imprevisível e incontrolável. Entretanto, é necessário acreditar nos recursos de auto-organização dos sistemas e em suas possibilidades de mudança e evolução dos mesmos; c) Intersubjetividade: É reconhecer que não existem realidades objetivas, elas são construídas na interação com o mundo. Estas realidades vão se instalando e agindo também recursivamente sobre as interações com situações e pessoas. Vasconcellos (2002) ressalta que quando se refere ao pensamento sistêmico já está se reportando a um pensamento construtivista, ou seja, pressuposto epistemológico da intersubjetividade, da crença que a realidade é uma construção partilhada individual e coletivamente. Para atingir o pensamento sistêmico é necessário fazer a ultrapassagem de três pressupostos epistemológicos constituintes do paradigma da ciência tradicional, ou seja, a) do pressuposto da simplicidade para o pressuposto da complexidade: o reconhecimento de que a simplificação obscurece as inter-relações e que é imprescindível ver e lidar com a complexidade do mundo em todos os seus níveis; b) do pressuposto da estabilidade para o pressuposto da instabilidade do mundo: o reconhecimento de que o mundo é um constante processo de tornar-se e que a considerações de indeterminação, irreversibilidade e incontrolabilidade desses fenômenos; c) do pressuposto da objetividade para o pressuposto da intersubjetividade na construção do conhecimento do mundo: o reconhecimento de que não existe uma realidade independente de um observador e, de que, o conhecimento científico do mundo é construção social. Entende-se o uso abusivo e dependente de álcool como um fenômeno complexo, multifacetado e multifatorial e nesta compreensão, o alcoolismo é entendido como um sintoma de crise nas relações interpessoais. Isto é, o uso abusivo ou dependente do álcool denuncia que algo no sistema familiar está disfuncional, o que não é entendido como uma patologia individual, mas como um sintoma que ao mesmo tempo possui a função de encobrir uma dificuldade familiar denuncia a necessidade de mudança nas relações interpessoais, pois os indivíduos da família nuclear estão em sofrimento psíquico seja de forma explícita pelo pedido de auxílio ou de forma implícita. O sintoma em um membro da família (Nichols & Schwartz, 2006/2007) pode ter uma função estabilizadora, ou seja, homeostática beneficiando a interação familiar. Considera-se assim, não o indivíduo com 92 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 necessidades relacionadas ao consumo de álcool, mas a família com estas necessidades. Dentre as intervenções psicoterapêuticas possíveis, está o modelo de entendimento e tratamento proposto pela Terapia Familiar Sistêmica, que indica o tratamento para toda a família e não apenas ao indivíduo identificado com problemas relacionado ao uso e abuso de álcool. Dessa forma, no tratamento buscar-se comprometer todos os membros da família na busca por mudanças, resultando num sistema familiar mais engajado e menos fragmentado para o enfrentamento da problemática relacional. Esse estudo de caso apresenta a compreensão e análise das questões investigadas a partir de uma intervenção psicoterápica familiar sistêmica com uma família com problemas decorrentes do uso e abuso de álcool encaminhada para atendimento familiar numa instituição de ensino superior com o intuito de auxiliar a família no entendimento de sua coparticipação no padrão de funcionamento das relações intrafamiliares. A partir do atendimento familiar acredita-se que a família reconhece e desenvolve habilidades relacionais para o enfrentamento do uso abusivo de álcool possibilitando assim a proteção não só da família atendida, mas também das novas gerações oriundas desta que terão a oportunidade de desenvolver melhor qualidade de vida. O estudo de caso é entendido (Serralta, Nunes & Laks Eizirik, 2011) como um subtipo de pesquisa que utiliza uma estratégia de investigação naturalística e flexível. Neste estudo utilizou-se o estudo de caso único que se caracteriza por ser um fenômeno individual, particular e complexo. Sendo assim o caso é entendido como uma unidade específica, um sistema cujas partes estão integradas. Cabe ressaltar que um estudo de caso envolve análise do conteúdo do caso em profundidade, nos quais o pesquisador está interessado em obter qualidade de dados, em um número limitado de participantes exigindo descrições cuidadosas e detalhadas. Yin (2010) ressalta que o estudo de trabalhar a subjetividade na busca de conhecimento científico, que não há possibilidade de generalização dos resultados assim como não possui um único e claro conjunto de resultados. Tem-se como objetivo compreender como o desenvolvimento do sintoma (usar e abusar de álcool) retroalimenta a homeostase familiar a partir de um estudo de caso familiar. Método O presente estudo define-se como estudo de caso, por permitir uma percepção da realidade a partir dos ensinamentos advindos de referencial teórico e das características próprias do caso a ser estudado. Conforme Pereira, Godoy e Terçariol (2009), oferece a possibilidade de alargamento da visão, apreendendo o indivíduo em sua integridade e em seu contexto, permitindo a análise da dinâmica dos processos em sua complexidade. Por se tratar de um procedimento de pesquisa qualitativa, não busca generalizar os resultados que alcança no estudo, nem a criação de modelos que se pretendam universais e, sim, uma forma maior aproximação com a realidade. A família que participou deste estudo de caso chegou ao atendimento, no serviço que se configura como uma clínica escola de uma faculdade do Rio Grande do Sul, por encaminhamento feito pela psicóloga responsável de uma instituição psiquiátrica na Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 93 qual Pedro1 esteve internado para tratamento do uso abusivo de álcool. Os atendimentos iniciaram após a alta de Pedro. As sessões de psicoterapia foram realizadas com Pedro (60 anos), sua esposa Joana1 (60 anos) e seu filho José1 (32 anos). Esporadicamente, Laura1 (08 anos), neta do casal e sobrinha de José, se fazia presente. Os instrumentos utilizados foram um aparelho mp3 para a gravação em áudio de todas as sessões, a transcrição de todas as sessões e o genograma da família, através do qual foi possível obter uma visão ampliada histórico-contextual familiar, visando registrar, segundo McGoldrick, Gerson e Petry (2012), informações sobre os membros da família e suas relações em pelo menos três gerações. Este instrumento exibe dados familiares de forma a possibilitar o entendimento dos padrões familiares, das interações, levantando hipótese sobre os problemas que se desenvolvem no contexto da familiar ao longo do tempo. O caso foi atendido de março a dezembro de 2012, em sessões semanais, com duração de uma hora e trinta minutos cada sessão (foram realizadas 20 sessões) na clínica-escola. Os atendimentos foram realizados por duas estagiárias do curso de psicologia, pertencentes ao grupo de psicoterapia familiar sistêmica. O atendimento em dupla, numa coterapia, refere-se ao funcionamento das sessões com, no mínimo, dois estagiários psicoterapeutas de família em igual nível hierárquico e poder de decisão. Todos os atendimentos foram gravados em áudio, posteriormente transcritos e discutidos semanalmente pela equipe de supervisão, composta por uma professora supervisora e outros estagiários do atendimento sistêmico. Durante o processo terapêutico, em uma das sessões, toda a equipe participou do atendimento, estando presente na sala de Gesell (sala de espelhos), interagindo com a família e com a dupla terapêutica que estava sendo observadas. O projeto de pesquisa foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa de uma Instituição de Ensino Superior do Rio Grande do Sul. A família foi convidada a participar da pesquisa no primeiro encontro, após lhe foi apresentado o funcionamento da instituição, os procedimentos quanto aos atendimentos e solicitada a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A dinâmica da família com problemas relacionados ao uso abusivo de álcool pela perspectiva da terapia familiar sistêmica A família enquanto instituição social e de laços afetivos, segundo Dessen (2010) passou por diversas configurações, mudanças e adaptações de acordo com cada contexto sociocultural e histórico. Desta forma, também houve uma gama de possibilidades teóricas que se empenharam em compreendê-la e analisá-la, sendo a teoria psicológica sistêmica familiar uma delas. A Teoria Psicológica Sistêmica, de acordo com Farinha (2005), é extraída da Teoria Geral dos Sistemas de Von Bertalanffy, que por sua vez, parte do pressuposto de que os sistemas funcionam de forma aberta, dinâmica com ordens e processos em constante interação que se influenciam reciprocamente. Alves (2003) explica que é aberto porque estabelece trocas com o exterior e com o meio que o rodeia, interagindo duplamente, levando para ele e trazendo dele influências gerais. 1 Todos os nomes e sobrenomes contidos nesse artigo são fictícios e não fazem qualquer referência aos nomes originais. 94 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 A racionalidade sistêmica, de acordo com estudos de Ponciano e Carneiro (2006) e Costa (2010), compreende que se deve considerar mais o todo que a soma de suas partes, e cada parte só pode ser entendida no contexto de um todo, ou seja, as mudanças que acometem alguma parte, afeta, de alguma forma, todas as outras partes. Isso acontece, pois o sistema é formado de elementos atuantes e interdependentes que respondem um ao outro de forma autocorretora, funcionando como um complexo de elementos colocados em interação. Assim, a problemática do uso abusivo do álcool não é encarada como uma demanda particular, mas de todo o sistema familiar. Nesta perspectiva, Sudbrack (2010) destaca que não é possível entender a família por meio da análise individual de um único membro. Faz-se necessário, identificar os padrões e relações interpessoais estabelecidos entre os familiares, considerando os diferentes subsistemas que compõem o sistema familiar. Segundo Alves (2003), a família é formada por diversos subsistemas tais como: (a) conjugal (marido e mulher) – é o espaço privado de suporte afetivo e emocional do casal; (b) parental (pais e filhos) – cuja principal função é facilitar o adequado desenrolar do processo evolutivo e promover a sua educação e socialização. É necessária uma grande flexibilidade e uma constante evolução e adaptação às diferentes fases do desenvolvimento humano; (c) fraternal (conjunto de irmãos) – primeiro grupo onde a criança aprende a funcionar interpares, a negociar, a competir, a fazer aliados, etc. Os subsistemas têm fronteiras que, segundo Carneiro (1996), definem quem pode ou não participar deles. Para que o funcionamento familiar seja adequado, estas fronteiras devem ser nítidas. De acordo com Minuchin (1982), quando as fronteiras, os limites dos papéis e subsistemas não são claros, podem colocar a família em duas extremidades opostas e disfuncionais, numa ponta famílias emaranhadas, noutra desmembradas. Nas famílias emaranhadas, as fronteiras entre gerações e indivíduos são difusas, mal definidas, enquanto a fronteira com o exterior é rígida, havendo um mito de unidade que tolera poucas diferenças na individualização; são sistemas relativamente fechados e isolados em relação ao meio. A ligação afetiva é muito forte ou ligada, muita lealdade e muita dependência. Já as famílias desmembradas, de acordo com Minuchin (1982), tendem a ser excessivamente abertas, os papéis parentais são instáveis, apesar de uma aparente rigidez. As famílias saudáveis emocionalmente, segundo Carneiro (1996), possuem fronteiras claras. Se as fronteiras entre os subsistemas familiares são claras as famílias possuem um nível de comunicação e interação que facilita as trocas interacionais e assim aumenta o nível de qualidade relacional e psíquica. Os padrões relacionais, de acordo com Sudbrack (2010), estão em constante mudança, já que a família é uma estrutura em movimento contínuo. Para manter o estado de equilíbrio, o sistema modifica-se e adapta-se às mudanças internas e externas. Quando a família não consegue adaptar-se a essas mudanças e o equilíbrio se vê ameaçado, instaura-se uma crise no funcionamento relacional. Steinglass (1971, apud Alves, 2003) desenvolveu um modelo de funcionamento familiar que representa relações de codependência. Este modelo pressupõe que os membros da família interagem uns com os outros regidos por leis de equilíbrio comparáveis às da física. Essa crise, diz Sudbrack “se expressa por intermédio do comportamento inadequado ou do sofrimento de um dos membros que assume este lugar, denominado ‘paciente identificado (PI)’” (2010, Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 95 p. 928). O papel do paciente identificado é garantir o equilíbrio do sistema e denunciar a necessidade de mudança nas relações familiares. O PI, segundo Burd (2004) passa a ser o único motivo do sofrimento da família, ele precisa ser cuidado e protegido por ela. A doença desvia a atenção da família do momento de mudanças que precisam ser realizadas. A doença emerge, pontua Mello Filho (2004), como resultante dos conflitos familiares subjacentes. O PI passa a funcionar como ‘bode expiatório’ dos problemas familiares não resolvidos. Essa doença aparece em configurações familiares patológicas que propiciam a descompensação de um ou mais membros. Quando um membro deste sistema exibe uma doença identificável, protege os demais membros, permanecendo estes, sadios. O uso de álcool e outras drogas, de acordo com Caputo e Bordin (2008) e Brusamarello, Sureki, Borrile, Roehrs e Maftum (2008), é um mecanismo desenvolvido na tentativa de focar a atenção da família no sujeito adicto e não na resolução da crise no sistema familiar que é anterior ao uso abusivo ou dependente. Para Sudbrack, (2010, p. 930) “a dependência de produtos tóxicos encobre, na maior parte das vezes, dependências relacionais e, em certos casos, mascara distúrbios severos de natureza psiquiátrica”. O autor destaca que não há um indivíduo adicto, mas sim um sistema adicto, que envolve pelo menos uma pessoa além do usuário da substância psicoativa, e estes são chamados codependentes. Conforme a teoria sistêmica, as relações entre o álcool e família não se resumem exclusivamente aos efeitos negativos da dependência em si. De acordo com Alves (2003) o uso abusivo de álcool tem sua origem nas comunicações disfuncionais entre os membros da família. Em outras palavras, as perturbações comunicacionais dificultam o funcionamento e a possibilidade de cumprir as funções familiares. Assim, a problemática envolvendo o álcool poderia reduzir transitoriamente as tensões familiares e paradoxalmente, aumentando a curto, e às vezes mesmo em longo prazo, a estabilidade familiar. Alves (2003), compila diferentes estudos e autores que pensaram o uso abusivo de álcool a partir de uma perspectiva sistêmica, destacando Ewinge e Fox (1968), Steinglass (1971), Davis (1974), Gacic (1977) e Aleksic e Gacic (1981). De modo geral, os autores são unânimes ao ver no o uso abusivo de álcool um mecanismo homeostático, com efeitos adaptativos, que permite a família manter certo equilíbrio e resistir à mudança, ajudando a manter a coesão familiar. Também consideram o uso abusivo de álcool como um sintoma da comunicação, classificando as comunicações na família alcoólica como disfuncionais, superficiais e incongruentes. Segundo Alves (2003), o tratamento direcionado ao o uso abusivo de álcool na década de 40, centrava-se nos modelos moral e médico individual. Na década de 50, com a perspectiva biopsicossocial, é dada mais atenção ao cônjuge do alcoolista e na década de 70, finalmente, a todo o sistema familiar. É devido a esse entendimento, diz Sudbrack (2010), que a perspectiva sistêmica propõe que a família toda seja envolvida no tratamento e não apenas o paciente identificado, pois toda a família é responsável pelo sintoma. Para Falceto (2008) a justificativa de se tratar toda a família é com base no argumento da retroalimentação constante em todos os movimentos realizados pelos integrantes do núcleo familiar. A mudança de um membro 96 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 da família interfere nos demais e o movimento da família interfere na atitude de um membro desta família. Apresentação do caso A família foi encaminhada para atendimento clínica-escola em questão por uma clínica psiquiátrica, na qual Pedro estava internado para tratamento do uso dependente de álcool pela segunda vez em 4 meses. Pedro explica que um dos critérios propostos pela clínica para receber alta da internação seria o início de um processo psicoterápico familiar. Pedro é o primeiro filho de 13 irmãos, todos filhos biológicos. Seu pai era alcoolista e dono de um bar. Aos 14 anos Pedro saiu da casa dos pais e passou trabalhar e morar em granjas. Nesta época, teve as primeiras experiências com álcool. Bebia com frequência e em grandes quantidades. O uso de álcool diminuiu quando Pedro estava com 25 anos, passando a beber esporadicamente, quando se casou com Joana. Joana é filha mais velha e biológica de Eulália, nunca teve contato com o pai, embora saiba quem é. Tem uma irmã de criação 22 anos mais jovem. Após o casamento, o casal passou a morar com Eulália, mãe de Joana, com quem residiram até o falecimento da mesma. O casal, em quatro anos de matrimônio, vivenciou três abortos. Depois disso, nasceu o primeiro filho José. Quando José tinha 2 anos nasceu o segundo filho, Roberto, que faleceu com pouco mais de 30 dias de vida. Três anos depois, nasceu o terceiro e último filho do casal, Carlos. Após o nascimento dos três filhos, Joana tornou-se obesa. Posterior à morte de Roberto, em 1982, Pedro voltou a beber de forma frequente e intensa. Esse padrão de uso perdurou até 1994, por 12 anos, quando então, a família providenciou uma internação psiquiátrica para Pedro. O tratamento teve duração de 30 dias e Pedro permaneceu em abstinência por 14 anos, até 2008. Carlos (27 anos), filho mais novo, saiu de casa quando se casou. Ficou casado por dois anos com Olívia e teve a filha Laura. Após a separação de Carlos e Olívia, Laura ficou morando com a mãe, mas os avós paternos pediram sua guarda e permanecem com ela. Nesta mesma época, Pedro com 56 anos, foi orientado pela empresa onde trabalhava a retomar os estudos. Pedro relata que ao retomar os estudos houve também o retorno ao convívio social de forma mais intensa junto aos colegas de aula e, como culturalmente as relações sociais são permeadas pelo uso de álcool, Pedro, frente a tal exposição gradualmente retomou o consumo de álcool até retornar ao padrão de uso abusivo. Carlos casou-se novamente, sua segunda esposa Taís já tinha uma filha chamada Patrícia, que, no momento do atendimento, morava com seu pai. No período do atendimento Pedro, Joana, José e Laura residiam na mesma casa. No porão, moravam Carlos, Taís e a filha Muriele, de 5 meses. José tinha 32 anos na época do estudo, morava com os pais, trabalhava em turnos rotativos, namorava uma mulher dez anos mais velha. Frequentava uma igreja diferente daquela que família participava. Tinha poucos relacionamentos sociais, estava acima do peso e mantinha-se, a maior parte do tempo isolado da família, permanecendo no quarto ou pilotando sua moto. Laura tinha 08 anos de idade, estudava no Ensino Fundamental, o restante do tempo passava com os avós. José é seu padrinho, o relacionamento entre Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 97 ambos é muito próximo e por isso acabou assumindo responsabilidades, de acordo com a família, “como se fosse um pai”. Pedro desenvolveu artrose no joelho direito, as perícias médicas indicaram que a causa fora suas atividades laborais, após duas cirurgias, Pedro foi aposentado por invalidez. Joana dedica-se aos afazeres domésticos e a vendas de lingerie para suas vizinhas e conhecidas. A família de classe C tinha seus rendimentos oriundos das vendas de lingerie de Joana, da aposentadoria de Pedro e do salário de José, aproximadamente dois mil e quinhentos reais por mês, que serviam ao sustendo regular dos três e da neta Laura. Esporadicamente ajudavam nos gastos de Carlos, Taís e Muriele. A figura abaixo apresenta a família Tavares, destacando o tipo de relação estabelecida entre seus membros. Resultados A família atendida procurou o tratamento psicoterápico na tentativa de resolver o consumo abusivo de álcool feito por Pedro. A procura de tratamento (Falceto, 2008) 98 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 costuma ocorrer por meio de um membro da família para ajudar o familiar identificado como problemático. Quando ocorre este pedido de atendimento a família já enfrentou inúmeras dificuldades intrafamiliares tais como: a quebra da rotina familiar, situação de vulnerabilidade, desamparo e frustração, aumento de conflitos já existentes no núcleo familiar, além de dúvidas com relação ao tratamento psicoterápico (Medeiros, Maciel, Sousa, Tenório-Souza & Dias, 2013). A família manteve-se engajada ao longo do tratamento, apesar de cancelarem algumas sessões, quando a homeostase familiar era ameaçada durante o processo. Quando algum membro da família modificava sua forma de agir e/ou se relacionar com os demais buscando a mudança, seja em termos de se independização e ou expressão de afetos, os demais boicotavam o movimento de mudança faltando ao atendimento para não precisar mudar seu padrão de funcionamento. No entanto, a família, depois de um tempo para resignificar a mudança comparecia novamente a sessão e mostravam-se dinâmicos, colaborativos, ágeis, e muito inteligentes. Nos primeiros encontros das psicoterapeutas estagiárias com a família, partiu-se da demanda trazida por eles, ou seja, o uso abusivo de álcool de Pedro. Na tentativa de ampliar o entendimento sobre dependência, investigaram-se quais seriam as dependências de cada um dos membros da família. Dessa forma, referiram que, Pedro ingeria bebidas alcoólicas para “afogar as mágoas” e não precisar falar delas; Joana extrapolava sua tristeza e mágoas comendo excessivamente e fazendo caretas que inibissem a vontade do outro dialogar com ela, mantendo-se com obesidade mórbida, diabetes em nível elevado e muitas dores nos joelhos; e José, para dar conta das tensões isolava-se da família depositando toda a sua atenção na televisão, internet e pilotando velozmente. O isolamento fazia com que José não externalizasse seus sentimentos, explodindo em rompantes de agressividade e picos de hipertensão arterial, que, por vezes, o levaram ao hospital. Vale ressaltar que as dependências ou abusos mapeados pela família foram desenvolvidas, segundo entendimento coletivo feito nas sessões, como mecanismo de evitar o diálogo sobre a mágoa, sentimento que é repetido seguidamente pelos três integrantes, segurando-a somente para si devido à culpa de senti-la. Segundo Costa (2010), a formulação teórica da dinâmica familiar compreende o surgimento dos sintomas como uma função estabilizadora de um movimento de mudança iminente, portanto, com função homeostática. Pode-se pensar, desta forma, que a abertura para o diálogo, o falar de si e ouvir o outro é um movimento que implica colocar-se, vislumbrar os próprios pontos de vista e dos demais, um movimento de mudança. Neste sentido, não é um familiar que tem um sintoma, mas uma família com sintoma. A equipe psicoterapêutica partiu da hipótese de que o uso abusivo de álcool denunciava um funcionamento de codependência e comunicação disfuncional da família como um todo. O álcool, a comida e o isolamento têm em comum a missão de entrar em cena quando existe a necessidade de comunicar sentimentos de tristeza, mágoa, irritação ou frustração com relação ao outro. A tendência dos membros da família de guardar a mágoa e diluí-la na raiva, no álcool ou na comida surge pelo medo de entristecer o outro, ao manifestar sentimentos de desagrado e descontentamento. Para não amargurar o outro e perder seu amor, reprimem a fala. No entanto, pela circularidade postulada por Nichols e Schwartz (2007), segundo a qual os membros familiares funcionam por influências Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 99 mutuas, ao deixarem de falar, também deixam de escutar, ou seja, não há conversa a ser escutada. Assim, a comunicação paira no terreno dos ‘não-ditos’, dos ‘acho-que’. Esse funcionamento mantêm a homeostase familiar, sendo comum em famílias alcoolistas as dificuldades de comunicação (Trindade, Costa & Zilli (2006). O medo de perderem um ao outro pelo desgosto mantém a família fusionada e emaranhada. Quanto mais o álcool ameaçava a família, mais ela precisava se unir para combatê-lo. O fusionamento limita o espaço de performace das individualidades e, consequentemente, a expressão de desagrado. Tolerar, estar fusionado ao outro e reduzir o espaço de si mesmo torna as situações bastante difíceis de serem suportadas, assim, o álcool, a comida e o isolamento são mecanismos de escape utilizados numa espiral repetitiva. O emaranhamento refere-se, segundo Minuchin (1982), às fronteiras difusas e aos papéis mal definidos entre as gerações e subsistemas, o que propicia um fusionamento familiar. A falta de diferenciação dos subsistemas desencoraja a exploração autônoma e o domínio dos problemas. Em outras palavras, se os papéis e fronteiras não são claros, logo a ligação afetiva se torna forte de tal maneira que desemboca na dependência, expressando, de acordo com Trindade, Costa e Zilli (2006), dificuldades de adaptação e falta de capacidade da família para se relacionar com o ambiente social. O funcionamento do sistema compreende diversos subsistemas, onde se configuram as alianças. Wendt e Crepaldi (2008), ressaltam que a aliança faz alusão às lealdades invisíveis que interferem no processo de fusão ou diferenciação. Na família atendida, percebeu-se que as alianças existentes eram entre Joana e José, o que garantia a organização do lar. Pedro e Carlos formavam uma aliança ao serem cúmplices para encobrir segredos relacionados ao uso de álcool de ambos e quebra de regras familiares, por exemplo: omitir onde se estava, com quem e por qual motivo. Outra aliança, José e Laura, onde José sente-se e porta-se como pai de Laura, ao passo que a menina o reconhece como tal. As alianças transgeracionais, segundo Trindade, Costa e Zilli (2006) revelam como uma geração acaba por interferir demasiadamente na outra, impedindo que o novo núcleo familiar forme uma nova identidade e uma nova configuração mais saudável. No entanto, alertam Wendt e Crepaldi (2008), podem ser modificadas, principalmente, nos ciclos de transição pelos quais passam a família. O casal demonstrou situações de insegurança quanto ao desejo amoroso. Joana desconfia que Pedro se envolveu em relacionamentos extraconjugais, ao passo que Pedro não acredita que Joana queira estar casada com ele e quando embriagado questionava a esposa sobre sua fidelidade. A suspeita de adultério de ambos os cônjuges gera estresse e violência psicológica conjugal. Vale ressaltar que em momentos de embriagues, as agressões também eram físicas. Quando Pedro abusava do álcool geralmente ficava agressivo com as pessoas da rua e da família, nestes momentos José com então 12 anos de idade precisa ir buscar o pai e levá-lo para casa. As pessoas zombavam de Pedro ou respondiam as suas provações e isso deixava José com o sentimento de obrigação de defendê-lo. A raiva de José nestes momentos era direcionada aos zombadores. O fato de ter que recolher o pai fazia o filho ficar ainda mais próximo da mãe, consolidando a aliança entre eles. Enquanto a aliança entre mãe e filho é fortalecida, a de esposa e esposo enfraquece. A aliança entre José e Joana torna-se rígida para fortalecê-los e darem conta da embriaguez. Ao unir mãe e filho, afasta e não deixa espaço para o pai. 100 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Pedro, ao sentir-se sozinho e sem esposa, faz uso abusivo de álcool e assim mantém a homeostase familiar. Joana é uma mãe muito cuidadosa, preocupada e protetora dos filhos, em contrapartida, descuida da sua relação conjugal, distanciando-se do seu papel de mulher e esposa. Enquanto Pedro, desvalidado devido ao alcoolismo, assume o papel de filho de Joana e José. A literatura, segundo Alves (2003), propõe hipóteses teóricas sobre os filhos e as companheiras de indivíduos com problemas relacionados ao uso abusivo de álcool, e os reajustamentos comportamentais no casal e na família. Sintomas comuns são nas companheiras são as cefaleias, obesidade, depressão, doenças psicossomáticas e outras doenças relacionadas com o estresse. Normalmente as esposas são mulheres inseguras. José teve diversas namoradas ao longo da vida, mas nenhuma satisfez a família. A família desqualifica as companheiras encontradas por José e espera que ele possa ser feliz com outra pessoa. A possibilidade de José encontrar uma pessoa e construir sua vida com ela ameaça o sistema familiar emaranhado, nesta lógica, nenhuma nora será boa o suficiente. A saída do filho de casa significa que Pedro e Joana terão tempo e espaço para enxergarem-se enquanto casal e vivenciarem-se nele. José sente-se responsável pela família e sobrecarregado pelas obrigações financeiras, de cuidado e gestão da família. Embora reconheça as vantagens de ficar na casa dos pais, como a acomodação de não precisar escolher e responsabilizar-se pelo rumo de sua própria vida. Dentro dessa racionalidade, José tem obrigações que extrapolam suas condições e o sobrecarregam. Precisou assumir os cuidados com o pai, as despesas da casa, a gerência a assistência junto a mãe e a adoção emocional da sobrinha, não fazer uso de álcool ou cigarro, gostar de ficar em casa, ter poucos amigos. Ao Carlos resta o papel de durão, irresponsável e acobertado pelo pai. Carlos e Pedro tecem suas relações na troca de vícios, se emprestam cigarros, se acobertam na embriagues. Carlos teve uma filha não planejada, impõe-se diante da família, não assume as despesas da casa, saiu da casa dos pais para se casar e retorna quando o primeiro casamento encerra. Mantém-se vivendo nas dependências da casa dos pais e os pais por sua vez mantém retroalimentando a dinâmica de dependência do filho que apresenta dificuldade para tornar-se adulto e responsabilizar-se pelos próprios atos. Discussão e considerações finais A perspectiva familiar sistêmica da psicologia diferencia-se das outras abordagens de entendimento familiar pelo seu método e teoria. A psicoterapia sistêmica familiar parte do entendimento do sistema e seus subsistemas e não da visão individual das temáticas. Trata-se de compreender o sistema familiar como um todo, sendo que as mudanças que acometem alguma parte, afetam, de alguma forma, todas as outras partes. A família é formada de membros atuantes e interdependentes que exercem influências mútuas e transgeracionais em interação. Assim, de acordo com este viés, todas as problemáticas são encaradas como demandas familiares e não unicamente individuais. O sintoma se desenvolve para encobrir um conflito ou um funcionamento disfuncional. No caso da família estudada, o sintoma encobria a comunicação disfuncional da família ao mesmo tempo que denunciava a possibilidade de uma reorganização familiar, que foi possível a partir da busca pelo Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 101 tratamento familiar, no qual todos os membros são corresponsáveis pela dinâmica que se estabelece e assim possibilitar a mudança inter-relacional. A busca pela abstinência ocorria, mas a manutenção da mesma era incerta, já que era necessário para a manutenção da homeostase do sistema familiar no qual o o uso abusivo de álcool encobria conflitos velados. O sintoma era um reforçador, para manter a comunicação disfuncional e dessa forma mantinham-se os papéis indefinidos e as fronteiras difusas. Esse funcionamento permitia que a família se mantivesse unida, ainda que emaranhada. A partir da intervenção podem-se perceber mudanças na família, como o reconhecimento do papel e importância de cada um no funcionamento da dinâmica familiar; o entendimento da corresponsabilidade de todos pelo sustento, organização e gestão da vida familiar, como as despesas, a educação, a alimentação, a higiene, a saúde, a expressão dos afetos, a resolução dos conflitos. Assumir a responsabilidade e dividi-la com os demais permite o movimento duplo: de ser parte fundamental daquele grupo, sem, no entanto, sobrecarregar uma única pessoa, promovendo laços de afeto e solidariedade. A melhora da comunicação verbal e não verbal entre os indivíduos possibilitou a expressão dos desejos, a diminuição da frustração, o compartilhamento das tristezas e a minimização da culpa. Estes resultados foram atingidos por meio da delimitação de fronteiras entre os subsistemas da família e a demarcação e o respeito ao espaço individual do outro no sistema familiar. A intervenção na dinâmica familiar alcoolista realizada pelo viés da psicoterapia sistêmica, parte do pressuposto que a abstinência alcoólica, desejada pela família, não é possível sem a construção de novos significados e transformações no modo de funcionar da família como um todo. O sistema familiar é dinâmico por natureza, por tanto as transformações são possíveis. A família atendida conseguiu, ao longo do processo terapêutico, engajar-se no tratamento, refletir e esforçar-se para mudar seu comportamento. Tal mudança foi observada a partir do reconhecimento do papel de cada um, na melhora da comunicação verbal e não verbal entre os indivíduos, delimitação de fronteiras entre os subsistemas e respeito ao espaço individual do outro no sistema familiar. Referências Alves, P. T. (2003). Alcoolismo paterno e comportamento: Rendimento escolar dos filhos, contribuição para o seu estudo. Dissertação de Mestrado em Psiquiatria e Saúde Mental. Universidade do Porto. 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São Paulo: Bookman. _____________________________ Recebido em agosto de 2014 Aceito em janeiro de 2015 Marciana Zambillo: Graduada em psicologia; Mestranda em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grade do Sul – UFRGS. Cláudia Mara Bosetto Cenci: Psicóloga; Doutoranda em Psicologia Clínica PUC/RS; Professora da IMED/RS. Endereço para contato: [email protected] 104 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Aletheia 43-44, p.105-115, jan./ago. 2014 Assertividade em mulheres dependentes de crack Márcia Cristina Henrique de Souza Bruna Krimberg Von Mühlen Leda Rúbia Maurina Coelho Cristiano Pereira de Oliveira Viviane Samoel Rodrigues Margareth da Silva Oliveira Marlene Neves Strey Resumo: O objetivo deste estudo foi averiguar a assertividade de mulheres dependentes de crack, durante a sessão “Recusas Eficazes”, retirada de um manual de terapia baseado nos estágios de mudança para tratamento em grupo de usuários de drogas. Constitui-se de uma pesquisa exploratória e descritiva de abordagem qualitativa que teve como cenário uma Comunidade Terapêutica feminina, tendo seu delineamento através da transcrição da sexta sessão produzida ao longo do ensaio clínico randomizado intitulado “Estudo da efetividade da intervenção do modelo transteórico para pacientes dependentes de crack”. Foi utilizada a técnica da análise de conteúdo, que originou as seguintes categorias a posteriori: “Estratégias de oferta da droga” e “Temáticas emergentes na discussão após a técnica de role-play”. Dentre os achados deste estudo destaca-se que durante a dramatização as participantes revelaram que utilizaram no exercício as mesmas estratégias de oferta que muitas vezes foram utilizadas por outras pessoas para convencê-las ao uso em suas experiências cotidianas vivenciadas anteriormente, eliciando reflexões sobre como recusar e sentimentos de nojo e medo da droga. Por isso, entender a dinâmica de recusa das drogas possibilita a descoberta de novas intervenções em prevenção à recaída neste. Palavras-chaves: Assertividade, Crack, Mulheres. Assertiveness for women’s crack dependent Abstract: The objective of this study was to determine the assertiveness of women dependent crack, during the session “Refusals Effective”, taken from a manual therapy based on the stages of change for treatment in drug users group. It consists of an exploratory and descriptive qualitative approach that took place at a community women’s therapy, taking your design through the transcript of the sixth session produced over randomized clinical trial entitled “Study of the effectiveness of the intervention of the transtheoretical model for dependent patients crack “. We used the technique of content analysis, which yielded the following back-categories “of drug supply strategies” and “Emerging Issue in the discussion after the role-play technique.” Among the findings of this study highlight the need to role play the participants revealed that used in the exercise the same offer strategies that have often been used by others to convince them to use in their everyday experiences previously experienced, eliciting thoughts on how to refuse and feelings of disgust and fear of the drug. Therefore, understanding the dynamics of drug refusal enables the discovery of new interventions on relapse prevention in this. Keywords: Crack, Assertiveness, Women’s. Introdução No Brasil, os usuários de crack, são em sua grande maioria, do sexo masculino, ou seja, 78,7%, apesar de pesquisas brasileiras anteriores demonstrarem proporções bem próximas entre homens e mulheres (Fiocruz, 2013). Resultados apresentados nesta mesma pesquisa que versam sobre as mulheres usuárias de crack são preocupantes, revelando que 44% sofrem violência sexual, 10% estavam grávidas no momento da entrevista e 50% mencionaram que engravidaram enquanto faziam uso regular do crack (Fiocruz, 2013). Mas, apesar disso, as mulheres acabam sempre buscando mais suporte social do que os homens (Porter, Marco & Schwartz, 2000). O consumo de crack no Brasil passou a ser considerado um grave problema de saúde pública, responsável por 70% das internações por uso de substâncias (Filho, Turchi, Laranjeira & Castelo, 2003; Pulcherio, Stolf, Pettenon, Pulcherio & Kesler et al., 2010; Raupp & Adorno, 2011). Além disso, inúmeros estudos evidenciam a relação entre o consumo de crack e a violência e a criminalidade (Filho et al., 2003; Ribeiro, Dunn, Sesso, Dias & Laranjeira et al., 2006; Oliveira & Nappo, 2008; Pulcherio et al., 2010; Raupp & Adorno, 2011). Já se considerou assertividade ou comportamento assertivo sinônimo de Habilidades Sociais por Argyle (1967). “Habilidades Sociais” é um construto considerado descritivo, como classes de comportamentos sociais que contribuem para o sucesso do cumprimento de uma tarefa social visando à competência social. Dentro deste conceito estão as Habilidades Sociais Assertivas de Enfrentamento, compreendidas em Direito e Cidadania, Habilidades Sociais Empáticas, Habilidades Sociais de Trabalho e Habilidades Sociais de Expressão de Sentimento Positivo (Del Prette & Del Prette, 2010a). Compreendendo-se que a Assertividade envolve questões de enfrentamento no contato com outras pessoas, ser assertivo, portanto, envolve poder afirmar-se, expressar pensamentos, sentimentos e crenças de maneira direta, honesta e apropriada, não violando direitos e produzindo uma imagem positiva de si mesmo e de sentimentos de respeito (Del Prette & Del Prette, 1999). Na tentativa de restaurar o equilíbrio, as habilidades assertivas específicas para agir de acordo com a decisão de recusar bebida alcoólica e o consequente enfrentamento poderão ser utilizadas (Monti, Kadden, Rohsenow, Cooney & Abrams, 2005). Atualmente, as habilidades sociais têm sido foco de vários estudos sobre a implicação de comportamentos na qualidade de vida dos indivíduos. Caballo (2002) e Del Prette e Del Prette (1999) descrevem as formas assertiva, não assertiva e agressiva como sendo as três maneiras do indivíduo se comportar. Portanto, as habilidades sociais são classes de respostas comportamentais, uma vez que comportamentos sociais específicos são agrupados sob a categoria de “habilidade social” (Del Prette & Del Prette, 2009). As disfunções de ordem comportamental e/ou psicopatológica podem interferir de maneira negativa nas habilidades sociais e, portanto, contextos de uso e dependência de substâncias podem estar associados a déficits em tal área (Caballo, 2005). No contexto de consumo de drogas, ser habilidoso socialmente representa importante fator de proteção (Wagner & Oliveira, 2009), pois a habilidade de recusar a droga possibilitará que a abstinência seja mantida. 106 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Com a impossibilidade de se manter a abstinência, ocorre um fenômeno que é recorrente em se tratando de dependência química: a recaída. Existem muitos fatores envolvidos na dependência química e estes podem ocasionar uma recaída quando não estiverem bem resolvidos, como, por exemplo, a abstinência. Manter-se abstinente é difícil, pois uma série de estímulos de ordem emocional, cognitiva, física e social interferem nesse processo. É preciso compreender que o organismo abstinente passa por estados de fissura, estados emocionais negativos e desconfortos fisiológicos característicos que podem apresentar-se como suor frio e tremedeiras, e isso torna a abstinência um grande desafio na manutenção do tratamento da dependência química (Diehl, Cordeiro & Laranjeira, 2011). Segundo Wiekiewitz e Marlatt (2004), indivíduos que estão tentando manter comportamentos saudáveis, tais como abster-se de beber ou de usar drogas, enfrentam o desafio de equilibrar as situações do contexto e suas possíveis consequências. Assim, é necessário que o dependente químico desenvolva estratégias de enfrentamento diante de situações de risco que podem levá-lo a uma recaída no comportamento de uso da substância. Para manter-se a abstinência e favorecer um período de estabilidade em relação ao controle do uso de drogas é necessário prevenir a recaída. Neste contexto a abordagem da Prevenção à Recaída se torna imprescindível para o sucesso de um tratamento. É uma abordagem dentro de uma categoria geral da terapia cognitivo-comportamental que compõe áreas para avaliação como as habilidades e recursos que podem ser ambientais, sociais, emocionais e cognitivos (Carroll & Rawson, 2009). Frente a estudos que confirmam os prejuízos de longo alcance trazido pelo uso de drogas, faz-se necessário a apropriação de maiores conhecimentos acerca de como usuários de crack lidam com estratégias de recusa para o uso da droga. Com isto, o objetivo deste estudo foi averiguar a assertividade de mulheres dependentes de crack, internadas em comunidade terapêutica, durante a sexta sessão “Recusas Eficazes”, retirada do livro “Tratamento em grupo para usuários de drogas: Um manual de Terapia baseado nos Estágios de Mudança” (Velasquez, Maures, Crouch & Diclemente, 2013). Analisar o conteúdo de tal sessão torna-se relevante no sentido de trazer dados sobre como mulheres usuárias de crack vivenciam a experiência de oferta e recusa da droga, ou seja, sua assertividade neste contexto. A análise das falas de mulheres dependentes de crack apresentam uma riqueza de dados acerca de suas vivências, crenças, anseios e dúvidas frente ao mundo do uso e à necessidade de dizer não a tantas situações tentadoras surgidas. Método Trata-se de uma pesquisa de caráter descritivo e exploratório, de abordagem qualitativa, tendo como cenário uma Comunidade Terapêutica – CT feminina da região metropolitana de Porto Alegre. O tratamento em CT é uma opção mais popular e acessível que busca adaptar-se a diversos níveis socioeconômicos e culturais, visando proporcionar aos pacientes o aprendizado de novas formas de relacionamento Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 107 e estratégias para lidar com adversidades, intervindo num sentido de evitar recaída e promover a reinserção social com um novo estilo de vida (Herzog & Wendling, 2013). Na CT onde foi desenvolvido o estudo, encontravam-se aproximadamente vinte mulheres entre 18 e 59 anos dependentes de álcool e outras drogas. Foram participantes do estudo seis mulheres, apenas as dependentes de crack que estavam participando da sexta sessão de tratamento do ensaio clínico randomizado intitulado “Estudo da efetividade da intervenção do modelo transteórico para pacientes dependentes de crack”, o qual é composto de oito sessões. Durante a sessão “Recusas Eficazes” foram seguidas as instruções do manual de Velasquez et al., (2013) e foi realizado um role play (dramatização), onde as participantes ficavam em duplas, simulando situações de oferta de crack, enquanto uma tinha como tarefa tentar por três minutos completos incentivar e convidar a fumar, a outra recusava durante três minutos dizendo apenas a palavra “não”, depois deste tempo invertiam os papéis. Passado este exercício, foi realizada uma discussão com o grupo utilizando as seguintes questões: Como se sentiu ao dizer “não”? Você duvida da sua capacidade de se manter dizendo não? Quais foram os seus pensamentos quando você estava tentando recusar? Que emoções você experimentou? A referida sessão ocorreu no primeiro semestre de 2013 e após ser transcrita na íntegra, foi utilizada a técnica de análise de conteúdo proposta por Bardin (2006), onde a partir da leitura do material foram construídas as unidades temáticas, resultando na construção de duas categorias e dez subcategorias construídas a posteriori. A pesquisa foi desenvolvida em consonância com a Resolução nº 466/12 CNS, foi apreciada e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) sob o nº 11/05322. Resultados As categorias e subcategorias foram definidas a posteriori, ou seja, emergiram a partir de repetidas leituras das informações obtidas na transcrição da sessão. A primeira categoria, “Estratégias de oferta da droga”, discorre sobre os argumentos utilizados pelas mulheres que durante o role play tinham a tarefa de oferecer crack para a sua dupla, esta categoria foi subdividida em subcategorias denominadas: efeito; facilidade de aquisição; socialização; e sexualidade. A segunda categoria denominada “Temáticas emergentes na discussão após a técnica de role play” versa sobre os conteúdos verbalizados pelas participantes, orientados pelas questões norteadoras já referidas no método e teve como subdivisão as subcategorias: lembranças do contexto de uso, consequências da insistência para o uso; dificuldades na realização do exercício; medo e nojo da droga; reconhecimento de sentimentos e de si; e estratégias de prevenção a recaída. 108 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Tabela 1 – Estratégias de oferta de droga. Categoria Subcategorias Unidades temáticas Efeito “É puro, consistente, pouca cinza a gente vai usar.” “Fica nessa tal de cocaína aí que não dá nada. Isso aí já passou, já era a moda da cocaína, agora a moda é pedra.” “Vamo tu vai ver que ligeirinho tu fica louquinha.” Facilidade de aquisição “Eu boto pra ti, vem? Tu não vai precisar gastar nada, eu tenho bastante dinheiro.” “Ah! mas tu não precisa gastar nada guria, consegui fazer um assalto lá que nossa senhora! peguei de tonel.” “Vamo lá to de carro! Até um carro eu consegui pra gente dá uma banda hoje.” Socialização “Vou ficar te esperando, eu não vou usar enquanto tu não chegar, vai ter bastante ainda quando tu chegar. É que bah, ficar sozinha não dá” “Vai usar com esses caras da rua, usa comigo que tem mais confiança. Tu sabe que né, não vou te fazer mal nenhum, não vou te roubar depois nem nada, porque tu sabe que esses caras né, vão querer fazer maldade contigo.” “Vai ta todo mundo reunido lá pra gente dá uns estouro toda a nossa galera aquela lá. A galera ta toda reunida lá em cima, fazendo um luau lá, dando uns estouro, tomando umas bira, vamo lá?” Sexualidade “Altos corpinho... Vamo? Vamo? Vamo?” “O carinha aquele que tu ta dando uns beijinho ta indo lá, vamo?” Estratégias de oferta da droga Fonte: Dados da pesquisa. Como se pode observar na Tabela 1, em relação às estratégias de oferta da droga, o tema efeito enquanto estratégia de oferta da droga trouxe aspectos sobre a pureza e a consistência da droga, o fato de dispensar outros aparatos como a cinza que serve para queimar a pedra de crack, bem como diminui o de efeito da cocaína enaltecendo os efeitos do crack como droga da moda. As estratégias de persuasão nesse sentido trouxeram justificativas que valorizavam os efeitos psicoativos da droga ofertada. A facilidade de aquisição da droga também foi utilizada como argumento de oferta. A relação com a quantidade de dinheiro leva a pensar na possibilidade de aquisição de uma quantidade “atraente” de droga. Também se evidencia nos discursos de oferta que não haverá muito esforço para conseguir a droga e que um carro facilitará sua aquisição. Em um dos diálogos aparece a ligação entre ato ilícito para conseguir dinheiro para compra da droga. A questão da socialização durante o consumo da droga aparece como uma das razões utilizada como estratégia de oferta da droga. Há também a menção de situações onde pessoas “da rua” não seriam confiáveis e fumar crack acompanhada de alguém confiável seria positivo. Neste sentido das relações, pretextos apelando à sexualidade também apareceram. Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 109 Tabela 2 – Temáticas emergentes na discussão após a técnica de role play. Categoria Temáticas emergentes na discussão após a técnica do role-play Subcategorias Unidades temáticas Lembranças do contexto de uso “Daí a gente começa a lembrar das coisas que a gente fez, mas não deu vontade de usar assim, passa um filme da tua vida (...) daí tu vai usando aquilo ali como argumento” “E eu acho que isso eu lembrando é uma maneira de eu não voltar a fazer mais (...) porque pra mim é muito triste eu me lembrar das coisas erradas que eu fiz sabe?” Consequências da insistência para o uso “É que daí tu deixa a pessoas naquela insistência, porque se tu prolonga um assunto e deixa a pessoa ficar na insistência, é porque tu vai recair, porque tu vai acaba aceitando aquilo que aquela pessoa está oferecendo.” “Chega a dar vontade de sair correndo.” “No momento do exercício eu não vou negar me deu vontade.” “Disse muitos não, foi que conseguiram me convencer, fui pela bebida e a bebida tu sabe é a porta de entrada né.” Dificuldades na realização do exercício “Eu achei que de começo eu ia ficar um pouco nervosa, mas depois foi fluindo todos aqueles argumentos (...) dizer não foi tranquilo, até cansativo, hehe.” “Eu acho que se eu tivesse na rua eu já teria ido.” “Eu achei que ia ser difícil pra mim fazer” Medo e nojo da droga “Eu não lembro do crack como prazer, eu lembro do crack como um nojo, sabe, pra mim me trouxe muita coisa ruim, me dá nojo de lembrar assim do que eu fiz.” “Também tenho nojo do que eu passei, mas ao mesmo tempo eu tenho vontade, eu tenho medo que eu possa recair entendeu?” Reconhecimento de sentimentos e de si “Eu não era nada na verdade, posso dizer que eu virei gente no momento em que eu entrei aqui. Porque eu não sabia quem eu era, eu comecei a me conhecer aqui dentro, aqui estou tendo a oportunidade de me conhecer, hoje eu posso te dizer quem eu sou, mas antes eu não tinha personalidade, eu não tinha caráter... eu não não tinha identidade nenhuma, porque a droga me tirou tudo isso sabe?” Estratégias de Prevenção a Recaída “Tu não deve procurar amigos da ativa ou lugares da ativa, de tu tanto dizer não e ir te irritando, tu acaba dizendo: ah, vamo de uma vez pra tu para de me incomodar ” “É um não e tchau.” Fonte: Dados da pesquisa. Quanto às temáticas emergentes na discussão após a técnica do role-play, a subcategoria lembranças do contexto descreveu experiências muito semelhantes ao conteúdo do role-play, apresentando identificação da vida real com a dramatização. Emergiram lembranças negativas do passado expressadas em sentimentos atuais. 110 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 As participantes também discutiram sobre momentos em que houve insistênsia durante a dramatização, onde se sentiram pressionadas a usar. Houve momentos de ansiedade que podem ser exemplicados pela vontade de fugir durante a dramatização, o que pode também refletir a ambivalência em relação ao uso. Manifestações sobre sentimentos negativos em relação ao uso e a droga foram descritos. Durante a discussão do role-play as participantes também relataram sobre o reconhecimento seus sentimentos, bem como descreveram possíveis estratégias de prevenção a recaída. Discussão O efeito do crack é rápido e é a sensação de euforia causada que fará com que o usuário se motive a repetir o uso. Trata-se de uma euforia instantânea trazendo em seguida o forte desejo de um novo episódio de consumo (Araújo, Pansard, Boeira & Rocha, 2010). O crack aumenta a atividade basal do sistema de recompensa cerebral centenas de vezes gerando um prazer artificial e intenso de forma imediata e por mais estranho que pareça muitas pessoas ainda acreditam que as drogas são inspiradoras ou esclarecedoras como se fosse uma “abertura” da mente (Ribeiro & Laranjeira, 2012). Muitas vezes ocorre uma migração da cocaína para o crack pela busca de potencialização dos efeitos da substância, mas não é somente isso que impulsiona o consumo de uma determinada droga. Os efeitos imediatos do uso de cocaína são euforia, aumento da energia e da frequência cardíaca, redução da fadiga e o apetite (Carroll & Rawson, 2009). Além disso, o estudo de Sayago, Lucena-Santos, Ribeiro, Yates e Oliveira (2013) aponta que, quando comparadas aos homens, as mulheres são significativamente mais propensas à dependência de crack. Assim, confirma-se o que é trazido no discurso das participantes sobre a importância que há em se produzir efeito maior, mais potente, que cause maior sensação prazerosa. Ainda na subcategoria efeito podemos perceber o quanto se faz presente a ideia de que os usuários apreciam as drogas “da moda” para estar em evidência, ter status. Vive-se numa sociedade que cultua o prazer imediato, em que os objetos tornam-se descartáveis, imperando a lógica da sedução em detrimento do autoritarismo, além de ser uma sociedade que se organiza em torno da diversidade de opções, porque a todo instante algo novo precisa ascender aspectos subjetivos e sociais em relação ao início do uso do crack são pouco discutidos na literatura, mas a busca por novas sensações ou pela droga da moda está ligada a uma forma de sociedade de consumo e essa discussão se faz necessária (Jorge, Quinderé, Yasui & Albuquerque, 2013). Em termos de aquisição da droga fica evidente nos resultados deste estudo que dinheiro, ter um carro, pode ser estímulo para retomar o contexto de uso, assim como a prática de crimes, que na fala surge como “assalto”. O Brasil, considerado mercado emergente de cocaína assim como Venezuela, Equador, Argentina, Uruguai, Guatemala e Honduras na América Central e Jamaica e Haiti no Caribe, é o maior mercado de cocaína da América do Sul e, enquanto cai a demanda nos EUA, a Europa ganha espaço no mercado (UNODCCP, 2010). O acesso e a compra do crack é facilitado até mesmo através de formas de entrega como o delivery e as pedras tem tido novas apresentações (Ribeiro & Laranjeira, 2012). Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 111 As falas refletem ainda a relação dos usuários com o contexto social. Podemos observar que os aspectos negativos de experiências com pessoas não tão confiáveis estão presentes. Usuários de crack tornam-se indivíduos incapacitados socialmente, já tendo perdido vínculos passando a estar mais isolados, afastados do meio familiar e escolar (Frandoloso, 2008). Mas os usuários são capazes de perceber que não estar em convívio social pode ser doloroso tanto que, nas falas, vemos o quanto se preocupam em não estarem em uso sozinhas, mas indo para um lugar seguro para fazer o uso, como meio de proteção contra pessoas não tão confiáveis. O espaço de uso baseia-se na desconfiança e compartilhar experiências positivas se torna cada vez menos possível. Por estarem desorganizados socialmente passam a tentar organizar-se de outra forma, uma forma que não se pode mais confiar em ninguém, em que ninguém confia mais em você (Jorge et al., 2013). As participantes relataram os momentos de raiva e irritação que sentiram no momento em que se sentiam pressionadas a dizer não, esta irritação com a insistência da outra pessoa parece ilustrar um embate entre usar ou não usar, ressaltando a importância de reconhecer possíveis gatilhos para recaída. Monti et al., (2005) relaciona a abstinência com a utilização de mais habilidades de enfrentamento. Poder perceber a força da palavra não no outro pode despertar a sensação de que é possível mesmo posicionar-se e recusar. O fato de estar sendo pressionada, persuadida, fazia com que se achassem tentadas ao uso e a ambivalência em relação a manter-se abstinente novamente surgia. Na discussão posterior ao role-play conseguiram refletir sobre o reconhecimento do quanto é difícil resistir a droga. Mas que também pode ocorrer o movimento contrário no sentido de mudar o comportamento a partir das más lembranças, das consequências negativas do tempo de uso (como nojo e receio já que se sente tão impotente perante a droga). As pessoas com questões referentes às drogas experimentam motivações flutuantes e este conflito é chamado de ambivalência (Miller & Rollnick, 2001). O seu derivado mais sujo e nocivo fica acessível às camadas inferiores socialmente, aos miseráveis que não tem acesso à cocaína de boa qualidade (Jorge et al., 2013). Segundo Monti et al., (2005), receber uma oferta de bebida ou ser pressionado a beber significa situação de alto risco e é muito comum em pessoas que decidiram parar com o uso. Quanto às estratégias de prevenção à recaída a discussão após a atividade de dramatização mostrou-se produtiva. Evitar lugares e pessoas foram relatadas como estratégias para manter-se longe do contexto de uso e abstinente, assim como ter consciência dos sinais e avisos em relação à recaída também. Existe na literatura evidência de utilização do afastamento do contexto social de uso da droga como um recurso de prevenção, bem como afastamento dos amigos de consumo, como forma de não permitir o início da fissura (Chaves, Sanchez, Ribeiro & Nappo, 2011). Afastar-se dos locais de consumo e dos amigos de uso são estratégias importantes apontada pelos dependentes e corroborada pela literatura. O engajamento verdadeiro em novos comportamentos é fundamental para que haja mudança (Carroll & Rawson, 2009) e, no decorrer da atividade foi possível perceber-se o quanto se faz necessário um enfrentamento assertivo no contexto de oferta de crack, sendo importante o papel do grupo no desenvolvimento da intervenção. Conforme Souza & Pinheiro (2012) o 112 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 grupo tem potencialidades específicas na intervenção em saúde, onde os participantes acolhem a fala um do outro, têm a possibilidade de concordar ou discordar, bem como relatar experiências parecidas como aconteceu nesta atividade. Considerações finais O presente estudo qualitativo possibilitou uma aproximação da compreensão a respeito de como mulheres dependentes de crack em tratamento vivenciaram o uso de drogas e como percebem atualmente suas habilidades de enfrentamento e assertividade em relação à oferta da droga. As participantes demonstraram muitas questões em torno de como recusar drogas e as discussões a respeito foram muito interessantes e pode se perceber uma disponibilidade em falar e refletir sobre suas vivências e sentimentos. A análise dos aspectos de enfrentamento e assertividade de mulheres dependentes de crack através de uma atividade de role-play pode revelar situações de oferta e de recusa da droga. Podemos perceber durante a análise que o efeito, facilidade de aquisição, socialização são aspectos importantes para o usuário, o que ficou registrado em sua fala enquanto oferecia a droga ao parceiro no role-play. Quanto às limitações deste estudo, destaca-se a ausência da anállise das mulheres pertencentes ao grupo controle (lista de espera, visto que como já foi descrito no método, este estudo deriva de um ensaio clínico randomizado) para uma comparação entre as participantes que se encontram em programa de tratamento. A importância de novas pesquisas que estudem a assertividade de dependentes de crack pertencentes a diferentes grupos (como por exemplo: os que fazem tratamento ambulatorial em Centros de Atenção Psicosocial, os que participam de grupos de mútua ajuda, etc) se justifica para que tenhamos subsídios para programas de tratamento para fortalecimento das habilidades de recusa, visando a prevenção a recaída. Referências Araujo, R. B.; Pansard, M.; Boeira, B. U. & Rocha, N. S. (2010). As estratégias de coping para manejo da fissura de dependentes de crack. Rev HCPA 30(1), 36-42. Argyle, M. (1967). The psychology of interpersonal behavior. London: Penguin. Bardin, L. (2006). Análise de conteúdo (L. de A. Rego & A. Pinheiro, Trads.). Lisboa: Edições 70. (Obra original publicada em 1977). Caballo, V. E. (2002). Manual de Técnicas de Terapia e Modificação do Comportamento. São Paulo: Editora Santos. Caballo, V. E. (2005). Manual de Avaliação e Treinamento das Habilidades Sociais. 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Margareth da Silva Oliveira: Psicóloga. Doutora. Profa. PPG PUCRS. Marlene Neves Strey: Psicóloga. Doutora. Profa. PPG PUCRS. Endereço para contato: [email protected] Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 115 Aletheia 43-44, p.116-128, jan./ago. 2014 Abandono de tratamento de adolescentes com uso abusivo de substâncias que cometeram ato infracional Ilana Andretta Jéssica Limberger Margareth da Silva Oliveira Resumo: Este estudo objetiva verificar fatores relacionados ao abandono precoce do tratamento de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa em meio aberto encaminhados para tratamento por uso de drogas. Trata-se de um estudo quantitativo, transversal e correlacional, tendo como participantes 135 adolescentes. Os instrumentos foram: protocolo de dados sociodemográficos, entrevista semiestruturada para diagnóstico e comorbidades, de acordo com critérios do DSM IVTR, Inventário de Depressão de Beck (BDI) e Inventário de Ansiedade de Beck (BAI). Fatores relacionados ao abandono do tratamento foram: não estar estudando, expulsão ou suspensão da escola, idade precoce para uso de álcool, usar cocaína e ser abusador de tabaco. Abusadores de cocaína e de crack apresentavam maiores escores de sintomas no BDI e escores do BAI não apresentaram relevância estatística com abuso de substâncias. Conclui-se que tais fatores devem ser considerados no aprimoramento dos tratamentos disponíveis. Estratégias nas escolas de prevenção do uso de drogas são imprescindíveis. Palavras-chave: adolescentes; drogas; abandono de tratamento. Treatment’s dropout of substance abuse adolescents who committed an infraction Abstract: This study aims to identify factors related to early dropout of treatment of adolescents in compliance with socio-educational measure in an open way, referred to treatment for drug use. This is a quantitative, cross-sectional and correlational study, whose participants are 135 adolescents. The instruments were: sociodemographic data protocol, semi-structured interview for diagnosis and comorbidities, according to DSM IV-TR, the Beck Depression Inventory (BDI) and Beck Anxiety Inventory (BAI). Factors related to the abandonment of treatment were: not to be studying, expulsion or suspension from school, early age for alcohol use, cocaine use and be tobacco abuser. Abusers of cocaine and crack had higher symptoms scores on the BDI and BAI scores did not show statistical significance with substance abuse. It concludes that such factors should be considered in the improvement of the treatments available. Strategies of prevention of the drug use in schools are essential. Keywords: adolescents; drugs; treatment dropout. Introdução A adolescência é uma etapa complexa do ciclo vital, constituída por transformações no organismo e nos papéis sociais. Nesta etapa de transição entre a infância e a vida adulta, os adolescentes buscam alcançar os objetivos relacionados às expectativas culturais da sociedade em que vivem, expondo-se muitas vezes a situações de risco, como o uso de substâncias psicoativas (Bessa, 2012). Os problemas relacionados ao uso incluem comorbidades e envolvimento com atos infracionais, tornando-se um problema de saúde pública, que necessita de uma atenção especial dos profissionais da área da saúde (Andretta & Oliveira, 2011; Pinto, Luna, Silva, Pinheiro, Braga & Souza, 2014). Dados do VI Levantamento Nacional sobre o Consumo de Drogas Psicotrópicas entre Estudantes do Ensino Fundamental e Médio das Redes Pública e Privada de Ensino nas 27 Capitais Brasileiras demonstram que a maioria dos adolescentes que referiram algum consumo de drogas possuía idade maior de 16 anos, também havendo relatos na faixa de 10 à 12 anos. O uso na vida de alguma droga (exceto álcool e tabaco) foi referido por 25,5% dos estudantes; o uso no último ano foi referido por 10,6% e o uso no mês foi referido por 5,5% dos adolescentes (Carlini, 2010). O uso de drogas em adolescentes que cometeram ato infracional tem sido evidenciado em estudos nacionais e internacionais. Um estudo brasileiro com 150 adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa evidenciou que há uma correlação significativa entre o uso de drogas e a prática de atos infracionais, sendo que o uso de drogas precedeu os atos infracionais (Martins & Pillon, 2008). Outro estudo brasileiro analisou a percepção dos pais sobre as causas da delinquência no Brasil, onde o uso de drogas foi apontado como a principal causa (Lubenow, Fonseca, Julio, & Silva, 2010). Na Espanha, dos 654 adolescentes do Serviço de Justiça Juvenil, a maioria (58%) utilizava drogas, sendo mais frequente o consumo de diversas drogas ao mesmo tempo (32,3%), seguido do consumo conjunto de tabaco e álcool (23,9%) (Martínez, Banqueri, & Lozano, 2012). No Chile, 100 adolescentes que infringiram a lei foram comparados com 100 adolescentes não infratores, ambos do sexo masculino. Dos adolescentes infratores, 26% eram usuários de drogas, em comparação com 0% no outro grupo (Cova, Pérez-Salas, Parada, Saldivia, Rioseco & Soto, 2012). Dentre as intervenções voltadas para adolescentes com uso abusivo de substâncias, a Entrevista Motivacional e a Psicoeducação tem demonstrado resultados positivos nesta população, na diminuição da quantidade do uso de álcool, tabaco e maconha e abstinência para cocaína, crack e solventes (Andretta & Oliveira, 2008; Andretta & Oliveira, 2011; McCambridge & Strang, 2004). A Entrevista Motivacional é uma intervenção breve e focal que objetiva realizar mudanças nos estados internos de motivação dos indivíduos, a fim de que eles venham a abandonar a dependência de substâncias ou outros tipos de comportamentos problemáticos. Desta forma, há um aumento da motivação intrínseca do paciente e diminuição da ambivalência em relação à mudança (Miller & Rollnick, 2001). A psicoeducação, por sua vez, busca informar ao paciente dados sobre o seu diagnóstico de maneira clara e direta, a fim de diminuir o uso de drogas (French, Zavala, McCollister, Waldron, Turne & Ozechowski, 2008). A permanência em tratamento por usuários de drogas é reconhecidamente baixa. Em um estudo de metanálise, usuários de cocaína e opioides obtiveram as maiores taxas de abandono (42% e 37% respectivamente) quando comparados aos usuários de maconha (27,8%) ou múltiplas drogas (32,3%) (Dutra, Stathopoulou, Basden, Leyro, Power & Otto, 2008). Na Espanha, 50,5% (n=45) usuários de cocaína abandonaram o tratamento, sendo que 30,8% dos abandonos ocorreram nos três primeiros meses (Sánchez-Hervás, et al., 2010). Os índices de abandono na adolescência são ainda Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 117 maiores devido à ausência de motivação para mudança, visto que a maioria dos adolescentes vem para tratamento através de encaminhamentos de outras fontes, como suas famílias, escola ou o sistema de justiça (Scaduto & Barbieri, 2009). O abandono precoce nos tratamentos ocorre quando o paciente termina o tratamento sem que haja um acordo entre ele e seu terapeuta em relação aos objetivos iniciais do tratamento. Segundo Manrique (2004), a adesão ao tratamento se define como a consonância entre a conduta do paciente com as instruções do terapeuta, e o término ou abandono ocorre quando o paciente não cumpre o contratado com o terapeuta. Trata-se de um processo multifatorial que se estrutura em uma parceria entre quem cuida e quem é cuidado e refere-se à frequência, à constância e à perseverança na relação com o cuidado em busca da saúde (Silveira & Ribeiro, 2005). Os índices de abandono de tratamento na adolescência merecem atenção dos pesquisadores, pois há necessidade de pesquisas que possibilitem modelos de compreensão e intervenção, a fim de promover a permanência no tratamento de adolescentes com uso abusivo de substâncias (Scaduto & Barbieri, 2009). Tendo em vista os aspectos considerados, este estudo objetiva verificar quais foram os fatores relacionados ao abandono precoce do tratamento em adolescentes que cometeram ato infracional, em cumprimento de medida socioeducativa, encaminhados para tratamento devido o uso de drogas. Método Este estudo se caracteriza por ser uma pesquisa de cunho quantitativo, transversal e de alcance correlacional (Sampieri & Lucio, 2013). Participaram deste estudo 135 adolescentes usuários de drogas, que cometeram ato infracional. Tais adolescentes foram encaminhados para tratamento psicológico por instituições responsáveis pela execução de medida socioeducativa em meio aberto, localizadas na região metropolitana. Os critérios de inclusão para o preenchimento do protocolo de pesquisa foram: ser usuário de drogas e ter cometido ato infracional, ter escolaridade mínima da 5ª série e idade entre 12 e 19 anos. Os critérios de exclusão foram: ter síndrome de privação grave ou alguma dificuldade cognitiva que prejudicasse seu entendimento. 1) Protocolo de avaliação de dados sociodemográfico; 2) Entrevista semiestruturada para avaliação de padrão de consumo de substâncias, diagnóstico de abuso e dependência de substâncias e comorbidades (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, Transtorno Opositivo Desafiador e Transtorno de Conduta), de acordo com os critérios diagnósticos do DSM-IV-TR (American Psychiatric Association, 2002); 3) Inventário de Depressão de Beck (BDI) e o Inventário de Ansiedade de Beck (BAI), para avaliação a intensidade dos sintomas de ansiedade e de depressão, tanto em pacientes psiquiátricos como na população em geral. Ambos foram validados para o Brasil por Cunha (2001) que apresenta estudos psicométricos, sendo o Alfa de Cronbach do BAI de 0,92 e do BDI de 0,89. 118 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 O BDI é composto por 21 itens que descrevem sintomas depressivos avaliados pelo autorrelato referente aos últimos 15 dias e as pontuações sugerem de 0 a 11 pontos sintomas mínimos, de 12 a 19 pontos sintomas leves, de 20 a 35 pontos sintomas moderados, e de 36 a 63 pontos, sintomas graves. O BAI é composto por 21 itens que apresentam informações descritivas dos sintomas de ansiedade dos últimos 7 dias, que deve avaliados pelo sujeito, em razão da gravidade e frequência de cada item numa escala de 0 a 3 pontos. Os níveis variam de 0 a 10 pontos para mínimo, de 11 a 19 pontos param leve, de 20 a 30 pontos para moderado, e de 31 a 63 pontos para grave. O projeto de pesquisa obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, sob parecer 06/03462. Os adolescentes foram contatados, com explicação sobre a pesquisa, assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) ao concordar com a participação no estudo. Os responsáveis pelos adolescentes com idade inferior a 18 anos foram informados e concordaram com a participação, mediante assinatura do TCLE. Assegurou-se a devolução dos dados a todos os sujeitos. Os adolescentes vinculados a este estudo foram encaminhados por instituições responsáveis pela execução de medida socioeducativa da região metropolitana a fim de realizarem tratamento para o uso de drogas. Os atendimentos foram realizados por estudantes do curso de Psicologia em uma clínica-escola de uma universidade da região metropolitana, com supervisão semanal. A avaliação foi realizada através do questionário de dados sociodemográficos, entrevista clínica com os critérios diagnósticos do DSM-IVTR, BAI e BDI. O tratamento foi composto por 5 sessões de Entrevista Motivacional e de Psicoeducação. Os pacientes que aderiram ao programa foram aqueles que concluíram todas as etapas deste processo. Os dados quantitativos foram descritos por média, desvio padrão ou mediana e intervalo interquartil, dependendo de sua distribuição; e dados qualitativos, por frequência absoluta e relativa. Para avaliação das variáveis categóricas, foi utilizado o teste Quiquadrado. Para comparar a média das variáveis com distribuição normal em relação à adesão ao tratamento foi utilizado o teste T de Student. Os escores das variáveis que não apresentaram distribuição normal foram analisados em relação à adesão ao tratamento através do Teste Não Paramétrico Mann-Whitney. Os dados foram compilados no software estatístico SPSS versão 11.0 e o nível de significância foi de 5%. A partir dos resultados significativos, fez-se análise bivariada através da Regressão Logística – Post Hoc Bonferroni. Resultados Dos 135 adolescentes, 35,6% (n=48) finalizaram o programa de atendimento e serão chamados, a partir de agora, de grupo que aderiu ao tratamento (GA). Os demais 64,4% (n=87) não completaram todo o processo e serão chamados, a partir de agora, de grupo que não aderiu ou abandonou o tratamento (GN). Iniciaram algum tipo de intervenção 51,9% dos adolescentes (n=70), sendo 26,7% (n=36) alocados no grupo da Entrevista Motivacional e 25,2% (n=34) no grupo da Psicoeducação. Dos adolescentes que foram alocados no grupo da Entrevista Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 119 Motivacional, 11,1% (n=4) abandonaram o processo antes de concluir a intervenção, e outros 13,9% (n=5) antes da conclusão da reavaliação. Já no grupo da Psicoeducação, 32,3% (n=11) abandonaram o processo antes de concluir a intervenção, e 5,9%, (n=2) antes de concluir a reavaliação. Ao relacionarmos o grupo ao qual o sujeito foi alocado com a etapa em que ocorreu o abandono do processo, não encontramos diferença estatisticamente significativa (p=0,072). Concluíram o processo no grupo da Entrevista Motivacional 75% (n=27) dos adolescentes e no grupo da Psicoeducação 61,8% (n=21). Comparando os que foram alocados em cada grupo e os que aderiram ao tratamento não houve diferença estatística (p=0,459). O GA apresentou média de idade 16,3 anos (DP= 1,28), com 93,8% (n=45) sujeitos do sexo masculino, 68,8% (n=33) que conviviam com os pais, 58,3% (n=28) com ensino fundamental completo, e 91,5% (n=43) que estavam estudando no momento da avaliação. Já haviam sido expulsos 29,8% (n=14) dos adolescentes. Em comparação ao GN, houve uma diferença significativa estatisticamente de p=0,001 na variável estar estudando e já ter sido expulso. Em relação aos familiares usuários de drogas, 52,1% (n=25) dos adolescentes afirmaram ter algum familiar com problemas relacionados com o uso de drogas ilícitas, 37% (n=17) afirmaram que o pai possuía problemas associados ao uso de álcool e 13% (n=6) relataram que a mãe possuía problemas associados ao uso de álcool. O GN apresentou média de idade de 16,3 anos (DP=1,37), com 93,1% (n=81) adolescentes do sexo masculino, 41,9% (n=36) viviam com os pais, 75,6% (n=65) tinham ensino fundamental incompleto, 55,3% (n=47) estavam estudando e 61,9% (n=52) já haviam sido expulsos. Afirmaram ter familiar com problemas relacionados ao uso de drogas ilícitas 50% (n=41) dos sujeitos. Destes, 26,5% (n=22) afirmaram que o pai tinha problemas associados ao uso de álcool e 15,7% (n=13) afirmaram que a mãe apresentava problemas associados ao uso de álcool. A Tabela 1 apresenta as médias de idade de início do uso de cada droga nos adolescentes. Tabela 1 – Média de idade dos adolescentes do início do uso de drogas. GA GN Variável * Média DP Média DP p Idade do primeiro uso de álcool 13,6 1,47 12,8 2,13 0,003 Idade do primeiro uso de tabaco 13,1 2,24 12,6 2,17 0,955 Idade do primeiro uso de maconha 13,7 1,69 13,4 1,82 0,582 Idade do primeiro uso de cocaína 14,7 1,97 14,1 1,75 0,386 Idade do primeiro uso de crack 14,8 1,72 14,7 1,48 0,347 Idade do primeiro uso de solvente 14,3 1,81 13,8 2,08 0,151 * Variáveis correlacionadas através do teste T de Student. 120 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Conforme os resultados da Tabela 1, nos dois grupos a média de anos para o início do uso de drogas é semelhante, com exceção ao álcool, que é significativamente inferior (p=0,003). No GA, o uso atual de álcool foi de 81,3% (n=39), de tabaco 72,9% (n=35), de maconha 68,8% (n=33), de cocaína 2,1% (n=1), de crack de 2,1% (n=1), e de solvente de 6,3% (n=3). No GN, o uso atual de álcool foi de 72% (n=59), de tabaco 71,4% (n=60), de maconha 65,1% (n=54), de cocaína 15,7% (n=13), de crack 13,3% (n=11), e de solvente 8,8% (n=7). A maioria dos adolescentes participantes deste estudo já fez ou faz uso atual de álcool, tabaco e maconha. A metade deles já fez uso de cocaína, mas usa atualmente apenas uma pequena porcentagem da amostra, sendo que, no GN é maior que no GA (p=0,017). Segundo os resultados da Tabela 2, há uma alta porcentagem de comorbidades nos dois grupos, principalmente em relação aos transtornos disruptivos. O Transtorno de Conduta (TC) é a prevalência mais alta, tanto no GA, 36,4% (n=16) quanto no GN 32,8% (n=20), precedido pelo Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade e pelo Transtorno Opositivo Desafiador. Não foram encontradas diferenças estatísticas significativas entre os grupos. Tabela 2 – Descrição de frequência e porcentagem de diagnósticos por grupo. GA Variável* GN % N % N P Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade 28,3% 13 21% 13 0,495 Transtorno Opositivo Desafiador 18,2% 10 16,4% 10 0,800 Transtorno de Conduta 36,4% 20 32,8% 20 0,835 0% 3 3,9% 3 0,285 Abusador álcool 66,7% 42 54,5% 42 0,196 Dependência tabaco 66,7% 36 43,9% 36 0,018 Abusador de Tabaco 8,3% 23 28% 23 0,007 Dependência maconha 60,4% 30 39,5% 30 0,027 Abusador maconha 31,3% 33 43,4% 33 0,191 Dependência cocaína 2,1% 3 3,7% 3 1,000 Abusador de cocaína 10,6% 21 25,9% 21 0,042 Dependência crack 6,4% 14 17,7% 14 0,105 Abusador de crack 14,9% 14 17,7% 14 0,807 Dependência solvente 4,2% 5 6,4% 5 0,708 Abusador de solvente 8,3% 10 12,8% 10 0,565 Dependência álcool *Variáveis relacionadas através do teste Qui-quadrado. Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 121 Em relação aos diagnósticos relacionados ao uso de substâncias, há uma maior porcentagem de dependentes de álcool no GN, com 3,9% (n=3) e de dependentes de crack, com 17,7% (n=14). No GA há maior porcentagem de dependentes de tabaco, sendo 66,7% (n=32) e de maconha 60,4%, inclusive, esta última, sendo estatisticamente, significativa (p=0,018) para tabaco e (p=0,027) para maconha. Há também uma prevalência maior no GN para drogas consideradas pesadas, como cocaína, crack e solventes, sendo que para cocaína houve relação estatisticamente significativa (p=0,042). De acordo com os resultados apresentados na Tabela 3, descrita abaixo, em relação à razão de chance para abandono do tratamento, foi identificado que os sujeitos que não estavam estudando apresentavam 7,69 vezes mais chances de abandonar o tratamento. Os sujeitos que afirmaram terem sido expulsos ou suspensos da escola em algum momento da vida apresentaram 2,83 vezes mais chances de abandono. Quem não apresentava diagnóstico de dependência de tabaco, teve razão de chances para abandono 1,56 vezes maior, abusadores de tabaco apresentaram 329% mais chances de abandono, os sujeitos que não possuíam diagnóstico de dependência de maconha apresentaram 134% mais chances de abandono, os indivíduos que faziam uso de cocaína no momento da avaliação apresentaram razão de chance para abandono 7,73 vezes superior dos que não faziam uso, e, por fim, abusadores de cocaína apresentaram 194% mais chances de abandono do que os não abusadores. Tabela 3 – Razão de chances de abandono ao tratamento. RC IC - 95% Não estudar 7,69 2,86 – 26,38 Expulso ou Suspenso 2,83 1,78 – 8,23 Não dependente de tabaco 1,56 1,22 – 5,37 Abusador de tabaco 3,29 1,38 – 13,29 Não dependente de maconha 1,34 1,12 – 4,90 Uso atual de cocaína 7,73 1,10 – 68,98 Abusador de cocaína 1,94 1,03 – 8,41 Variável *Cálculo de razão de chances feito através de regressão logística. No que diz respeito aos escores no BAI e no BDI, a mediana de intensidade de sintomas de ansiedade no GA foi de 10 (6;14), e no GN foi de 8 (2;13) (p=0,066). A mediana de intensidade de sintomas de depressão no GA foi de 12,5 (7; 18,75) e no GN 11 (7; 19) (p=0,804). Desta forma, todos os escores foram classificados como mínimos. Além disso, os escores dos inventários BDI e BAI foram relacionados com os diagnósticos de dependência ou abuso de cada substância. Abusadores de cocaína e abusadores de crack apresentavam escores de intensidade de sintomas superiores no BDI, daqueles indivíduos que não possuíam estes diagnósticos (p=0,024 e p=0,025, respectivamente). Dependentes de tabaco apresentaram uma tendência (p=0,051) a obterem escores superiores no BDI 122 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 maior do que em indivíduos que não apresentavam dependência desta substância. Já em relação aos escores do BAI, os dependentes de maconha apresentaram escores superiores do que indivíduos que não possuíam tal diagnóstico (p=0,028). As relações entre os escores do BDI e o diagnóstico de dependência de álcool (p=0,376), abuso de álcool (p=0,914 e p=0,494), abuso de tabaco (p=0,473), dependência de maconha (p=0,062), abuso de maconha (p=0,563), dependência de cocaína (p=0,749), dependência de crack (p=1,000), dependência de solvente (p=0,924) e abuso de solvente (p=0,531) não apresentaram relevância estatística. Da mesma forma, as relações entre os escores do BAI e os diagnósticos de dependência de álcool (p=0,543), abuso de álcool (p=0,494), dependência de tabaco (p=0,511), abuso de tabaco (p=0,090), abuso de maconha (p=0,146), dependência de cocaína (p=0,227), abuso de cocaína (p=0,193), dependência de crack (p=0,483), abuso de crack (p=0,770), dependência de solvente (p=0,676) e abuso de solvente (p=0,719) também não apresentaram relevância estatística. Discussão A alta taxa de abandono dos adolescentes neste estudo (64,7%) causou surpresa para a equipe, pois, acreditava-se que houvesse controle maior pelos executores das medidas socioeducativas em meio aberto, criando algum tipo de contrato mais rígido na exigência de tratamento. Fica evidente que o sistema socioeducativo ainda necessita incorporar e universalizar em suas práticas os avanços consolidados na legislação, como o acompanhamento efetivo aos adolescentes, proporcionando mudanças de comportamentos diante dos atos cometidos (Souza & Costa, 2012). Alguns fatores são citados na literatura como preditivos para a adesão ao tratamento na adolescência. São eles: características demográficas, variáveis ambientais e sociais, tipo de tratamento recebido, além da boa aliança terapêutica e do relato de satisfação com o tratamento. A gravidade da sintomatologia é apontada como fator de risco para o abandono (Martínez, Fuentes & García, 2013; Tetzlaff, Kahn, Godley, Godley, Diamond & Funk, 2005). Adolescentes que eram abusadores e não dependentes de tabaco apresentaram maior abandono ao tratamento, bem como os não dependentes de maconha. O pouco tempo de uso de drogas, faz com que os adolescentes tenham dificuldades em compreender os inúmeros prejuízos que a droga lhe causou e lhe causará (Dutra et al., 2008). O atendimento a adolescentes com uso abusivo de substâncias configura-se um desafio, tendo em vista que em um estudo com 418 pacientes atendidos em um Centro de Atenção à Usuários de Drogas, identificou-se que ter idade menor ou igual a 18 anos aumenta o risco de abandono de tratamento (Valencia & Villanueva, 2014). Desta forma, há necessidade de acompanhamento e estratégias como da Entrevista Motivacional, tendo em vista que adolescentes com menor motivação interna possuem mais probabilidade de abandono de tratamento precoce, principalmente quando não são estabelecidas metas claras de tratamento com a inclusão do adolescente no processo (Schroder, Sellman, Frampton & Deering, 2009). Além disso, para a permanência do adolescente no tratamento, são necessárias informações claras sobre o prejuízo das drogas e sobre a evolução do processo de dependência. Assim, proporciona-se uma maior conscientização Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 123 dos adolescentes sobre o uso, sendo um motivador para o tratamento (French, Zavala, McCollister, Waldron, Turner & Ozechowski, 2008). No presente estudo, a idade de início do uso de álcool está diretamente ligada ao abandono do tratamento, pois quanto mais cedo se consome álcool, menores são as chances de aderir ao tratamento. Conforme dados de um estudo brasileiro com 776 estudantes, houve associação significante entre o consumo frequente e abusivo de bebidas alcoólicas e a faixa de 17 a 19 anos, com idade precoce de iniciação ao consumo (≤ 13 anos) (Costa, Matos, Carvalho, Amaral, Cruz & Lopes, 2013). A intensidade de sintomas de depressão e ansiedade costuma ser associada ao abandono de tratamentos (Sousa, Ribeiro, Melo, Maciel & Oliveira, 2013; Donkin & Glozier, 2012). A maior intensidade de sintomas depressivos associa-se a motivação para mudança e a maior consciência das consequências do uso de drogas (Cahill, Adinoff, Hosig, Muller & Pulliam, 2003), Cabe salientar, que nesta população, os escores de sintomas de ansiedade e depressão foram mínimos, corroborando que pessoas com baixa ansiedade e menos preparadas para efetuar mudanças em suas vidas abandonam tratamentos terapêuticos (Al-Asadi, Klein & Meyer, 2014). Estar usando cocaína atualmente e ser abusador desta droga também foram fatores relacionados ao abandono da terapia, e identificou-se uma tendência a esta relação também com indivíduos que usam crack atualmente. O poder de lesividade de drogas, como a cocaína e o crack associa-se com o abandono do tratamento. Para tanto, a multiplicidade de tratamentos propostos (grupos terapêuticos, suportes para familiares e tratamentos médicos) contribui na permanência no tratamento (Dualibi, Ribeiro & Laranjeira, 2008; Manrique, 2004). Assim, o enfoque para o tratamento deve ser mais abrangente, intensivo e prolongado, tendo em vista que drogas como a cocaína e o crack têm um poder de causar dependência rapidamente, e os adolescentes são mais suscetíveis a sintomas de abstinência que os adultos (Bessa, 2012). Evidenciou-se fatores de proteção à permanência do tratamento, como estar estudando e não ter sido expulso da escola. Desta forma, a escola desempenha um importante papel na vida dos adolescentes, lhes proporcionando interação social, envolvimento com pares e grupos e possibilitando a autoexpressão. Neste contexto o jovem aprende a conviver em sociedade, a lidar com as regras e a desenvolver habilidades para interagir com os demais (Costa, Lima & Pinheiro, 2010; Pinheiro, Picanço & Barbeito, 2011). O baixo desempenho e o abandono escolar constituem fatores de risco associados à problemas de saúde mental em adolescentes, como o uso de drogas e comportamentos delinquentes (Cardoso & Malbergier, 2014; Pinto, Luna, Silva, Pinheiro, Braga & Souza, 2014). Além disso, baixos níveis educacionais e dificuldades escolares relacionam-se com o abandono terapêutico, pois sujeitos com menor grau de instrução apresentam maior dificuldade de comunicação com os profissionais que os atendem (Silva, Moura & Caldas, 2014). A dependência de tabaco em estudantes relaciona-se com a falta de interesse pelos estudos e baixo rendimento acadêmico (Yañez, Leiva, Gorreto, Estela, Tejera & Torrent, 2013). O uso de tabaco e outras drogas interfere nos resultados escolares, visto que repetências, abandono da escola e suspensão são fatores que interagem entre si e estão ligados ao uso de drogas e atos infracionais (Fraga & Costa, 2014). 124 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Na adolescência, as dificuldades escolares geralmente estão ligadas ao uso de drogas e a comorbidades. A presença de comorbidades foi alta nos dois grupos dessa pesquisa, principalmente no que diz respeito ao transtorno de conduta. A presença de comorbidades em usuários de drogas é frequente, com prognóstico desfavorável para o tratamento desse transtorno (Silva, Kolling, Carvalho, Cunha & Kristensen, 2009). Adolescentes com transtornos externalizantes (TDAH, TOD e TC) abandonam seus tratamentos e têm funcionamento negativo na escola, envolvendo-se em problemas com a justiça (Magallón-Neri, Díaz, Forns, Goti, Canalda & Castro-Fornieles, 2012). Considerações finais O tratamento de adolescentes usuários de drogas em cumprimento de medida socioeducativa em meio aberto constitui-se um desafio aos profissionais, pois além de buscar a prevenção da reincidência de atos infracionais, há a busca pela redução do uso de drogas. Para tanto, há necessidade de trabalhar com a motivação do adolescente, que pode mostrar-se ambivalente neste processo. Neste estudo, os fatores que apresentaram relação com o abandono do tratamento foram: não estar estudando no momento, ter sido expulso ou suspenso da escola em algum momento da vida, idade precoce para início do primeiro uso de álcool, usar cocaína atualmente, não apresentar diagnóstico de dependência de tabaco, ser abusador de tabaco, não apresentar diagnóstico para dependência de maconha e ser abusador de cocaína. Diante de tais achados, evidencia-se a importância do papel social da escola na vida dos adolescentes. Além dos fatores relacionados aos adolescentes, percebe-se a necessidade de um acompanhamento efetivo no cumprimento de medidas socioeducativas em regime aberto. Desta forma, necessita-se articulação entre as redes de proteção social a crianças e adolescentes propostas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pela Lei 12.594/2012, que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo. A realização de estudos como este, avaliando fatores associados ao abandono, tem indiscutível relevância social, pois possibilitam o aprimoramento dos tratamentos disponíveis. As limitações deste estudo foram não ter avaliado índices de satisfação do paciente com a terapia, não ter filmado as sessões de tratamento bem como não ter padronizado algum instrumento para a verificação da qualidade do atendimento. Sugere-se que futuros estudos avaliem o atendimento realizado, dada a sua relevância no sucesso terapêutico. Referências Al-Asadi, A. M., Klein, B. & Meyer. (2014). Pretreatment Attrition and Formal Withdrawal During Treatment and Their Predictors: An Exploratory Study of the Anxiety Online Data. Journal of Medical Internet Research, 16(6)234-241. American Psychiatric Association. (2002). DSM IV-TR: Manual diagnóstico e estatístico dos transtornos mentais (4a. ed.). Porto Alegre: Artes Médicas. Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 125 Andretta, I. & Oliveira, M. S. (2008). 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Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Jéssica Limberger: Graduação em Psicologia pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Mestranda em Psicologia Clínica na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Bolsista CAPES/PROSUP. Margareth da Silva Oliveira: Graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Mestrado em Psicologia pela PUCRS, Doutorado em Psiquiatria e Psicologia Médica pela Universidade Federal de São Paulo e Pós-Doutorado na University of Maryland Baltimore County (UMBC-USA). Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Endereço para contato: [email protected] 128 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Aletheia 43-44, p.129-146, jan./ago. 2014 Sexualidade na adolescência: um estudo com escolares da cidade de Manaus/AM Nália de Paula Oliveira Jorge Umberto Béria Lígia Braun Schermann Resumo: Estudo transversal de base escolar com objetivo de investigar sexualidade de adolescentes da cidade de Manaus/AM, comparando rapazes e moças. Um total de 1747 adolescentes de 12 a 19 anos responderam questionário anônimo e autoaplicado. Cerca de 53,6% dos adolescentes já teve relação sexual, sendo o percentual mais elevado nos rapazes (68,0%). A idade média da iniciação sexual foi maior nas moças (14,6 anos) que nos rapazes (13,1 anos). O preservativo foi usado na primeira relação sexual por 65,8% dos adolescentes. As primeiras fontes de informações sobre relação sexual são família e professor/escola. Rapazes e moças conhecem programas de educação sexual oferecidos pela escola (66,5%) e município (33,7%). História de gravidez foi relatada por 12,8% da amostra e abuso sexual por 9,0%. Este estudo mostra precoce iniciação sexual dos adolescentes escolares de Manaus/AM. Família e escola possuem importante papel na educação sexual desta população, necessitando orientações específicas. Palavras-chave: Adolescência; sexualidade; estudo de base escolar. Adolescent sexuality: A school-based study in the city of Manaus/AM, Brazil Abstract: Cross-sectional study performed with students from state schools in the city of Manaus/ AM. A sample of 1747 teenagers from 12 to 19 years-old answered an anonymous self-administered questionnaire about sexuality. About 53.6% of teenagers have already had sexual relation and the percentage is higher for boys (68.0%) than for girls (43.6%). The average age of their first sexual relation was higher among girls (14.6 years) than boys (13.1 years). Condom was used at first sexual relation by 65.8% of teenagers. Boys (80.3%), more than girls (73.8%), believe they have an excellent knowledge of sexuality. The primary sources of information about sex/pregnancy are: family and teachers/school. Teenagers are awared about sex education programs offered by schools (66.5%) and government actions (33.7%). Pregnancy cases were reported by 12.8% of the sample and sexual abuse by 9.0%. This study shows that sexual initiation in adolescent students of Manaus is precocious. Family and schools play an important role in sexual orientation among teenagers, requiring specific guidance. Keywords: Adolescence; sexuality; school-base study. Introdução A adolescência é a fase na qual, geralmente, o indivíduo inicia sua vida sexual. Pelas características específicas dessa fase do desenvolvimento, como menor condição de controle dos impulsos, a iniciação sexual pode estar associada a comportamentos de riscos às contaminações com DST/AIDS e à gravidez precoce. Segundo registros da Organização Mundial da Saúde, metade das novas infecções por HIV no mundo surgem em pessoas menores de 24 anos, sendo que a maioria se infecta por via sexual (Cruzeiro, Souza, Silva, Pinheiro, Rocha & Horta, 2010). Sexualidade na adolescência é, portanto, tema de interesse da saúde pública. O Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais estima aproximadamente 734 mil pessoas vivendo com HIV/aids no Brasil no ano de 2014, correspondendo a uma prevalência de 0,4%. Desde o início da epidemia de Aids no Brasil até junho de 2014, foram registrados no país 757.042 casos de aids, sendo 593.217 (78,4%) notificados no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), 42.006 (5,5%) e 121.819 (16,1%) no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e Siscel/ Siclom (Sistema de Controle de Exames Laboratoriais/Sistema de Controle Logístico de Medicamentos), respectivamente, identificados pelo relacionamento probabilístico dos dados como subnotificação do SINAN. Em 2010, a proporção de casos de Aids oriundos do SINAN correspondia a 69,4%, passando para 64,8% em 2013, o que mostra um aumento na subnotificação dos casos no SINAN (Brasil, 2011). A distribuição proporcional dos casos de Aids no Brasil segundo região mostra uma concentração dos casos nas regiões Sudeste e Sul, correspondendo a 54,4% e 20,0% do total de casos identificados de 1980 até junho de 2014; as regiões Nordeste, Centro-Oeste e Norte correspondem a 14,3%, 5,8% e 5,4% do total dos casos (Brasil, 2011). Em 2013, o ranking da taxa de detecção de Aids entre as Unidades da Federação indica que os estados do Rio Grande do Sul e Amazonas apresentam as maiores taxas, com valores de 41,3 e 37,4 casos para cada 100 mil habitantes. Foram registrados no Brasil, desde 1980 até junho de 2014, 491.747 (65,0%) casos de Aids em homens e 265.251(35,0%) em mulheres. A razão de sexo também varia de acordo com a faixa etária; entre os mais jovens (13 a 19 anos), existem 30% a mais de homens que mulheres notificadas com Aids (razão de sexo de 13 casos em homens para cada 10 casos em mulheres) no ano de 2013 (Brasil, 2011). Neste contexto a população jovem é colocada no topo das prioridades do debate público sobre as políticas em resposta à epidemia pelo HIV/AIDS, no Brasil e no mundo (Brasil, 2011). Quanto à gravidez na adolescência, os registros do Ministério de Saúde apontam que o número de partos em adolescentes de 10 a 19 anos em 2007 foi de 594.2005; em 2008 caiu para 487.173 e até outubro de 2009 foram registrados 408.400 partos o que revela uma redução de 34,6% ao longo da década. Mesmo havendo queda na fecundidade em adolescentes em todo o Brasil, ainda é preocupante a gravidez em adolescentes, visto que se configura um problema social e de saúde pública (Brasil, 2011; Ott & Sucato, 2014). Na Região Norte do Brasil e especificamente em Manaus/AM não há estudos, até o momento, com uma análise abrangente a respeito da sexualidade na adolescência. O presente trabalho visou investigar a sexualidade de adolescentes escolares da cidade de Manaus/AM, identificando aspectos de saúde geral e de vulnerabilidade para gravidez adolescente e DST/AIDS entre rapazes e moças. 130 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Método Trata-se de um estudo transversal de base escolar, em que foram entrevistados adolescentes entre 12 e 19 anos, de ambos os sexos, estudantes do ensino fundamental e médio da rede estadual de ensino da cidade de Manaus/AM. Ao todo, 187.550 alunos estavam matriculados da 5º série do ensino fundamental ao 3º ano do ensino médio da rede estadual em 2009, distribuídos em 06 distritos escolares, abrangendo todas as zonas geográficas da cidade. A amostra do presente estudo foi probabilística por conglomerados (cluster) considerados como os distritos escolares. No cálculo do tamanho da amostra foi considerado o nível de confiança de 95%, com poder de 80%, e risco relativo 1,5. No intuito de buscar uma referencia para o cálculo da amostra, foi considerado o índice de prevalência de gravidez adotado por Béria, Morris, Carret, Oliveira e Rosa (1998) em estudos sobre a sexualidade na adolescência realizado nas cidades de Pelotas e Canoas no estado Rio Grande do Sul. Esses estudos estimavam uma prevalência de gravidez de 10% nos adolescentes que não usaram camisinha e de 5% nos que usaram camisinha. Para tanto seriam necessárias, neste estudo, 1326 pessoas. Acrescentando-se 30% para controle de fatores de confusão e mais de 20% para perdas, resultou um total de 1989 adolescentes. Para se chegar a esse número foram selecionadas 66 turmas considerando a média de 35 alunos por turma, perfazendo um total de 2310 adolescentes. A seleção das turmas foi realizada através de sorteio, com a utilização de tabela de números aleatórios, respeitando a proporção de turmas entre os distritos escolares. A lista das escolas, agrupadas por distritos escolares, foi fornecida pela Secretaria Estadual de Educação – SEDUC (2009). O instrumento utilizado para a coleta de dados foi um questionário autopreenchido, anônimo, composto por 74 perguntas sobre aspectos socioeconômicos, conhecimentos sobre a sexualidade, práticas sexuais, comportamento de prevenção e risco, uso de contraceptivos, prevalência de DST/AIDS, conhecimento e acesso aos programas de educação sexual e prevenção das DST/AIDS. Devido à natureza do tema não permitir a validação das respostas, a estratégia utilizada na tentativa de aumentar a fidedignidade das respostas dos adolescentes foi utilizando questionário anônimo e autoaplicado preenchido em sala de aula e sem a presença do professor. O questionário baseou-se no instrumento utilizado por Béria et al., (1998) em pesquisas realizadas no Estado do Rio Grande do Sul, em que relação sexual é definida como sexo vaginal, oral ou anal. Após a aprovação pelo Comitê de Ética da ULBRA Canoas, cada escola participante do estudo foi contatada e agendado início da coleta, que aconteceu entre os meses de março e julho de 2010. Ao adentrar na sala de aula, os entrevistadores apresentaram os objetivos da pesquisa, sendo garantido o anonimato e o direito de se retirar da pesquisa a qualquer momento. Foi solicitada a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) por parte dos adolescentes com idade de 18 anos ou mais. No caso dos menores de idade o TCLE foi encaminhado aos pais e/ ou responsáveis para assinatura, sendo autorizada a participação na pesquisa somente após a entrega do TCLE preenchido. Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 131 O questionário foi aplicado nas salas de aulas por pesquisadores treinados, os quais ofereciam as instruções de forma verbal e esclareciam dúvidas. Após o preenchimento, os adolescentes depositavam o questionário em um envelope pardo como forma de garantir o anonimato. A média de tempo utilizada pelos adolescentes para o preenchimento do questionário foi de 55 minutos. Foi realizado um estudo piloto com 40 adolescentes em duas escolas diferentes das participantes do estudo para testar a compreensão dos adolescentes sobre as questões incluídas no instrumento e os procedimentos da pesquisa. Os questionários foram revisados e inseridos no programa EPIDATA 3.1. com dupla digitação, sendo realizada correção de erros encontrados. Após, os dados foram migrados para o pacote estatístico SPSS 18.0 for Windows para fins de análise. Toda a análise foi estratificada por sexo. Foram utilizadas estatística descritiva, tais como: frequência, média e desvio-padrão e estatística inferencial, através de análises bivariadas, cruzando as variáveis independentes (conhecimentos sobre a sexualidade, práticas sexuais, comportamento de prevenção e risco, uso de contraceptivos, prevalência de DST/AIDS), conhecimento e acesso aos programas de educação sexual e prevenção das DST/AIDS com a variável dependente (sexo). Foi utilizado o teste do qui-quadrado para as variáveis qualitativas, para variáveis ordinais com mais de dois níveis, foi utilizado o teste de tendência linear, com o objetivo de identificar possíveis diferenças entre os extratos, e o teste t de Student para as variáveis intervalares. O nível de significância considerado nas análises foi de 5%. Resultados Participaram do estudo 1747 adolescentes escolares de 12 a 19 anos. As perdas foram de 17,94%, 2,06%, menos que o previsto no cálculo amostral. As perdas ocorreram por recusa em preencher o questionário (1,36%), não autorização dos pais (4,67%) e não comparecimento no dia do preenchimento (11,91%). Foram realizadas até cinco tentativas para a aplicação dos questionários, sempre buscando o maior número de alunos participantes. A Tabela 1 apresenta as características sociodemográficas dos adolescentes. Considerando o total de participantes neste estudo, a maioria (59.2%) eram moças. A média de idade dos adolescentes foi de 15,4 anos para os rapazes (DP+ 2,12) e de 15,1 anos para as moças (DP+ 2,07). A grande maioria dos adolescentes eram solteiros (96,4% dos rapazes e 94,9% das moças). Mais moças (89.4%) do que rapazes (84,2%) manifestaram ter religião (p<0,05), bem como praticar a religião (65% das moças 57,9% dos rapazes, p<0,05). Em relação à realização de uma atividade profissional com rendimento financeiro, 41,7% dos rapazes e 26,6% das moças estavam inseridos no mercado profissional de alguma forma, (p<0,001). 132 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Tabela1 – Características sociodemográficas de adolescentes de escolas públicas de Manaus, AM, 2010. Variáveis Masculino Sexo (n=1747) Feminino Total % % % 40,8 59,2 100,0 Situação Conjugal Solteiro 96,4 94,9 95,5 (n=1747) Casado/Morando junto 3,5 4,9 4,3 Idade (em anos) 12 a 13 22,7 26,7 35,1 (n=1747)* 14 a 15 26,9 31,3 29,5 16 a 17 26,9 25,3 26,0 18 a 19 23,4 16,6 19,4 Tem religião* 84,2 89,4 87,2 Pratica religião * 57,9 65,0 62,1 41,7 26,6 32,7 Religião (n=1747) Trabalha (n=1747)** *p<0,05; **p<0,001 No que diz respeito ao conhecimento sobre sexo, a Tabela 2 mostra que mais rapazes (80,3%) do que moças (73,8%) julgam ter um excelente conhecimento sobre o assunto (p<0,05). No entanto, mesmo com altos percentuais declarados sobre conhecimento da sexualidade, há interesse nos adolescentes em aprender mais sobre o tema, o que foi revelado por 89,1% dos rapazes e 93,3% das moças. O aprendizado já adquirido sobre o assunto pelos adolescentes, representado aqui pelas primeiras informações sobre relação sexual/gravidez, teve como fonte de informação mais significativa a família (70,8% dos rapazes e 83,0% das moças, p<0,001) seguido dos amigos/colegas (72,2% dos rapazes e 71,5% das moças); o professor/escola (62,2% dos rapazes e 69,0% das moças, p<0,05) e a TV/Rádio (63,5% dos rapazes e 61,1% das moças). Investigaram-se também os médicos/serviços de saúde, livros e filmes como fonte de informação e observou-se que quando comparadas aos rapazes, mais moças manifestaram obter informações sobre sexo através de médicos/serviços de saúde (p<0,000) e livros (p<0,05), e menos através de filmes (p<0,001). Dentre os assuntos abordados em casa sobre educação sexual, aqueles femininos (corpo da mulher, menstruação, virgindade, gravidez, método para não engravidar) foram mais prevalentes nas moças enquanto que nos rapazes prevaleceu assuntos como corpo do homem e relação sexual. Assuntos sobre DST e AIDS, foram igualmente tratados com rapazes e moças no meio familiar. Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 133 Tabela 2 – Conhecimento sobre sexualidade e AIDS de adolescentes de escolas públicas de Manaus, AM, 2010 Variáveis Masculino Feminino Total % % % Conhecimento sobre sexo Excelente/Bom 80,3 73,8 76,4 (n =1728)** Regular 16,7 21,6 19,6 Ruim/Péssimo 3,0 4,6 3,9 89,1 93,3 91,6 Gostaria de aprender mais sobre sexo, gravidez e AIDS (n=1721)** Primeiras informações Família (n = 1572)** 70,8 83,0 78,2 sobre sexo Amigos/Colegas (n =1427) 72,2 71,5 71,8 Professor/Escola (n =1409)* 62,2 69,0 66,3 Tv/Rádio (n =1348) 63,5 61,1 62,1 Revistas/Jornais (n =1348) 56,4 55,2 55,7 Médico/Serviço de saúde (n =1348)** 32,0 45,9 40,4 Filmes (n =1347)** 57,4 43,8 49,4 Livros/Livretos (n =1327) 44,8 50,1 47,9 Parceiro/Namorado (n =1366)* 40,0 34,5 36,7 Métodos para não engravidar (n =1508)** 63,8 81,4 74,7 DST (n =1531) 72,6 72,7 72,6 Menstruação (n =1511)** 39,2 92,1 72,5 Gravidez (n =1482)** 61,0 78,9 72,1 Relação Sexual (n =1506)* 73,4 67,7 69,9 Virgindade (n =1489)** 54,2 78,7 69,4 AIDS (n =1457) 63,7 64,6 64,2 Corpo de Mulher (n =1449)** 54,2 62,6 59,3 Corpo de Homem (n =1419)** 40,9 33,8 36,6 Educação sexual em casa *p<0,05; **p<0,001 Os totais não coincidem devido à falta de informações para algumas variáveis. Em se tratando da percepção dos adolescentes sobre vulnerabilidade para infecção pelo HIV, a Tabela 3 mostra que 65,9% dos rapazes e 76,9% das moças (p<0,001) julgam ser impossível ou quase impossível contrair HIV/AIDS. A grande maioria dos adolescentes 134 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 aceita se o parceiro oferece camisinha (91,3%) e refere que faria teste para verificar a existência de HIV (80,1%). Tabela 3 – Percepção da vulnerabilidade para infecção pela AIDS e uso do preservativo de adolescentes de escolas públicas de Manaus, AM, 2010 Variáveis Masculino Feminino Total % % % Percepção de vulnerabilidade impossível/quase impossível 65,9 76,9 72,4 para AIDS muito possível/possível 16,8 12,3 14,1 (n= 1705)** pouco possível 17,3 10,9 13,5 77,1 82,1 80,1 Faria teste de AIDS (n = 1712)* Aceita se o parceiro aceita bem 90,2 92,4 91,3 oferece camisinha aceita contrariado 2,8 2,5 2,7 (n= 905) desconfia dele(a) 2,5 2,8 2,7 perde o tesão 1,3 1,2 1,2 não aceita 2,3 0,9 1,7 *p< 0,05; p<0,001Os totais não coincidem devido à falta de informações para algumas variáveis. No que diz respeito às práticas sexuais, a Tabela 4 mostra que mais rapazes (68,0%) do que moças (43,6%) são sexualmente ativos. A média de idade da primeira relação sexual é maior nas moças (14,6 DP+ 2,07) do que nos rapazes (13,1; DP+ 2,12; p<0,001), revelando que as moças se iniciam mais tardiamente. Na primeira relação sexual, 76,9% das moças declararam ter utilizado preservativo enquanto que somente 55,5% dos rapazes o fizeram (p< 0,001). Esta prática se modifica quando se trata da última relação sexual, verificando-se percentuais semelhantes para rapazes (76,75%) e moças (74,3%). O número de parceiros sexuais nos últimos três meses foi de nenhum para 22.8% dos adolescentes, um para 55,7%, de dois a quatro para 15,2% e cinco ou mais para 6,3%. Foi observada maior prevalência de apenas um parceiro sexual nas moças (70,4%) do que nos rapazes (42,2%), e maior prevalência de dois ou mais parceiros nos rapazes (32,6%) quando comparados às moças (9,4%) (p<0,001). Na última relação sexual, o parceiro foi do sexo oposto para 90,6% dos rapazes e 95,6% das moças. O parceiro da última relação sexual já era conhecido antes para a maioria dos adolescentes (95,6% meninas e 84,1% meninos, p<0,001). A última relação sexual ocorreu há menos de um mês para 59,8% das moças enquanto para os rapazes esse número cai para 49,9% (p<0,05). Quanto à preferência sexual do parceiro, a Tabela 4 mostra que tanto rapazes (87,3%) quanto moças (89,0%) preferem parceiro do sexo oposto ao seu. Em se tratando da atitude adotada pelos adolescentes em relação à sexualidade, observase que mais rapazes (74,2%) que moças (59,0%) estão fazendo algo para se proteger da AIDS (p<0,001). Neste contexto, as atitudes mais prevalentes foram: o uso de camisinha, sendo que os rapazes a utilizam mais que as moças (p<0,05); ter menos parceiros sexuais, Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 135 sendo mais predominante entre as moças quando comparadas aos rapazes (p<0,001); ter parado de usar álcool/drogas antes de transar, não diferindo entre moças e rapazes; e estar em abstinência sexual, sendo esta atitude mais adotada por moças que por rapazes (p<0,001). A Tabela 4 mostra ainda que 12,8% dos adolescentes apresentaram histórico de gravidez e 9% de abuso sexual, sendo estes mais frequentes nas moças (16,4 e 11,7%) do que os rapazes (9,5 e 5,1%) respectivamente. Tabela 4 – Práticas sexuais de adolescentes de escolas públicas de Manaus, AM, 2010. Variáveis Já teve relação sexual (n = 1699)* Masculino Feminino Total % % % 68,0 43,6 53,6 Idade da primeira 5 0,7 0,2 0,5 relação sexual (em anos) 6 0,4 0,0 0,2 (n= 886)* 7 0,7 0,0 0,3 8 1,5 0,5 1,0 9 1,5 0,2 0,9 10 7,5 1,2 4,4 11 6,4 1,6 4,1 12 15,4 7,6 11,6 12 17,0 10,6 13,9 14 22,5 21,5 22,0 15 13,0 26,6 19,6 16 9,5 16,0 12,6 17 2,0 9,7 5,8 18 1,5 2,3 1,9 19 0,2 1,4 0,8 na primeira relação sexual (n = 897)* na última relação sexual (n = 908) 55,5 76,9 65,8 76,7 74,3 75,6 Número de parceiros sexuais 25,2 20,2 22,8 nos últimos 3 meses (n = 908)* 42,2 22,9 70,4 6,9 55,7 15,8 9,7 2,5 6,3 90,6 95,6 93,0 84,1 96,5 90,0 Uso de preservativo Parceiro na ultima relação sexual sexo oposto (n = 903)* Conhecia o parceiro antes da relação sexual (n = 900)* 136 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Masculino % Variáveis Quando ocorreu a última relação Sexual (n = 900) Preferência sexual (n = 907)** Feminino % Total % Há menos de 1 mês 49,9 59,8 54,7 15,4 De um a dois meses 17,8 12,9 De três a quatro meses 10,7 8,8 9,8 Mais de cinco meses 21,6 18,5 20,1 Sexo oposto 7,3 89,0 88,1 Mesmo sexo 3,2 4,4 3,7 Os dois sexos 5,1 1,6 3,4 Os dois, prefere do mesmo 2,5 1,6 2,1 Os dois, prefere o oposto 1,9 3,4 2,6 74,2 59,0 65,3 Protege-se da AIDS (n = 1681)** Usa camisinha Formas de proteção da AIDS (n = 1009) 95,5 92,3 93,9 64,4 77,5 71,1 Tem menos parceiros sexuais (n = 872)** Parou de usar álcool/dogas antes de transar (n = 739) 62,7 61,8 História de gravidez (n=114)** 9,5 16,4 História de abuso sexual (n = 1658)** 5,1 11,7 62,2 Parou de transar 12,8 9,0 * p<0,05, **p<0,001 Os totais não coincidem devido à falta de informações para algumas variáveis. A Tabela 5 apresenta dados referentes ao conhecimento e ao acesso a programas de educação sexual e de prevenção da AIDS, revelando que há o conhecimento desses programas por parte dos adolescentes tanto na escola (66,5%) quanto no município (33,7%), sendo esse conhecimento mais prevalente nas moças do que nos rapazes (p<0,05). O acesso a esses programas foi maior na escola (38,5%) do que no município (17,5%). Mais moças (43,0%) do que rapazes (31,8%) afirmaram participar destes programas na escola (p<0,001) e 52,1% de todos os adolescentes que participaram da pesquisa manifestaram mudar o comportamento após a participação nesses programas. Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 137 Tabela 5 – Conhecimento de acesso aos programas de educação sexual e prevenção de adolescentes de escolas públicas de Manaus, AM, 2010. Variáveis Masculino % Feminino % Total % Conhece programas de na escola (n = 1631)* 62,5 67,4 65,5 educação sexual no município (n = 1384) 35,6 32,5 33,7 Participa de programas na escola (n = 1371)** 31,8 43,0 38,5 de educação sexual no município (n = 1162) 15,5 18,8 17,5 50,7 53,0 52,1 Mudou o comportamento ao participar dos programas de educação sexual (n = 1075) Gostaria que tivessem programas de educação sexual na escola (n = 1584)** no município (n = 1366)* 87,4 76,8 94,0 82,1 91,4 79,9 Obtém dos postos de saúde do município Folhetos informativos (n = 1494)** Camisinha (n = 1514)** 61,6 53,3 70,1 39,4 66,7 45,0 Pílulas anticoncepcionais (n = 1407)** Testes para AIDS (n = 1414) 17,9 23,5 26,1 21,9 22,9 22,6 *p<0,05; **p<0,001 Os totais não coincidem devido à falta de informações para algumas variáveis. Quanto à participação do município na sexualidade dos adolescentes, observouse que se dá primeiramente com a distribuição de folhetos informativos, sendo mais obtido pelas moças (70,1%) que pelos rapazes (61,6%) (p<0,001); seguido pela entrega de camisinhas, com obtenção maior pelos rapazes (53,3%) que pelas moças (39,4%) (p<0,001); pílulas anticoncepcionais, com maior obtenção por parte das moças (26,9%) que dos rapazes (17,9%) (p<0,001); e pela oferta de teste para AIDS, não se diferenciando a obtenção entre rapazes e moças (22,6% dos adolescentes). Discussão Do total da população estudada de 1747 adolescentes escolares com idade de 12 a 19 anos, 53,6% relataram ter iniciado atividade sexual. Em outro estudo com escolares do 9° ano de Goiânia-GO (n=3.099), com predomínio das idades de 13 a 15 anos, a prevalência de relação sexual alguma vez foi de 26,5% (Sasaki, Leles, Malta, Sardinha, & Freire, 2015). Já em Porto Velho-RO, a prevalência de início de vida sexual foi de 25,5% em 996 escolares do 8º ano e no sul do Brasil, o percentual foi de 45,0 % em uma amostra de 1091 escolares de 12 a 19 anos (Bielenki & Béria, 2008). Ao ser comparada a idade média de início da atividade sexual dos adolescentes de Manaus com o encontrado no Sul do País, observa-se mais precocidade em Manaus, tanto para as moças (idade média de 14,6 anos em Manaus e de 15 anos no Sul) quanto para os rapazes (idade média de 13,1 anos em Manaus e de 14 anos no Sul). Essa diferença regional na idade de iniciação sexual dos adolescentes pode refletir maior vulnerabilidade dos adolescentes do Norte 138 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 do país em relação aos da região Sul, pois quanto mais cedo ocorre a iniciação sexual, menos condições o adolescente possui de se proteger e buscar orientações adequadas, ficando mais exposto ao risco de contrair DST/AIDS e de viver gravidez não planejada (Bielenki & Béria, 2008; Epstein, Bailey, Manhart, Hill, Hawkins, Haggerty & Catalano, 2014; Siegel, Lekas, Ramjohn, Schrimshaw & VanDevanter, 2014). O início da vida sexual ocorreu em média 1 a 2 anos mais cedo para os rapazes quando comparado às moças, o que também foi observado em outros estudos (Teva, Bermudez, Ramiro & Ramiro-Sanchez, 2013; Cruzeiro, Souza, Silva, Horta, Muenzer, Faria & Pinheiro, 2008; Romero, Medeiros, Vitalle & Wehba, 2007; Oliveira- Campos, Giatti, Malta & Barreto, 2013; Rocha, Horta, Pinheiro, Cruzeiro & Cruz, 2007; Marinho, Aquino & Almeida, 2009). Os indivíduos do sexo masculino tem chances mais elevadas de iniciar a vida sexual mais cedo, o que coincide com as expectativas sociais que continuam pressionando os rapazes para iniciação sexual precoce como simbolismo de maturidade. A iniciação precoce está associada a comportamentos que apresentam riscos à saúde (Cruzeiro et al., 2008). Estudos sugerem que adolescentes que iniciam a vida sexual mais cedo mantém padrões de comportamento que os colocam em risco, tais como carregar armas e uso de bebidas alcoólicas (Bemfam, 1999; Jeremić, Matejić, Soldatotović & Radenović, 2014). A diferença na idade de iniciação sexual entre moças e rapazes tem sido atribuída por alguns autores à normatividade de gênero e à expectativa de atitudes e práticas distintas para homens e mulheres no campo da sexualidade (Borges & Schor, 2005; Taquette, Vilhena & Paula 2004). A iniciação sexual mais precoce dos adolescentes do presente estudo torna-se um problema de saúde pública, pois esse comportamento está acompanhado por uso inconstante de preservativo, principalmente na primeira relação sexual. As moças do presente estudo reduziram o uso de preservativo comparando a primeira e a última relação sexual. Esse resultado coincide com estudos que indicam tendência crescente do uso de métodos contraceptivos e de camisinha na iniciação sexual, mas com diminuição do uso na medida em que os relacionamentos se estabelecem (Gubert & Madureira, 2008). Os adolescentes do presente estudo declararam excelente conhecimento sobre sexualidade (80,3% rapazes e 73,8% moças), sendo que mais rapazes que moças acreditam estar muito bem informados, o que se assemelha ao observado por Bielenki e Béria (2008) na região Sul do país. Estes dados mostram que a crença a respeito da informação sobre sexualidade é inerente aos adolescentes independente da região, revelando também o sentimento de onipotência, tão característico dessa fase do desenvolvimento humano. Esse sentimento também foi observado por vários autores ao referirem que os jovens possuem a convicção de que DST e AIDS “nunca irá acontecer com eles” (Lunardelli, 2002; Trajman et al., 2003; Crosby, DiClemente, Wingood, Salazar, Harrington & Davies, 2003; Camargo & Botelho, 2006). Este achado aponta para um sentimento de invulnerabilidade em que o adolescente julga ser inatingível por um vírus sobre o qual conhece bem. Essa crença pode dificultar o trabalho de intervenção, pois não há percepção de vulnerabilidade. Jeolás e Ferrari (2003) chamam atenção para a dificuldade em mudar valores e pensamentos cultural e socialmente preestabelecidos, necessário na intervenção com Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 139 adolescentes. Outro ponto que contribui para essa dificuldade é a escolaridade, pois estudos indicam que a maior escolaridade está associada à maior frequência do uso do preservativo nas relações sexuais (Lunardelli, 2002; Béria, Morris, Carret, Oliveira & Rosa, 1998; Souza-Jr, Szwarcwald & Castilho, 2007; Teixeira, Knauth, Fachel & Leal, 2006; Takiuti, Julien, Garrido, Fernandes, Monteleone & Prebil, 2001). A grande maioria dos adolescentes estudados (89,1% rapazes e 93,3% moças) gostariam de aprender mais sobre o assunto sexo, sendo a família e os amigos/colegas, o professor/escola e a mídia (TV e rádio) as principais fontes de informação. Zenevicz e Béria (2003) mostram que, em sua maioria, estudantes/adolescentes em Concórdia-SC conhecem os riscos da AIDS, mas chama atenção ao fato de que estarem informados não é suficiente para mudança de comportamento. Querer aprender mais sobre sexualidade também foi encontrado por Barros, Barreto, Pérez, Santander, Yépez, Abad-Franch & Aguilar, (2001) em estudo realizado no Equador e conclui que os adolescentes têm um interesse muito grande em melhorar seus conhecimentos sobre sexualidade. Camargo e Botelho (2006) relatam a escola e a televisão (44,8% e 41,5%), seguidos dos folhetos informativos e a família (36,6% e 34,1%) como fontes principais de informação sobre sexualidade para os adolescentes, o que se confirma também por Romero et al., (2007). Hoyos e Sierra (2001) afirmam que a troca de informação entre amigos proporciona um melhor nível de conhecimento. Estes resultados chamam atenção para a importância da família estar disponível e ter condições de orientar os filhos quanto à sexualidade, situação em que o diálogo ganha espaço importante (Ohene, Ireland & Blum, 2005). Compartilhar ideias no ambiente familiar é o melhor caminho para negociar e aprender os códigos morais, servindo de base para desenvolvimento de ideias e conceitos próprios pautados em responsabilidade e afeto (Zenecvicz & Béria, 2003). Isso indica a importância da educação como contribuinte para adoção de um comportamento sexual mais saudável, o que coincide com as conclusões de outro estudo feito no Sul do país (Bielenki & Béria, 2008). Em relação ao número de parceiros sexuais nos últimos três meses, constatou-se que a maioria dos participantes afirma ter possuído apenas um, sendo este já conhecido, e de sexo oposto ao seu. Neste ponto houve uma diferença entre os gêneros, sendo esta prática mais frequente entre as moças, o que remete à possibilidade de que possuem parceiros fixos com envolvimento afetivo-emocional. Resultados semelhantes também foram encontrados por Béria et al., (1998). A manutenção de apenas um parceiro sexual também pode ser visto como uma medida protetora contra o HIV (Zenecvicz & Béria, 2003). Os resultados do presente estudo mostram que a grande maioria dos adolescentes aceitaria se o parceiro oferecesse camisinha, bem como faria o teste para verificar a existência de HIV, indicando disponibilidade para adoção de um comportamento sexual preventivo, o que é relevante para os cuidados com a saúde sexual (Calazans, Araujo, Venturini & França Junior, 2005). Em relação ao uso de preservativo, observa-se diferença entre os gêneros, pois as moças afirmaram ter utilizado mais preservativo que os rapazes na primeira relação sexual, o que se inverteu na última relação. Resultados semelhantes também foram encontrados por outros autores (Béria et al., 1998) no Sul do país, podendo indicar que o envolvimento afetivo-emocional mais comum nas moças interfere em seu 140 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 comportamento preventivo de modo a negligenciar a prevenção, prevalecendo a confiança na relação com o parceiro (Cano & Ferriani, 2000). Estudos nacionais e internacionais (Bozon & Heilborn, 2006; Rissel, Richters, Grulich, Visser & Smith, 2003; Tequette, Vilhena & Paula, 2004; Heilborn & Cabral, 2006; Rosenthal, Von Ranson, Cotton, Biro, Mills & Succop, 2001; Paiva, Peres & Blessa, 2002; Miranda, Gadelha & Szwrcwald, 2005) indicam aumento no uso de preservativo entre jovens em geral e, particularmente, na ocasião da iniciação sexual. O uso de preservativo também está relacionado a outros fatores tais como ser do sexo feminino e ter baixa escolaridade (Béria et al., 1998; Zenecvicz & Béria, 2003). Outros estudos mostram que a maior escolaridade está associada à maior frequência do uso de preservativo nas relações sexuais (Lunardelli, 2002; Trajman et al., 2003; Crosby et al., 2003; Zenecvicz & Béria, 2003). Quanto à preferência sexual, 88,1% declararam ter relações sexuais apenas com parceiros do sexo oposto, e mais rapazes tiveram relações sexuais com parceiros do mesmo sexo quando comparado às moças, o que também foi encontrado por Heilborn e Cabral (2006). Outro ponto relevante desse estudo foi a ocorrência de gravidez, relatada por 12,8% dos adolescentes participantes, semelhante ao encontrado por Béria et al., (1998). Os dados epidemiológicos sobre gravidez mostram que houve redução de 34,6% no índice de gravidez no país, apontado pelo Ministério da Saúde (Brasil, 2011) com uma taxa de redução de 34,6%, sendo a região sul aquela que concentra maior redução (36,50%) e a região norte (21,90%) a menor. Esta mudança no quadro nacional poderia ser atribuída às ações do Ministério da Saúde através da distribuição de preservativo e às campanhas de DST/AIDS. A maior história de gravidez relatada pelas moças, também pode refletir a diferença de gênero no poder de tomada de decisão na negociação do uso de preservativo (Aquino, Almeida, Araújo & Menezes, 2006). Mesmo em situações em que teoricamente o controle para o sexo protegido está sob o poder das mulheres, como é o caso do preservativo feminino, a adoção de medidas preventivas ainda não é frequente (Takiuti et al., 2001; Calazans et al., 2005; Aquino et al., 2006). Outro achado do presente estudo a ser destacado é o conhecimento de programas de educação sexual tanto na escola quanto no município por parte dos adolescentes, sendo maior o acesso na escola e mais procurado pelas moças que pelos rapazes, havendo o relato de mudança de comportamento após participação nestes programas de educação sexual. Embora um pouco mais da metade dos adolescentes pesquisados conhecem programas de educação sexual na escola e somente 38,5% participam desses programas, o dado reforça a importância social da escola na mudança de comportamento com o intuito de promover educação sexual dos adolescentes, revelando que jovens que participam destes programas tem maior conhecimento do próprio corpo e maior sensibilização para responsabilidade diante da vivência da sexualidade, conforme aponta Takiuti et al., (2001). Hoyos e Sierra (2001) concluem que alto nível de conhecimento acerca da AIDS é fator predisponente para o uso de camisinha. Um estudo indica que trabalhar a mudança de comportamento visando uma sexualidade mais responsável e saudável, caracteriza uma árdua e demorada tarefa, necessitando de intervenções frequentes, pois objetiva a reconstrução de atitudes responsáveis (Takiuti et al., 2001). Para realizar trabalhos Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 141 de intervenção, é preciso conhecer as atitudes e comportamentos dos adolescentes e traçar corretamente as estratégias para abordar a prevenção do HIV e obter resultados significativos que se traduzem em mudanças na prática (Zenecvicz & Béria, 2003; Hoyos & Sierra, 2001). Vale ressaltar a necessidade de que as informações precisam ser repassadas, respeitando as diversidades existentes na população, salientando a importância de que todas as ações educativas destinadas à orientação sexual devem ser contínuas, colocandose como um desafio que é necessário ser assumido por todos os envolvidos com o público adolescente, desde os pais, profissionais da área da saúde e educação, mídia, governos e a sociedade de forma geral, sempre no intuito de permitir aos adolescentes condições de vivenciar sua sexualidade com saúde e responsabilidade associada ao prazer. Enfim, a presente pesquisa identificou início da vida sexual dos rapazes escolares do Norte mais precoce quando comparados aos do Sul do país. A maioria dos adolescentes julga ter bom conhecimento sobre sexo, sendo as principais fontes de informação a família, a escola/professor, os amigos e a mídia (TV e Rádio), mesmo assim manifestaram interesse em ter mais conhecimento sobre a temática. As moças usaram mais preservativos que os rapazes na primeira relação sexual, mas diminuíram o uso quando a relação se tornou estável. O relato de gravidez foi mais mencionado pelas moças. Estas, também apresentaram maior participação nos programas de educação sexual oferecidos pelas escolas. Moças e rapazes que participaram dos programas de educação sexual nas escolas referem ter mudado de comportamento. Todos esses dados mostram a necessidade de trabalhar a temática sexualidade de forma mais contínua, iniciando o mais cedo possível. Sugere-se que esse trabalho se inicie na escola ainda no ensino fundamental por meio de oficinas, jogos, cine-foro, dinâmicas e vivencias que permitam ao adolescente maior conhecimento, criando um espaço para discussão, esclarecimento e desenvolvimento de um comportamento sexual preventivo. Sugere-se, ainda, intervenção da escola junto aos pais, inserindo nas reuniões periódicas com pais do ensino fundamental oficinas para trabalhar na preparação para educação sexual em casa. O município, igualmente, deve se responsabilizar por campanhas informativas sobre DST/AIDS, trabalhando a questão da sexualidade e ao mesmo tempo estimulando a aproximação e acolhimento dos filhos por parte dos pais. Em relação à gravidez sugere-se que a escola trabalhe em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde, inserindo no currículo escolar atividades com profissionais da saúde, no intuito de propor um espaço de informação e discussão sobre a temática. A distribuição de preservativos deve ser ampliada para atender a demanda reprimida no sentido de combater as DSTs/AIDS e a gravidez não planejada. Finalizando salienta-se que as ações educativas destinadas à prevenção das DSTs/ AIDS e gravidez não planejada devem iniciar no ensino fundamental e serem contínuas, como um componente curricular, sendo assumidas pela escola, professores, pais, profissionais da saúde e município. Como limitações do estudo, podem-se mencionar dificuldades no acesso a alguns alunos matriculados, o que gerou 17,94% de perdas, sendo a maioria (11,91%) pelo não comparecimento dos adolescentes no dia do preenchimento do questionário. Não sabemos quanto deste não comparecimento se deu em função de recusa ou devido à paralisação no 142 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 transporte coletivo na cidade de Manaus, que ocorreu no período de coleta, dificultando o acesso dos alunos à escola. Referências Aquino, E. M. L, Almeida, M. C., Araújo, M. J. & Menezes, G. (2006). 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Endereço para contato: [email protected] 146 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Aletheia 43-44, p.147-159, jan./ago. 2014 Integrando método clínico e investigação empírica para a compreensão do abandono em psicoterapia psicanalítica Aline Alvares Bittencourt Maria Cristina Vieweger de Mattos Farid Rodrigues Bessil Fernanda Barcellos Serralta Silvia Pereira da Cruz Benetti Resumo: O presente artigo busca contribuir para a diminuição da lacuna entre a prática clínica e a pesquisa empírica em psicoterapia. Especificamente, o estudo visa refletir sobre o abandono em psicoterapia psicanalítica, levantando hipóteses sobre fatores que poderiam facilitar ou dificultar a adesão ao processo. Foram analisadas as sessões iniciais de dois tratamentos psicoterápicos com pacientes que apresentam Transtorno de Personalidade Borderline conduzidas pela mesma terapeuta. Os tratamentos possuem desfechos diferentes: um apresentou boa adesão e o outro foi interrompido precocemente. As sessões de ambos os casos foram gravadas em vídeo e posteriormente codificadas por duplas de juízes independentes com instrumentos do tipo q-sort que avaliam diferentes aspectos do processo terapêutico. Os resultados obtidos foram integrados com o método clínico de entendimento psicanalítico e sugerem que, na psicoterapia psicanalítica com pacientes borderline, a ausência de comportamentos típicos no processo inicial pode ser um sinal de resistência e pseudocolaboração. Palavras-chave: processo terapêutico; psicoterapia psicodinâmica; transtorno de personalidade borderline. Combining clinical method and empirical research to understand dropout in psychoanalytic psychotherapy Abstract: This paper attempts to contribute to reducing the gap between clinical practice and empirical research in psychotherapy. Specifically, the study aims to examine dropout in psychoanalytic psychotherapy by formulating hypotheses about factors that may facilitate or hinder adherence to process. The initial sessions of two psychotherapies with Borderline Personality Disorder patients conducted by the same therapist are analyzed. The treatments have different outcomes: one had good compliance and the other was early interrupted. The initial sessions of both cases were videotaped and then encoded by pairs of independent judges with q-sort type instruments that assess different aspects of the therapeutic process. The results were integrated with the clinical method of psychoanalytic understanding and suggest that in psychoanalytic psychotherapy with borderline patients, the absence of typical behaviors in the initial process can be a sign of resistance and pseudo-collaboration. Keywords: psychotherapy process; psychodynamic psychotherapy; borderline personality disorder. Introdução Este artigo busca contribuir para a diminuição da lacuna existente entre a prática clínica e a pesquisa empírica, “conjugando subjetividade e objetividade, de modo a contemplar exigências e interesses clínicos e metodológicos” (Serralta, Nunes & Eizirik, 2011, p. 503). A pesquisa psicanalítica típica utiliza o método clínico no qual intervenção e pesquisa coincidem. Ela é heurística e parte da observação do cotidiano e se descobre a partir do próprio método. Parte-se do pressuposto que a psicanálise não pertence nem às ciências naturais nem às ciências humanas, mas introduz um novo paradigma que implica numa relação dialética entre sujeito e objeto (Silva, Yazigi & Fiore, 2008). Por outro lado, a pesquisa empírica é comprometida com o pensamento crítico e com a aplicação de métodos científicos oriundos das ciências naturais e humanas para estudar conceitos e processos psicanalíticos bem como resultados e processos de mudança em psicoterapia e em psicanálise. Ao recusar a inclusão de outros métodos para dialogar com o método psicanalítico, a psicanálise vem, ao longo das últimas décadas, perdendo espaço na academia e interlocução com outros campos do saber. A integração entre pesquisa empírica e prática psicanalítica e a construção de elos entre psicanálise e outras disciplinas, como psicologia, psiquiatria e neurociências, por exemplo, é necessária para ajudar a reestabelecer a psicanálise como uma disciplina relevante nos meios acadêmicos e de saúde mental (Fonagy, 2004). Uma minoria de psicanalistas e psicoterapeutas de orientação psicanalítica vem promovendo estudos empíricos nas mais diferentes áreas de aplicação da psicanálise e contribuindo para a difusão e resistência desta disciplina na academia. A pesquisa psicanalítica tem ampliado seu espaço no meio científico a partir da publicação de uma série de revisões importantes e meta análises sobre os resultados das intervenções psicoterápicas nessa abordagem teórica. Nesse caso, os estudos confirmam a efetividade e a eficácia das psicoterapias psicanalíticas em distintos quadros clínicos e faixas etárias, apontando que os ganhos obtidos com a psicoterapia psicanalítica se assemelham a de outras abordagens terapêuticas anteriormente pesquisadas (Abbass, Hancock, Henderson & Kisely, 2006; Gerber, Kocsis, Milrod, Roose, Barber, Thase, Perkins & Leon, 2011; Leichsenring, Hiller, Weissberg & Leibing, 2006). Com o passar dos anos, a pesquisa empírica em psicoterapia de orientação psicanalítica vem crescendo significativamente, no entanto a compreensão dos aspectos que levam à mudança continuam carecendo de pesquisas. Clínicos buscam em suas supervisões entender e elucidar o processo, pesquisadores com seus instrumentos buscam quantificar acontecimentos, mas pouco juntam suas forças. Estudos empíricos sistemáticos do processo terapêutico são bastante semelhantes aos estudos de caso tradicionais, mas cumprem com exigências cientifico-metodológicas de validade e fidedignidade dos dados e da sua interpretação (Serralta, Nunes & Eizirik, 2011). Não obstante, a maior parte dos clínicos não conhece e não consome esse tipo de estudo. A investigação em psicoterapia centraliza-se em dois grandes eixos. O primeiro relaciona-se à eficácia da psicoterapia (outcome research) e o segundo a investigação sobre o processo terapêutico (process research). Nesse último, procura-se compreender como ocorre o processo psicoterapêutico, identificando o que acontece nas sessões nas diferentes abordagens psicoterapêuticas e buscando estabelecer conexões sobre a relação processo-resultados (Sousa, 2006; Serralta & Streb, 2003). O investimento em pesquisas de avaliação de processo pode beneficiar pacientes e terapeutas, visto que a partir destas investigações é possível conhecer os mecanismos da 148 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 ação terapêutica e assim estabelecer caminhos que possibilitem uma maior qualidade dos atendimentos psicológicos oferecidos, os quais se refletirão tanto em nível do treinamento profissional como da sustentação de ações em saúde mental (Lhullier, 2002). Atualmente sabe-se que cerca de 80% dos pacientes apresentam uma mudança clinicamente significativa quando comparados com a amostra de pessoas que não realizaram psicoterapia e encontrando-se com o mesmo tipo de problemática (Lambert & Olges, 2004; Sousa, 2006). No entanto, entre as pessoas que chegam à psicoterapia, os altos índices de abandono evidenciam que uma pequena parcela dos pacientes que buscam auxílio psicológico de fato chega a concluir os tratamentos que inicia. Estudos de meta análise mostram que 1 a cada 5 pacientes interrompe a psicoterapia sem concluíla (Greenberg & Swift apud Jung, Serralta, Nunes & Eizirik, 2013). Há, portanto, uma defasagem entre a necessidade de ajuda psicológica da população, a procura por atendimento especializado e os benefícios recebidos com os tratamentos psicoterápicos (Gastaud & Nunes, 2010). O abandono de tratamento na psicoterapia vem ganhando amplo espaço de pesquisa e discussão no meio clínico e cientifico. As altas taxas de abandono estimadas pela literatura nacional e internacional justificam a crescente preocupação com este fenômeno. Nas políticas públicas de saúde, o abandono ou interrupção do processo terapêutico é apontado como uma situação com implicações sérias nas trajetórias de saúde dos indivíduos e com alto custo econômico e social (Benetti & Cunha, 2008). Ainda que possam referir algum ganho (Jung et al., 2013), os pacientes que abandonam não se beneficiam totalmente do atendimento e acabam perdendo as esperanças de serem ajudados (Gastaud & Nunes, 2010). Ocorre o desgaste financeiro e afetivo do paciente, além de frustração para o terapeuta e para o serviço que presta o atendimento, os quais se sentem incapazes, incompetentes e desacreditados (Luk, Staiger, Mathai, Wong, Birleson & Adler, 2001; Jung et al., 2013). Considerando a importância de harmonizar a pesquisa com a prática clínica e de estudar e compreender os fatores associados ao abandono em psicoterapia psicanalítica, este artigo visa apresentar e discutir dois casos atendidos em psicoterapia psicanalítica que estão sendo analisados em profundidade com diversos instrumentos e métodos de avaliação do processo terapêutico pelo grupo de pesquisa em psicoterapia vinculado ao PPG em Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Os dois casos são de pacientes com Transtorno de Personalidade Borderline (TPB), atendidas em psicoterapia psicanalítica, em consultório particular, pela mesma terapeuta. Os casos apresentam desfechos distintos: um aderiu ao tratamento e já se encontra há mais de um ano em psicoterapia e o outro abandonou depois de 20 sessões. Método Este é um estudo de dois casos que conjuga o método clínico psicanalítico com o método empírico de estudo de caso sistemático. O estudo de caso é uma abordagem metodológica que tem como objetivo a análise em profundidade de um fenômeno dentro do seu contexto, permitindo que se compreenda, explore ou descreva os acontecimentos dentro do tempo e do lugar ao qual pertencem (Stake, 2011). Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 149 Entendendo que a pesquisa psicanalítica pode coexistir com outros métodos de investigação da clínica psicanalítica, este projeto adota o modelo de estudo sistemático de caso. Segundo Edwards (2007), este tipo de estudo busca compreender os fatores que contribuem para a mudança dentro do contexto clínico natural considerando o rigor metodológico da pesquisa empírica. Serralta, Nunes e Eizirik (2011) explicam que esse delineamento pode fazer uso de medidas objetivas aplicadas às sessões gravadas de psicoterapia, fazendo frente à dificuldade encontrada em avaliar e mensurar aspectos subjetivos dos processos terapêuticos. Salientam os autores que este tipo de estudo pode ser uma adição ou complemento aos estudos de caso tradicionais na psicanálise e que possuem potencial para ajudar a diminuir a lacuna existente entre a prática clínica e a pesquisa empírica. Partindo do pressuposto que, no atendimento clínico em psicoterapia de orientação psicanalítica, a realidade vivida entre psicoterapeuta e paciente é difícil de ser retratada, principalmente considerando os modelos de pesquisa empíricos, o estudo conjuga o método clínico freudiano, no qual, o terapeuta é o pesquisador e a pesquisa empírica, que busca aumentar a validade do estudo através da aplicação de medidas objetivas e de múltiplas perspectivas de observação em relação ao material clínico. Os casos em análise Caso 1 Mariana, 21 anos, realizou triagem em uma clínica psiquiátrica privada em março de 2013, por se cortar em momentos de raiva e ter crises de choro desde os 12 anos. Com 11 anos seu pai, que era alcoolista, faleceu subitamente. Na adolescência, com 13 anos, namorou por um ano um rapaz mais velho, também alcoolista. Com ele, Mariana começou a beber em excesso. Fez diversas psicoterapias desde os 14 anos com uso de medicação e, sempre que se sentia melhor abandonava os tratamentos. Mariana refere ser bissexual. Relaciona-se com meninos e meninas, mas atualmente pouco sai de casa. Nega relacionamentos promíscuos. A paciente apresenta comportamentos fóbicos, não consegue sair de casa para festas, não consegue andar de ônibus e nem ir à aula. Também apresenta algumas compulsões e tem rituais para dormir. Mesmo assim, tem pesadelos e muitas vezes não consegue conciliar o sono. Após a triagem, Mariana foi encaminhada para atendimento psicoterápico e psiquiátrico em consultório particular. O psiquiatra responsável pelo caso diagnosticou-a com TPB (DSM-V; APA, 2013), diagnóstico também confirmado pela terapeuta. Caso 2 Juliana, 19 anos, realizou triagem em março de 2013 em uma clínica psiquiátrica. Queixava-se de irritabilidade e tristeza desde a infância. Referiu ter recebido diagnóstico de TDAH quando criança. Já fez uso de maconha e relata desejo do uso de outras drogas. Seus pais se separam quando ela era pequena. Desde então, passou a viver com a mãe. Refere que sua mãe é depressiva e negligente. Possui um irmão alcoolista e usuário de drogas. Juliana faz uso excessivo de álcool, desde os 14 anos. Teve um envolvimento 150 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 amoroso duradouro com um homem mais velho e casado. A paciente refere ter realizado psicoterapia em diversos momentos, desde a infância, com um histórico de abandonos precoces dos tratamentos. Depois da avaliação inicial, o psiquiatra responsável pelo caso diagnosticou-a com TPB (DSM-V; APA, 2013). Foi encaminhada para psicoterapia individual e acompanhamento psiquiátrico em consultório particular. Havia, recentemente, abandonado a escola e sido demitida de uma empresa prestadora de serviços, por erros e faltas no trabalho. Possui um namorado que apresenta transtorno de humor. Terapeuta A terapeuta possui treinamento formal em psicoterapia psicanalítica em uma instituição local, cujo modelo de formação é baseado no tripé: Seminários teóricos, supervisões e tratamento pessoal há, em média, nove anos. A terapeuta é a mesma nos dois casos. Psychotherapy Process Q-Set (PQS) O PQS (Jones, 2000) é um instrumento do tipo Q-sort que busca descrever o processo psicoterápico e tem como unidade de análise a sessão terapêutica. Foi criado por Enrico E. Jones em 1985 e publicado pela primeira vez em 2000. Consiste em 100 itens que descrevem o comportamento do terapeuta (n=41), o comportamento do paciente (n= 40) e a interação entre paciente e terapeuta (n=19), que devem ser distribuídos por juízes independentes (observadores externos treinados na aplicação do instrumento) em categorias de um continuum que vai do menos característico (categoria 1) ao mais característico (categoria 9). A distribuição dos itens em cada categoria é fixa de modo a manter conformidade com a curva normal. A distribuição dos itens nas categorias deve levar em consideração frequência, intensidade e importância de um item em relação aos demais, necessitando de tempo e reflexão (Ablon, Levy & Smith-Hansen, 2011; Serralta, Nunes, & Eizirik, 2007). O PQS esta disponível em diversas línguas, tais como: Alemão, japonês, português, espanhol, italiano e norueguês (Ablon et al., 2011). A versão em português do PQS foi elaborada por Serralta et al., (2007) e foi testada em estudos anteriores (Brandtner, 2012; Serralta et al., 2007; Serralta et al., 2011) mostrando uma medida fidedigna e capaz de produzir descrições confiáveis do processo terapêutico de diferentes abordagens de psicoterapia. Adolescent Psychotherapy Q-Set (APQ) O APQ é uma adaptação para o uso em psicoterapias de adolescentes do Psychotherapy Process Q-set (PQS) de Enrico Jones (2000). Consiste em 100 itens que descrevem o comportamento do terapeuta (n=30), o comportamento do paciente (n= 40) e a interação entre paciente e terapeuta (n=30), que devem ser distribuídos por juízes independentes (observadores externos treinados na aplicação do instrumento) em categorias de um continuum que vai do menos característico (categoria 1) ao mais característico (categoria 9). A distribuição dos itens em cada categoria é fixa de modo a manter conformidade com a curva normal. Os itens descrevem comportamentos observáveis ou marcadores linguísticos manifestos, evitando itens mais inferenciais como Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 151 a descrição das atividades mentais ou estados psicológicos inconscientes. Não obstante, alguns itens envolvem algum grau de inferência. A terminologia teórica também é evitada, de modo a permitir uma avaliação “não saturada” do processo. O APQ é um instrumento ateórico que descreve as atitudes e vivências do adolescente (Bambery, Porcerelli & Ablon, 2009). A medida de avaliação é a sessão terapêutica gravada em toda a sua extensão. A versão em português foi elaborada por Silvia Benetti e encontra-se atualmente em estudo (Benetti, Esswein, Bernardi, Midgley, Calderon, 2014). Foram avaliadas as quatro sessões iniciais de cada um dos casos com o PQS ou com o APQ. O caso 1 (Mariana) foi avaliado com o PQS e o caso 2 (Juliana) com o APQ, respeitando a idade das pacientes. Estas sessões, bem como as demais sessões de ambos os tratamentos, haviam sido gravadas em áudio para subsidiar os estudos de processo desenvolvidos pelo grupo de pesquisa. As gravações das sessões foram avaliadas individualmente, de modo independente, por duplas de avaliadores previamente treinados na aplicação do PQS e do APQ. Caso a fidedignidade entre as avaliações tenha sido abaixo de 0,7 (Correlação de Pearson) foi utilizado um terceiro avaliador. Para as análises subsequentes foi utilizada a média das pontuações entre os dois avaliadores. Para a descrição geral do processo terapêutico, foi feito um ordenamento simples, a partir das médias de cada item dos instrumentos (PQS ou APQ), dos itens mais e menos característicos da psicoterapia. Os 10 itens mais e menos característicos de cada caso foram utilizados para formar narrativas do processo. Essas narrativas foram comparadas qualitativamente entre si. Dados oriundos das observações da terapeuta complementam a descrição do processo. Na discussão, os resultados advindos dos dados empíricos foram integrados à compreensão clínica realizada pela terapeuta. O presente estudo está vinculado a um projeto de pesquisa mais amplo já em andamento (Psicoterapia psicanalítica na adolescência – Características e avaliação do processo terapêutico), aprovado no Comitê de Ética da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (protocolo no 12/028). A paciente e a terapeuta leram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), elaborado conforme as diretrizes regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos, fornecido pela pesquisadora coordenadora do projeto. Resultados Segue a descrição, utilizando do PQS, das quatro primeiras sessões do tratamento psicoterápico da Mariana: Nestas quatro primeiras sessões Mariana não tem dificuldades de começar os diálogos, sem fazer longas pausas (PQS 25), se mostrando disposta a quebrar silêncios ou fornecer assuntos quer espontaneamente quer em resposta às indagações da terapeuta ativamente lhes dando segmento ou elaborando (PQS 15) e trazendo temas e materiais significativos que, de modo importante, estão relacionados com seus conflitos psicológicos (PQS 88). Parece desarmada ou sem bloqueios (PQS 97). Seu discurso é claro e organizado (PQS 54) e prontamente compreende os comentários da terapeuta (PQS 5). Parece sentirse desinibida, autoconfiante ou segura de si (PQS 61), expressa ressentimentos, raiva, amargura, ódio ou agressividade para com os outros (PQS 84) e contempla ou persegue 152 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 linhas de pensamento que podem ser emocionalmente estressantes ou perturbadoras (PQS 58) para ela. Mostra estar confiando na terapeuta (PQS 44), não busca aprovação, afeição ou simpatia da mesma (PQS 78) e não parece preocupada com o tipo de impressão que está criando ou com possíveis julgamentos (PQS 53). A terapeuta, por sua vez, se comunica com estilo claro e coerente (PQS 46) solicita mais informações ou elaborações (PQS 31) parecendo confiante, segura e não defensiva (PQS 86). Demonstra habilidade para intuir o mundo interno da paciente, é empática (PQS 6), e questiona a visão da Mariana acerca de experiências e acontecimentos (PQS 99), promovendo discussões sobre lembranças ou reconstruções dos primeiros anos de vida (PQS 91). Não assume uma atitude de superioridade (PQS 51) e mostra-se genuinamente responsiva e afetivamente envolvida no processo (PQS 9). Conforme as observações clínicas da terapeuta referentes às quatro sessões iniciais de Mariana: A paciente descreve sua mãe como uma pessoa frágil, que chora muito e não consegue entender suas necessidades. Seu pai, falecido, é lembrado como um homem forte, com problemas de alcoolismo e bastante agressivo. Na primeira sessão conta, de forma agressiva, que as psicoterapias anteriores a estressavam e que não ajudavam em nada; também refere que quando parava de tomar o remédio “surtava” e agredia muito a mãe com “frases desnecessárias”. Nesta mesma sessão, Mariana conta à terapeuta que uma vez chegou à pedir para sua mãe interná-la, mas esta não atendeu ao seu pedido. Quando a terapeuta tenta explorar o motivo desta recusa, a paciente responde aos gritos: “Como ela ia ficar sozinha!?”. Nas sessões seguintes, a terapeuta registra que a ideia de que a psicoterapia pode não ajudar continua presente. Na terceira sessão, por exemplo, a paciente, afirma que por ter voltado a contar sua vida na terapia os seus pesadelos reapareceram e conclui acusatoriamente: “os pesadelos são, em parte, culpa tua (terapeuta) que me faz lembrar dessas coisas”. A terapeuta busca compreender empaticamente Mariana e procura explorar sua história de vida sem pré-julgamentos. Mariana descreve sua relação com os amigos com muita ambivalência – ora conta das festas e “porres” que tomam com muito orgulho, ora relata desconforto na presença deles. Seus afetos são também contraditórios. Relata que preferir ficar sozinha, mas se fica sozinha, sente-se angustiada. Conforme a terapeuta, a paciente é muito agressiva e impulsiva em algumas situações. Por outro lado, conta momentos dolorosos de sua vida, como a morte do pai, sem demonstrar nenhum afeto e, às vezes, com tom afetivo contrário ao esperado na situação, por exemplo, rindo muito de um episódio supostamente muito doloroso relacionado à doença do seu pai. No início do tratamento, o trabalho da terapeuta foca o entendimento da história de vida da paciente, a exploração dos motivos da busca de tratamento e no assinalamento das distorções dos seus afetos. A paciente aceita as interpretações da terapeuta, embora as rebata inicialmente com um “não”: “Será que esse monte de pesadelos não é a tua própria história guardada dentro de ti? Será que quando tu ri da enfermeira, o medo e a tristeza que tu tem não vão para dentro de ti e depois saem como pesadelo?”. E a paciente logo responde: “Não, eu ri e rio até hoje porque ela é burra, mas eu lembrei que tenho que te contar que tenho muita vontade, às vezes, de matar alguém. Imagino as mortes, mas não é ninguém especial, parece que isto está dentro de mim”. Segue a descrição, utilizando do AQS, das quatro primeiras sessões do tratamento psicoterápico da Juliana: Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 153 Nas primeiras quatro sessões a paciente Juliana inicia sem dificuldades indo direto ao que considera importante (APQ 30), é particularmente dócil e respeitosa (APQ 20) e trabalha com a terapeuta de uma forma colaborativa (APQ 87), mostrando-se disposta a quebrar silêncios e trazer tópicos importantes às sessões (APQ 15) e transmitindo a sensação de que a terapeuta compreende as suas experiências e sentimentos (APQ 14). Juliana fala sobre si e sobre outros com compaixão e preocupação (APQ 25), discute suas relações sociais ou familiares ou seus envolvimentos emocionais (APQ 63) manifestando tensão, ansiedade ou preocupação ao longo das sessões (APQ 07) e experimentando afetos de desconforto ou incômodos (APQ 26), mas sem expressar sentimentos de ser tratada injustamente (APQ 55). As respostas ou comportamentos da terapeuta indicam que ela está ouvindo a paciente e lhe encorajando a falar (APQ 03) embora ofereça declarações tímidas ou provisórias sobre o conteúdo da mente da jovem (APQ 89) e não haja discussões de sonhos ou fantasias (APQ 90). A terapeuta se comunica com Juliana em um estilo claro e coerente (APQ 46), solicitando mais informações ou elaborações de algumas ocorrências (APQ 31). Permanece empática quando confrontada com intensos sentimentos ou impulsos da jovem (APQ 37) e trabalha com ela para tentar dar sentido à sua experiência (APQ 09). A paciente e a terapeuta demonstram uma compreensão mútua em relação aos eventos ou sentimentos (APQ 38), mas a interação entre as duas não é foco de discussão (APQ 98). A paciente parece ser capaz de gerenciar o término das sessões sem dificuldades (APQ 52). Conforme as observações clínicas da terapeuta referentes às quatro sessões iniciais de Juliana: A paciente inicia o tratamento pedindo ajuda da terapeuta para organizar seus estudos: “Eu não consigo sozinha, parece que sou preguiçosa”. Troca de assunto diversas vezes e a terapeuta sente que é difícil acompanhar sua linha de pensamento. Conta da igreja que frequentava e logo depois diz que já não frequenta mais. Refere que seus pais não aprovariam seu interesse por Reiki e ficariam bravos com ela se soubessem disso. Descreve todos os seus amigos como “legais” e “divertidos”; elas a chamam de “doidinha”. Fala positivamente do namorado e dos sogros, mas mostra-se ambivalente: “A mãe dele (namorado) quer me cuidar e o pai diz que eu sou praticamente da família, mas um dia eles me chamaram e disseram que eu estava indo muito lá, que a casa perdia a intimidade. Foi um conselho legal, um cuidado. A mãe dele (namorado) faz comidas especiais para a namorada do irmão dele, mas para mim nunca fez nada especial. Mas eu não vejo nada de mais nisso, sei que eles gostam muito de mim”. Juliana conta que é insegura e que acha que todo mundo vai abandoná-la e por isso tem crises de ciúmes dos amigos e do namorado. Conforme a terapeuta, Juliana parece muito infantil, inclusive no seu tom de voz. A terapeuta faz observações sobre o comportamento de Juliana, buscando clarificar aspectos do seu funcionamento: “Então foi por isso que no primeiro dia tu me perguntaste se eu atendia muitos pacientes?”. Sente-se convidada a perguntar e acaba por fazer, muitas vezes perguntas sobre aspectos da vida e da experiência da paciente. A paciente fala por diversas vezes na sua antiga terapeuta, às vezes positivamente e às vezes negativamente: “A minha ex-terapeuta também queria que eu viesse duas vezes na semana, mas eu não gostava, não me ajudava em nada”. Quando a terapeuta diz que seria importante que ela viesse duas vezes na semana, aceita de pronto. As colocações da 154 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 terapeuta são aceitas, mas sempre acompanhadas de dúvidas: “Eu já tinha pensado isso com a minha ex-terapeuta. Será que é por isso mesmo?”. Somente na segunda sessão fala sobre seus pais. O pai é visto como ‘coitadinho’ por viver sozinho. Refere não entender o porque dele viver sozinho. Quanto à mãe, afirma: “Ela vive para o trabalho... diz que tem várias formas da gente dar amor e que a dela é se matando de trabalhar para eu ter as coisas. Mas quando eu era pequena, eu queria outro tipo de amor...”. Discussão No contexto clínico existe um grupo de pacientes que coloca o nosso conhecimento tradicional em prova: os pacientes com Transtorno de Personalidade Borderline (TPB). Estes sujeitos apresentam um sofrimento intenso que se manifesta por sintomas no corpo, autoagressões, abusos de substância, ideação suicida e angústia extrema. Devido a gama bem variada de sintomas apresentados, os pacientes com TPB sobrecarregam os serviços de atenção primária, sem conseguir encontrar ajuda farmacológica que alivie momentaneamente sua angustia. Buscam auxílio, mas não conseguem responder à ajuda oferecida, questionando o papel do psicoterapeuta e gerando frustrações (Bilbão, 2010; Chagnon, 2009). Os pacientes com TPB são impactantes, perturbados e perturbadores; estão agarrados a uma linha tênue, linha esta que separa a neurose e a psicose, um lugar de máxima turbulência mental. Eles querem sobreviver, e para isso se agarram com todas as suas forças a essa linha, já que não possuem recursos psíquicos maiores (Czerny, 2007). Não são neuróticos e nem psicóticos. Por um lado se angustiam e temem cair na fragmentação psicótica, ao mesmo tempo em que anseiam pelas sólidas defesas psicóticas; e, por outro lado, desejam e o temem a genitalidade para a qual não estão preparados (Hornstein, 2010). Para esses pacientes aceitar ajuda implica em uma quebra da onipotência, uma ferida narcísica que provoca baixa aderência ao tratamento, inveja acentuada e dificuldade no acesso e no aproveitamento das interpretações. A aliança terapêutica é particularmente difícil de estabelecer e exige que o terapeuta seja ativo, flexível e continente para poder tolerar as atuações, a agressividade e a angústia sem perder a capacidade de pensar e interpretar. O risco de suicídio pode levar a modificações no setting, sem descartar a possibilidade de hospitalizações, podendo implicar em problemas éticos e legais (Romaro, 2002). Mariana e Juliana apresentam características e comportamentos típicos de pacientes borderline: foram negligenciadas pelos pais, temem o abandono e a solidão, apresentam histórico de uso abusivo de álcool e drogas, apresentam múltiplos sintomas da esfera afetiva (ansiedade, depressão) e exibem dificuldades no manejo de impulsos. Ambas, portanto, podem ser consideradas casos típicos deste transtorno. Experiências traumáticas na infância são associadas com comportamentos destrutivos na idade adulta. A alta prevalência de histórias de abuso sexual na infância em pacientes com TPB levou muitos autores a estudarem a relação do abuso com o desenvolvimento e a etiologia desta patologia (Ferraz, Portella, Vállez, Gutiérrez, MartínBlanco, Martín-Santos & Subirà, 2013). Depois de décadas de pesquisa, o papel do abuso Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 155 e da negligência na etiologia do TPB ainda não está suficientemente claro, pois conforme Hernadez, Arntz, Gaviria, Labad, e Gutiérrez-Zotes (2012) cada resultado de pesquisa pressupõem um tipo de relação entre o TPB e os maltratos na infância. A história das pacientes revela que ambas iniciaram e abandonaram psicoterapia múltiplas vezes. Podem ser, portanto, consideradas pacientes difíceis e com dificuldades para estabelecer ou manter a aliança terapêutica e o vínculo com o terapeuta. O que se passou durante as sessões que levou Mariana a seguir o tratamento e Juliana abandonar, visto que ambas têm em sua história abandonos recorrentes? Observando a descrição das quatro primeiras sessões, obtidas através dos itens do PQS que caracterizaram esse processo inicial, Mariana parece sentir-se desinibida, autoconfiante e segura de si, expressando ressentimentos, raiva, amargura, ódio ou agressividade para com os outros, não busca aprovação, afeição ou simpatia da terapeuta e não parece preocupada com o tipo de impressão que está criando ou com possíveis julgamentos da mesma. Conforme se depreende das observações clínicas feitas pela própria terapeuta, esta percebe claramente a desconfiança inicial de Mariana com o tratamento (“a psicoterapia pode não ajudar”), bem como a carga pulsional agressiva da paciente que é expressa na transferência. A terapeuta compreende, acolhe e direciona a sua ação à experiência afetiva contraditória da paciente. Já a descrição do processo inicial da psicoterapia de Juliana, obtida com o PQS, mostra que a paciente é particularmente dócil e respeitosa, trabalha com a terapeuta de uma forma colaborativa transmitindo a sensação de que esta compreende as suas experiências e sentimentos. Fala sobre si e sobre outros com compaixão e preocupação experimentando afetos de desconforto ou incômodos, mas sem expressar sentimentos de ser tratada injustamente. Conforme a terapeuta, Juliana é frágil e infantil, o que talvez explique a posição menos interpretativa da terapeuta e sua opção por não trabalhar, neste primeiro momento, as representações contraditórias exibidas pela paciente. Nos chama a atenção que a primeira paciente, apesar de não ser dócil como a segunda, de ter comportamento agressivo e de ser desafiadora, forma um vínculo com a terapeuta, onde podem trabalhar em psicoterapia seus sentimentos de abandono e raiva. Juliana por sua vez, por sentir-se abandonada e não amada, torna-se dócil nas sessões, não podendo agredir abertamente a terapeuta ou os demais com medo de não ser amada ou de ser abandonada. Desta maneira, sua docilidade expressava sua resistência e sua problemática. A terapeuta de alguma maneira sentia esta resistência ao dar declarações “tímidas ou provisórias sobre o conteúdo da mente da jovem”, tendo dificuldade em atingir seus sonhos ou fantasias, ou seja, seu inconsciente. Juliana não se permitia vivenciar o abandono nos términos das sessões, mostrando gerenciá-los bem (resistência). Desta maneira, quando a raiva, agressividade ou medo de abandono começou a surgir, Juliana abandonou o tratamento para evitar estas vivencias. Abandonando antes de ser abandonada, ela atuou seu conflito, não deixando possibilidade de elaboração. A terapeuta foi quem ficou abandonada e não se sentindo capaz. Os quadros de TPB se apresentam como um grande desafio para a teoria e para a técnica psicanalítica, pois colocam em xeque o uso das principais ferramentas deste enquadre: a associação livre, a transferência, a interpretação e a manutenção do setting. Assim, as pesquisas em psicoterapia psicanalítica devem avançar, buscando novas 156 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 formas de intervenção para esse grupo de pacientes. O TPB não é propriamente um tipo de patologia nova, mas com o avanço nos estudos podemos buscar o que se apresenta nas bordas do funcionamento psíquico, justificando que novos modos de intervenção, que estejam além da técnica psicanalítica clássica, possam ser propostos (Junqueira, & Junior, 2006). A investigação acerca dos mecanismos de mudança nas psicoterapias contribui ao ensino, promove a discussão teórico-clínica e auxilia no aprimoramento de terapeutas em formação. Além disso, gera o conhecimento que favorece o atendimento adequado das demandas dos pacientes. Segundo Serralta, Nunes & Eizirik (2007), o estudo minucioso do processo terapêutico possibilita a geração e a avaliação de modelos explicativos de ação terapêutica. Neste artigo não apresentamos nenhuma resposta à questão dos fatores associados à adesão ou abandono na psicoterapia psicanalítica com pacientes borderline, mas sim levantamos, através da descrição de dois casos clínicos, uma problematização sobre esse tema. Levantamos uma hipótese: a de que em pacientes borderline, a ausência de comportamentos típicos (como controle, postura desafiadora, expressão da agressão), no processo inicial pode ser um sinal de resistência e pseudocolaboração. Esta é apenas uma hipótese que merece ser mais bem esclarecida em estudos sistemáticos do processo terapêutico de pacientes borderline que aderiram e não aderiram à psicoterapia psicanalítica. Defendemos nesta apresentação que o estudo empírico do processo terapêutico pode ajudar a elucidar o que ocorre no campo terapêutico e na interação paciente-terapeuta que pode explicar desfechos distintos em pacientes com funcionamento semelhantes tratados pela mesma psicoterapeuta. A análise intensiva do processo terapêutico desses dois casos está sendo conduzida pelo grupo de pesquisa e esperamos no futuro próximo poder apresentar alguns dos resultados encontrados. Referências Abbass, A., Hancock, J., Henderson, J. & Kisely, S. (2006). Short-term psychodinamic psychotherapies for common mental disorders. Cochrane Database of Systematic Reviews, 4, 122-141. Ablon, J. S., Levy, R. A. & Smith-Hansen, L. (2011). The contribution of the psychoterapy process Q-set to psychotherapy research. Research in Psychotherapy, 14 (1), 1448. American Psychiatric Association (2013). DSM-V, Diagnostic and statistical manual of mental disorders (5th Ed.). Arlington, VA: Author. 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Porto Alegre, Brasil: Penso. _____________________________ Recebido em dezembro de 2014 Aceito em março de 2015 Aline Alvares Bittencourt: Especialista em Psicoterapia de Orientação Psicanalítica pelo ESIPP, mestranda em Psicologia Clínica pela UNISINOS. Maria Cristina Vieweger de Mattos: Especialista em Psicoterapia de Orientação Psicanalítica pelo Instituto Contemporâneo de Psicanálise e Transdiciplinaridade, mestranda em Psicologia Clínica pela UNISINOS. Farid Rodrigues Bessil: Especialista em Psicoterapia de Orientação Psicanalítica pelo ESIPP. Fernanda Barcellos Serralta: Doutora em Ciências Médicas: Psiquiatria (UFRGS), Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UNISINOS. Silvia Pereira da Cruz Benetti: Phd in child and family studies (Syracuse University), Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UNISINOS. Endereço para contato: [email protected] Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 159 Aletheia 43-44, p.160-173, jan./ago. 2014 Estresse em adolescentes: estudo com escolares de uma cidade do sul do Brasil Lígia Braun Schermann Jorge Umberto Béria Maria Helena Vianna Metello Jacob Guilherme Arossi Mariana Canellas Benchaya Nádia Krubskaya Bisch Sofia Rieth Resumo: Estudo analítico transversal com objetivo de avaliar a prevalência e os fatores associados ao estresse em adolescentes escolares de Canoas/RS. Participaram do estudo 475 adolescentes, de 14 a 18 anos, que responderam a Escala de Stress para Adolescentes (ESA) e a um questionário sobre dados sociodemográficos, relações familiares, sexualidade, uso de drogas e comportamento de risco. Os resultados apontaram prevalência de estresse de 10,9 %. Além do ambiente familiar, os fatores associados a níveis mais elevados de estresse foram ‘achar possível contrair AIDS’, ‘ter sofrido acidente no último ano’, ‘não ter usado camisinha na primeira e na última transa’ e ‘já ter tido alguma DST’. Conclui-se que especialmente o ambiente familiar e as práticas sexuais são significativos ao aumento de estresse em jovens e, portanto, necessitam de intervenções que promovam comportamentos saudáveis para esta população. Palavras-chave: adolescente; estresse; sexualidade. Stress in adolescencents: A study with schoolars from a city in southern Brazil Abstract: Study with analytic cross sectional design that aimed to evaluate the prevalence and associated factors related to stress in school adolescents from the city of Canoas/RS. The sample consisted of 475 adolescents, aged 14-18 years, who answered the Stress Scale for Adolescents and a questionnaire about socio-demographic data, family relations, sexuality, drug use and risk behavior. The results revealed 10.9% of stress prevalence in the adolescents. Besides the family environment, factors associated with higher levels of stress were ‘possibility to contract AIDS’, ‘having suffered an injury in the last year’, ‘have not used a condom in the first and in last sex intercourse’ and ‘have had an STD’. In conclusion, the family environment and sexual practices are especially significant to the increased stress in the studied adolescents and therefore require interventions that promote healthy behaviors for this population. Keywords: adolescent; stress; sexuality. Introdução Os adolescentes têm sido confrontados, na sociedade atual, com inúmeros componentes estressores da vida diária, além das mudanças emocionais, cognitivas e fisiológicas características do seu estágio do desenvolvimento (Bluth & Blanton, 2014). O estresse pode ser definido como um conjunto de reações corporais a determinado estímulo que ameaça o seu equilíbrio, constituindo um mecanismo de defesa fisiológico inato do homem. Este evento pode ser positivo ou negativo e pode desencadear respostas hormonais e comportamentais (Wosiski-Kuhn & Stranaha, 2012; Margis, Picon, Cosner & Silveira, 2003). Inúmeras pesquisas científicas têm se dedicado ao detalhamento das variáveis associadas ao estresse que atinge crianças e adolescentes (Sbaraini & Schermann, 2008; Mota & Rocha, 2012; El-Sheikh, Tu, Erath & Buckhalt, 2014; Rozemberg, Avanci, Schenker & Pires, 2014). Há evidências de que o estresse está associado a vários comportamentos de risco no adolescente, especialmente relacionados à sexualidade (uso indevido e/ou insuficiente de camisinha), mau relacionamento familiar e uso de drogas (Beserra, Araújo & Barroso, 2006; Elkington, Bauermeister & Zimmerman, 2010; Souza & Baptista, 2008). Na adolescência, o processo de desenvolvimento adquire características especiais, como busca de identidade, independência, juízo crítico, sensibilidade, afetividade, elaboração de um projeto de vida, sexualidade e educação. (Bee & Bjorklund, 1999; Bee, 2000; Olds & Papalia, 2013). O produto final decorrente de todas estas características leva o adolescente a definir o que considera de importância fundamental: o seu estilo de vida (Câmara, Aerts & Alves, 2012). Nesta fase do desenvolvimento há uma ambivalência demonstrada nas atitudes contraditórias, oscilações de humor, incertezas, angústias e sensibilidade ao prazer, as quais os adolescentes vivenciam intensamente (Ferreira, Alvim, Teixeira & Veloso, 2007; Senna & Dessen, 2012). Tais características podem contribuir para uma maior vulnerabilidade desta faixa etária no que se refere a comportamentos de risco. Além disso, aspectos emocionais também estão associados com a vulnerabilidade presente na adolescência, tais como mudanças de humor e baixa habilidade no manejo de eventos estressantes (Silva, Horta, Pontes, Faria, Souza, Cruzeiro & Pinheiro, 2007; Coutinho & Heimer, 2014). Estes aspectos reduzem a capacidade do adolescente em apresentar respostas adaptadas e adequadas frente a situações e pressões sociais, o que pode contribuir para o surgimento de sintomas de estresse. A presente pesquisa objetivou conhecer a prevalência de estresse em adolescentes escolares e os fatores associados, enfatizando-se os aspectos relacionados à família, à sexualidade, ao uso de drogas e comportamentos de risco. Esta pesquisa faz parte de um estudo mais amplo sobre “Sexualidade na Adolescência em Tempos de Aids”, no município de Canoas/RS (Bielenki , 2008; Rolim, 2008) Método O estudo possui delineamento analítico transversal, sendo realizado com 475 adolescentes de 14 a 18 anos matriculados nas 13 escolas estaduais de Ensino Fundamental e Médio da cidade de Canoas/RS, região metropolitana de Porto Alegre, no ano de 2007. Os instrumentos utilizados foram a Escala de Stress para Adolescentes (ESA) e um questionário. A ESA, elaborada por Tricoli & Lipp (2005), é composta por 44 itens e verifica a existência, ou não, do sintoma de estresse, bem como a fase do estresse, em adolescentes de 14 a 18 anos e de ambos os sexos. A Escala também permite relacionar o estresse a sintomas psicológicos, cognitivos, fisiológicos e interpessoais. No presente estudo, utilizou-se somente dados referentes à existência ou não do sintoma de estresse. A ESA foi validada e padronizada em adolescentes moradores de diversas cidades do estado Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 161 de São Paulo, Campo Grande (MS) e João Pessoa (PB), sendo obtido coeficiente alpha de Cronbach de 0,9394 para a frequência (sintomas) e de 0,9398 para intensidade (fase). O questionário, baseado em Béria et al., (1998), contém questões referentes a dados sociodemográficos (sexo, idade, escolaridade, estado civil, religião, trabalho, moradia, renda), relações familiares (relacionamento com o pai e a mãe, ambiente em casa, interesse dos pais pelo desempenho escolar, morte familiar significativa no último ano), comportamento de risco, uso de drogas e abuso (conhecimento sobre sexo, proteção contra a AIDS, possibilidade de contrais AIDS, consumo de álcool, uso de drogas injetáveis, abuso sexual, acidentes no último ano com atendimento médico) e práticas sexuais (já transou, preferência sexual, uso da camisinha na primeira e última transa, pessoa da última transa, número de pessoas com quem transou nos últimos 3 meses, conversa com parceiro sobre AIDS, contração de DSTs, gravidez). A ESA e o questionário eram anônimos e autoaplicáveis, sendo respondidos em sala de aula, sem a presença do professor. O anonimato garantiu o sigilo dos indivíduos, minimizando possíveis vieses dos dados coletados. Após contatos com a equipe diretiva das escolas, foram agendadas datas de visitas para a entrega do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Aos menores de 18 anos era solicitado o consentimento assinado pelo responsável. A professora da turma recolhia os TCLE assinados e, na sequência, era agendado o dia da coleta de dados. Para aplicar o instrumento aos alunos que estavam ausentes, os pesquisadores retornaram às escolas em até duas ocasiões subsequentes. Previamente ao início da coleta de dados, foi realizado um estudo piloto em uma escola de cidade vizinha, para verificação e adequação dos procedimentos envolvidos. Os dados obtidos foram digitados em um banco desenvolvido no programa Epidata versão 3.1, sendo realizada dupla digitação independente para verificação de inconsistências, que foram corrigidas. A análise estatística foi estratificada por presença, ou não, de estresse, utilizando-se o Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) versão 18.0. Foi realizada análise bivariada para verificar a associação das variáveis independentes com o desfecho, calculando-se a razão de prevalência bruta e seus intervalos de confiança. O nível de significância adotado para todas as análises foi menor do que 5%. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos e Animais da Universidade Luterana do Brasil, sob o número 2005-384H, estando de acordo com as normas vigentes da Resolução número 196-96 do Conselho Nacional de Saúde/Ministério da Saúde. Resultados A prevalência de estresse na amostra estudada foi de 10,9 %, sendo 10,3% nos rapazes e 11,4% nas moças. Em relação às características dos adolescentes, a maioria é do sexo feminino (58,9%), possui entre 14 e 15 anos (48,6%), está cursando o ensino médio (84,2%), é solteiro (95,1%), pratica alguma religião (60,2%), não trabalha (79,9%) e mora com os pais (95,6%). O pai é quem possui a maior renda em casa (63,1%) e 42,7% deles tem o ensino médio como escolaridade. A Tabela 1 apresenta a comparação das variáveis sociodemográficas entre os adolescentes com e sem estresse. Não foi observada diferença significativa em nenhuma análise realizada. 162 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Tabela 1 – Estresse e características sociodemográficas dos adolescentes de 14 a 18 anos de escolas públicas de Canoas, RS. Sem estresse Sexo Com estresse Valor n % N % pa Masculino 175 41,4 20 38,5 0,766 Feminino 248 58,6 32 61,5 14 e 15 anos 202 47,8 29 55,8 16 e 17 anos 186 44,0 21 40,4 18 anos 35 8,3 2 3,8 Variáveis (n=475) Idade (n=475) 0,384 Escolaridade (n=474) Ensino Fundamental 68 16,1 6 11,8 Ensino Médio 355 83,9 45 88,2 Solteiro 401 95,0 51 98,1 Casado/mora junto 21 5,0 1 1,9 Estado civil 0,542 (n=474) 0,494 Pratica religião (n=418) Sim 249 65,5 23 60,5 Não 131 45,5 15 39,5 Trabalha (n=469) Sim 84 20,1 10 19,6 Não 334 79,9 41 80,4 Pais 404 95,7 49 94,2 Outros 18 4,3 3 5,8 Pai 260 63,1 32 62,7 Mãe 120 29,1 15 29,4 Outro 32 7,8 4 7,8 Mora com 0,593 1,000 (n=474) 0,493 Maior renda em casa (n=463) 0,999 Escolaridade da pessoa com maior renda em casa (n=458) Ensino Fundamental 115 28,2 15 30,0 Ensino Médio 175 42,9 21 42,0 Ensino Superior 72 17,6 11 22,0 Não completou 46 11,3 3 6,0 0,641 nenhum nível a teste do qui-quadrado para comparação entre os grupos de adolescentes com e sem estresse. No que concerne ao ambiente familiar (Tabela 2), a maioria dos adolescentes estudados manifestou bom relacionamento com o pai (70,9%) e com a mãe (85,2%), Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 163 bom ambiente em casa (79,8%) e pais que se interessam pelo desempenho escolar (97,2%). Quando comparados os adolescentes com e sem estresse, observa-se uma maior prevalência de estresse nos adolescentes que classificaram seu relacionamento com o pai e com a mãe como regular/ruim e naqueles que manifestaram ser o ambiente em casa regular/ruim. Ainda, os pais dos adolescentes com estresse são percebidos como se interessando menos pelo desempenho escolar de seus filhos do que os pais dos adolescentes sem estresse. Um pouco menos da metade dos adolescentes (41,2%) relatou morte de alguém significativo no último ano. Tabela 2 – Estresse e relações familiares dos adolescentes de 14 a 18 anos de escolas públicas de Canoas, RS. Sem estresse Com estresse RP não ajustado Valor n % n % (IC95%) pa Bom 297 73,5 26 51,0 1 0,002 Regular/ruim 107 26,5 25 49,0 2,67 (1,48-4,82) Bom 356 88,3 30 60,0 1 Regular/ruim 47 11,7 20 40,0 5,00 (2,66-9,60) Bom 346 88,6 21 41,2 1 Regular/ruim 63 15,4 30 58,8 7,85 (4,23-14,57) Sim 416 98,6 45 86,5 1 Não 6 1,4 7 13,5 10,78 (3,47-33,49) 169 40,1 26 50,0 1 252 59,9 26 50,0 0,67 (0,38-1,19) Variáveis Relacionamento com pai (n=455) Relacionamento com mãe (n=453) 0,000 Ambiente em casa (n=460) 0,000 Pais se interessam pelo desempenho escolar (n=474) 0,000 Morte significativa de familiar no último ano (n=473) Sim Não 0,182 teste do qui-quadrado para comparação entre os grupos de adolescentes com e sem estresse. a As características sobre comportamentos de risco, uso de drogas e abuso estão apresentadas na Tabela 3. A maioria dos adolescentes classifica seu conhecimento sobre sexo como bom (75,9%), diz proteger-se contra a AIDS (61,2%), faz uso eventual do álcool e não sofreu abuso sexual (97,1%). Não considerar possível pegar AIDS e não ter sofrido acidentes com atendimento médico no último ano aparecem como fatores de proteção com, respectivamente, 46% e 54%. menos prevalência de estresse no adolescente. Apenas dois adolescentes com estresse utilizaram drogas injetáveis. 164 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Tabela 3 – Estresse e comportamentos de risco, uso de drogas e abuso dos adolescentes de 14 a 18 anos de escolas públicas de Canoas/RS. Sem estresse Variáveis Com estresse RP não ajustado Valor (IC95%) pª 0,731 n % n % Bom 325 76,8 39 75,0 1 Regular/ruim 98 23,2 13 25,0 1,10 (0,57-2,15) Conhecimento sobre sexo (n=475) Protege-se contra a Aids (n=441) Sim 248 62,9 28 59,6 1 Não 146 37,1 19 40,4 1,15 (0,62-2,14) Possível 132 31,5 24 46,2 1 Impossível 287 68,5 28 53,8 0,54 (0,30-0,96) Nunca 159 37,9 18 34,6 1 a 4 vezes/mês 229 54,5 25 48,1 2 ou mais vezes/semana 32 7,6 9 17,3 0,637 Possibilidade de contrair Aids (n=471) Consumo de álcool 0,042 (n=472) 0,064 Uso de drogas injetáveis (n=463) Sim 0 0,0 2 4,0 1 Não 413 100,0 48 96,0 9,60 (7,35-12,55) 0,011 Já sofreu abuso sexual (n=471) Sim 12 2,9 3 5,8 1 Não 407 97,1 49 94,2 0,48 (0,13-1,77) Sim 61 14,5 14 26,9 1 Não 361 85,5 38 73,1 0,46 (0,23-0,90) 0,223 Acidente no último ano com atendimento médico (n=474) 0,027 teste do qui-quadrado para comparação entre os grupos de adolescentes com e sem estresse. a No que se refere às práticas sexuais (Tabela 4), os dados mostram que, no momento da coleta, 50,1% do total da amostra ainda não havia mantido relação sexual. Dentre aqueles que já haviam transado, 94,8% preferiam manter relação sexual com pessoas do sexo oposto. A maioria usou camisinha na primeira e na última transa (82,1 e 74,3% respectivamente), transou no último mês (53,2%), transou a última vez com alguém que já conhecia (90,4%), nos últimos três meses transou com somente uma pessoa (60,3%), conversa com seu parceiro sobre AIDS (56,3%), não teve nenhuma doença sexualmente transmissível (91,8%) e não engravidou (94,3%). Quando comparados os adolescentes com e sem estresse, aqueles que não usaram camisinha na primeira e na última transa apresentaram, respectivamente, 4 e 2,4 vezes mais chance de apresentar estresse e os que não tiveram nenhuma DST apresentaram 94% menos prevalência de estresse. Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 165 Tabela 4 – Estresse e práticas sexuais dos adolescentes de 14 a 18 anos de escolas públicas de Canoas/RS. Sem Estresse Variáveis Já transou N % Com estresse N % RP não ajustado Valor (IC95%) pª 0,660 (n=474) Sim 203 48,1 27 51,9 1 Não 219 51,9 25 48,1 0,86 (0,48-1,53) 194 96 25 92,6 1 8 4 2 7,4 1,94 (0,39-9,65) Preferência sexual (n=229) Heterossexual Homo/bissexual 0,334 Usou camisinha na primeira transa (n=230) Sim 172 84,7 14 51,9 1 Não 31 15,3 13 48,1 5,15 (2,21-12,01) 156 46 77,2 22,8 15 12 55,6 44,4 1 2,71 (1,19-6,20) Menos de 1 mês 103 50,7 15 57,7 De 1 a 4 meses atrás 49 24,1 2 7,7 Há mais de 5 meses 51 25,1 9 34,6 0,000 Usou camisinha na última transa Sim Não (n=229) 0,031 Quando foi a última transa (n=229) 0,149 Com quem transou a última vez (n=229) Conheceu naquele dia/ só de vista 14 6,9 3 11,1 1 Já conhecia antes 188 93,1 24 88,9 0,60 (0,16-2,22) 0,432 Quantas pessoas transou nos últimos 3 meses(n=230) Somente uma 116 57,1 13 48,1 Duas ou mais 33 16,3 5 18,5 54 26,6 9 33,4 sobre Aids (n=220) Sim Não 110 83 57,0 43,0 13 14 48,1 51,9 1 1,42 (0,64-3,20) 0,414 Já teve alguma DST (n=223) Sim Não 2 195 1,0 99,0 4 22 15,4 84,6 1 0,06 (0,01-0,03) 0,002 8 192 4,0 96,0 2 25 7,4 92,6 1 0,52 (0,10-2,59) 0,338 Nenhuma Conversa com parceiro 0,666 Já engravidou alguém ou já engravidou (n=227) Sim Não teste do qui-quadrado para comparação entre os grupos de adolescentes com e sem estresse. a 166 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Discussão A prevalência total de estresse na população adolescente de 14 a 18 anos do presente estudo foi de 10,9%. Esse dado está próximo ao obtido por Machado, Veiga e Alves (2011), que identificou 13% de prevalência de estresse entre alunos do 3º ano do ensino médio do Distrito Federal. Outros estudos identificaram maiores níveis de estresse em crianças e pré-adolescentes de 8 a 14 anos (18,2%) (Sbaraini & Schermann, 2008), bem como em estudantes de medicina (49,7%), (Aguiar, Vieira, Vieira, Aguiar & Nóbrega, 2009). As características sociodemográficas não mostraram associação significativa com o estresse dos adolescentes na presente pesquisa. Este dado discorda de relatos da literatura, onde as meninas aparecem como mais estressadas que os meninos, especialmente por mostrarem-se mais preocupadas e insatisfeitas com sua estética e beleza (Caires & Silva, 2011; Calais, Andrade & Lipp, 2003; Sbaraini & Schermann, 2008 ). Os dados obtidos no presente estudo apontam o ambiente familiar como importante modulador do nível de estresse dos adolescentes. Há maior prevalência de estresse em jovens que julgam o ambiente familiar, o relacionamento com o pai e o relacionamento com a mãe como “regular/ruim”, comparativamente aqueles que os julgam “bom”. Este resultado corrobora o estudo de Souza e Baptista (2008), que associa suporte familiar e saúde mental, e caracteriza a família como a fonte estressora mais expressiva, ressaltando a maneira como afeta a saúde mental dos sujeitos. Para Ximenes (2011), a estrutura e o funcionamento familiar mostram-se associados ao desenvolvimento de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT). O bom funcionamento familiar é relatado como possuindo um efeito protetor para jovens que passam por situações de perda e trauma. No estudo citado, a violência familiar aparece associada ao TEPT em crianças e adolescentes, relacionando o ambiente familiar com a prevalência de estresse. Ainda em relação ao ambiente familiar, a percepção dos adolescentes de que os pais não se interessam pelo seu desempenho escolar mostrou-se associado ao maior nível de estresse. Segundo Souza e Baptista (2008), o suporte familiar pode ser determinado com o grau de atenção, carinho, proximidade afetiva e diálogo que sustenta o relacionamento. A falta de interesse no desempenho escolar pode ser compreendida como uma falta de atenção, diálogo e afeto dos pais. Deste modo, a falta de suporte familiar, que engloba o interesse na instância escolar/acadêmica, pode ser geradora de estresse e afetar a saúde mental do adolescente. Igualmente, estudo com adolescentes escolares de Porto Velho/ RO mostrou associação entre falta de suporte familiar e início precoce de vida sexual (Vanzin, Aerts, Alves, Câmara, Palazzo, Elicker, Evangelista & Neto, 2013). Pesquisa de comportamento, atitudes e práticas da população brasileira, realizada pelo Ministério da Saúde, em 2011, revelou que em termos de indicador de conhecimento correto de formas de transmissão do HIV, os menores percentuais foram obtidos pelos jovens de 15 a 24 anos (51,7%). Estudo com jovens cearenses entre 13 e 16 anos, com enfoque na promoção de saúde, relatou que a prática de educação em saúde possibilitou apreender informações sobre as DSTs e Aids. As políticas públicas para a saúde vêm, nos últimos anos, desenvolvendo atenção especial à população jovem, fato este justificado pela vulnerabilidade aos riscos à saúde (doenças transmissíveis e sexualmente transmissíveis) (Costa, Camurça, Braga & Tatmatsu, 2012). Apesar disso, Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 167 40% dos novos casos de HIV estão na faixa dos 15-24 anos (Organização Panamericana de Saúde, 2012), o que ilustra a pouca efetividade dos programas educativos sobre sexualidade e do papel da informação, que, por si só, ainda é controverso, merecendo investimentos das políticas públicas. Os adolescentes do presente estudo que não usaram camisinha na primeira e na última relação sexual, apresentaram mais prevalência de estresse do que aqueles que usaram. Estes achados estão em consonância com os dados de Elkington, Bauermeister e Zimmerman (2010), onde o sofrimento psicológico, mensurado em instrumentos que avaliam depressão e ansiedade (sintomas resultantes de excesso de estresse) está associado ao uso inconsistente de camisinha. No entanto, os autores entendem o comportamento sexual de risco, uso inadequado do preservativo, como um fator relacionado indiretamente ao sofrimento psicológico, estando associado fortemente ao uso de substâncias psicoativas, sendo estas, por sua vez, relacionadas diretamente ao sofrimento psicológico. Conforme Wong, Kipke, Weiss e McDavitt, (2010), eventos estressores parecem estar associados ao aumento da prevalência de uso de drogas e de transmissão de HIV também em adolescentes homossexuais do sexo masculino. Estes autores compreendem o sofrimento psicológico proveniente dos eventos aversivos como influenciador dos comportamentos de risco à saúde como uso de drogas e uso inconsistente de preservativos, principalmente em homens que buscam no “consumo e distração” como uma ferramenta para lidar com o estresse (Caires & Silva, 2011). Todavia, estes pesquisadores não entendem o estresse e o sofrimento psicológico como fatores de risco determinantes com relação à exposição a Aids, ressaltando a importância das estratégias de coping e o suporte familiar como instâncias protetoras. Estudos apontam ainda a associação entre o uso de métodos contraceptivos e a prevalência de depressão e estresse (Hall, Moreau, Trussell & Barber, 2013a; Hall, Moreau, Trussell & Barber, 2013b). A consistência no uso de contraceptivos semanais foi 15% mais baixa em mulheres que apresentam estresse moderado ou severo, apresentando, conforme outro estudo, duas vezes menos prevalência de uso contraceptivo. Segundo Santos (2008), existe relação entre uso de preservativo por jovens e estrutura familiar, sendo o uso de preservativo mais frequente em adolescentes cujos pais não são divorciados/separados, defendendo a hipótese de que famílias monoparentais ou reconstituídas podem estar relacionadas aos comportamentos de risco nos adolescentes. Considerando a influência do suporte familiar e a qualidade dos relacionamentos familiares na prevalência de estresse dos adolescentes, e a relação da mesma com a frequência do uso de preservativos, verifica-se semelhança entre os resultados e a literatura. O quadro frágil agrava-se quando falamos do ambiente familiar, onde não raro os pais consideram-se despreparados para conversar com seus filhos sobre sexualidade e fatores associados. Somado a isso, a ociosidade na comunidade juvenil pode ser mal preenchida, com o uso de drogas e a marginalidade (Beserra et al., 2006). Apenas dois indivíduos com estresse fizeram uso de drogas injetáveis nesta pesquisa, e nenhum dos não estressados. Caires e Silva (2011) relatam que meninos com estresse buscam a distração e consumo de drogas como alternativas para controlar o estresse, o que pode explicar resultados aqui encontrados. Dado corroborado por Farias Jr et al., (2009), que identificaram um significativo maior consumo de drogas entre meninos. 168 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 A partir do exposto, observa-se que o estresse está associado a inúmeros comportamentos de risco no adolescente, relacionando-se com uso indevido/ insuficiente da camisinha (Elkington, Bauermeister & Zimmerman, 2010), mau relacionamento familiar (Souza & Baptista, 2008) e uso de drogas (Beserra, Araújo & Barroso, 2006). Além disso, outros estudos evidenciam o estresse como um fator associado aos diversos comportamentos que acarretam um aumento da vulnerabilidade. Os resultados da presente pesquisa mostram que os adolescentes com estresse apresentaram mais episódios de acidentes com atendimento médico no último ano do que aqueles sem estresse, o que pode ser consequência de um estilo de vida mais vulnerável. Embasando isso, Ozdemir, Bayrakci, Teksam, Yalçin e Kale, (2012) publicaram estudo sobre casos de envenenamentos atendidos entre 1985 e 2008 em uma rede hospitalar. Os dados mostram que 67.4% dos envenenamentos foram acidentais, e a maioria dos casos no gênero feminino aconteceram nas idades entre 13 e 16 anos. Outro estudo investigou adolescentes de 12 a 18 anos, com diagnostico de autolesão não suicida, filhos de veteranos de guerra com estresse pós-traumático relacionado ao combate. A autolesão não suicida é um problema clinico significativo nos adolescentes – filhos destes combatentes – a qual parece ser influenciada por fatores clínicos e familiares (Boričević Maršanić, Aukst Marbetić, Ožanić Bulić, Duretić, Kniewald, Jukić & Paradžik, 2014). Um estudo epidemiológico com 233 estudantes (media de idade 14,47 anos) examinou a frequência de comportamentos problemáticos na adolescência e a associação com o estresse psicológico autorreferido. Os adolescentes que reportaram estresse psicológico apresentaram maior chance de praticar automutilamento, fumar regularmente, consumir maconha ou destruir coisas (Lacina, Staub-Ghielmine, Bianchi, Schmeck & Schmid, 2014). Acidentes com veículos motores lideram causas de morbidade e mortalidade em adolescentes. No entanto, um estudo conduzido no Alabama (EUA) sobre colisões de veículos automotores com adolescentes mostrou correlação negativa nos últimos 12 anos. Os autores atribuem tal fato às leis mais rígidas para condutores adolescentes, ao maior uso do cinto de segurança e à maior conscientização dos comportamentos de risco na condução de veículos por sujeitos na adolescência (Monroe, Irons, Crew, Norris, Nichols & King, 2014). Tais estudos reforçam a importância de identificar fatores de risco e introduzir medidas preventivas associadas ao estresse na adolescência. Neste sentido, Murta, Borges, Ribeiro, Rocha, Menezes e Prado (2009) desenvolveram um programa de habilidades para a vida para adolescentes de 12 a 14 anos, com o intuito de psicoeducar e praticar habilidades sociais, cognitivas e de manejo de estresse. Foi realizada uma avaliação de follow-up com os pais dos adolescentes, um ano após o término do grupo de habilidades para a vida. Foram relatadas diversas melhoras comportamentais e sociais pelos pais, assim como melhora no estado geral de saúde dos filhos e ausência de envolvimento com álcool, drogas, de casos de gravidez e doenças sexualmente transmissíveis. Dessa forma, os achados da presente pesquisa são corroborados pela literatura científica, apontando para uma associação entre prevalência de estresse e comportamento sexual de risco e enfatizando a importância da prevenção. Por fim, como limitação do estudo, salienta-se a impossibilidade de estabelecer relações causais definitivas por tratar-se de um delineamento transversal. Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 169 Conclusão Pode-se concluir, a partir da análise e discussão dos resultados desta pesquisa, que (1) o ambiente familiar (qualidade do relacionamento do adolescente com pai e mãe e qualidade do ambiente domiciliar) é um componente essencial para evitar o estresse em jovens, sendo significativa a valorização e interesse dos pais pelas atividades dos filhos; (2) comportamentos de risco, como acidentes e o sexo desprotegido geram estresse, podendo criar ciclos viciosos que retroalimentam o próprio estresse; (3) apesar de terem acesso ao conhecimento, muitos jovens se expõem à DST, e isso gera estresse; (4) há uma relação entre o uso de camisinha na primeira e última transa e o estresse na adolescência. O estudo sugere ações públicas de (1) conscientização dos pais sobre sua importância no desenvolvimento psicológico dos filhos adolescentes; (2) maior atenção ao manejo de estresse de meninos e (3) campanhas de intensificação sobre práticas sexuais saudáveis. Ainda, os dados obtidos demonstram que há urgência na ampliação de ações e estratégias em relação à educação para a saúde na adolescência, buscando a conscientização do público juvenil, de seus pais e da sociedade. Sobretudo, novas investigações com caráter longitudinal devem ser elaboradas para verificar causas e consequências dos comportamentos que podem estar relacionados ao estresse. Referências Aguiar, S. M., Vieira, A. P. G. F., Vieira, K. M. F., Aguiar, A. M. & Nóbrega, J. O. (2009). Prevalence os stress symptoms among medical students. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 58(1), 34-38. Bee, H. (2000). Child and Adolescent Development. (9ªed). Boston: Person Custom Publishing. Bee, H. & Bjorklund, B. (1999). 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Jorge Beria: Professor Adjunto do Curso de Medicina e do Programa de Pós Graduação em Promoção da Saúde da ULBRA. Maria Helena Vianna Metello Jacob: Professora Adjunta do Curso de Educação Física e do Programa de Pós-Graduação em Promoção da Saúde da ULBRA. Guilherme Arossi: Professor Adjunto do Curso de Odontologia e do Programa de Pós Graduação em Promoção da Saúde da ULBRA. Mariana Canellas Benchaya: Psicóloga, Doutoranda em Ciências da Saúde da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre. Nadia Krubskaya Bisch: Psicóloga, Doutoranda em Ciências da Saúde da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre. Sofia Rieth: Bolsista de Iniciação Científica, Curso de Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Promoção da Saúde da ULBRA. Endereço para contato: [email protected] Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 173 Aletheia 43-44, p.174-187, jan./ago. 2014 Autoestima e cuidados pessoais em mulheres de 60 a 75 anos Aparecida Duridan Daiane Ferreira dos Santos Ana Lucia Gatti Resumo: Este estudo objetivou verificar possíveis relações entre os cuidados com o corpo e a autoestima em mulheres entre 60 e 75 anos, por meio de um estudo transversal. Participaram da pesquisa 24 mulheres, com idade média de 65 anos e dois meses, residentes na cidade São Paulo, as quais foram selecionadas por conveniência e responderam um Questionário de Caracterização, a Escala de Autoestima de Rosenberg e o Questionário de Cuidados Pessoais. Verificou-se que as mulheres apresentaram autoestima elevada e baixo nível de cuidados pessoais. A correlação de Pearson entre a autoestima e os cuidados pessoais não foi estatisticamente significante. A desejabilidade social pode ter interferido nos resultados, assim como a adequação do instrumento de avaliação dos cuidados pessoais. Outros estudos com maior número de participantes e revisão do material empregado são sugeridos. Palavras-chave: envelhecimento; idosas; estética. Self-esteem and personal care in women aged between 60 and 75 years Abstract: This study aimed to investigate possible relationships between body care and self-esteem in women between 60 and 75 years, through a cross-sectional study. 24 women participated in the survey, with an average age of 65 years and two months, residents in São Paulo, which were selected by convenience and answered a Characterization Questionnaire, Rosenberg´s Self-Esteem Scale and the Questionnaire of Personal Care. It was found that women had high self-esteem and low levels of personal care. Pearson´s correlation between self-esteem and personal care was not statistically significant. The social desirability may have influenced the results, as well as the suitability of the instrument for assessing personal care. Further studies with larger numbers of participants and review of the material used are suggested. Key-words: aging; elderly; esthetics. Introdução O envelhecimento é um processo natural da vida do ser humano que se caracteriza por sua heterogeneidade, multicausalidade e multifatorialidade (Araújo, Sá & Amaral, 2011). Pode-se dizer, assim, que é um processo que traz algumas contradições, pois, segundo Falcão e Carvalho (2010), há pessoas idosas que se mantém saudáveis, indicando que pode haver várias maneiras de se vivenciar o processo de envelhecimento, enquanto outras expressarão problemas em várias áreas. De acordo com Schneider e Irigaray (2008), a velhice ainda é muito temida pelos indivíduos e vista como uma etapa desagradável da vida, dado que muitos idosos rejeitam seu próprio processo de envelhecer em virtude de uma imagem distorcida que constroem de si mesmos, contribuindo para o desenvolvimento de sentimentos de autodesvalorização e possivelmente uma baixa autoestima (Chaim, Izzo & Sera, 2009). Assim, à medida que a idade avança, certos indivíduos poderiam ter, cada vez mais, sua autoestima rebaixada. A autoestima é um conjunto de sentimentos e pensamentos que o indivíduo tem em relação a si mesmo. Refere-se a uma representação pessoal, que pode ser positiva ou negativa (Hutz & Zanon, 2011). Para Maçola, Vale e Carmona (2010), ela pode ser considerada como um juízo de valor em relação a si mesmo e começa a ser moldada já na infância, é de grande importância e influencia na relação do indivíduo consigo mesmo e com os outros, na percepção de acontecimentos e também no próprio comportamento. Hewitt (2009, citado por Hutz & Zanon, 2011) sugere que uma autoestima elevada surge da aceitação dentro do campo social e do reconhecimento positivo de pessoas consideradas significativas para o individuo, como pais, professores e companheiros. Assim, mesmo com experiências anteriores de aceitação, em uma sociedade capitalista, na qual o novo é sempre mais valorizado, a desvalorização pode acometer o idoso, pois o velho passa a ser descartado ou percebido como fora de moda (Schneider & Irigaray, 2008). Por outro lado, em relação ao padrão corporal, a imposição da sociedade faz com que os indivíduos busquem freneticamente adequar-se, trazendo a impressão de que o corpo entra e sai da moda como se fosse tendência ditada a cada estação. Esse padrão estético considerado ideal associa, historicamente, mulher e beleza. Alterações corporais são feitas através de cirurgias estéticas que ultrapassam os limites para as transformações físicas, acarretando um processo que a princípio incide sobre o imaginário e depois implicará na relação social do indivíduo (Paixão & Lopes, 2014). Ainda quanto ao gênero, Santos e Maia (2003) ressaltam que as diferenças encontradas em relação à autoestima muitas vezes estão ligadas a fatores culturais da atualidade, que valoriza imagens idealizadas de beleza física, principalmente em relação às mulheres. Destas é esperado que sejam sempre belas, mas os padrões que lhes são exigidos desconsideram a passagem do tempo. Como afirmam Fontes, Borelli e Casotti (2012), a atratividade física é considerada um elemento central da feminilidade, por isso o consumo de práticas de beleza costuma ser maior entre as mulheres. A fim de evitar sentimentos negativos, como a insatisfação e a baixa autoestima, elas recorrem a diversas opções de embelezamentos que estão disponíveis no mercado, as quais compreendem: cosméticos, exercícios, tratamentos estéticos, dietas e cirurgias plásticas estéticas (Strehlau, Claro & Laban, 2010). O autocuidado é uma atividade do indivíduo apreendida e orientada para um objetivo. É uma ação desenvolvida em situações concretas da vida, e que o indivíduo dirige para si mesmo ou para regular os fatores que afetam seu próprio desenvolvimento, atividades em benefício da vida, saúde e bem estar (Silva, Oliveira, Silva, Polaro, Radünz, Santos & Santana, 2009). Deste modo, pode-se pensar que as diversas opções de embelezamento também têm caráter de autocuidado. Por outro lado, uma preocupação exacerbada com o aspecto externo poderia ser entendida como vaidade, tomando-se a acepção de “valorização que se atribui à própria aparência ou quaisquer qualidades físicas ou intelectuais fundamentada no desejo de que tais qualidades sejam reconhecidas ou admiradas pelos outros” (Houaiss & Villar, 2001, p.2823). Moura, Santos, Visciglia e Gatti (2012) buscaram analisar a relação entre o cuidado com o corpo e a saúde psíquica em 20 mulheres com média de idade de 23,3 anos que residiam no estado de São Paulo. Os autores criaram, para a pesquisa, um questionário Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 175 de cuidados pessoais, com o intuito de avaliar o nível de cuidado com o corpo, o tempo que a participante despendia neste cuidado, o orçamento dedicado aos procedimentos estéticos, preocupação e satisfação com a autoimagem. Verificou- se na pesquisa, por meio de correlação, que as mulheres que mais se cuidavam apresentaram prejuízo em algumas áreas quanto à saúde psíquica, a saber, stress psicológico e desconfiança no próprio desempenho, avaliados por meio do Questionário de Saúde Geral de Goldberg. Destaca-se, entretanto, que não se pôde afirmar se o fato das mulheres se cuidarem compromete sua saúde ou se é o seu estado psíquico que interfere em seus cuidados exacerbados. Em função da importância da autoestima, surgiu a necessidade de sua avaliação, a qual teve por consequência o desenvolvimento de escalas que têm por intuito aferi-la. No Brasil, duas têm sido utilizadas: a de Steglich, de 1978, a qual compreende ainda a autoimagem, e a de Rosenberg (1989 apud Hutz & Zanon, 2011). Quanto à primeira, Guimarães, Kaneoya, Soares, Machado e Fernandes (2011) utilizaram o questionário de Autoestima e Autoimagem de Steglich (1978) em seu estudo na população de descendentes japoneses de Santa Catarina no Brasil e de Yamanashi no Japão. Verificaram que a qualidade de vida dos participantes foi considerada de boa a muito boa, sendo que os descendentes de Santa Catarina obtiveram escores superiores. A autoestima e a autoimagem obtiveram conceito baixo, não diferindo entre os grupos pesquisados. Já a de Rosenberg, adaptada por Hutz em 2000, teve sua validação e normatização em 2011 (Hutz & Zanon, 2011). É um material que tem sido usado em diversas pesquisas, tanto no Brasil como no exterior, a exemplo da dissertação de Rodrigues (2011), em Portugal. As idosas institucionalizadas, participantes do estudo, apresentaram qualidade de vida e autoestima moderadas; o trabalho também enfatizou a importância da autoestima na qualidade de vida e vice-versa. No Brasil, Ferreira, Santos e Maia (2012) utilizaram também como instrumento a escala de autoestima de Rosenberg. Participaram do estudo 65 idosos usuários da rede pública de saúde do município de Natal-RN, com idade média de 71 anos, sendo a maioria do sexo feminino. As autoras identificaram nos idosos uma autoestima elevada, considerada um recurso psicológico útil auxiliando no enfrentamento dos desafios de adaptação na velhice. Meurer, Benedetti e Mazo (2011), valendo-se do mesmo instrumento, buscaram explorar a associação dos fatores motivacionais para a prática de exercícios físicos com a autoestima de idosos. Participaram do estudo 111 idosos, dos quais 90 eram mulheres, com idade média de 67 anos e 4 meses, praticantes do programa “Floripa Ativa”, que acontece junto aos Centros de Saúde do Município de Florianópolis. A autoestima foi considerada elevada (35,22±3,93) e associada à motivação pela prática de exercícios físicos. Já Antunes, Mazo e Balbé (2011) compararam a percepção de autoestima e de saúde com os aspectos sociodemográficos de idosos praticantes de exercício físico, conforme o sexo. Compuseram a amostra 165 idosos (132 do sexo feminino), com média de idade de 69,14 anos (DP= 6,04), integrantes do programa de exercícios 176 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 físicos do Grupo de Estudos da Terceira Idade – GETI, da Universidade do Estado de Santa Catarina. Os idosos apresentaram elevada autoestima. Verificou-se diferença entre os gêneros. Estudos que abordassem a relação entre a autoestima e os cuidados pessoais, tais como avaliados pelo trabalho de Moura et al., (2012), não foram localizados nas bases de dados que congregam artigos científicos. Quando os cuidados pessoais são investigados, referem-se especialmente às atividades da vida diária, como o Índice de Barthel (Minosso, Amendola, Alvarenga & Oliveira, 2010; Girondi, Hammerschimidt, Tristão & Fernandes, 2014), utilizado para a aferição da independência funcional de idosos, população de especial interesse para as autoras do presente estudo. O objetivo geral da pesquisa foi verificar possíveis relações entre o cuidado com o corpo e a autoestima em mulheres idosas por meio do Questionário de Cuidados Pessoais e da Escala de Autoestima de Rosenberg, em um estudo piloto. Método As participantes foram selecionadas por conveniência. Seu recrutamento foi feito por outros pesquisadores da mesma instituição, os quais arrolaram, em diferentes bairros da cidade de São Paulo, idosas que preenchiam os requisitos estabelecidos na presente investigação. No estudo foram incluídas 24 mulheres com idade de 60 a 75 anos, alfabetizadas, sendo que todas residiam com familiares ou sós, mas nenhuma se encontrava institucionalizada. Foram excluídas mulheres que tinham deficiência física evidente, que dificultasse a locomoção, dado a possibilidade de incremento da ansiedade que as questões poderiam acarretar. Também foram excluídas pessoas cegas e surdas e que teriam dificuldade de compreender ou responder os instrumentos (como o caso de disléxicas). Considerou-se, para o cálculo do número de participantes, o nível de significância do estudo (5%) e a estimativa do coeficiente de correlação (0,5), o que indicaria um número mínimo corrigido de 16 idosas, ao qual foi acrescido 50%. Os instrumentos utilizados foram a Escala de Autoestima de Rosenberg, adaptada e validada por Hutz (2011) e o questionário de Cuidados Pessoais de Moura, Santos, Visciglia e Gatti (2012), além do Questionário de Caracterização, que contava com perguntas referentes à identificação da participante. Este último foi construído para os fins da pesquisa. O instrumento Escala de Autoestima de Rosenberg é uma medida unidimensional, constituída por 10 afirmações relacionadas a um conjunto de sentimentos de autoestima e autoaceitação, que avalia a autoestima global. Os itens são respondidos em uma escala tipo Likert de quatro pontos, variando entre concordo totalmente, concordo, discordo e discordo totalmente, e pode ser aplicado a pessoas de qualquer idade. O Questionário de Cuidados Pessoais (Moura et al., 2012) é constituído por 10 questões fechadas, respondidas em uma escala, variando de zero a quatro, tipo Likert, que visam avaliar o nível de cuidado com o corpo, o tempo despendido aos cuidados , o custo financeiro dedicado a procedimentos estéticos, a preocupação e satisfação com a autoimagem. Permite a quantificação das respostas de modo a que os valores superiores correspondam ao maior uso de tempo, energia e dinheiro da participante. Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 177 Após a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética (registrado sob o número CAAE 30087214.0.0000.0089), as participantes foram indicadas por pessoas próximas às pesquisadoras. Depois de contato e aceitação, elas foram consultadas quanto ao dia, horário e local mais conveniente para a coleta de dados da pesquisa. Cada participante preencheu e assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para fins legais e éticos, em duas vias, uma das quais ficou com a participante e outra com as pesquisadoras. Primeiramente foi aplicado o Questionário de Caracterização para colher informações pessoais das 24 participantes e, logo após, os dois instrumentos referentes ao tema da pesquisa. Antes das aplicações dos instrumentos, as pesquisadoras deram orientações gerais sobre eles. Após a coleta, os dados referentes à caracterização e a ambos os instrumentos foram inseridos em planilhas. Realizou-se o cálculo de média e desvio padrão. A partir dos resultados dos Questionários de Autoestima e de Cuidados Pessoais, foi realizado o cálculo da prova de correlação de Pearson, tomando-se p= 0,05. Resultados A contabilização dos dados do Questionário de Caracterização revelou que a média de idade das participantes foi de 65 anos e dois meses. Quanto ao local de nascimento, 18 são naturais do Estado de São Paulo, duas da Bahia, duas de Pernambuco, uma da Paraíba e uma do Estado de Minas Gerais. Identificou-se que 54,16% das participantes não estavam trabalhando no momento da coleta dos dados. Os resultados do Questionário de Cuidados Pessoais, como apresentados na tabela I, revelaram que o valor médio obtido no instrumento foi de 4,62, com desvio padrão 3,1. Destaca-se, entretanto, que houve ampla variabilidade quanto à contribuição de cada uma das questões para a composição do escore. As participantes 12 e 22 apresentaram as maiores pontuações da amostra, onze e treze pontos, respectivamente, denotando, assim, maior preocupação que as demais quanto aos cuidados. A pergunta que mais contribuiu para este resultado foi a que indagava se a mulher considerava os cuidados que tinha com o corpo e sua aparência um problema, na qual a resposta foi afirmativa. A participante 22 respondeu de igual modo também à pergunta que indagava se a mulher já tinha tido problemas financeiros por conta de sua vaidade. Tabela 1 – Total de respostas por participante no Questionário de Cuidados Pessoais. Participantes 178 Questões 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Total 1 1 1 1 1 0 0 3 0 0 0 7 2 0 0 1 1 1 0 1 0 0 0 4 3 1 0 2 1 1 0 2 0 0 0 7 4 2 0 0 1 0 1 2 0 0 0 6 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Participantes Questões 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Total 5 0 0 0 0 0 0 2 0 0 4 6 6 0 0 0 1 0 0 0 0 0 0 1 7 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 8 0 0 0 1 0 0 0 0 0 0 1 9 0 0 1 1 0 0 1 0 0 0 3 10 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 1 11 1 0 0 0 0 0 1 0 0 0 2 12 3 0 0 1 0 0 3 0 0 4 11 13 0 0 0 1 0 0 2 0 0 0 3 14 1 0 1 1 0 0 2 0 0 0 5 15 2 0 0 1 0 0 2 0 0 0 5 16 0 0 1 0 0 0 2 0 0 0 3 17 1 0 0 1 0 0 0 0 0 0 2 18 0 0 0 1 0 1 2 0 0 0 4 19 0 0 1 1 0 1 2 0 0 0 5 20 0 0 0 2 0 1 1 0 0 0 4 21 0 0 1 1 0 1 2 0 0 0 5 22 1 0 0 1 0 1 2 4 0 4 13 23 0 0 1 1 1 0 2 0 0 0 5 24 1 3 0 1 1 0 3 0 0 0 8 Total 15 4 10 20 4 6 37 4 0 12 111 Nos valores inferiores, as participantes 6, 8 e 10 obtiveram apenas um ponto, caracterizando uma menor preocupação em relação aos cuidados pessoais e a participante 7 obteve zero, ou seja, a menor somatória de pontos permitida para o instrumento. Tal valor, entretanto, não significa uma ausência de cuidados, mas o menor investimento refletido em todas as questões. Entretanto, pode-se afirmar que, dentre as pesquisadas, os cuidados pessoais, segundo inferido pelo instrumento, possuem pouca relevância no cotidiano. Ao analisar os resultados por questões do Questionário de Cuidados Pessoais, foi possível perceber que a questão que perguntava se a mulher já tinha enfrentado dificuldades de relacionamento por causa de sua vaidade (questão 9) não obteve qualquer ponto. A questão sobre qual seria o nível de preocupação da participante em relação Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 179 à sua própria imagem obteve a maior somatória de pontos (37), ou seja, as mulheres desta pesquisa demonstraram preocupar-se com a imagem corporal. A segunda questão com maior pontuação desta pesquisa foi a que perguntava com que frequência a participante ia ao salão de beleza ou centros estéticos semanalmente. Apenas cinco participantes responderam-na com o valor mínimo, o que correspondia a nenhuma. Destaca-se que a questão 3 investigava o número de procedimentos cirúrgicos estéticos aos quais as participantes haviam se submetido. Por meio desta questão verificou-se que a maioria das participantes da presente pesquisa (62,5%) não realizou qualquer cirurgia plástica. Embora tivessem uma faixa etária mais avançada, foi verificada menor incidência de submissão a cirurgias plásticas. Quanto ao segundo instrumento, a partir das análises das respostas da Escala de Autoestima de Rosenberg, foi obtida a média do grupo de 34,04 pontos, desvio padrão de 3,489, com intervalo médio de 30,51 a 37,49. Os resultados, por participante e questão estão apresentados na tabela 2. As participantes desta pesquisa foram classificadas como referindo autoestima elevada, pelos parâmetros do instrumento. A partir da realização do teste t, verificou-se que não houve diferença significativa entre a média obtida no presente estudo e a média obtida na pesquisa de Rodrigues (2011), embora a pontuação encontrada neste tenha sido maior. Tabela 2 – Resultados obtidos por participante da Escala de Autoestima de Rosenberg. Participantes 180 Questões 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Total 1 2 3 4 3 4 4 3 2 3 4 32 2 3 4 4 3 4 4 4 4 4 4 38 3 4 4 4 4 4 4 2 4 4 4 38 4 3 4 4 4 4 4 3 3 4 4 37 5 3 3 3 4 2 3 4 3 3 3 31 6 4 4 4 4 4 4 3 4 2 4 37 7 3 3 3 3 2 3 3 2 4 4 30 8 3 3 3 3 3 4 4 2 3 3 31 9 3 3 4 3 3 3 3 3 4 3 32 10 3 3 3 4 2 4 2 4 4 3 32 11 3 3 3 3 3 3 3 2 3 3 29 12 3 4 3 3 3 3 4 2 2 4 31 13 3 4 4 4 3 3 3 2 3 4 33 14 4 4 4 4 4 3 4 3 4 4 38 15 4 4 4 4 4 4 4 2 4 4 38 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Participantes Questões 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Total 16 3 3 4 3 3 3 1 3 3 4 30 17 4 4 4 4 3 3 3 3 3 3 34 18 4 4 4 4 4 3 4 4 2 3 36 19 4 4 4 4 4 4 4 4 2 3 37 20 3 3 3 2 2 3 3 2 4 3 28 21 4 4 3 4 4 3 3 3 3 3 34 22 4 4 4 4 1 4 4 3 4 4 36 23 3 3 4 3 3 3 4 4 4 4 35 24 4 4 4 4 4 4 4 4 4 4 40 Total 81 86 88 85 77 83 79 72 80 86 817 A participante 24 obteve destaque, pois atingiu a pontuação máxima, ou seja, 40 pontos, assim considerando-se uma autoestima extrema. Já no valor inferior, a participante 20 destacou-se com 28 pontos, chamando a atenção também para a pontuação baixa assinalada nas perguntas 4- “Eu acho que sou capaz de fazer as coisas tão bem quanto a maioria das pessoas” e 5-“ Eu acho que eu não tenho muito do que me orgulhar”. Ao analisar os resultados por questão foi possível perceber que a questão 8“Eu gostaria de poder ter mais respeito por mim mesmo” obteve o menor somatório de pontos do grupo, com 8,26 % das respostas, ou seja, a maioria das participantes discordou desta afirmação. Entretanto, no geral, a faixa de variação da somatória por questão (72 a 88) bem como do total de pontos por participante (28 a 40) revelam pequena amplitude. Os dados de ambos os instrumentos foram submetidos à prova de correlação, tomando-se p= 0,05. A correlação de Pearson apontou valor igual a 0,3077, resultado não significante (p crítico= 0,396), demonstrando, assim, que não houve correlação entre os resultados dos instrumentos aplicados. De acordo com este resultado, pode-se inferir que autoestima e cuidados pessoais, tal como mensurados pelos questionários, não têm interferência mútua ou não caminham de modo paralelo. Discussão Os resultados obtidos no estudo evidenciaram um baixo nível de cuidados pessoais, se comparado ao de Moura et al. (2012), no qual foi usado o mesmo questionário. No trabalho citado, a média do grupo foi de 13,7, com desvio padrão 3,18, ou seja, a se considerar que variabilidade é semelhante, a diferença entre as médias pode ser decorrente da diferença etária entre os grupos, dado que o estudo Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 181 anterior contou com mulheres entre 20 e 30 anos, e o atual com as participantes entre 60 e 75 anos. Entretanto, a preocupação referida com a imagem, em ambos os estudos, é o elemento mais presente. Schilder, citado por Silva, Venditti Jr. e Miller (2010), ressalta que as primeiras experiências infantis são importantes para o processo de desenvolvimento da imagem corporal e diz que nunca paramos de ter tais experiências, ou seja, exploramos nosso corpo do nascimento à morte. Acrescenta que a imagem corporal é formada em nossa mente, ou seja, é o modo pelo qual o corpo se apresenta para nós. A se considerar tal assertiva, poder-se-ia pensar que a preocupação seria gradativamente reduzida com a idade. Por outro lado, para algumas das idosas, os maiores cuidados podem estar relacionados ao medo da vivência de algo que para estas participantes ainda é desconhecido, ou seja, a perda da imagem de si mesmas e o medo de não serem reconhecidas pelo outro. Segundo Valença, Nascimento e Germano (2010), tal situação torna-se mais evidente durante as mudanças ocorridas no processo fisiológico do envelhecimento, de tal forma que as mulheres vivenciariam uma luta constante contra esse processo que é natural. Já Barros (2005) traz a concepção de imagem corporal, nas perspectivas da psicanálise e da sociologia, e diz que esta envolve a reflexão dos desejos, atitudes emocionais e interação com os outros, não sendo somente uma construção cognitiva. Neste sentido, pode-se entender que a preocupação com a imagem corporal das participantes é o resultado da interação entre elas, o meio em que vivem e as expectativas que têm em relação aos fatores determinados pela cultura e a sociedade, o que faria com que as mulheres mais velhas da pesquisa pudessem ter uma maior aceitação de si mesmas. Todavia, os cuidados dos quais se valem as mulheres mais velhas e mais novas para a manutenção da aparência podem ser bastante distintos, em função dos ditames específicos e dos recursos disponíveis em seus diversos momentos históricos. Além disso, Valença, Nascimento e Germano (2010) afirmam que o ideal da eterna juventude é buscado pela maioria das mulheres, muitas vezes influenciado pelo olhar de perfeição física construído por valores culturais e socioeconômicos, não em função de um olhar sobre si mesmas de autocuidado e de respeito ao próprio corpo. Tais fatores seriam refletidos na divergência encontrada no resultado das pesquisas que utilizaram o mesmo instrumento. A asserção das idosas de que não tiveram problemas de relacionamento por causa da vaidade pode ser um dos elementos que as distingue das mais jovens. Entende-se aqui que a vaidade é caracterizada como sendo uma preocupação exacerbada e uma avaliação excessivamente positiva da aparência física, como o fazem Avelar e Veiga (2013). Destaca-se que a preocupação com a aparência tem sido cada vez mais presente na sociedade atual, a qual oferece, a cada dia, mais recursos, antes não disponíveis, para o aprimoramento do aspecto estético. Hoje, os inúmeros produtos e serviços de beleza trazem a garantia de tornar as pessoas mais belas com objetivo de gerenciar a impressão que a aparência causa nos outros. Dessa forma, conscientemente ou não, os benefícios associados com a beleza 182 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 geram recompensas sociais como, por exemplo, elogios e conquistas amorosas (Abdala, 2004). De acordo com Avelar e Veiga (2013), as recompensas sociais obtidas servem como motivadores para a exacerbação da vaidade física na sociedade contemporânea, trazendo, como consequência, o aumento do consumo de produtos estéticos. Importa referir que um estudo conduzido no Rio Grande do Sul, em que foi verificada a busca de cirurgia plástica, pela primeira vez, por mulheres de mais de 50 anos (Audino & Schmitz, 2012), trouxe como resultado uma maior incidência de busca pelos procedimentos por mulheres mais jovens, sendo que, gradativamente, houve redução nas faixas etárias mais elevadas. No total do grupo pesquisado, apenas 13% corresponderam à faixa entre 62 e 67 anos e 5% tinham acima de 68 anos. Assim, no geral do instrumento de cuidados pessoais, a pontuação baixa na presente pesquisa, em comparação com a pesquisa de Moura et al., (2012), pode, em parte, ser justificada pelas idades das participantes deste trabalho, que são de uma faixa etária mais avançada que do estudo anterior. Além disso, a maioria das participantes desse estudo não exerce atividades fora de casa, o que fez com que se pensasse inicialmente que poderiam se preocupar menos com a aparência, porém notou-se que aquelas que trabalham fora de casa também apresentaram baixa pontuação no cômputo geral do instrumento. Outro fator a ser considerado refere-se ao questionário em si, elaborado e utilizado em 2012, e ainda não validado, sendo esta sua segunda utilização. A criação deste Questionário de Cuidados Pessoais, como qualquer instrumento, requer um número maior de pesquisas e estudos que comprovem sua validade. Deste modo, é necessário verificar, de modo mais atento, a adequação das questões para a população idosa. Quanto ao instrumento que avaliou a autoestima, Rodrigues (2011) estabeleceu valores para interpretação dos pontos obtidos. Considerou a pontuação de 10 a 20 como referente a uma baixa autoestima, os valores 21 a 30 a uma média autoestima e elevada autoestima a pontuação de 31 a 40, sendo a média das participantes do presente estudo considerada elevada. Esse dado pode ser interpretado valendo-se do viés da desejabilidade social. Oliveira (2013) ressalta a importância de se estudar a desejabilidade social no contexto da avaliação psicológica e diz que os indivíduos tendem a dar respostas pouco sinceras, com o objetivo de apresentar uma autoimagem positiva, principalmente em relação às medidas de autorrelato, nas quais reportam comportamentos, traços e atitudes que muitas vezes não correspondem a sua real imagem. Tal conceito pode justificar as respostas das participantes, enquanto grupo, as quais teriam tentado demonstrar uma representação exageradamente positiva de si. Outro fator que muito provavelmente interferiu na comparação com o trabalho de Rodrigues (2011) é a característica das participantes do estudo. Ainda que ambos os grupos sejam constituídos por idosas, um deles é de institucionalizadas, enquanto o outro não. Ressalta-se que a autoestima não é estática, apresenta altos e baixos, pois sofre influência de acontecimentos sociais, emocionais e psicossomáticos. Quanto ao grupo institucionalizado, pode-se pensar que as perguntas suscitaram sentimentos de inferioridade (Mosquera & Stobäus, 2006) e/ou sua avaliação ocorreu em um momento Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 183 pouco propício, em função de circunstâncias especificas, entre elas a própria condição de institucionalização. Alguns estudos nacionais (Antunes et al., 2011; Ferreira et al., 2012; Meurer et al., 2011) com o uso do mesmo instrumento identificaram nas mulheres pesquisadas uma autoestima elevada, assim como na presente pesquisa. Os autores apontaram que a autoestima satisfatória está relacionada à saúde, ao bem-estar e à felicidade. Dessa forma, ameniza os efeitos negativos do processo de envelhecimento, sendo considerada como um recurso psicológico útil para o idoso, aparecendo como um fator protetor, ou seja, auxiliando no enfrentamento dos desafios de adaptação na velhice. Nesse sentido, o alto resultado obtido pelas participantes da presente pesquisa pode ser interpretado como uma forma positiva que as mulheres dessa faixa etária encontraram de vivenciar o processo de envelhecimento, demonstrando que, apesar das mudanças psicológicas, físicas e culturais que acontecem por conta da idade, possuem uma representação pessoal positiva. Disto infere-se que, de modo geral, as participantes sentem-se confiantes e acreditam nas próprias competências, características estas associadas a uma alta autoestima (Gomes & Silva, 2013). Também pode indicar que, dada a aceitação do envelhecimento, a preocupação com os diversos modos estéticos de retardá-lo não se faz tão presente, o que redundaria na correlação verificada entre os instrumentos utilizados na pesquisa. Considerações finais Não foi identificada associação entre os cuidados com o corpo e a autoestima para o grupo investigado e por meio dos instrumentos utilizados. Os resultados obtidos nos instrumentos revelaram uma autoestima elevada e um nível de cuidados pessoais abaixo da média, se comparado ao estudo anterior com o mesmo instrumento. A não correlação entre os instrumentos utilizados pode estar associada ao fato das mulheres desta pesquisa sentirem-se seguras quanto à sua aparência, ou seja, por terem uma elevada autoestima acreditam nas suas competências não vendo a questão dos cuidados pessoais como algo relevante. Outra hipótese levantada que justificaria tal resultado seria o fato de que os hábitos considerados como cuidados pessoais para esta faixa etária podem diferir dos hábitos das mulheres do estudo ao qual a presente pesquisa foi comparada, as quais eram de uma faixa etária menor. A possibilidade de que o grupo de idosas da pesquisa seja algo homogêneo seria também uma possível causa para a baixa correlação encontrada. A despeito de serem advindas de distintos bairros, não houve controle quanto a uma estratificação por renda ou outros dados sociodemográficos que, eventualmente, poderiam interferir nos resultados. A pesquisa evidenciou que alguns de seus aspectos merecem novas investigações. A adequação dos instrumentos utilizados, especialmente em relação ao Questionário de Cuidados Pessoais, que foi utilizado pela segunda vez, é um deles. Seria importante uma investigação em que fossem levantados, junto a idosas de diversas faixas etárias, 184 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 condições econômicas e culturais os cuidados que dispensam a sua aparência, para uma ampliação do questionário de cuidados pessoais, se os resultados assim sugerirem. Outra possibilidade seria a composição de amostras mais amplas e a introdução do gênero masculino, a fim de comparação dos dados. Propõe-se, ainda, uma ampliação do Questionário de Caracterização dos participantes no sentido de obter mais informações que possibilitem a averiguação de outros fatores que possam estar subjacentes aos dados obtidos, como condição econômica, nível de escolaridade, estado atual de saúde. Os vários aspectos apontados, entende-se, devem despertar o interesse para realização de futuros trabalhos nesta mesma temática, a qual não tem sido referida quer em estudos nacionais quer em internacionais. Referências Abdala, P. R. Z. (2004). 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M., Filho & Germano, R. M. (2010). Mulher no climatério: reflexões sobre desejo sexual, beleza e feminilidade. Saúde e Sociedade, 19(2), 273-285. _____________________________ Recebido em janeiro de 2015 Aceito em abril de 2015 Aparecida Duridan: Aluna da Graduação do Curso de Psicologia da USJT – Universidade São Judas Tadeu. Daiane Ferreira dos Santos: Aluna da Graduação do Curso de Psicologia da USJT – Universidade São Judas Tadeu. Ana Lucia Gatti: Doutora em Psicologia, Professora do Curso de Psicologia e do Mestrado em Ciências do Envelhecimento da Universidade São Judas Tadeu. Endereço para contato: [email protected] Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 187 Aletheia 43-44, p.188-202, jan./ago. 2014 Dependência de álcool e recaída: considerações sobre a tomada de decisão Ana Cristina Bertagnolli Christian Haag Kristensen Daniela Schneider Bakos Resumo: O objetivo do trabalho foi compreender as recaídas de indivíduos alcoolistas no que diz respeito a sua relação com a tomada de decisão. Parece haver disfunções no córtex préfrontal ventromedial em dependentes de álcool, o que faz com que estes indivíduos possuam prejuízos na tomada de decisão semelhantes aos apresentados por pacientes não alcoolistas que possuem lesões nesta mesma área cerebral. Ambos fazem escolhas que proporcionam recompensas imediatas e desconsideram os prejuízos negativos futuros associados a estas. Existe um forte debate no que diz respeito à relação entre o uso de álcool e a tomada de decisão. Para contemplar o objetivo, foi realizada uma revisão assistemática da literatura. Enquanto para alguns autores o prejuízo na tomada de decisão é decorrente de danos neurológicos causados por substâncias, para outros os déficits na tomada de decisão são anteriores ao uso do álcool e conduzem os indivíduos a este comportamento. Palavras chaves: tomada de decisão, dependência de álcool, recaída em alcoolistas. Alcohol dependence and relapse: Some considerations concerning decision-making Abstract: The aim of this study was to understand the relapse of alcoholics with regard to their decision making processes. There seems to be dysfunction in the ventromedial frontal cortex in alcoholic patients, which lead to deficits in decision making similar to those presented by nonalcoholic patients who have lesions in the same circuits. Both make choices that provide immediate rewards, in the context of negative future losses. There is a strong debate regarding the relationship between alcohol use and decision making. To address the objective, was performed an unsystematic review. While for some authors deficits in decision making are due to neurological damage caused by substances, for other deficits in the decision predated the use of alcohol and lead individuals to this behavior. Key-words: decision-making, alcohol dependency, relapse of alcoholics. Introdução Indivíduos alcoolistas, apesar de compreenderem os prejuízos associados ao uso de álcool e sofrerem consequências advindas deste, ainda assim mantêm um padrão crônico de consumo. Mesmo aqueles que buscam tratamento muitas vezes acabam por apresentar altas taxas de recaída. Estes aspectos no comportamento de pacientes alcoolistas são sugestivos de dificuldades que vão além de prejuízos de memória e atenção, indicando o envolvimento de déficits em funções executivas. As funções executivas podem ser definidas como um conjunto de processos cognitivos que permitem que o indivíduo direcionar comportamentos a metas futuras e monitorar a eficácia destes comportamentos. Desta forma, podem nater os comportamentos eficientes e abandonar os comportamentos ineficientes (Lezak, 1995). O objetivo do estudo foi compreender, através de uma revisão assistemática da literatura, as recaídas de indivíduos alcoolistas em sua relação com a tomada de decisão. Para isso, serão abordadas as caracteísticas, prejuízos e prevalência da dependência de álcool bem como sua etiologia e os modelos de tratamento. Quanto à tomada de decisão, será revisado o conceito, a abordagem neuropsicológica, a avaliação da tomada decisão e os substratos neurais da mesma. Finalmente, a tomada de decisão em indivíduos alcoolistas será discutida. Dependência de álcool Características, prejuízos e prevalência A Dependência Química é caracterizada, segundo as normas da American Psychiatric Association (1994), por uma preocupação compulsiva em obter e utilizar determinada substância, apesar das consequências negativas sociais e ocupacionais. O diagnóstico correto, realizado através das entrevistas iniciais ou da observação da evolução clínica, facilita a abordagem terapêutica e as estratégias de prevenção de recaída (Zaleski et al., 2006). Os critérios da dependência de álcool envolvem critérios relacionados a perda de controle, a tolerância física e abstinência, a interferência do álcool no trabalho ou vida acadêmica e uso do álcool em situações arriscadas. (APA, 2003). A exposição crônica ao álcool pode resultar em consequências físicas, psicológicas e sociais. Indivíduos dependentes de álcool não conseguem manter seus empregos, o que resulta em prejuízos nas relações interpessoais e problemas financeiros. Existe um aumento na probabilidade de indivíduos alcoolistas se envolverem em comportamentos de risco considerando que, quando intoxicados, não conseguem avaliar o real risco das situações (Kessler, 2009). Por ser uma droga lícita, a sociedade parece ser permissiva em relação ao uso do álcool, que é incentivado tanto no ambiente domiciliar quanto em festividades. Esta postura ignora as diversas complicações decorrentes do abuso da substância (Sousa & Oliveira, 2010). O abuso de álcool está entre os transtornos mais prevalentes apresentados pela população ao longo da vida. A prevalência do abuso de álcool é em torno de 15,1% e a de dependência da substância é de aproximadamente 6,5%. A alta prevalência destes transtornos tem sido motivo de preocupação para os profissionais de saúde mental. A alta prevalência do abuso e dependência de álcool corresponde a mais pessoas que precisam de ajuda do que os recursos de tratamento disponíveis (Kessler et al., 2005). Os indivíduos se engajam em comportamentos de risco como forma de obter uma gratificação mesmo diante de perigos ou danos. A maneira como as pessoas processam a tomada de decisão vem sendo aprimorada através da integração de várias disciplinas, como a Psicologia, a Economia Comportamental e a Neurociência. Dificuldades neurobiológicas acarretam prejuízos na tomada de decisão. A tomada de decisão é comprendida como a escolha entre duas ou mais alternativas concorrentes, demandando análise dos custos e benefícios envolvidos. Para que a tomada de decisão seja vantajosa, é necessário prever Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 189 os custos e os beneficios em curto, médio e longo prazo. Indivíduos com prejuízos na tomada de decisão tendem a preferir comportamentos que geram gratificações imediatas e desconsideram os prejuízos destes comportamentos a longo prazo. Diferentes estruturas estão envolvidas na tomada de decisão e prejuízos em algumas desssas estruturas – como, por exemplo, no córtex pré-frontal – podem levar a dificuldades na tomada de decisões (Bechara, Damasio, Damasio & Anderson, 1994; Bechara, Tranel, Damasio & Damasio; 1996, Bechara, 2001). Os prejuízos funcionais apresentados por alcoolistas podem ocorrer como resultados negativos decorrentes do uso, mas também podem ocorrer em função de prejuízos em outras funções cognitivas, como a tomada de decisão ou o controle de impulsos. Ainda não é claro se os prejuízos na tomada de decisão são consequência da dependência de álcool ou se conduzem os indivíduos a este comportamento. Independentemente de a tomada de decisão ser a causa ou a consequência do alcoolismo, é necessário entender as bases neurais deste prejuízo (Mitchell, Fields, D’Esposito & Boettiger, 2005). O córtex pré-frontal é particularmente vulnerável a disfunções causadas pelo uso prolongado do álcool. As disfunções executivas estão associadas a prejuízos no córtex pré-frontal e indivíduos que abusam do álcool tendem a possuir metabolismo dimminuído nesta região (Kril, Halliday, Svoboda & Cartwrigth, 1997). O abuso do álcool causa disfunções no córtex pré-frontal e os indivíduos com estas disfunções possuem mau desempenho em testes que avaliam as funções executivas, como planejamento, por exemplo. As disfunções pré-frontais observadas em alcoolistas são similares àquelas identificadas em pacientes com lesões pré-frontais ventromediais, ou seja, estes indivíduos parecem ser insensíveis às consequências futuras de suas decisões e fazem escolhas que propiciem resultados positivos imediatos. Os prejuízos da dependência de álcool se refletem na tomada de decisão, quando as consequências negativas não são levadas em consideração de maneira efetiva antes da escolha de uma ação específica (Mitchel, Colledge, Leonard & Blair, 2005). Estes sujeitos apresentam um padrão de comportamento guiado por recompensas imediatas, o que faz com que não resistam ao impulso de beber, apesar de estarem cientes das futuras consequências adversas deste comportamento (Bowden-Jones, McPhillips, Rogers, Hutton & Joyce, 2005). Etiologia A dependência química está relacionada à interação entre diversos fatores complexos, incluindo aspectos sociais, biológicos e psicológicos. Cada um destes está presente em diferentes graus na etiologia da dependência química. Os fatores biológicos estão relacionados à diferenças individuais na resposta ao uso de álcool devido à questões como o sexo, idade e herança genética. Os aspectos psicológicos incluem os esquemas de cada indíviduo edificados ao longo da vida e as consequentes reações emocionais referentes à ativação destes. Os fatores sociais referem-se à classe socioeconômica, nível de escolaridade e religião (Washton & Zweben, 2009). Rozin e Zagonel (2012), em estudo sobre os fatores de risco para o desenvolvimento da dependência de álcool em adolescentes, identificaram diversos fatores de risco para o desenvolvimento da dependência de álcool. Entre estes, o início precoce do uso, a influência da mídia, a baixa autoestima do adolescente, o uso da substância por algum membro da família, a pressão 190 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 de colegas, a violência doméstica, entre outros. A imaturidade do córtex pré-frontal, especialmente das funções relacionadas ao controle inibitório, durante a adolescência torna os indivíduos mais vulneráveis ao desenvolvimento de um transtorno aditivo. A imaturidade desta região costuma ultrapassar os 20 anos e, quanto mais tarde ocorrer o uso do álcool, menor será o risco do desenvolvimento de um transtorno ligado ao uso desta substância (Kessler, 2009). Diversos fatores de risco devem ser considerados para o desenvolvimento da dependência química. Os fatores sociais são considerados os mais importantes para o surgimento da dependência química. Conviver com pessoas em que o uso de álcool é incentivado contubui para o surgimento da dependência química nos indivíduos mais suscetíveis (Washton & Zweben, 2009). O álcool é a substância que mais leva seus usuários à morte, além de causar diversas mortes que seriam passíveis de prevenção, como os acidentes de trânsito (Sousa & Oliveira, 2010). O comportamento de ingerir álcool é inicialmente positivamente reforçado, já que sua ingestão gera bem-estar e diminuição da ansiedade. Este tipo de reforçamento continua até o aparecimento dos sintomas de abstinência, quando a falta do álcool gera sensações desagradáveis. A partir deste momento, o reforço positivo dá lugar ao reforço negativo, ou seja, o indivíduo faz uso do álcool para se esquivar das sensações desagradáveis geradas pela abstinência. O uso do álcool pode passar então a ser duplamente reforçado, sendo utilizado para diminuir os sintomas da abstinência e para gerar sensações de bem-estar (Washton & Zweben, 2009). Modelos de tratamento Prochaska e Diclemente desenvolveram o Modelo Transteórico que possui como objetivo descrever os estágios de mudança pelos quais as pessoas passam. Os autores referem-se à mudança de comportamento como um processo no qual as pessoas experienciam diferentes níveis de motivação (Oliveira, Laranjeira, Araújo, Camilo, & Schneider, 2003). O modelo transteórico de Prochaska e Diclemente propõe diferentes estágios de prontidão para mudança, cada um com características bem específicas: précontemplação, contemplação, ação e manutenção. Na pré-contemplação o indivíduo não apresenta crítica sobre o abuso da substância e não mostra intenção de largá-la. Os indivíduos que chegam para tratamento neste estágio são comumente levados pelos seus familiares (Oliveira et al., 2003). Buscar tratamento não significa necessariamente que o indivíduo esteja motivado para a mudança, o que faz com que estratégias elaboradas para pacientes que já se encontram na fase de ação sejam pouco eficazes (Orsi & Oliveira, 2006). A contemplação é caracterizada pela ambivalência: o indivíduo reconhece o problema, mas fica dividido entre as vantagens e desvantagens da interrupção do uso da substância. Na ação ocorre a escolha de uma estratégia para mudar e na manutenção se busca a consolidação dos ganhos obtidos. O objetivo é manter os ganhos e evitar a recaída. O indivíduo não percorre os estágios de forma linear, começando na précontemplação e terminando na manutenção, e sim percorre todos os estágios diversas vezes. Pode apresentar características de todas as fases, sem que uma necessariamente prevaleça sobre a outra. O modelo de Prochaska e Diclemente mostra que a motivação é um processo, o que impede que os terapeutas subdividam os pacientes em “motivados Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 191 e desmotivados” (Oliveira et al., 2003). O modelo neurobiológico também é bastante estudado no tratamento da dependência química. As alterações neuroquímicas acompanham tanto o uso quanto a abstinência da substância, estando associadas a alterações cognitivas e comportamentais (Araújo, Oliveira, Pedroso, Miguel & Castro, 2008). É importante para a obtenção de bons resultados e tarefa do terapeuta avaliar os estágios motivacionais e promover tratamentos que sejam adequados ao estágio de motivação que o paciente se encontra (Orsi & Oliveira, 2006). Parece haver maior eficácia e aderência ao tratamento e menor ambivalência quando a intervenção motivacional é utilizada (Oliveira et al., 2003). Pacientes com dependência química demandam maior esforço por parte do terapeuta para estabelecer uma aliança capaz de promover mudanças em seu comportamento e aumentar as possibilidades de aderência à terapia proposta (Mathias & Cruz, 2007; Zaleski et al., 2006). Entre as variáveis que aumentam a adesão dos pacientes ao tratamento podem ser identificadas: possuir filhos e uma relação conjugal estável, as crenças relativas ao consumo do álcool (percepção de responsabilidade pessoal pelo uso), apresentar comorbidade com outra psicopatologia e tratamentos anteriores. Estão negativamente associados à adesão fatores como a redução do consumo por pressão familiar e sentir-se satisfeito ou consolado quando alcoolizado. Ter se envolvido em agressões físicas com os amigos também parece ser um preditor de baixa adesão ao tratamento (Ribeiro et al., 2008). Correa Filho e Baltieri (2012) identificaram alguns fatores associados a maior adesão ao tratamento, entre eles, a preferência por cerveja, idade mais avançada e participação em grupos de Alcoolicos Anônimos (AA). Quanto maior a gravidade da dependência do álcool e maiores os prejuízos psicossociais e clínicos, maior é a motivação para a mudança. Sendo assim, o grau mais severo de alcoolismo não está necessariamente associado a um pior prognóstico (Oliveira et al., 2003). Por outro lado, sugere-se que a severidade da dependência química aumenta significativamente a motivação para mudar apenas no início do tratamento, não permanecendo estável ao longo do mesmo, visto que tanto fatores sociais quanto psicológicos podem aumentar ou diminuir a motivação para a mudança ao longo do tempo (Carpenter, Miele & Hasin, 2002). O uso de psicofármacos também pode auxiliar na redução da fissura e na manutenção da abstinência. O tratamento farmacológico deve ser pensado como uma importante ferramenta médica para a abordagem dos pacientes, embora não deva ser utilizada como estratégia terapêutica principal, visto que diversos fatores, além dos biológicos, são importantes na gênsese da dependência do álcool (Castro & Baltieri, 2004). Tomada de decisão: conceito As funções executivas são aquelas que dependem do funcionamento do córtex pré-frontal, a parte mais anterior do lóbulo frontal. Estas funções compreendem processos cognitivos complexos e são responsáveis pelas ações intencionais. Referemse sempre ao controle voluntário sobre o ambiente e ao planejamento de ações para a realização de determinado objetivo em determinado intervalo de tempo. As funções 192 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 executivas dependem de componentes como atenção, programação e planejamento de sequências, inibição de processos e monitoramento (George, Rogers & Duka, 2005; Kristensen, 2006). Diversas dimensões estão presentes em alguns modelos teóricos das funções executivas. Existem os componentes “frios”, que são baseados na lógica, como o raciocínio verbal, a resolução de problemas, o sequenciamento, a resistência à interferência e a flexibilidade cognitiva e existem os componentes “quentes”, que envolvem um determinado alerta emocional associado às respostas de recompensa e punição, a regulação do comportamento social e à tomada de decisão (Chan, Shum, Toulopoulou & Chen, 2008). Habilidades como considerar eventos no passado, monitorar a situação presente e fazer predições a respeito do futuro são essenciais para decidir de maneira vantajosa. A tomada de decisão é um aspecto importante do comportamento e através de seu estudo, com base na neuropsicologia, podemos obter conhecimentos que possibilitam a análise de outros comportamentos impulsivos (Dom, Wilde, Hulstinjn, Brink & Sabbe, 2006; Kristensen, 2006). Abordagem neuropsicológica da tomada de decisão A capacidade de tomar decisões é um importante aspecto do funcionamento adaptativo e as pessoas são continuamente expostas a situações que requerem escolhas, sejam elas efetuadas de forma pré consciente ou a partir de processos reflexivos. A tomada de decisão requer a análise de características das opções disponíveis e a estimativa das consequências futuras acarretadas pela escolha (Schneider, 2006). Segundo a abordagem neuropsicológica da tomada de decisão, sinais emocionais e fisiológicos atribuem valor a determinadas opções influenciando, desta maneira, as escolhas de um indivíduo. Estes sinais somáticos se desenvolvem conforme a nossa aprendizagem e podem ocorrer antes mesmo do processamento cortical. Pacientes com lesões do córtex pré-frontal ventromedial não obtêm os sinais somáticos que os previnam de consequências negativas futuras (Bechara et al., 1994; Bechara et al., 1996). O comportamento de tomar decisões, a partir da abordagem neuropsicológica, passou a ser extensivamente analisado a partir de drásticas modificações comportamentais percebidas em pacientes que sofreram lesões na região pré-frontal ventromedial. O córtex pré-frontal ventromedial é importante para a avaliação de consequências positivas e negativas, tarefa essencial para a tomada de decisão. A partir de lesões nesta área, estes indivíduos passaram a decidir de maneira extremante disfuncional, o que gerava diversos prejuízos em vários aspectos de suas vidas (Bechara, 2001; Gaudriian, Grekin & Sher, 2007; Manes et al., 2002). Apesar dos prejuízos severos na vida social, pessoal, profissional e financeira, as testagens conduzidas com esta população mostraram que as funções cognitivas (como memória operacional e atenção) se encontravam preservadas e não explicavam os comportamentos disfuncionais (Bechara et al., 1994). Anteriormente à lesão, estes pacientes eram descritos como bem sucedidos em diversos aspectos da vida, como relações interpessoais, desempenho no trabalho, habilidades financeiras, vida social, etc. Após a lesão estes sujeitos passaram a tomar decisões claramente Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 193 desvantajosas para suas vidas. Alguns perdiam o controle dos gastos e iam à falência, mesmo tendo sido alertados por parentes e amigos (Bechara, 2001). Estes indivíduos também se mostravam incapazes de aprender a partir de experiências anteriores, o que fazia com que eles tomassem decisões desvantajosas repetidamente. Suas decisões passaram a ser movidas apenas por recompensas imediatas e os prejuízos decorrentes destas escolhas eram ignorados (Bechara, 2001; Bechara et al., 1994; Bechara et al., 1996; Manes et al., 2002). Além dos prejuízos na tomada de decisão, estes pacientes apresentavam habilidades de expressar emoção comprometidas, não conseguindo demonstrar sentimentos adequados em determinadas situações. Estes prejuízos sugerem que a lesão acarretava também alterações nas emoções e nos sentimentos (Bechara, 2001; Bechara et al., 1994). Desenvolver uma tarefa experimental para detectar os prejuízos na tomada de decisão que eram óbvios no funcionamento cotidiano destes pacientes era um dos grandes desafios para os pesquisadores da área (Bechara, 2001). Avaliação da tomada de decisão: IGT O Iowa Gambling Task (IGT) foi desenvolvido para analisar o processo de tomada de decisão destes indivíduos, que os conduz a tantos prejuízos. O IGT tem sido utilizado tanto com populações clínicas, como dependência química, jogo patológico, transtorno de personalidade antissocial (Bechara et al., 1994), bulimia nervosa e transtorno de personalidade borderline (Dom et al., 2006), quanto com populações saudáveis (Bechara et al., 1994). No Brasil, Schneider e Parente (2006) adaptaram o IGT para o Português Brasileiro. Esta versão diferencia-se da anterior principalmente pelas instruções iniciais oferecidas aos participantes, que incluem uma dica quanto à existência de diferenças entre os quatro baralhos. Além disso, a versão adaptada oferece um feedback visual, oferecido ao longo do jogo através de uma barra no canto superior da tela, o que possibilita uma ideia dos valores ganhos e perdidos ao longo da tarefa (Bakos, Parente & Bertagnolli, 2010). Há também a versão desenvolvida por Malloy-Diniz et al., (2008) que adaptaram a versão original em Inglês do IGT para o Português Brasileiro, a qual foi chamada de Iowa Gambling Task Versão Brasileira (IGT-Br). O IGT apresenta uma situação de tomada de decisão financeira sob incerteza, apresentando quatro baralhos associados a escolhas monetárias que permitem ao pesquisador observar se as decisões tomadas pelos participantes são avaliadas, segundo Bakos et. al., (2010), em habilidades decisionais adaptativas ou prejudicadas. As escolhas feitas pelos participantes permitem identificar se os mesmos evitam situações de risco ou as buscam. O instrumento possibilita que os prejuízos apresentados por estes pacientes sejam detectados e medidos em laboratório possibilitando, assim, a investigação dos fatores associados ao prejuízo na tomada de decisão (Bechara et al., 1994). O teste simula tão bem as situações cotidianas que ocorre em tempo real e proporciona aos participantes reforço e punição (ganho e perda de dinheiro) e oferece escolhas que podem ser arriscadas e rodeadas de incertezas. O cálculo e a predição da contingência de cada escolha não são possíveis. A única maneira de possuir um bom 194 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 desempenho neste teste é seguir a “intuição”. Por possuir estas características, o IGT teve sucesso na detecção dos prejuízos dos pacientes com déficits no córtex pré-frontal ventromedial. O IGT mostra que pacientes com lesões no córtex pré-frontal ventromedial são guiados apenas por reforços imediatos, visto que não consideram as consequências negativas futuras de suas escolhas (Bechara et. al., 1994). A performance dos pacientes sem disfunções no córtex pré frontal ventromedial no teste melhora conforme eles são testados novamente, e isso não acontece com pacientes com lesões na região pré-frontal ventromedial, que repetem o mau desempenho no IGT mesmo tendo sido submetidos várias vezes ao teste (Bechara et al., 1994; Bechara et al., 1996; Manes et al., 2002). Substrato neural da tomada de decisão Para explicar os déficits na tomada de decisão destes pacientes foi proposta por Bechara, em 1994, a Hipótese do Marcador Somático (HMS). A HMS mostra que a ativação de marcadores somáticos é necessária para a tomada de decisões vantajosas. As decisões dependem de sinais emocionais e o objetivo destes marcadores é atribuir valor às escolhas disponíveis. O sentimento visceral de “intuição” que temos enquanto escolhemos entre algumas opções reflete o conselho do nosso corpo sobre a decisão. Os sinais somáticos dirigem as pessoas para comportamentos associados a resultados positivos e derivam de experiências prévias com situações que apresentam reforço e punição (Bechara et al., 1994; Bechara et al., 1996; Gazzaniga & Heatherton, 2005; Schneider, 2006). Bechara et al., (2000) adicionaram a medida psicofisiológica e investigaram os resultados da tomada de decisão através da mensuração de respostas de condutividade dérmica emitidas pelos participantes ao longo de seu desempenho no IGT. Os marcadores somáticos auxiliam na tomada de decisão de várias maneiras. Os sinais somáticos ajudam a inibir a tendência dos indivíduos a buscar recompensas imediatas e a manter em mente o cenário de consequências negativas futuras no caso da preferência por recompensas imediatas em detrimento de escolhas mais vantajosas (Bechara et al., 1996). Em termos neurais, estes indivíduos perderam, ou possuem disfunções, em um sistema crítico, localizado no córtex pré-frontal ventromedial que conecta o conhecimento de experiências prévias com respostas biológicas e emocionais. O córtex pré-frontal ventromedial é conectado com outras estruturas do cótex pré-frontal e com estruturas subcorticais, responsáveis por regulação de bases biológicas, emocionais e comportamentais, como a amígdala e o hipotálamo (Bechara et al., 1996). Indivíduos com lesões no córtex pré-frontal ventromedial não geram respostas de condutividade dérmica ao escolherem cartas dos baralhos desvantajosos e a falta desta resposta é consequência de uma disfunção do sistema neural, levando a uma inabilidade em gerar os marcadores somáticos. Quando o IGT é utilizado em pacientes com lesões em outras regiões do cérebro, os resultados obtidos são bastante parecidos com os resultados dos pacientes controles. Este dado remete a disfuncionalidade à região ventromedial do córtex pré-frontal. A falta de reações de condutividade dérmica explica a insensibilidade destes indivíduos para consequências negativas futuras (Bechara et al., 1994; Bechara et al., 1996; Bechara, 2001). Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 195 Tomada de decisão em dependentes de álcool: provável disfunção na região ventromedial do córtex pré-frontal Diversos estudos apontam para uma associação entre o uso do álcool e prejuízos neuropsicológicos (Ahmadi et al., 2013; Rose, Brown, Field & Hogarth, 2013; Komreich et al., 2013). Estudos com neuroimagem funcional revelam anormalidades no funcionamento da área ventromedial do córtex pré-frontal de dependentes de álcool. Dependentes de substâncias químicas possuem os mesmos prejuízos na tomada de decisão que os pacientes que possuem lesões no córtex pré-frontal ventromedial. A HMS utilizada para estudar a tomada de decisão em pacientes com lesões neurológicas também fornece uma explicação neural para a compreensão da dependência química (Bechara et al., 1996; Bechara, 2001). Dependentes químicos possuem em comum características comportamentais parecidas com pacientes com lesões no córtex pré-frontal ventromedial. Ambos fazem escolhas que proporcionam recompensas imediatas e desconsideram consequências futuras negativas. Parece que o julgamento pobre e o déficit na tomada de decisão estão associados aos prejuízos na ativação de estados somáticos devido a uma lesão ou disfunção do córtex pré-frontal ventromedial (Bechara, 2001) Quando comparados aos pacientes controles, os pacientes dependentes de álcool possuem um mau desempenho no IGT. Conforme se habituavam ao jogo, os pacientes controles tendiam a escolher os baralhos vantajosos, enquanto que os pacientes dependentes de álcool tinham dificuldades em aprender as estratégias implícitas da tarefa e de agir conforme o conhecimento que deveria ter sido adquirido ao longo do jogo. Este comportamento é muito semelhante ao dos pacientes com lesões no córtex pré-frontal ventromedial, o que faz com que os alcoolistas insistam em escolher cartas dos baralhos desvantajosos (Dom et al., 2006). A geração antecipatória de reação de condutividade dérmica nos pacientes usuários de drogas é menor que nos pacientes controles, porém maior que nos pacientes com lesões no córtex pré-frontal ventromedial (Bechara, 2001). Pacientes com lesões no córtex pré-frontal ventromedial não costumam se tornar dependentes químicos e isto provavelmente se deve ao fato destes pacientes serem bastante protegidos pela família, não possuindo álcool e drogas disponíveis em seu ambiente. Os pacientes com lesões no córtex pré-frontal ventromedial, se expostos a drogas e álcool seriam extremamente suscetíveis a se tornarem dependentes. Isto porque, estes são movidos pela recompensa imediata e ignoram as consequências negativas no longo prazo, possuindo déficits de julgamento e prejuízos na tomada de decisão (Bechara, 2001). É provável que o desempenho no IGT seja diferente entre dependentes e abusadores de substâncias químicas. Os dependentes de substâncias químicas apresentam prejuízos na tomada de decisão e continuam com o uso da substância independentemente das consequências negativas que enfrentam. Estes indivíduos não interrompem o uso de substâncias mesmo diante da perda do emprego, do cônjuge, envolvimento com a lei ou outras consequências negativas adversas. Já os abusadores de substâncias não parecem apresentar prejuízos na tomada de decisão. Eles parecem descontinuar o uso da substância quando se deparam com prejuízos severos (Bechara, 2001). 196 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 A impulsividade torna os indivíduos suscetíveis ao uso de álcool ou o uso de álcool os torna impulsivos? A impulsividade refere-se à preferência por pequenas e imediatas recompensas em detrimento de recompensas maiores oferecidas depois de mais tempo, refletindo dificuldades no controle inibitório. Sujeitos com estas características fazem escolhas que proporcionem vantagens imediatas, porém mais arriscadas ou desvantajosas no longo prazo. Indivíduos com alguns transtornos psiquiátricos apresentam estas características, entre eles, dependentes de álcool (Kessler, 2009; Vassileva, Gonzalez, Bechara & Martin, 2007). A impulsividade pode influenciar a decisão nas primeiras escolhas do IGT e sua influência declina conforme a tarefa progride (Gaudriian et al., 2007). Os comportamentos impulsivos predizem o abuso de álcool, mas sugerem também que o oposto pode ser vedadeiro, isto é, os efeitos do álcool nas funções executivas podem ser primários (George et al., 2005). Nem todos os dependentes químicos mostram prejuízos em tarefas que avaliam a impulsividade, sugerindo que fatores de risco adicionais podem aumentar a vulnerabilidade à impulsividade (Vassileva et al., 2007). Dois fatores que aumentam esta vulnerabilidade são a presença de comportamentos antissociais e o uso de múltiplas drogas (Mitchell et al., 2002). O comportamento de risco aumenta devido à dificuldade de os indivíduos manterem em mente os custos e os benefícios associados à determinada decisão. O álcool dificulta a habilidade dos participantes de perceber com eficácia e manipular mentalmente todas as informações disponíveis para tomar decisões vantajosas (memória operacional). Sendo a impulsividade um comportamento desregulado resultante de um planejamento pobre e sem reflexão, a memória de trabalho exerceria uma função modulatória, o que mostra que as funções executivas são importantes para diminuir a impulsividade causada pelo álcool. Embora o IGT não exija muita demanda de memória de trabalho, o uso do álcool prejudica mesmo tarefas que exijam pouca memória de trabalho (Manes et al., 2002; George et al., 2005). A dependência de álcool está frequentemente associada a psicopatologias que envolvem dificuldades no controle inibitório, como é o caso do transtorno de conduta na infância, transtorno de personalidade antissocial e abuso ou dependência de outras substâncias (Cantrell, Finn, Martin & Lucas, 2008). Os prejuízos inibitórios parecem estar conectados com os prejuízos na tomada de decisão destes indivíduos, favorecendo-os a optarem por recompensas imediatas, mostrando que há uma conexão entre controle inibitório e prejuízos decisionais. Indivíduos que possuem psicopatologias que estão associadas a dificuldades no controle inibitório mostram um mau desempenho no IGT. Estes dados parecem refletir mais uma negligência para consequências futuras, sejam elas positivas ou negativas, do que uma maior sensibilidade para recompensas imediatas. Dependentes de álcool escolhem mais em função de sua insensibilidade para consequências futuras do que em função de recompensas imediatas (Cantrell et al., 2008). Há, ainda, alta prevalência de comorbidade entre os transtornos de personalidade do cluster B e a dependência de álcool. Porém, o prejuízo na tomada de decisão Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 197 aparece nos pacientes dependentes de álcool independentemente da presença de comorbidade com transtornos de personalidade, embora os prejuízos na tomada de decisão sejam mais severos na presença de um transtorno de personalidade do cluster B (Dom et al., 2006). O álcool causa prejuízos na tomada de decisão ou estes prejuízos já estavam presentes quando ocorreu o início do uso de álcool? Parece que o julgamento pobre e o déficit na tomada de decisão tornam os sujeitos suscetíveis a se tornarem adictos. Estes indivíduos representam uma população de risco pelo alto potencial de se tornarem usuários de substâncias (Bechara, 2001). Adolescentes e jovens adultos que se envolvem em “farras” com álcool (heavy binge drinking), definida por 21 ou mais drinks por semana, apresentam déficits em algumas funções neuropsicológicas, como atenção e memória (Gaudriian et al., 2007). A decisão pelo uso ainda na adolescência é grave, por se tratar de uma fase em que os adolescentes se acham onipotentes e subestimam os riscos. É também no final da adolescência que ocorre um aumento no uso do álcool devido às festas de formatura e à entrada na universidade (Gaudriian et al., 2007; Kessler, 2009). Em termos biológicos, o cérebro dos adolescentes é bastante vulnerável aos efeitos do uso exagerado do álcool. O córtex pré-frontal torna-se maduro ao longo da adolescência e esta parte do cérebro pode ser especialmente vulnerável aos efeitos do uso excessivo do álcool. (Kessler, 2009). Quanto mais cedo é o início das “farras” que envolvem bebidas, pior é o desempenho no IGT. Quando foram comparadas as farras com álcool de indivíduos que se encontravam no final da adolescência (18 a 19 anos) com indivíduos que se encontravam no início da vida adulta (entre 20 e 21 anos), concluiu-se que os participantes que estão no final da adolescência apresentam pior desempenho no IGT. Não é possível determinar que aspecto da ingestão de álcool conduzia ao mau desempenho no IGT – se a quantidade de álcool ingerida, a frequência da ingestão ou o padrão de consumo. Os déficits na tomada de decisão podem tanto ser resultado do uso excessivo de álcool e alteração nas funções cerebrais quanto à presença de prejuízos na tomada de decisão já nesta etapa da vida (Gaudriian et al., 2007). Os prejuízos na tomada de decisão permanecem quando estes indíviduos deixam de ser dependentes de álcool. Este achado sugere que estes sujeitos sempre tiveram prejuízos na tomada de decisão e que estes prejuízos aumentaram as chances de se tornarem dependentes químicos, ou, ainda, que o uso de substâncias tóxicas pode causar danos neurológicos que interferem na tomada de decisão mesmo no período de abstinência. A primeira hipótese parece estar mais correta, conforme resultados de um estudo que mostra um prejuízo no desempenho no IGT, independentemente da substância utilizada pelos mesmos (Barry & Petry, 2008). Ademais, o histórico familiar é relevante e parece haver um componente hereditário nas funções pré-frontais, embora apenas os usuários de substâncias químicas pareçam estar sob maior risco para desenvolver disfunções nesta região (Dolan, Bechara & Nathan, 2008). 198 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Considerações finais O funcionamento adaptativo requer habilidades de tomar decisões considerando as consequências futuras das mesmas. Decidir de maneira disfuncional pode gerar diversos prejuízos ao longo da vida, já que esta habilidade é necessária cotidianamente. Não se sabe ao certo se alcoolistas já possuem prejuízos na tomada de decisão ou se estes prejuízos são resultado da neurotoxicidade da substância utilizada no sistema nervoso. Porém, considerando que diferentes drogas causam danos diversos ao sistema nervoso, parece provável que dependentes de álcool sempre tenham tido prejuízos na tomada de decisão, prejuízos estes que os tornaram mais propensos a se tornarem alcoolistas. Considerando especificamente indivíduos alcoolistas, é importante manter em mente que os sinais emocionais que guiam a tomada de decisão vantajosa parecem menos intensos que os presentes das demais pessoas. Este dado é clinicamente relevante quando se conduz uma terapia com dependentes de álcool, por ser sugestivo de que estes indivíduos possuem disfunções nas bases neurais necessárias para tomar decisões de forma vantajosa. A disfunção do córtex pré-frontal ventromedial parece tornar os indivíduos insensíveis a consequências negativas futuras e mais propensos a optarem por recompensas imediatas. O uso do álcool caracteriza-se como uma recompensa imediata por causar bem-estar e diminuir a ansiedade e os sintomas de abstinência quando estes começam a se manifestar. Os dados aqui apresentados são relevantes para o tratamento psicológico de alcoolistas, uma vez que podem embasar o uso de intervenções específicas. Considerando que estes indivíduos parecem apresentar disfunções nas bases neurais necessárias para decidir de forma vantajosa, é importante que sejam monitorados de forma próxima e constante por familiares e profissionais. Referências American Psychiatric Association. (1994). Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (4ª ed.). Washington, DC: Autor. Ahmadi, A., Pearson, G. D., Meda, S. A., Dager, A., Ptenza, M. N., Rosen, R., Autad, C. S., Raskin, S. A., Fallahi, C. R., Tennen, H., Wood, R. M., Stevens, M. C. (2013) Influence of alcohol use on neural response to go/no go task in college drinkers, em publicação. Neuropsychopharmachology. Araújo, R. B., Oliveira, M. S., Pedroso, R. S., Miguel, A. C., Castro, M. G. T. (2008). Craving e dependência química: conceito, avaliação e tratamento. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 57(1), 57-63. Bakos, D. S., Parente, M. A. M. P., Bertagnolli, A. C. (2010). A Tomada de decisão em adultos e jovens: um estudo comparativo. 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É especialista em Psicoterapias Cognitivo-Comportamentais pela WP – Centro de Psicoterapias Cognitivo-Comportamentais (2007) e em Neuropsicologia do Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Christian Haag Kristensen: Graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1992), Doutorado em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2005), com estágio no exterior na University of Arizona (USA). Atualmente é Professor Adjunto e Pesquisador no Curso de Psicologia e no Programa de Pós-Graduação na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, com ênfase na pesquisa em Transtorno de Estresse Pós-Traumático, Psicoterapia CognitivoComportamental e Neuropsicologia. Daniela Schneider Bakos: Graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2001), doutorado em Psicologia do Desenvolvimento (2008) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É especialista em Psicoterapias Cognitivo-Comportamentais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2004). Atualmente é professora da graduação do Curso de Psicologia da Universidade Luterana do Brasil. Endereço para contato: [email protected] 202 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Aletheia 43-44, p.203-212, jan./ago. 2014 Representações parentais: bases conceituais e instrumento de avaliação Paula Casagranda Mesquita Sílvia Pereira da Cruz Benetti Resumo: O conceito da representação mental tem se tornado um constructo relevante na psicanálise, estando associado a diferentes denominações e definições. Desta forma, o objetivo deste artigo é abordar as bases conceituais do constructo da representação parental, na perspectiva da psicanálise contemporânea, a partir da contribuição da teoria das relações objetais e da teoria do apego. Além disso, buscou-se demonstrar as possibilidades de avaliação sobre as representações mentais, principalmente da representação parental sob a perspectiva da criança, destacando o instrumento MacArthur Story Stem Battery (Emde, Wolf & Oppenheim, 2003). Ressalta-se que o entendimento contemporâneo do mundo interno de representações do indivíduo reflete um esquema complexo de transações dialéticas entre as experiências reais, as regras de organização do conhecimento interpessoal e a história pessoal. O MSSB indicou ser um instrumento amplamente utilizado em investigações, com características úteis para o trabalho clínico. Palavras-chave: representações parentais; bases conceituais; avaliação. Parental representation: Conceptual basis and an instrument of assessment Abstract: The concept of mental representation has become a relevant construct in psychoanalysis and is associated with different definitions. Therefore, the aim of this article is to discuss about the conceptual basis of the parental representation, in the modern psychoanalysis perspective, considering the contribution of the object-relations theory and the attachment theory. Moreover, the possibilities of evaluation of the mental representations – mainly of the parental representation on the child’s perspective – using the instrument MacArthur Story Stem Battery (Emde, Wolf & Oppenheim, 2003) – were evaluated. It is relevant to emphasize that the modern understanding of the inside world of representations of the person reflects a complex scheme of dialectical transactions among the real experiences, the rules of organization of the interpersonal knowledge and the personal history. The MSSB has been quite a useful instrument, with suitable characteristics for the clinical work. Keywords: parental representations; conceptual basis; evaluation. Introdução As primeiras experiências com os cuidadores na infância, tanto na perspectiva da psicologia do desenvolvimento, quanto da psicologia clínica, são consideradas como fundamentais para o desenvolvimento emocional do indivíduo (Stein, Siefert, Stewartd & Hilsenroth, 2010). Em consequência disso, a compreensão do processo e da dinâmica dos distintos elementos envolvidos na relação criança e cuidador tem recebido grande contribuição de diversas abordagens teóricas, as quais enfatizam tanto elementos comportamentais, no desenvolvimento do vínculo cuidador-criança, quanto intrapsíquicos e cognitivos. Tal é o caso da abordagem da teoria do apego e da psicanálise, bem como da teoria da cognição social. Na teoria do apego, a qualidade do vínculo estabelecido entre a criança e a mãe, bem como a internalização dessas experiências, resultam em modelos internos de funcionamento (Bowlby, 1984/2004), que gradualmente estabelecem estruturas afetivas e cognitivas que influenciarão o comportamento posterior do indivíduo, principalmente na dimensão relacional (Manashko, Besser & Priel, 2009). Já na perspectiva psicanalítica das relações objetais, a ênfase do entendimento se volta para os aspectos intrínsecos associados à representação do objeto. Por fim, a teoria da cognição social prioriza os esquemas ou scripts resultantes das interações (Lukowitsky & Pincus, 2011). Comum a essas abordagens, porém, está a noção de que as características representacionais das figuras parentais funcionam como modelos que estruturam a maneira como o sujeito vivencia a si próprio e aos demais, como também organizam suas experiências, modulam o afeto e o comportamento e suas relações interpessoais (Waniel, Besser & Priel, 2006). Além disso, influenciam características da personalidade e se associam à manifestação de psicopatologia, já que níveis de sintomatologia são determinados por aspectos qualitativos dessas representações, resultantes de interações em que predominam experiências positivas versus situações de maior vulnerabilidade e risco (Priel, Besser, Waniel, Yonas-Segal & Kuperminc, 2007). Em função desses aspectos, conforme Lukowitsky e Pincus (2011), o constructo da representação mental tornou-se uma ferramenta de base panteórica, que fornece conhecimentos essenciais para o entendimento dos aspectos intrínsecos ligados à representação do self e dos demais. Especialmente na psicanálise contemporânea, pesquisas sobre o desenvolvimento infantil têm integrado conceitualmente conceitos da teoria da relação objetal e da teoria do apego, oferecendo marcos teóricos importantes para o estudo da personalidade, da psicopatologia e do processo terapêutico. Com base nesse entendimento, um corpo expressivo de trabalhos, focalizando a identificação de características do processo de desenvolvimento emocional, tem se dirigido para o estudo e compreensão das características das representações mentais de crianças e adolescentes acerca das figuras cuidadoras. O interesse principal desses trabalhos é priorizar a identificação daqueles elementos associados à psicopatologia, visando, portanto, o aprimoramento das intervenções, bem como o desenvolvimento de ações preventivas em saúde mental. Nessa direção, a compreensão dos fatores interpessoais e intrapessoais na construção das representações parentais das crianças, especialmente da representação materna, tornou-se foco de pesquisas, principalmente nas situações de maior vulnerabilidade de desenvolvimento (Priel, Besser, Waniel, Yonas-Segal & Kuperminc, 2007). Diante disso, no âmbito da pesquisa empírica, especialmente na avaliação da representação parental e/ou da representação materna, distintos contextos têm sido investigados, tais como crianças no contexto da adoção (Priel, Kantor & Besser, 2000), crianças institucionalizadas (Pinhel, Torres & Maia, 2009; Sousa & Cruz, 2010), no âmbito da violência doméstica (Stover, Van Horn & Lieberman, 2006) e nos casos de negligência e abuso (Hodges, Steele, Hillman, Henderson & Kaniuk, 2003). 204 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Paralelamente a esse interesse, o próprio avanço dos trabalhos colocou um desafio aos pesquisadores acerca da avaliação e interpretação do constructo. Dessa maneira, verificou-se a necessidade de aprimoramento de instrumentos capazes de investigar as representações mentais acerca das figuras parentais em crianças e adolescentes. Uma das aproximações resolutivas baseia-se nas técnicas avaliativas que utilizam narrativas infantis sobre as experiências com cuidadores, as quais têm se mostrado como um recurso fértil de investigação das singularidades das representações de crianças e adolescentes acerca das figuras parentais. Observa-se que a partir da idade de 4-5 anos, as crianças comunicam seus modelos representacionais em narrativas válidas e eliciadas por histórias incompletas que funcionam como dispositivos de avaliação de padrões interativos de cuidado e relacionamento familiar (Yoo, Popp & Robinson, 2013). Um dos instrumentos desenvolvidos com base nesses pressupostos é o MacArthur Story Stem Battery (MSSB, Emde, Wolf & Oppenheim, 2003). Trata-se de um método que utiliza narrativas para estudar áreas que abrangem tanto o desenvolvimento moral quanto a expressividade emocional, o comportamento pró-social, a representação parental, os mecanismos defensivos, a regulação emocional e as estratégias de resolução de conflitos (Emde, Wolf & Oppenheim, 2003). Trabalhos investigativos, utilizando-se do MSSB, têm se valido de abordagens oriundas de aportes psicanalíticos e socioconstrutivistas, que resultaram em informações importantes sobre as representações de cuidado e proteção parental e os mecanismos defensivos das crianças frente ao conflito nas relações familiares (Holmberg, Robinson, Corbitt-Price, & Wiener, 2007). Assim, o objetivo deste artigo é discutir inicialmente as bases conceituais sobre a noção de representação mental com base na contribuição da teoria do apego e das relações objetais. A seguir, apresenta-se o instrumento MacArthur Story Stem Battery (MSSB), como uma técnica de avaliação infantil importante para a investigação das características da representação parental em crianças em situação de maior vulnerabilidade, tais como violência e maus-tratos, adoção e psicopatologia parental. Bases conceituais: representação mental, teoria das relações de objeto e teoria do apego O conceito da representação mental tem se tornado, há mais de quatro décadas, um constructo relevante na psicanálise, estando associado a diferentes denominações e definições que abrangem desde a representação do objeto, da representação da palavra ou coisa, da representação do self, até a representação psíquica dos objetos internos e externos (Zanatta & Benetti, 2012, Beres & Joseph, 1970). Na perspectiva da psicanálise contemporânea, trabalhos sobre as representações mentais, especialmente em relação à figura materna têm utilizado, em sua maioria, a contribuição da teoria das relações objetais (Waniel, Priel & Besser, 2006) e da teoria do apego (Stover, Van Horn & Lieberman, 2006). Na abordagem psicanalítica, a teoria das relações objetais considera que as relações com os objetos primários são internalizadas ou introjetadas formando a base do processo identificatório que regula os estados afetivos internos originados da energia pulsional. As experiências internalizadas do eu com o outro servem como base para a construção de estruturas representacionais complexas, que seriam as representações de objeto, as Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 205 quais incluem esquemas conscientes e inconscientes de si e do outro, funcionando como modelos através dos quais as experiências afetam o comportamento, os sentimentos e a cognição (Priel et al., 2007). A teoria psicanalítica das relações de objeto sustenta que é através das relações com os demais que se constituem os blocos fundamentais da vida mental do sujeito. Nessa perspectiva, a ênfase no aspecto diádico e de reciprocidade no desenvolvimento psíquico se contrapõe, de certa forma, à ênfase exclusiva dos elementos pulsionais na estruturação psíquica do sujeito. O termo relacional inclui tanto o espaço interpessoal, abrangendo as interações entre o indivíduo e o mundo social, bem como as relações interpessoais externas, ou seja, o espaço intrapsíquico das próprias relações internas, a autorregulação e a regulação mútua (Sauberman, 2009). É nessa matriz relacional com os objetos primários, essencialmente a mãe, que se desenvolvem as estruturas psíquicas, as quais se organizam a partir das representações dos objetos primários, principalmente entre as trocas iniciais com a mãe, que são internalizadas como uma representação mental do objeto. Dessa maneira, as experiências com as figuras cuidadoras iniciais são organizadas em modelos internos de funcionamento que, gradualmente, estabelecem estruturas afetivas e cognitivas que influenciarão o comportamento posterior (Manashko, Besser & Priel, 2009). As falhas na capacidade de representação objetal teriam efeitos prejudiciais no desenvolvimento psicológico da criança. Por sua vez, a contribuição da Teoria do Apego fundamenta-se no entendimento de que a interação criança-figura cuidadora desenvolve-se tanto como resultado da capacidade parental de proporcionar a satisfação das necessidades da criança, como também da própria busca da criança por uma proximidade física com a mãe, que acontece nos primeiros anos de vida e permanece durante toda a primeira infância (Bowlby, 1984/2009). A Teoria do Apego enfatiza os comportamentos infantis na perspectiva de eliciar, desenvolver e manter o vínculo com as figuras cuidadoras. É somente por essa proximidade que a criança poderá construir uma representação da figura de apego que estabelecerá uma base segura para que ela possa explorar o ambiente. Dessa forma, o apego é compreendido como um conjunto de comportamentos do bebê que visam à proximidade com a mãe e à exploração do ambiente. Além disso, o apego também é influenciado pelo modo como os pais, ou substitutos deles, se comportam, cuidam, confortam e protegem a criança, bem como os seus afetos e sentimentos com relação a ela (Bowlby, 1984/2009; Ainsworth, 1969). Entretanto, a teoria do apego também destaca o aspecto representacional dos vínculos iniciais, descrevendo como as interações estabelecidas com os cuidadores irão determinar os modelos internos de funcionamento, associados aos estilos de apego. Isso porque, com base nos padrões de apego, o sujeito constrói modelos internos do mundo e de si próprio neste mundo (Bowlby, 1984/2004, p. 254). Ainsworth (1969) explicita que neste laço afetivo que caracteriza o apego há uma ligação recíproca entre a interação da criança e o comportamento materno. Sendo assim, a mãe influencia a forma e a intensidade do apego, quando é presente ou ausente, quando aceita ou rechaça a criança, ou mesmo quando ocorrem situações de dificuldades no estabelecimento do vínculo e a consequente manifestação de transtornos do apego. As interações no contexto familiar e a qualidade do vínculo mãe-bebê formam a base 206 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 para a construção das representações que afetam a forma como a criança interpreta e interage com a realidade, no desenvolvimento da sua autoestima, da autoconfiança e da sua sociabilidade. Assim, o aspecto representacional dos vínculos iniciais, com base nas interações estabelecidas com os cuidadores, irão determinar os modelos internos de funcionamento, associados aos estilos de apego (Custódio & Cruz, 2008). Independente da especificidade de cada constructo, Priel et al., (2007) destacam que o aspecto representacional dessas interações ou a representação das figuras parentais integra elementos tanto da teoria das relações de objeto quanto da teoria do apego. Refletindo sobre os posicionamentos da teoria das relações de objeto e da teoria do apego, Priel, Kantor e Besser (2000) consideram que em ambos os modelos a representação de objeto é que media as respostas da criança e as expectativas dos outros. Assim, as representações acerca das figuras parentais são compreendidas como evidências das experiências interpessoais reais e de fatores intrapsíquicos, sendo justamente os aspectos do desenvolvimento do apego, como da representação objetal o foco de investigações sobre o papel dessas internalizações precoces no desenvolvimento do comportamento, da cognição e do afeto do indivíduo ao longo da vida. Evidencia-se, por conseguinte, que o entendimento contemporâneo do mundo interno de representações do indivíduo reflete um esquema complexo de transações dialéticas entre as experiências reais, as regras de organização do conhecimento interpessoal e a história pessoal. Representação parental: estratégias de avaliação Conforme Emde, Wolf e Oppenheim, (2003), a tradição do trabalho clínico com crianças demonstrou que, ao produzir narrativas, a criança manifesta características fundamentais de seu mundo interno, incluindo temas emocionais, conflitos e defesas frente às situações de vida. Desta forma, as crianças desenvolvem representações mentais que codificam as experiências de si mesmas e de seus pais, que depois influenciam as histórias construídas por elas (Clyman, 2003). Em termos conceituais, as representações narrativas podem ser consideradas como multideterminadas, mas são essencialmente influenciadas pelas percepções das crianças de suas experiências de vida. Por conseguinte, os fundamentos teóricos das abordagens psicanalíticas das relações objetais e da teoria do apego, bem como do cognitivismo, têm proporcionado elementos interpretativos fundamentais para a avaliação e o entendimento dessas representações. Um dos incentivos ao desenvolvimento da MSSB foi o desenvolvimento de uma aproximação sistemática do estudo do mundo emocional das crianças. A técnica narrativa do MSSB iniciou-se com base no trabalho do grupo de pesquisa organizado por Bretherton, Emde, Openheimn e Wolf e, alicerçados no trabalho já realizado com o Attachment Story Completion Task (ASCT), que avaliava o apego; assim, introduziram novas lâminas com temáticas relacionais e pró-sociais. Inicialmente, a técnica consistia de 30 narrativas, que são inícios de histórias, chamadas de histórias-tronco. Hoje, porém, trabalha-se com um total de 15, sendo que duas não são avaliadas e têm a função de introduzir e finalizar a aplicação. Embora se tenha elaborado essas 15 histórias, elas são aplicadas a partir do tema que se quer estudar. Além disso, as crianças utilizam uma família de bonecas para desenvolver e finalizar as histórias (Hodges, Steele, Hillman & Henderson, 2003). Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 207 O instrumento (MSSB) tem sido amplamente utilizado na investigação das representações parentais, porque permite capturar a continuidade das reações das crianças através de histórias em que elas enfrentam um dilema que revela aspectos de seu mundo interno (Emde, Wolf & Oppenheim, 2003). Além das representações parentais, a avaliação das narrativas tem potencial para acompanhar as mudanças nas representações internas, quando a criança é colocada em um novo ambiente, principalmente no caso de crianças adotadas (Hodges et al., 2003). Também é possível avaliar o estilo e a coerência da narrativa, os conflitos familiares, a culpa, os medos, a ansiedade, a regulação emocional, as reações diante da não satisfação dos desejos, temas orais, entre outros (Warren, 2003). Segundo o autor, a abordagem do jogo narrativo tornou-se útil para estudar crianças em risco e com transtornos identificados, pois fornece uma medida obtida diretamente da criança sobre temas e representações em relação às experiências de relacionamentos interpessoais. O MSSB foi avaliado em seus modos de padronização em várias pesquisas (Emde, Wolf & Oppenheim, 2003; Robinson & Mantz-Simmons, 2003). Um dos trabalhos que investigava as representações parentais e as defesas em crianças maltratadas constatou que o instrumento têm modos padronizados e confiáveis para a utilização clínica e para a aplicação na pesquisa, mostrando-se adequado para a investigação de características particulares dos grupos (Hodges et al., 2003). Atualmente, o interesse dos pesquisadores tem se deslocado para o nível representacional, utilizando as narrativas como forma válida e eficaz para captar a qualidade dos modelos internos dinâmicos nas crianças (Emde, Wolf & Oppenheim, 2003; Maia, Ferreira, Veríssimo, Santos & Shin, 2008). No âmbito da violência doméstica, Stover, Van Horn e Lieberman (2006) investigaram as representações maternas em um grupo de 40 crianças com idades entre 2 e 5 anos, com história de violência doméstica, utilizando-se do instrumento MSSB (Emde, Wolf & Oppenheim, 2003). Meninos de pais divorciados e que haviam presenciado violência entre o casal tinham uma representação materna mais negativa, principalmente nos casos em que as visitas dos pais eram menos frequentes. Para os autores, esses meninos percebiam a falta de contato com o pai como culpa da mãe. Já as meninas representavam as mães de forma mais positiva. Esse resultado nas crianças do sexo masculino sugere uma diferença importante na relação da mãe com o filho, comparando-se à filha. Mães que identificaram características de seu ex-parceiro em seu filho podem, sem saber, moldar o comportamento e as crenças sobre a criança, resultando em representações maternas mais negativas nos meninos. Ao examinar as representações parentais, ainda no âmbito dos maus-tratos, Stronach, Toth, Rogosch, Oshri, Manly e Cicchetti, (2011) investigaram 92 crianças em idade préescolar, vítimas de maus-tratos, e 31 crianças sem experiência de maus-tratos. A avaliação das narrativas do MSSB (Emde, Wolf & Oppenheim, 2003) permitiu identificar que as crianças vítimas de maus-tratos tiveram menores índices de apego seguro e maiores índices de apego desorganizado do que as crianças não maltratadas. As representações parentais identificaram figuras negativas e as representações do self das crianças associavam-se a imagens grandiosas e poderosas de si mesmas. Sousa e Cruz (2010), numa investigação com crianças portuguesas, analisaram o modo como as experiências de maus-tratos estão associadas ao processo de construção 208 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 dos modelos representacionais das figuras parentais de crianças institucionalizadas. Participaram deste estudo 22 crianças em idade escolar e institucionalizadas. Como instrumento foram utilizadas as narrativas no MSSB, comparadas com narrativas de crianças não institucionalizadas. As primeiras representavam as figuras parentais como menos sensíveis e responsivas às suas necessidades e desejos, e menor atribuição de um final positivo às narrativas. Em todas as situações de vulnerabilidade retratadas nos estudos acima citados, as características das representações das figuras parentais indicavam que as vivências traumáticas estavam associadas tanto a conteúdos negativos acerca do cuidado e proteção parental quanto à própria representação de si mesmo. Em geral, os personagens dos pais são identificados como passíveis de rejeição ou agressão, refletindo suas representações e suas estratégias de regulamentação da emoção (Clyman, 2003). Ao contrário, estudos com crianças sem indicadores clínicos e em contextos de pouca vulnerabilidade indicam que as temáticas das narrativas infantis apresentam figuras parentais benevolentes, atentas e disponíveis à criança quando esta enfrenta uma situação de conflito e angústia. Por exemplo, Von Klitzing, Kelsay, Emde, Robert, Robinson e Schmitz, (2000), num estudo longitudinal que contou com a participação de 652 crianças gêmeas, constatou que as narrativas no MSSB caracterizadas por temas agressivos e/ou incoerentes associavam-se a problemas de comportamento infantil. Ao contrário, crianças sem diagnóstico clínico produziram narrativas com temáticas positivas, resolutivas e figuras parentais colaboradoras. Em síntese, os estudos até o momento indicam que a avaliação das representações das figuras parentais, através de instrumentos narrativos como o MSSB, oferecem dados importantes para o trabalho clínico e também para o desenvolvimento de intervenções que promovam práticas parentais positivas e afetivas. No geral, crianças em situação de vulnerabilidade e risco para problemas de saúde mental apresentam narrativas em que os temas de perigo, agressão desregulada e uma acentuada ênfase no papel infantil para a resolução de problemas (poder da criança) distinguem esse grupo das crianças que não apresentam risco. Para além do aspecto avaliativo das representações de crianças, o MSSB também foi utilizado para identificar o resultado de intervenções clínicas dirigidas para grupos de risco. Toth, Maughan, Manly, Spagnola, e Cicchetti (2002), por exemplo, investigaram a eficácia de dois modelos de intervenção com crianças vítimas de maus-tratos. Esses modelos tinham como objetivo modificar as representações internas das crianças em relação ao self e aos demais, sendo que o primeiro consistia em psicoterapia parental e da criança e o segundo baseava-se em visitas domiciliares. As crianças que apresentaram maior modificação das representações de si e dos demais, avaliadas pelo MSSB, foram aquelas que se submeteram à psicoterapia. Outro estudo comparativo foi desenvolvido por Robinson, Herot, Haynes, e Mantz-Simmons (2000), que acompanharam durante os 2 primeiros anos crianças de mães em situação economicamente vulnerável e com poucos recursos emocionais. As avaliações identificaram maior regulação emocional e diminuição da agressão nas crianças que participaram do acompanhamento que incluía visitas domiciliares. Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 209 Considerações finais Este artigo abordou, sob o ponto de vista teórico, a contribuição de abordagens psicanalíticas contemporâneas que se utilizam de conceitos da teoria das relações objetais e da teoria do apego para embasar a compreensão dos aspectos intrínsecos e comportamentais ligados às representações parentais em crianças e adolescentes. Da mesma forma, foi considerada a importância de técnicas de avaliação do constructo representação mental, o MSSB, instrumento que avalia aspectos representacionais, a expressividade emocional, o comportamento pró-social, os mecanismos defensivos, a regulação emocional e as estratégias de resolução de conflitos. Dessa forma, o instrumento tem se mostrado uma ferramenta importante para a pesquisa e para o atendimento clínico de crianças e adolescentes em inúmeros contextos. Espera-se, portanto, ter contribuído para a discussão e sugestão de práticas em saúde mental que beneficiem populações de interesse. 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Endereço para contato: [email protected] 212 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Aletheia 43-44, p.213-226, jan./ago. 2014 Pesquisa em psicoterapia e psicanálise Paula von Mengden Campezatto Maria Lucia Tiellet Nunes Milena da Rosa Silva Resumo: No decorrer do último século, as ciências empíricas e a psicanálise não desenvolveram proximidade, mantendo-se como campos à parte do conhecimento científico hegemônico. Atualmente, a comunidade psicanalítica se depara com pressão significativa para aumentar as pesquisas empíricas. A literatura internacional revela várias linhas de investigação do tema, ligadas aos resultados e processo do tratamento. São discorridas as dificuldades e vantagens de pesquisar. Enfatiza-se a necessidade de que o pesquisador em/sobre psicoterapia e psicanálise tenha real conhecimento da clínica e de seu método de trabalho, na intenção de tornar-se um instrumento “calibrado” para apreender os processos mentais conscientes e inconscientes. Enfatiza-se a pesquisa empírica sobre psicoterapia e psicanálise como uma das vertentes de aplicação prática dos construtos teóricos desenvolvidos em sua metapsicologia. Dessa forma, poderá principalmente compreender o que funciona, para o que funciona e como funciona este tipo de intervenção. Palavras-chave: Pesquisa; Psicoterapia; Psicanálise. Research in psychotherapy and psychoanalysis Abstract: During the last century, empirical sciences and psychoanalysis did not develop approach, keeping the field far away of the hegemonic scientific knowledge. Currently, the psychoanalytic community is facing significant pressure to increase empirical research. The international literature reveals several lines of research theme, linked to results and process of treatment. Were listed the difficulties and advantages of realizing research. It’s emphasized the need for the researcher to have actual knowledge of the clinic and it’s method of work, becoming na instrument “calibrated” to seize the conscious and unconscious mental processes. It is argued that empirical research on psychotherapy and psychoanalysis is one of the aspects of practical application of theoretical constructs developed in it’s metapsychology. Thus, it may mainly contribute expanding the knowledge that what works, for what works and how this type of treatment works. Keywords: Research; Psychotherapy; Psychoanalysis. Introdução A psicanálise foi definida por Sigmund Freud abrangendo três áreas, que incluem um método de tratamento dos transtornos psíquicos; uma teorização organizando os conhecimentos sobre o funcionamento psíquico advindos dessa experiência prática, e um procedimento de investigação dos processos psíquicos inconscientes, que de outra forma são pouco acessíveis (Freud, 1922/1996). Assim sendo, Freud já referia a indissolubilidade entre a investigação (pesquisa) e a clínica, ambas inseridas no próprio conceito da psicanálise, demonstrando que a observação é uma das melhores formas de sanar as curiosidades sobre os fenômenos (Freud, 1922/1996). Porém, nesse contexto, a pesquisa estava circunscrita à investigação analítica clínica, realizada pelo analista em minuciosos estudos de caso. Os trabalhos de Freud, estudos de caso único, detalhados e minuciosamente descritos, buscavam o desenvolvimento e a avaliação da teoria e da técnica psicanalítica. Entretanto, o método psicanalítico utilizado por Freud não é reconhecido por muitos pesquisadores que defendem o método científico tradicional, por considerarem a sua metodologia incapaz de ser replicada. Da mesma forma, pesquisas empíricas sobre psicoterapia também não se mostram interessantes aos clínicos psicanalíticos, que as rejeitam em prol do método clínico psicanalítico, considerado teórica e tecnicamente consagrado. Barros (2006) lembra que o próprio Freud, apesar de ter despendido um tempo monumental na construção da psicanálise, nunca se interessou por nenhuma outra técnica de psicoterapia que não fosse a própria psicanálise. A ideia de que a psicanálise era a única psicoterapia verdadeira e científica permeou todos os anos de vida de Freud e marcou significativamente essa área (Wallerstein, 2005). No decorrer do último século, as ciências empíricas e a Psicanálise não desenvolveram proximidade, mantendo-se como campos à parte do conhecimento científico hegemônico. Existe uma questão, debatida desde a época de Freud, acerca da cientificidade da Psicanálise, e, se ciência, que tipo de ciência, e o lugar da pesquisa organizada em relação a ela. Para ele, a priori, a psicanálise era uma ciência biológica (ciência da mente dentro de um corpo biológico), a qual deveria se ancorar firmemente na sua matriz fisiológica e química. Freud nunca relacionou a natureza da psicanálise como ciência à necessidade de pesquisas utilizando o método científico hegemônico, através das quais essa ciência cresceria (Wallerstein, 2009). Recentemente, todavia, o debate acerca da cientificidade da psicanálise perdeu força na medida em que se passou a questionar a concepção de um modelo único de ciência e de metodologia científica. A tendência atual é reconhecer que cada disciplina utilize métodos de pesquisa adequados e coerentes à sua área e seu objeto de estudo (Santos & Zaslavsky, 2007). Sendo assim, as temáticas pesquisa, psicoterapia e psicanálise necessitam ser exploradas na busca de uma aproximação. Partindo deste pressuposto, o presente artigo apresenta uma revisão assistemática das principais ideias de autores clássicos e contemporâneos que exploram o assunto, buscando apresentar suas tendências atuais. Pesquisa, psicoterapia e psicanálise: intersecções Atualmente, existe forte tendência que privilegia o que pode ser comprovado empiricamente. Ainda que se reconheça a importante relação entre prática clínica e pesquisa, existe grande distância entre essas duas áreas, havendo necessidade de colaboração entre esses campos, por sua complementaridade na formação do conhecimento em psicoterapia. Nos Estados Unidos e em alguns países da Europa, muitos dos recursos disponíveis para a saúde mental somente são destinados a modalidades de tratamento comprovadamente efetivas no tratamento psicológico dos pacientes (Fonagy, 2003). Com a crescente demanda de comprovação da psicoterapia como tratamento efetivo para desordens mentais, percebe-se, nas últimas décadas, um crescimento da produção teórica mundial geral a respeito dos resultados das psicoterapias, demonstrando uma aproximação ascendente entre a pesquisa e a clínica. A maior parte das publicações são artigos empíricos produzidos nos Estados Unidos e Europa, caracterizados por rigor metodológico. A maior concentração dos artigos está centrada na abordagem teórica 214 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 da Terapia Cognitivo-Comportamental (Campezatto, Vieira & Nunes, 2013). Deakin e Nunes (2008) atribuem essa questão às peculiaridades das abordagens teóricas de cada tipo de tratamento psicoterapêutico e ao fato de as pesquisas se adequarem às demandas dos planos de saúde de forma a receber o reembolso dos custos dos tratamentos, e não da necessidade de aprimoramento técnico-clínico. Os estudos sustentam que há tratamentos eficazes para uma série de psicopatologias em um espaço de tempo curto e, portanto, com custo mais acessível do que os extensos tratamentos baseados na teoria psicanalítica. A comunidade psicanalítica se depara com pressão significativa para aumentar as pesquisas empíricas em todos os aspectos da teoria psicanalítica. São consideradas tanto a necessidade de avançar nos conhecimentos científicos, como a responsabilidade social por demonstrar a efetividade dos tratamentos psicoterapêuticos e psicanalíticos. Também se faz necessário incrementar trocas profissionais com outras ciências e com o universo acadêmico e clínico (Kernberg, 2006). Turato, Magdaleno Junior e Campos (2010) consideram a necessidade de comprovar quantitativamente os resultados da psicanálise uma tarefa impossível, pois a psicanálise não é própria do campo das quantidades e sim das qualidades (subjetividade). Por isso, os autores salientam a necessidade de se construir modelos próprios de investigação desta disciplina, uma vez que se sabe que a psicanálise funciona, mas o desafio seria buscar evidências disso. Pesquisa em psicanálise e psicoterapia Apesar da necessidade apontada no tocante à realização de pesquisas empíricas sobre psicoterapia psicanalítica e psicanálise, muitos autores discutem as possibilidades de realização deste tipo de investigação. São duas as posições opostas centrais na literatura internacional sobre o tema, representadas por Wallerstein (2005), defensor da pesquisa empírica, e por André Green, contrário à mesma (Green, 2005). Green (2005) salienta que a psicanálise deve se manter como disciplina única e sui generis, prática que tem por base o pensamento clínico que emerge no consultório, do qual deriva suas hipóteses teóricas e suas conceitualizações para enriquecer sua base de conhecimento. Para este autor, a pesquisa somente é válida quando realizada no interior da sessão psicanalítica, vendo como incompatíveis a psicanálise e as exigências do método científico. A identificação de muitos psicanalistas com a posição de Green é refletida pelo escasso número de pesquisas empíricas de tratamentos psicanalíticos, principalmente se comparadas ao número de publicações existentes em outros referenciais teóricos (Campezatto, Vieira & Nunes, 2013). Barros (2006) salienta que alguns autores consideram que o próprio espírito da psicanálise, sua natureza em si, estaria sendo violentado pelas demandas feitas a ela pela pesquisa empírica. Nesse caso, o grande desafio seria desenvolver métodos desenhados especificamente para não violentar nem a natureza nem o “espírito” daquele objeto que está sendo estudado. Já Wallerstein (1998; 2005; 2009) defende tanto a utilização de métodos qualitativos como quantitativos na pesquisa em psicanálise, dependendo de qual seria o mais apropriado para responder a cada pergunta. Considera a psicanálise como uma ciência compromissada tanto com a elaboração de leis gerais a respeito da mente como com as diferenças e especificidades de cada indivíduo sob estudo. Considera possível e desejável Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 215 realizar pesquisa empírica em psicanálise, que deve responder a questões sobre resultado e processo psicoterapêutico. Essa posição, segundo Eizirik (2006), vai ao encontro do crescente número de estudos desse tipo publicados na literatura internacional, sendo que, atualmente, é privilegiado o estudo do processo psicoterapêutico. A discussão gerada pela impossibilidade de união entre prática clínica psicanalítica e pesquisa é evidenciada por Herrmann (2004). O autor anuncia a existência de três formas de pesquisa em psicanálise, a investigação clínica, o comentário teórico e a pesquisa empírica. Os defensores da investigação clínica deliberam sobre a autenticidade do fenômeno vivo e a naturalidade de sua pesquisa, sendo esse o próprio ofício do psicanalista. O comentário teórico é defendido por sua sutileza e retomada da obra freudiana, uma vez que diz respeito a textos sobre a aplicação do método psicanalítico na clínica. Os que defendem a pesquisa empírica argumentam a falta de rigor metodológico na clínica, a subjetividade e a singularidade do processo psicoterapêutico, evidenciando a necessidade de metodologias de pesquisa aceitáveis no mundo científico para que, então, as demais áreas científicas, reconheçam a psicanálise como ciência. Contudo, Herrmann (2004) salienta que a solução não consiste em escolher uma das três formas. Considera ser possível habitar a clínica e, nesse ambiente naturalístico, procurar o rigor metodológico possível – que em geral supera muito o da pesquisa quantitativa enxertada na clínica, mas sem perder de vista a crítica e a criação de teorias. Perron (2006) salienta a necessidade de libertação do fascínio exercido pelos modelos baseados na ciência experimental e, mais precisamente, nas ciências exatas. Para tanto, é necessário o desenvolvimento de modelos epistemológicos e técnicos que sirvam ao nosso campo, que se baseia no funcionamento mental humano. Neste sentido, Irribary (2003) destacou que o trabalho de análise prioriza o estilo e a marca singular daquele que se coloca como analista. Por isso, a pesquisa psicanalítica é sempre uma apropriação do autor, e o pesquisador psicanalítico é o primeiro sujeito de sua pesquisa. Por trabalhar com a impossibilidade de previsão do inconsciente, a pesquisa em psicanálise não poderia jamais exigir uma sistematização completa e exclusiva. Perron (2006) diferencia a pesquisa em psicanálise da pesquisa sobre psicanálise. A pesquisa em psicanálise busca conhecer melhor o que acontece durante o tratamento, ou seja, entender melhor o processo psicanalítico em si. Poderia ser realizada unicamente por psicanalistas praticantes e bem treinados. Já a pesquisa sobre psicanálise seria uma abordagem a respeito da psicanálise a partir de fora, ou das suas bordas – trabalho sobre indicação de tratamento, técnicas terapêuticas, funcionamento de instituições – e também análises críticas dos seus conceitos ou hipóteses, estudos da história da psicanálise. Poderia ser realizada por alguém que não seja psicanalista, desde que esteja em associação próxima com a psicanálise (Perron, 2006). Ainda que persista, em parte, a discussão sobre a possibilidade de pesquisa empírica na psicanálise e na psicoterapia psicanalítica, muitos estudos vêm ocorrendo, demonstrando algumas das possibilidades reais de avanço na pesquisa em psicoterapia. A literatura internacional revela várias linhas de investigação do tema, o que denota contribuições significativas para a área. Consideram-se quatro gerações da pesquisa empírica na Psicanálise de acordo com o alcance e abrangência a que se atinge (Bucci, 2007). A primeira se caracterizou 216 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 por pesquisadores individuais envolvidos no desenvolvimento de medidas objetivas de determinados aspectos do processo de tratamento, além de busca de estabelecimento de sua validade e confiabilidade; na segunda fase, houve a aplicação das medidas desenvolvidas na primeira geração em material clínico oriundo de estudos cooperativos, bem como a expansão do desenvolvimento de instrumentos; a terceira geração de pesquisa começou a alargar o escopo de observação, buscando a conexão entre clínica e pesquisa. Wallerstein (2002) assinala que os avanços metodológicos e os recursos de áudio, vídeo e informática permitem que atualmente estejamos na quarta geração de pesquisa, alcançando os estudos de processo psicoterapêutico. Destaca a existência de grupos engajados no “estudo microscópico da interação momento-a-momento do processo de interação psicanalítica, em cada sessão ou em pequenos segmentos de sessão” (p.46). Os estudos de processo examinam os padrões de comunicação entre paciente e terapeuta de forma intensiva, sistemática e sequencial (Charman, 2003). O desenvolvimento de tecnologias, como gravação em áudio e filmagem das sessões, favoreceu a elaboração de pesquisas de processo, pois viabilizou registros objetivos, evitando a crítica em relação aos relatos de casos elaborados a partir da memória dos próprios psicoterapeutas, os quais apresentam limitações (Bucci, 2007; Wallerstein, 2005). A temática da gravação das sessões de psicoterapia está longe de encontrar consenso na literatura. Autores referem a possibilidade de ampliação dos conhecimentos e entendimento mais aprofundado do que se passa nas sessões com o uso da gravação (Domingues & Serralta, 2005; Kächele, Thomä, Ruberg & Grünzig, 1988; Peuker, Habigzang, Koller & Araujo, 2009; Yoshida, 2008); outros consideram a exposição dos pacientes e a interferência negativa da gravação no processo psicoterapêutico e no desenvolvimento da aliança terapêutica, segundo os estudos de Kachele et al., (1988) e Thomä e Kachele (1990). Porém, o expresso verbalmente, registrado com o auxílio da tecnologia não apreende, por si só, justamente o que se aproxima do conteúdo de interesse nas investigações psicanalíticas. Por isso, ainda que a utilização de tais tecnologias seja muito questionada no meio psicanalítico, a utilização dessas gravações e transcrições, juntamente com os tradicionais registros de memória por parte do psicoterapeuta, parece ser a melhor forma de aproximar o pesquisador à essência do processo terapêutico. Cada tipo de registro, incluindo os relatos a partir da memória do psicoterapeuta, traz riqueza e privilegia alguns aspectos, de modo que sua escolha deve se dar de acordo com os objetivos da sua utilização (Silva, Steibel, Sanchez, Campezatto, Barcellos, Fernandes & Klarmann et al., 2014). A experiência de escuta de tons, silêncios e suspiros, em uma gravação de áudio, complementa as informações contidas em uma transcrição, que por sua vez contribui para o relato de memória, vivaz e com sentimentos contratransferenciais e contextualizações (Silva, Hallberg, Steibel, Campezatto & Klarmann, 2011). Além do registro preciso das sessões através de tecnologias, a introdução de instrumentos com o objetivo de medir variáveis do processo analítico, em sessões gravadas e transcritas, trouxe uma enorme contribuição na área da pesquisa psicanalítica (Almeida, 2011). Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 217 De acordo com Wallerstein (2002), há duas questões que a pesquisa em psicanálise busca responder, direcionadas aos resultados e processo do tratamento. Os resultados estão vinculados a quais mudanças ocorrem durante um tratamento, em virtude deste, e o processo de como essas ocorrem. Pesquisas de processo e resultado de psicoterapia Existem duas diferentes modalidades de aproximação ao estudo empírico das psicoterapias: as que envolvem avaliação de resultado, que são as de eficácia e de efetividade, e as que avaliam o processo psicoterapêutico, que enfocam especialmente como ocorrem as mudanças no contexto da psicoterapia (Peuker, et al., 2009). A eficácia se propõe a medir o quanto uma determinada intervenção produz um resultado benéfico em condições ideais de observação; trata-se do resultado experimental em laboratório, ou seja, mesurando-se a intervenção em uma amostra homogênea, através do controle rígido de variáveis. A efetividade se propõe a medir o quanto uma determinada intervenção produz um resultado benéfico, quando empregado no mundo real (condições habituais de uso), em uma população definida (Deakin & Nunes, 2008). Hilliard (1993) questiona tanto os estudos de eficácia como os de efetividade, ao dizer que pode estar havendo erro metodológico ao avançar em pesquisas em psicoterapia que comparam grupos antes que se tenha uma real clareza de como ocorrem os processos psicoterapêuticos individualmente. A investigação deveria estar direcionada a saber como um terapeuta, em particular, afetou o comportamento do paciente, através de análises caso-a-caso, na intenção de constituir um escopo teórico e empírico consistente para então fazer comparação entre sujeitos. Nesse sentido, alguns pesquisadores passaram a defender que somente o estudo do processo psicoterapêutico pode oferecer respostas mais específicas sobre o impacto da psicoterapia nos tratamentos emocionais, buscando assim esclarecer o que as pesquisas de resultado, que envolveram estudos de eficácia e efetividade, não resolveram (Kächele, 2000). O estudo de processo pode se dar através de metodologias quantitativas ou qualitativas, mas a psicanálise dialoga mais facilmente com esta segunda perspectiva. No estudo qualitativo, o observador é o instrumento de captação do fenômeno (Cassorla, 2003). Esse instrumento tem que estar “calibrado” da melhor forma possível (como ocorre com os das ciências experimentais). No entanto, calibrar-se a observação humana é mais difícil, sendo a teorização do método e o treinamento indispensáveis. Não podemos cair na ingenuidade de que existem métodos “puros” ou objetivos, sem determinantes humanos. Saber o máximo sobre esses determinantes é o que torna o conhecimento em científico e não pseudocientífico. O pesquisador precisa se envolver com o objeto de estudo, se misturar, “ser ele”, já que sua subjetividade tem importância especial, ao contrário das “ciências duras”. Essa subjetividade, porém, necessita ser avaliada objetivamente, de modo que o pesquisador se divide; uma parte se mescla com o objeto de estudo e outra parte observa essa dinâmica (Cassorla, 2003). O pesquisador, ao trabalhar nesse paradigma qualitativo, pode se aprofundar nas questões subjacentes, ao observar, escutar, relatar e interpretar o caso clínico. Nesse sentido, pode ser importante uma mudança epistemológica no método, que valorize o papel da subjetividade e a existência de múltiplas verdades, especialmente na pesquisa 218 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 em psicoterapia (Berríos & Lucca, 2006). De qualquer forma, as análises qualitativas têm sido consideradas a melhor maneira de descrever processos de mudança psicológica e a complexidade de uma psicoterapia (Diniz-Neto & Féres-Carneiro, 2005). Assim, encontramos um movimento recente que busca assegurar conhecimentos mais precisos sobre os mecanismos de mudança em psicoterapia através de estudos de caso, com uma metodologia mais rigorosa (Jung, Nunes & Eizirik, 2007), de forma a manter o ambiente natural e subjetivo da psicoterapia, porém com registros mais claros e precisos do tratamento, uso de medidas e procedimentos válidos e confiáveis. Os estudos de processo têm auxiliado a compreender o chamado “Veredicto Pássaro Dodô”1 (Luborsky, Singer & Luborsky, 1975), que afirma a equivalência das diferentes abordagens de psicoterapia em termos de seus resultados, sendo sustentado por diversas meta-análises (Luborsky, Rosenthal, Diguer, Andrusyna, Berman, Levitt, Seligman & Krause, 2002). O veredicto pássaro Dodô tem sido questionado por pesquisadores que o consideram um mito que reflete uma série de limitações das pesquisas: diferentes tipos de variáveis, de delineamentos e de procedimentos utilizados (Serralta, Nunes & Eizirik, 2007). Faz-se necessário compreender os fatores inespecíficos ou comuns (presentes em qualquer abordagem de psicoterapia) e os específicos (que caracterizam uma abordagem particular). Para Galatzer-Levy, Bachrach, Skolnikoff & Waldron (2000), a presença de processo analítico é apenas uma entre outras formas, e bastante discutível, de estabelecer se um determinado tratamento é ou não é uma psicanálise; em anos recentes, alguns analistas passaram a considerar a presença de processo analítico como definindo a psicanálise e acrescenta que tal definição é um desafio, pois é difícil demonstrar empiricamente a presença do processo nos tratamentos. Embora o conceito de processo não seja claro e nem consensual na literatura psicanalítica, a referência de Freud (1913/1996) ao tema em “Sobre o início do tratamento” é uma das mais importantes: [o analista] põe em movimento um processo, o processo de solução das repressões existentes. Pode supervisionar esse processo, auxiliá-lo, afastar obstáculos em seu caminho, e pode indubitavelmente invalidar grande parte dele. Mas, em geral, uma vez começado, [o processo] segue sua própria rota e não permite que, quer a direção que toma, quer a ordem em que colhe seus pontos, lhe sejam prescritas (p.172). Estudando especificamente o processo psicoterapêutico, Krause, Parra, Aristegui, Dagmino, Tomicic, Valdés, Vilches, Ben-Dov, Reyes, Altamir e Ramirez (2006) apresentaram em seu artigo de revisão três linhas de investigação com procedimentos metodológicos alternativos. Os autores destacaram que a pessoa do terapeuta tem papel fundamental, independente da linha de pesquisa de processo que esteja sendo realizada. A Referência ao livro de Lewis Caroll “Alice no país das maravilhas”, no qual o pássaro Dodô, após uma corrida na qual todos chegam ao final do percurso, proclama que ‘todos venceram e todos devem ser premiados’. Original publicado como Alice’s Adventures in Wonderland em 1865 por Charles Lutwidge Dodgson sob o pseudônimo de Lewis Caroll. Itaipava (RJ): Editorial Arara Azul, 2002. 1 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 219 primeira linha, intitulada “o estudo do processo terapêutico”, centra-se tanto na interação terapêutica como no processo de mudança experimentado durante a relação e estuda os episódios relevantes de mudança psicoterápica. Essa linha de investigação é adequada para abarcar assuntos de maior complexidade, abandonando a premissa da homogeneidade do processo psicoterapêutico. Para tanto, é importante a análise das relações sequenciais dos dados e a identificação de eventos ou episódios relevantes de mudança. Os autores referiram que, metodologicamente, faz-se necessária maior flexibilidade para analisar os dados dessa linha, o que se traduz em interesse crescente pelos métodos de investigação qualitativos, uma vez que a percepção humana é o melhor “instrumento de coleta” de padrões e episódios do processo psicoterapêutico, além de combinar métodos qualitativos com quantitativos. Já a segunda linha de investigação, denominada “o estudo dos fatores de mudança inespecíficos” – ou fatores comuns a diferentes tipos de psicoterapias – busca descobrir que fatores da psicoterapia transversais a diferentes tipos de psicoterapias seriam responsáveis pelos processos de mudança. Em termos gerais, os fatores inespecíficos ou comuns incluem condições gerais da terapia, tais como: aliança terapêutica, a estrutura da situação terapêutica, a função do terapeuta, a forma de interação entre os envolvidos nas sessões, a forma como se organiza e se transmite os conteúdos terapêuticos e a capacidade do paciente em se ajudar (Krause et al., 2006). Esses se diferenciam dos elementos específicos das psicoterapias, ou seja, aqueles considerados técnicos e que distinguem diferentes tipos de psicoterapia. Estudos têm demonstrado que os elementos inespecíficos são preditores de resultados psicoterapêuticos em diferentes tipos de psicoterapias, contudo não há produção científica satisfatória para elucidar de que forma estes fatores colaboram na mudança em psicoterapia (Serralta, Nunes & Eizirik, 2007). A terceira linha é denominada “relação de tipo de tratamento com tipo de problema”, busca elaborar listas de tratamento, com apoio empírico, para temas específicos, como depressão, fobias, bulimia, entre outros (Krause et al., 2006). Em relação especificamente à pesquisa de processo psicoterapêutico no Brasil, Serralta, Nunes e Eizirik (2007) afirmaram que este é um campo que se encontra em desenvolvimento inicial, pois ainda não há estudos sistemáticos do processo psicoterapêutico e poucas são as medidas disponíveis para os pesquisadores interessados nesse tema. Contudo, os autores observaram recente interesse por essa temática, expresso pelas publicações de trabalhos sobre fatores do paciente associados à capacidade de formar aliança terapêutica e sobre a associação entre aliança terapêutica e transferência. Observaram ainda um maior interesse, entre pesquisadores, na elaboração de versões brasileiras de instrumentos que avaliam fatores que integram ou influenciam o processo da psicoterapia, como transferência, contratransferência, aliança terapêutica e mecanismos de defesa. Ainda no que diz respeito ao estudo da mudança psicológica, Yoshida (2008) salienta a importância da escolha do critério de mudança. Em suas pesquisas, menciona que a busca da avaliação de mudança com significância clínica, e não apenas estatística se faz importante, e que este pode ser buscado tanto na perspectiva do paciente (avaliação do bem-estar por meio de autorrelatos), do profissional da saúde (baseado 220 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 no referencial teórico) e da sociedade (efeitos do tratamento, passar a enquadrar-se em uma população funcional). Em resumo, a pesquisa apresenta uma série de questões ainda não resolvidas quanto ao conceito de processo psicoterapêutico. Em alguns estudos de resultado, há investigações que se referem a processo, mas não o conceituam; em outros, que o conceituam, repetese o que se vê na clínica: uma variedade de definições e muitas vezes conceituações a posteriori, confundindo-se processo (ou seja, desenvolvimento do tratamento) com resultado. O conceito de “processo” permanece em aberto, ambíguo e variando conforme o autor ou a pesquisa. E essa inexatidão conceitual que impregna a psicanálise é um complicador importante para a pesquisa (Santos & Zaslavsky, 2007). Sobre as dificuldades e vantagens de pesquisar... Perante o exposto até o momento, enfatiza-se a necessidade de que o pesquisador em/sobre psicoterapia e psicanálise tenha real conhecimento (vivencial) da clínica e de seu método de trabalho, na intenção de tornar-se um instrumento “calibrado” (Cassorla, 2003) para apreender os processos mentais conscientes e inconscientes. Esse fator, enriquecedor sob o aspecto empírico, torna-se difícil na medida em que clínicos não dispõem do extenso tempo necessário para a execução de ambas as tarefas – clinicar e pesquisar. A verba destinada à pesquisa é escassa na maioria das instituições, provavelmente pela pouca valorização da atividade por muitos clínicos, conforme exposto no decorrer deste artigo. E os clínicos, na maioria das vezes profissionais autônomos, pouco podem dispor de horas de trabalho. Além de todas as dificuldades para que pesquisadores e clínicos busquem as devidas conexões para considerarem suas práticas complementares no fortalecimento das psicoterapias e da psicanálise, também se apresentam dificuldades práticas, que corroboram para que a pesquisa fique relegada a uma minoria de clínicos. Deakin e Nunes (2008), ao realizar pesquisa sobre efetividade da psicoterapia psicanalítica de crianças, propuseram como uma saída às dificuldades de pesquisar a intersecção clínica e investigação, tendo como ponto de partida a universidade, que poderá auxiliar na adaptação de métodos. Tal alternativa parece solução bastante eficaz na implementação de uma mentalidade ampliada da clínica, que pode contribuir grandemente para estudos de resultado como o proposto pelas autoras. As investigações no contexto das clínicas-escola universitárias vêm se desenvolvendo de forma crescente com dissertações de mestrado como as de Konrat (2012), “A relação entre sexo e idade e queixas de crianças em psicoterapia”; Merg (2009), “Características da clientela infantil em Clínicas-Escola”; Boaz (2009), “Caracterização das queixas apresentadas por meninos e meninas encaminhados a clínicasescola”; e Campezatto (2006), “As clínicas-escola de cursos de Psicologia da Região Metropolitana de Porto Alegre”, e contribuíram para a construção de um panorama geral das práticas exercidas nas clínicas-escola, bem como na descrição da clientela que utiliza seus serviços, os tipos de terapia e o desfecho geral dos atendimentos. No entanto, para as pesquisas de processo, que exigem do clínico/pesquisador bagagem diferenciada, consideram-se as instituições de formação de psicoterapeutas e psicanalistas locais mais propícios para a aquisição de material clínico para realizar pesquisas empíricas, em comparação com os consultórios dos profissionais. A rotina Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 221 de ambulatório inclui aspectos favorecedores da aceitação do paciente em participar de tais estudos, que envolvem a participação de secretária (agendamentos, pagamentos, administração das salas), triador, prontuários institucionais, sala de espera compartilhada com outros pacientes e a assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, no qual o paciente autoriza o uso de seus dados para estudos, supervisão e pesquisa. Salienta-se que estes locais, com diversas nomenclaturas como cursos de formação, de especialização, entre outros, são considerados clínicas-escola de pós-graduação, onde os profissionais podem e devem tomar contato com as diversas facetas de utilização de conhecimento clínico – dentre elas, a pesquisa. Sabe-se da existência de iniciativas dessa natureza, em que psicoterapeutas/ pesquisadores de centros de formação buscam inserir a investigação em suas instituições através da execução de dissertações de mestrado e teses de doutorado de seus membros, tendo como suporte metodológico a Universidade. Destacam-se os trabalhos de Gastaud (2013), “Indicação, concordância em iniciar tratamento e melhora inicial na psicoterapia psicanalítica”, Deakin (2008), “Avaliação dos Resultados de Psicoterapia Psicanalítica com Crianças”, Dian (2007) “Psicoterapia Psicanalítica com Crianças: Avaliação e Resultados”. Há também a experiência de promoção da interface entre psicanálise, psiquiatria e universidade por meio do compartilhamento de conhecimento, como o fazem Silva, Yazigi e Fiore (2008), ao ilustrarem um processo psicanalítico realizado na universidade. Mesmo assim, considera-se que a dificuldade de executar pesquisas sobre psicoterapia envolve diversos fatores, entre eles a dificuldade de acesso a dados de prontuários que, quando existem, estão em sua maioria mal preenchidos, com diversos campos em branco e com expressões e termos técnicos não acordados entre profissionais que os preenchem (Campezatto & Nunes, 2007). Percebe-se uma confusão acerca do resguardo do sigilo e confidencialidade do material, tanto quando se trabalha com prontuários e materiais advindos de arquivos como com material advindo diretamente de sessões psicoterapêuticas gravadas em áudio e/ou vídeo. Tais aspectos resultam em uma comum recusa por parte de psicoterapeutas em participar de estudos empíricos (Serralta, Nunes & Eizirik, 2007). Ao citarem as razões dadas pelos terapeutas a se recusarem a participar de pesquisas, Vachon, Susman, Wynne, Birringer, Olshefsky e Cox (1995) mencionam a falta de tempo, o desconforto em gravar as sessões e considerar seus pacientes contraindicados a participarem de pesquisas. O temor de exposição dos próprios psicoterapeutas, o receio acerca da exposição e possível quebra de sigilo dos pacientes, bem como possível interferência negativa da gravação em áudio ou outros registros sistemáticos no processo psicoterapêutico e no desenvolvimento da aliança terapêutica também são aspectos significativos que interferem na execução destas investigações (Silva et al., no 2014). Santos & Zaslavsky (2007) acrescentam que os resultados e conclusões de uma pesquisa tendem a ser modestos, em contraste com a riqueza livre e descritiva dos relatos clínicos que os psicoterapeutas produzem e têm acesso. Fonagy (2003) corrobora a ideia, referindo que o fato empírico soa enfadonho diante das evocativas narrativas clínicas. Além disso, as teorias psicanalíticas surgem da clínica, como se verifica desde a obra de Freud. Tais teorias são profundas e ousadas, contribuindo para o arcabouço teórico disponível 222 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 aos psicoterapeutas, que recorrem a este tipo de publicação. Em contraste, o pesquisador empírico muitas vezes necessita ficar atrelado aos fatos evidentes e objetivos. Faz-se necessário, portanto, esforço de integração dos resultados das investigações. Cada pesquisa tende a trazer pequena contribuição ao conhecimento da psicoterapia e da psicanálise, mas um grande conjunto de pequenas contribuições pode apresentar material de significativo interesse a clínicos e investigadores. Por todo o exposto, portanto, enfatiza-se a ideia de que a pesquisa empírica sobre psicoterapia e psicanálise é uma das vertentes de aplicação prática dos brilhantes construtos teóricos desenvolvidos em sua metapsicologia. Dessa forma, poderá principalmente contribuir para o acesso de uma maior quantidade de pacientes a esse tipo de intervenção, na medida em que possa se expandir os conhecimentos de o que funciona, para o que funciona e como funciona esse tipo de intervenção. Será possível sua divulgação, constante aprimoramento teóricotécnico e facilitará o treinamento e a formação de novos profissionais a trabalharem com essa práxis. Referências Almeida, E. A. (2011). 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Endereço para contato: [email protected] 226 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Aletheia 43-44, p.227-238, jan./ago. 2014 A família no acompanhamento de sujeitos psicóticos: os encargos subjetivos oriundos do sofrimento psíquico Nayara Gomes Braga Nathália de Freitas Costa Fernandes Tiago Humberto Rodrigues Rocha Resumo: O presente artigo teve como objetivo conhecer a história do tratamento em saúde mental a partir do relato de um usuário dos serviços e de um familiar responsável pelo cuidado, investigando as repercussões subjetivas de ser o familiar responsável pelos cuidados de um psicótico. Trata-se de um estudo qualitativo e exploratório. Para coleta de dados, optou-se pela entrevista semiestruturada, realizada com o usuário de um Centro de Atenção Psicossocial e com sua cuidadora. Os dados coletados foram organizados e analisados por meio da técnica de análise de conteúdo. Os resultados mostraram que a posição da mãe é de cuidadora exclusiva, o que repercute em encargos subjetivos que atingem níveis emocionais, físicos e inter-relacionais, dadas as dificuldades de se conviver com o sofrimento psíquico. Sugere-se que os serviços de saúde mental desenvolvam programas de orientação aos familiares cuidadores, bem como apoio no enfrentamento das situações de crise. Palavras-chave: cuidadores; encargo subjetivo; psicose. The family follow up of a psychotic person: Subjective burdens from distress Abstract: This paper aimed to know the history of mental health treatment from report of an user of the services and his family care, and also investigating the subjective effects on the psychotic’s family caregiver. The study is based on qualitative and exploratory research. The information was verified though a semi-structured interview held with an user of a Psychosocial Care Center and his caregiver. The information collected were organized and analyzed by the technique of content analysis. The results showed that position of mother is exclusive caregiver, being so the impact on caregiver is subjective burdens affecting emotional, physical and inter-relational levels, due to the reason of difficulties on living with mental suffers. The suggestion would be a development of orientation programs through mental health services governmental to family caregivers as well to support crisis situations. Keywords: caregivers; subjective burden; psychosis. Introdução A reforma psiquiátrica tem como principal vertente a desinstitucionalização e desconstrução dos manicômios acompanhada por progressiva substituição por outras práticas terapêuticas alternativas à institucionalização (Gonçalves & Sena, 2006). Em consonância a esses apontamentos, Rocha (2012) salienta que esse movimento antimanicomial propõe uma mudança nas formas de se pensar e representar a loucura para além da pragmática do tratamento. Ainda que o modelo antigo de assistência psiquiátrica prevaleça no país, um novo modelo psiquiátrico propõe a desconstrução do antigo. A Reforma Psiquiátrica começou no Brasil no final dos anos 70, após a visita do psiquiatra italiano Franco Basaglia ao Hospital Colônia de Barcelona, em Minas Gerais. Rocha (2012) retomando Basaglia, afirma que o mesmo comparou as condições oferecidas pelo Hospital a um campo de concentração Hitlerista, devido às péssimas condições sanitárias e desumanas do local. A Reforma foi e ainda é um movimento que mostra as inconveniências do hospital psiquiátrico, fazendo parte atualmente, das políticas públicas de saúde. De acordo com Amarante (1995), no Brasil o movimento antimanicomial propunha as comunidades terapêuticas como alternativa à institucionalização psiquiátrica, objetivando implantar práticas democráticas e coletivas para transformar a dinâmica da instituição asilar. Surgem então os Centros de Atenção Psicossociais (CAPS), promulgada pela lei 10.216, Lei da Reforma Psiquiátrica ou Lei Paulo Delgado, assumindo, assim, expressiva importância no cenário das novas práticas em saúde mental, considerado como um dispositivo estratégico para reversão do modelo asilar. Em consonância, Rocha (2012) acrescenta que esse modelo propõe um sistema comunitário mais humanizado para o tratamento das psicoses. Os CAPS, portanto, são serviços comunitários ambulatoriais e regionalizados onde os usuários têm consultas médicas, terapêuticas, atividades lúdicas e recreativas voltadas para o tratamento e reabilitação psicossocial. Além disso, é uma instituição própria dentro da gestão pública, em que seus principais norteadores são acesso, integralidade e resolutividade no serviço prestado onde os sujeitos são acolhidos por uma equipe multiprofissional (Onocko-Campos & Furtado, 2001). Ainda em tempo, cabe lembrar que o processo de desisntitucionalização não envolve somente a transposição dos muros da instituição manicomial. Assim, o processo de desinstitucionalização abarca além disso uma “reconstrução subjetiva do paciente, que vivencia a priorização de intervenções potencializadoras de sua saúde e que possibilitem sua reprodução social, tirando a exclusividade da cura” (Rocha, Soares & Freitas, 2012, p.235). Retirá-lo da condição coadjuvante de paciente e transformá-lo em sujeito, eis o mote que deve orientar a prática em saúde mental. Quanto à reforma do modelo manicomial e abertura dos primeiros CAPS, Amarante (1995) destaca que ainda em 1987, na cidade de São Paulo, foi criado o Centro de Atenção Psicossocial Professor Luiz da Rocha Cerqueira, exercendo forte influência nos serviços de todo o país. Ainda no estado de São Paulo, mais precisamente na cidade de Santos, após várias denúncias de maus-tratos, ocorreu a intervenção da Secretaria de Saúde na Casa de Saúde Anchieta, determinando o fechamento da mesma. O processo santista “foi, certamente, o mais importante da psiquiatria pública nacional e que representou um marco no período mais recente da reforma psiquiátrica brasileira” (Ibid, 1995, p.83). A onda de reformas atingiu o país por inteiro. No Rio Grande do Sul, em 1988, entrava em vigor O Projeto Nossa Casa, na cidade de São Lourenço do Sul- RS, no qual ainda não era credenciado como CAPS, uma vez que esse conceito foi legalmente atribuído a partir da portaria 224/92, desempenhando, entretanto, tarefas similares aos CAPS quanto a ênfase no tratamento terapêutico, a reinserção social e ocupacional dos sujeitos (Hirdes, 2009). A Lei Estadual n° 9.716, foi aprovada somente em 1992, colocando o estado como um destaque no processo de implantação da reforma, já que a Lei nacional n° 10.216, foi consolidada apenas em abril de 2001 (Ibid, 2009). Considerando o sofrimento psíquico como um processo multideterminado, ou seja, que requer uma atuação multiprofissional, os familiares e o meio social desempenham 228 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 igualmente papéis importantes para a reabilitação do sujeito (Rocha & Silva, 2013). A psicose influencia sobremaneira a vida dos familiares com quem eles convivem, sendo geralmente os pais os responsáveis pelos cuidados e os que mais sofrem com os encargos subjetivos relativos ao ato de cuidar. Por encargos subjetivos entende-se o impacto provocado pela presença do sujeito adoecido junto ao ambiente familiar. Com fins didáticos, na construção deste texto preservamos o termo sobrecarga sempre que se referir a pesquisas referenciadas, a fim de manter a fidedignidade ao original. Para nossa própria escrita, privilegiamos os termos encargos subjetivos e mal-estar, por acreditar que os mesmos estejam em maior consonância com a terminologia psicanalítica. Trabalhos como o de Pegoraro e Caldana (2006) e Colleti, Martins, Tanios e Rocha (no prelo) apontam que circunstâncias de sofrimento psíquico envolve mudanças na estrutura dos familiares envolvidos com o cuidado, abarcando níveis emocionais, econômicos e práticos. Os encargos subjetivos podem ser apontados, por exemplo, no modo como o cuidador lida com sua realidade a partir do diagnóstico ou surgimento da psicose. Nesse sentido, surgem adaptações na vida familiar que ocasionam mudanças no cotidiano, envolvendo por vezes desistência de planos e abnegação de vontades para se viver uma realidade construída a partir das necessidades do psicótico. Rocha e Silva (2013) apontam que alterações no comportamento do sujeito psicótico e principalmente os sintomas que emergem durante as crises podem desencadear constrangimento no cuidador que geralmente encontra-se impotente para lidar com tais momentos. A superproteção é outro encargo considerável, uma vez que os cuidadores tendem a superprotegerem os psicóticos, principalmente quando esse cuidado permeia a relação mãe-filho. Compreende-se, porém que esse cuidado excessivo veta a liberdade e autonomia do sujeito, o que impede o desenvolvimento do mesmo. A culpa também é outro significante que pode estar presente e que contribui para os sentimentos como solidão, ansiedade e vergonha, por parte de quem estão envolvidas nos cuidados do sujeito. Evidencia-se também a condição narcísica parental como um dos encargos subjetivos de forte expressividade nesse contexto. Os pais que desde a gestação criam fantasias e idealizações de um filho perfeito e saudável podem sentir-se feridos ao quebrar o ideal familiar ao enfrentar a realidade de lidar com um filho psicótico (Rocha & Silva, 2013). O familiar responsável pelos cuidados acaba por ficar a maior parte do tempo dentro de casa e com grandes dificuldades de realizar atividades sociais. Esse cuidador pode ser prejudicado ao estar inserido nesse contexto que muitas vezes também o leva a sofrer. A desinstitucionalização tem consequências diretas na vida do responsável pelo cuidado do sujeito, pois ao retirar o psicótico do hospital psiquiátrico inevitavelmente receberá os encargos subjetivos relativos ao ato de cuidar. A esse familiar, muitas vezes, resta apenas os serviços substitutivos, como por exemplo, os CAPS, como fonte de apoio (Zanetti & Galera, 2007). Sabemos que diferentes vivências são experimentadas por psicóticos, que frequentam instituições que os auxiliam em momentos de crise e na manutenção do tratamento. A vivência dos sujeitos nesses locais mostram diferentes formas de tratamento dado a eles. Diante dessa realidade o presente artigo objetivou conhecer a história do tratamento em saúde mental a partir do relato de um usuário dos serviços e de um familiar responsável Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 229 pelo cuidado, investigando as repercussões subjetivas de ser o familiar responsável pelos cuidados de um psicótico. O sujeito e seu familiar cuidador O presente artigo trata de um estudo exploratório, fundamentado na abordagem de pesquisa qualitativa. Constitui-se enquanto um relato de experiência das discentes a partir da disciplina Vivência Profissional V da matriz curricular do curso de Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Para fins de coleta das informações optou-se pela utilização de entrevistas semiestruturadas elaboradas a partir dos objetivos deste estudo. As entrevistas procuraram abordar questões relacionadas aos períodos de internações e ao histórico de tratamento em saúde mental direcionadas ao usuário, bem como questões quanto as implicações em ser cuidadora, reportadas a mãe do sujeito. As entrevistas realizadas tiveram duração aproximada de 50 minutos, sendo seis entrevistas com o usuário do serviço e duas com sua cuidadora. Os encontros com o usuário foram realizados no próprio CAPS, durante os intervalos entre suas atividades. Quanto a cuidadora, nos encontramos em sua residência de forma individual, com o consentimento tanto desta quanto do sujeito atendido. Os dados coletados foram organizados e analisados por meio da técnica de análise de conteúdo. Este estudo teve como participantes um sujeito psicótico que possui histórico de internações psiquiátricas e também usuário dos serviços oferecidos pelo CAPS. Participou também desse estudo a mãe desse sujeito, que, por sua vez, é o familiar responsável pelo cuidado do referido. O entrevistado, José (nome fictício) tinha 48 anos quando foi abordado para o estudo. Sua hipótese diagnóstica apontava para um quadro de esquizofrenia. Sua mãe, Divina (nome fictício), trata-se de uma senhora idosa que reside com o filho e é responsável pelos cuidados do mesmo. Nos relatos da mãe, ela conta que seu filho foi internado pela primeira vez aos 20 anos de idade e, desde então, tem um histórico assíduo de internações em Hospital Psiquiátrico, sendo que sua última internação datava de aproximadamente 4 meses. Até a data da entrevista José realizava acompanhamento apenas no CAPS. A convivência com a psicose Na revisão de literatura, observa-se que o cuidado ao sujeito psicótico geralmente fica por conta da mulher, em específico a mãe, que, além de cumprir a função de cuidar tem ainda outras funções ligadas às tarefas domésticas e o cuidado com outros membros da família (Barroso, Bandeira & Nascimento, 2007; Brischiliari & Waidman, 2012; Pegoraro & Caldana, 2006), o que, de certa forma, está em consonância como caso aqui apresentado. Brischiliari e Waidman (2012, p.151) apontam que “presa à função de cuidadora, ela não se permite sequer adoecer, pois se encontra na posição de responsável pelos cuidados à família”. Esta centralização de papéis sobre a mulher traz-lhe consequências, tanto em assumir funções geralmente desempenhadas por homens que exigem força física, quanto ao custo que este encargo emocional possa acarretar para sua saúde e qualidade de vida, abstraindo-lhe tempo para cuidado próprio e lazer. Com relação a essa afirmação, Divina nos diz que a maior parte de seu tempo é despendido nos cuidados com o filho e nos 230 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 afazeres domésticos. Parece haver no imaginário do cuidador, uma espécie de possibilidade de cambiamento entre o cuidado de si pelo cuidado do outro, uma espécie de negociação por meio do esquecimento de si em prol das demandas do outro. Para a família, o impacto dos sintomas e da vivência com o sujeito psicótico provoca grande sofrimento. Brischiliari e Waidman (2012) afirma que para aliviar esse sofrimento uma das formas mais utilizadas é o afastamento ou isolamento social, ou seja, os familiares deixam de frequentar sua casa e por outro lado, os que residem com o psicótico pouco saem ou não exercitam o convívio social, com receio de alguma atitude lhes cause constrangimento. Dessa forma, o afastamento ocorre como meio de se proteger dos desafios oriundos do mal-estar ocasionado pela psicose, em que o necessário seria a procura de ajuda de um profissional que esclarecesse sobre a mesma, auxiliando o familiar a manejá-la. Com relação a isso, Divina nos diz que seus filhos pouco frequentam sua casa, devido aos problemas enfrentados no que diz respeito a José, e em função dos cuidados que presta ao filho adoecido, relata que raramente faz visitas aos demais filhos que residem em sua cidade. Devido ao acúmulo de tarefas tanto domésticas quanto de cuidados com o sujeito psicótico, o familiar cuidador recebe, então, encargos que podem atingir níveis emocionais, físicos e financeiros. De acordo com Barroso et al., (2007, p.271) a sobrecarga subjetiva refere-se “às percepções, preocupações, sentimentos negativos e incômodos gerados por tornar-se cuidador de um paciente psiquiátrico”, mais especificamente refere-se à percepção ou avaliação pessoal do cuidador sobre a situação. Enquanto que, a sobrecarga objetiva refere-se às dificuldades concretas e observáveis geradas pelo papel de cuidador, como por exemplo, mudança das atividades cotidianas, limitações no estabelecimento de vínculos sociais, perdas financeiras, realização de múltiplas tarefas e constante supervisão de comportamentos problemáticos (Barroso et al., 2007; Brischiliari & Waidman, 2012; Estevam, Marcon, Antonio, Munari & Waidman, 2011). Pode-se constatar que, as diversas restrições a que o cuidador está sujeito, como seu lazer e atividades sociais prejudicadas, tem elevado potencial para gerar encargos subjetivos nesses familiares. No relato da cuidadora entrevistada, ela destaca que sua rotina, desde o início das crises do filho, se resume a “ser uma dona de casa” (SIC), pois, como ela mesma expõe, não recebe visita de familiares, mas, ocasionalmente, visita alguns de seus filhos. Portanto, seu dia a dia compreende-se a ficar em casa e cuidar do filho psicótico. Quanto a isso, Santos e Cardoso (2012) afirmam que restrições quanto à vida social e pessoal são passíveis de afetarem a qualidade de vida do familiar cuidador, contribuindo para a sobrecarga dos mesmos. Pode-se pensar então, que, essa mudança na rotina da cuidadora, a restrição do convívio social e de lazer, podem já demarcar um indicativo de mal-estar da cuidadora em evidência. De acordo com relatos de Divina o primeiro surto de seu filho ocorreu enquanto o mesmo servia ao Tiro de Guerra em Brasília (DF), ocasião coincidente com a crise política e econômica que assolava o país na década de 90, período este governado por Fernando Collor de Melo. Devido à crise na economia brasileira, a inflação beirava 2.000% ao ano, na circunstância, a medida adotada foi o confisco pelo Banco Central de quantias superiores a 50 mil cruzados novos depositados em poupança. Divina associa a ida do filho para o Tiro de Guerra e a crise econômica ao primeiro surto de José. Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 231 O cuidado nos períodos de surto Em relação ao próprio desejo, Divina nos relata submeter-se a vontade de José, como forma de evitar conflitos e tentar minorar o mal-estar oriundo da fase aguda de seus momentos de surto. De acordo com seus relatos, o filho mostra-se desnorteado e agressivo, comportando-se de maneira destoante de seu modo comum de ser quando não está em crise. Em tais períodos, Divina acaba encontrando na internação do filho em hospital psiquiátrico, uma alternativa para amenizar o sofrimento enfrentado. De acordo com Pegoraro e Caldana (2006) o medo ou o estado de alerta que alguns cuidadores experienciam durante um surto psicótico, seja pelos comportamentos apresentados ou mesmo por uma possível agressão à família, contribuem para os encargos emocionais. Essas mesmas autoras verificaram maior grau de encargos subjetivos em momentos de crise, quando comparados a momentos sem crise, pois na crise, o familiar cuidador se depara com a sensação de impotência quanto ao modo de atuar diante dos comportamentos apresentados, de forma que recorrem ao auxílio e cuidado dos serviços de saúde. Santos e Cardoso (2012) apontam que no cuidado da pessoa em sofrimento mental, o cuidador necessita desenvolver recursos internos bem como estratégias para lidar com as situações vividas e se adaptar às mesmas. O que pode ser percebido nas atitudes que Divina toma para evitar que José se altere. Apesar do mal-estar vivido por Divina ela não se permite abandonar o filho, pois como a mesma relata “ele não tem condições de ficar sozinho” (SIC). Além disso, ela não possui saídas para deixá-lo, visto que seus outros filhos se distanciaram e não a ajudam no cuidado de José. Essa mãe e cuidadora expressa sua dificuldade em lidar com José, mas afirma que deve ter paciência, acrescentando que “só mãe consegue”. Assim, ela assume um papel de cuidadora que lhe foi atribuído pelas situações em que vive, apesar de também considerar como uma incumbência própria (Estevam et al., 2011). Percebe-se assim, sua fala corrobora este estudo ao enfatizar que esse papel de cuidadora de um sujeito psicótico é algo tão natural quanto ser mãe. Em seu imaginário, Divina parece estar margeada pelas características da beleza da mulher da era Vitoriana, quando a presteza com os afazeres do lar e o cuidado com o outro diziam dos valores atribuídos ao feminino. Em seus relatos sobre as dificuldades de convivência com os períodos de crise, Divina deixa claro o desejo de que os outros, principalmente seus familiares, aceitem José, assim como ela o aceita. Brischiliari e Waidman (2012) corroboram em seus estudos ao dizerem que o desejo de ver a união da família com o sujeito psicótico, onde haja compreensão, aceitação e amizade entre eles demonstra a busca por superar os problemas relacionados à psicose. Porém, essa preocupação em obter a união da família pode indicar que o cuidador esteja considerando um substituto para assumir seu papel. Os cuidadores imaginam que em sua ausência os conflitos podem se intensificar, para tanto, tentam unir os membros da família, e assim, juntos, busquem soluções para seus problemas. Apesar de toda adversidade dos momentos de crise. Divina afirma que jamais se desesperou com a circunstância em que vive, enfatizando que deve seguir a vida. O estudo de Estevam et al., (2011) e Colleti et al., (no prelo) confirmam a posição da mãe, ao considerarem que apesar de os familiares expressarem que a vida segue seu curso, percebe-se que as circunstância vividas lhes causam muito sofrimento. Diante do exposto, denota-se no discurso de Divina seu mal estar expresso por uma emotividade contida e 232 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 uma fala engasgada ao referir-se ao filho, simultaneamente a sua tentativa de conseguir superar a situação. Barroso et al., (2009) chegam à mesma conclusão em seus estudos aos afirmarem que os familiares mesmo ao se sentirem sobrecarregados, demonstram satisfação em cuidar do ente, o que pode ser explicado pela companhia que esse familiar, mesmo adoecido, proporciona. De certa forma, parece ser o caso de Divina, já que ela é uma senhora que mora sozinha com o filho e quase não tem convívio social. Com relação a tal situação, somos também levados a refletir sobre uma possível modalidade de regulação de gozo que pode estar como pano de fundo de tal estado de mal-estar suportado. Devemos lembrar que o conceito de gozo, como bem nos lembra Lacan (1985/1973) pode levar o sujeito à experiência das mais elevadas condições de êxtase aos mais funestos estados de destrutividade. Por não se tratar de um estudo com substancial aprofundamento vertical, mas sim de natureza mais exploratória, não podemos conjecturar em que medida tal extração de gozo possa estar presente no estabelecimento do laço entre a mãe e o filho. Porém tal colocação não poderia deixar de ser mencionada e carece de uma investigação mais aprofundada em estudos futuros. Percebe-se na fala de Divina certa valorização do hospital psiquiátrico especialmente para os períodos agudos dos surtos, dizendo que “eles tratam bem também, mal de nós se não fosse lá” (SIC), remetendo-se ao serviço oferecido pelo hospital. Ela demonstra receio de que algum dia o hospital psiquiátrico possa ser fechado, se apoiando na oferta do hospital de tal forma que atribui a ele uma entidade salvadora, pois, quando José entra em crise, Divina solicita o serviço do hospital psiquiátrico que prontamente o busca e o interna. Como ela mesma diz “ele vai ruim e volta bom do sanatório” (SIC). De acordo com Estevam et al., (2011) e Colleti et al., (no prelo) a internação por vezes torna-se uma alternativa para a situação insuportável de ansiedade e temor diante de um surto, e, de certa forma, representa uma via de manutenção da estrutura familiar. Divina parece desconhecer as demais alternativas em saúde mental, como por exemplo, os serviços ambulatoriais ou o próprio CAPS, atribuindo ao hospital psiquiátrico um local privilegiado para os momentos de crise do filho. Divina, assim como grande parte da própria população que faz uso dos serviços de saúde mental parece não estar informada sobre todo o processo da reforma psiquiátrica iniciada ainda em fins da década de 80. O conhecimento da possibilidade e participação para criação de uma rede de apoio integral da qual seu filho possa se beneficiar evitando a internação no hospital psiquiátrico, auxiliaria no progresso e bem-estar mental de ambos. De acordo com Paiva e Yamamoto (2007) por falta de opção, os familiares acabam por ceder a opção de levar o sujeito em crise para o hospital psiquiátrico, colocando em risco os ganhos de ressocialização obtidos nos Centros Psicossociais. Dessa maneira, a reforma psiquiátrica precisa de avanços para que os usuários dos serviços substitutivos sejam beneficiados nos momentos críticos e sejam sanados do enclausuramento do hospital. Divina diz que as internações no hospital psiquiátrico não duram mais que 40 dias, mas que, como José apresentava crises muito frequentes, ela chegou a oferecer que seu filho morasse na instituição, prometendo até um abono caso eles o aceitassem, porém seu pedido foi negado. Santos e Cardoso (2012) afirmam que a busca pela internação psiquiátrica pode ser devido à falta de suporte para lidar com a situação de surto, objetivando assim, alívio do sofrimento tanto de si próprios quanto do familiar Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 233 adoecido. Muitas vezes, dadas as condições sociais de miserabilidade, vilipêndio e descartabilidade das classes mais baixas de uma sociedade, conviver com a loucura se torna insuportável. Ao ser introduzida a questão dos CAPS, como possível suporte também para os momentos de crise, Divina demonstra não conhecer os princípios que regem essa instituição. Apesar do desconhecimento, afirma ter notado melhoras em José desde que ele a tem frequentado, uma vez que suas crises não têm sido tão frequentes, atribuindo a isso o efeito das medicações que ele toma e do suporte psicológico que ele recebe. Divina diz apenas frequentar as reuniões que acontecem no CAPS, quando sua presença é solicitada. Embora não questione o tratamento concedido ao filho, ela diz sentir-se desconfortável ao ouvir do mesmo, reclamações sobre medicamentos e injeções. Os estudos de Estevam et al., (2011) indicam que o desconhecimento sobre o sofrimento psíquico e de sua sintomatologia, deixam uma lacuna na compreensão do quadro do familiar, carecendo, assim, de informações qualificadas. José relata que frequenta o CAPS duas vezes na semana há aproximadamente dez anos, declarando que se sente “estruturado físico e mentalmente”(SIC) ao conversar com a psicóloga e em atividades grupais. A desinstitucionalização tem a ver com a mudança na forma da concepção de sujeito pelo saber psiquiátrico. Anteriormente, este conferia à suposta “doença” o foco de sua intervenção, ao invés de trabalhar o sofrimento do sujeito. A instituição como forma de separação entre o sujeito e meio social não perderá suas forças se apenas desospitalizarmos, no sentido de retirarmos o sujeito dos hospitais psiquiátricos. Faz-se necessário a mudança do paradigma sobre a loucura. A desinstitucionalização segundo Rotelli (2001, p.94) é voltada então para “reconstruir as pessoas como atores sociais, para impedir-lhes o sufocamento sob o papel, o comportamento, a identidade estereotipada e introjetada que é a máscara que se sobrepõe à dos doentes”. Para tanto, a ênfase não mais recai sobre a “doença” e sim sobre o sujeito, no qual surge a importância de sua reinserção social e da consideração de sua subjetividade. Instituições, alienação e o sujeito psicótico Após a ocorrência do primeiro surto, iniciou-se o percurso de José pelos serviços de Saúde Mental. Com relação às internações em hospital psiquiátrico, Divina conta que nas primeiras vezes o filho voltava para casa machucado, desconhecendo quem ocasionava as agressões. Ele não sabia se eram causadas pelos próprios profissionais do hospital psiquiátrico ou demais internos. Com relação a esse recorte do caso, Basaglia (1985) diz que em instituições totalitárias a violência é difundida como forma de dominação e de exclusão. Violência essa provinda dos próprios técnicos do hospital psiquiátrico, buscando legitimação a partir de seu conhecimento técnico-científico para a propagação de formas de violência, como essa brevemente elucidada no caso de José. Por vezes essas formas de violência são veladas, e o indivíduo sequer chega a ter consciência dela, por isso a dúvida da mãe de José em reconhecer se o filho foi de fato violentado. Em relação ao Hospital Psiquiátrico, José afirmou gostar muito da instituição, embora relate não ter abertura para conversar com os profissionais que trabalham no 234 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 local, ressaltando que, diferentemente do CAPS, participou apenas uma vez de um grupo dirigido por uma psicóloga. Chauí (1980) pontua que esse contrassenso é uma consequência da própria contradição do mundo social. As relações do indivíduo com sua classe apontam para uma relação alienada. A sociedade, o estado e as instituições aparecem para o sujeito com sua força, com seu poder, numa posição já concebida, os dominando e os fazendo submissos. Tal relação de dominação e submissão acontece de maneira tão imediata e determinada, que não permite ao indivíduo pensar ou agir por si só, mas sim, ser e agir a partir do que é infligido a ele. Percebe-se, pois, que a ideologia é um fenômeno utilitário, que acontece pelas condições concretas da existência social do sujeito. A partir do momento que permeia esse tipo de relação, os sujeitos passam a não reconhecer-se como os próprios fazedores e mantenedores da circunstância. A autonomia da instituição para com eles acaba acontecendo inversamente, enquanto aqueles são os impulsionadores das ações destes (Chauí, 1980). Esse processo se concretiza, portanto, por meio da alienação. As condições reais de existência do sujeito não são mais produzidas por si, mas, como consequência das forças externas institucionais. Outro ponto relevante do discurso do sujeito aponta que seus dias eram monótonos e sua rotina consistia em fazer as refeições diárias básicas, ser medicado e relaxar no pátio, onde permanecia a maior parte do tempo. O hospital psiquiátrico pode ser visto, na perspectiva ideológica, como um lugar zero de troca. Isso quer dizer que, enquanto seus internos são as mercadorias que detém um valor de troca baseado no seu tempo de investimento, de engajamento, cuidado e serviço dedicado aos mesmos, essa instituição sequer parece investir nos sujeitos (tornados eternos pacientes) para que socialmente sejam mais valorizados e reinseridos com maior dignidade no meio social (Chauí, 1980). Em um fragmento do seu discurso, José relata um mal-estar comum de ocorrer na instituição. Na ocasião, um dos profissionais da enfermagem, estava “dominando os mais fracos” (SIC), o que despertou sentimentos de raiva e levou José a agredir o profissional. De acordo com Basaglia (1985) uma das características mais marcantes de uma instituição é a clara divisão entre os que tem poder e os que não o tem, resultando na divisão das funções e o estabelecimento de uma relação de opressão e de violência. O autor destaca ainda que os detentores do saber médico utilizam-se de seu conhecimento técnico para fazer com que seu objeto de violência, no caso o sujeito institucionalizado, se adapte a violência, sem sequer chegar a ter consciência dela e sem poder reagir a ela. Uma das formas de poder descritas por Foucault (1988) em relação aos corpos, diz respeito à domesticação exercida pelos dispositivos do biopoder. Para tanto, há necessidade de se adestrar o homem, moldá-lo segundo as necessidades e interesses da instituição, torná-lo dócil para facilitar a adaptação aos sistemas de controle, que caracterizam, entretanto, as instituições de disciplina. Como já identificado, no relato de Divina há evidências da ocorrência de hematomas no corpo do filho que, poderiam ter acontecido em decorrência de comportamentos considerados indevidos pelos profissionais que “dominam os mais fracos” (SIC), em um local onde o cuidado humano deveria ser referencial. José não se reconhece mais como produtor de sua própria história, sendo Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 235 progressivamente submetido ao meio que o insere, o hospital psiquiátrico. Basaglia (1985, p.121) diz que ao ser inserido em uma instituição, o sujeito não é mais visto como sujeito, e sim como um corpo doente, sendo levado “a fazer dessa instituição seu próprio corpo, incorporando a imagem de si que a instituição lhe impõe”. O sujeito se torna então, objeto da instituição, subordinado a dominação técnica enquanto que seus desejos e seu Eu lhe são negados. No caso de José, pode-se pensar que, devido ao seu longo histórico de internações psiquiátricas, tenha perdido parte de sua identidade ao se identificar com a instituição. Assim, podemos conjeturar que, ao se referir a esse estabelecimento, faz menção a ele como um lugar bom e agradável, ainda que o mesmo seja lócus de tamanhas mazelas. Considerações No processo de escuta de Divina, pudemos perceber que o convívio com a psicose exigem que ela assuma posições para além de ser mãe, a de cuidadora exclusiva do filho, que, por sua vez, são passíveis de acarretar encargos físicos e emocionais, provocando um constante estado de alerta à espera de um iminente surto de José. Percebemos, dessa forma, o desamparo e a falta de apoio da mesma no que se refere aos serviços de saúde mental disponíveis a ela, tanto o hospital psiquiátrico quanto o CAPS, pois, tais instituições não conseguem suprir sua demanda emocional, além de não receber também apoio dos familiares nos cuidados do filho psicótico. Diante disso, a evidente vulnerabilidade da cuidadora, clama pelo apoio das equipes atuantes nos serviços de saúde mental, no sentido de acompanhá-la em suas vivências com o filho e esclarecer-lhe sobre estratégias de enfrentamento nas situações de crise. Quanto a José, ao ser inserido em uma instituição totalitária, parece vivenciar uma relação de dominação e submissão nas ocasiões de internação em alguma instituição manicomial. Tal modelo de tratamento que vigorou desde fins da idade média, não zela pela autonomia, alienando ainda mais o sujeito em dispositivos protecionistas e que não permitem o deslizamento de novos sentidos à psicose. Em relação ás acadêmicas, o presente relato de experiência propiciou, além do acréscimo de conhecimento, o desenvolvimento de estratégias para a conduta profissional em situações de vulnerabilidade e risco. O referido trabalho oportunizou também, ampliar o conhecimento acerca da temática discutida, que abarca o histórico de saúde mental e o papel do cuidador envolvido no processo, população esta que desfruta de pouco zelo apesar do sofrimento que permeia suas vidas. Pensando que a proposta do CAPS é o tratamento do mal-estar e reinserção do indivíduo à sociedade, deve-se também incluir a família ligada a esse sujeito fazendo a articulação conjunta entre serviço e familiares para que a internação em hospital psiquiátrico seja de fato o último recurso. Por se tratar de um relato de experiência, o presente estudo traz consigo algumas limitações, sendo apenas um recorte da realidade das vivências de todos os envolvidos, o que, de certa forma, não permite generalizações. Embora, seja perceptível a presença de encargos subjetivos na cuidadora, avaliou-se esse aspecto apenas de modo subjetivo por meio de relatos da participante em momentos pontuais de sua história de vida. 236 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Referências Amarante, P. (1995). Loucos pela vida: A trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz. Barroso, S. M., Bandeira, M. & Nascimento, E. (2007). Sobrecarga de familiares de pacientes psiquiátricos atendidos na rede pública. Revista Psiquiatria Clínica, São Paulo, 34(6), 270-277. Barroso, S. M., Bandeira, M. & Nascimento, E. do (2009). Fatores preditores da sobrecarga subjetiva de familiares de pacientes psiquiátricos atendidos na rede pública de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, 25(9), 1957-1968. Basaglia, F. (1985). A instituição negada: relato de um hospital psiquiátrico. (F. Basaglia coord.). (Tradução de Heloisa Jahn). Rio de Janeiro: Edições Graal. 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Revista Gaúcha de Enfermagem, 28(3), 385-92. _____________________________ Recebido em maio de 2014 Aceito em julho de 2014 Nayara Gomes Braga: Acadêmica de Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Nathália de Freitas Costa Fernandes: Acadêmica de Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Tiago Humberto Rodrigues Rocha: Psicólogo, Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Doutorando em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), Professor Assistente do Departamento de Psicologia Clínica e Sociedade da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), Membro do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP-SP (LATESFIP). Endereço para contato: [email protected] 238 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Aletheia 43-44, p.239-247, jan./ago. 2014 Compartilhando saberes: relato de uma intervenção com professores Magda Pozzobon Fernanda Aparecida Szareski Pezzi Angela Helena Marin Resumo: O presente artigo consiste no relato da experiência de uma intervenção desenvolvida com 55 professores de uma escola pública da rede de ensino fundamental de São Leopoldo/RS. Esta consistiu em três encontros mensais, realizados na própria instituição, cujo objetivo foi facilitar um ambiente para reflexões sobre motivação para o trabalho, comunicação e relacionamento entre colegas e entre professor-aluno, além de destacar a importância do papel do professor. Constatouse que os participantes mostravam-se ávidos e dispostos a buscar soluções para os conflitos que viviam no trabalho e ficou explícita a necessidade de serem reconhecidos e manterem-se motivados diante dos dilemas profissionais. Aponta-se para a necessidade de intervenções de fluxo contínuo que possam instrumentalizar os professores, especialmente no que tange às questões de motivação, relacionamento interpessoal e autoestima. Palavras-chave: professor; trabalho docente; intervenção. Sharing knowledge: Report of an intervention with teachers Abstract: This paper is a report of an intervention developed with 55 teachers of an elementary public school of São Leopoldo/RS. This consisted of three monthly meetings held at the institution with objective to facilitate reflections on work motivation, communication and relationship between colleagues and between teacher and student, highlighting the importance of the teacher’s role. Participants showed up eager and willing to seek solutions to the conflicts that they lived at work and it was explicit their need to be recognized and remain motivated to face professional dilemmas. It points to need for continuous flow of interventions that can improve the teachers´ work, especially in motivation, interpersonal relationships and self-esteem. Keywords: teacher; teaching; intervention. Introdução O trabalho com professores e equipes diretivas do sistema de ensino da rede pública possibilita observar a ansiedade e o sofrimento emergentes no cotidiano escolar. Nesse sentido, os professores são bastante exigidos em suas habilidades de resolução de conflitos, seja com seus alunos ou colegas de trabalho, sentindo-se, muitas vezes, emocionalmente despreparados e desgastados, o que pode levar ao estresse e à Síndrome de Burnout, especialmente quando se percebem pouco valorizados e instrumentalizados para a realização de suas atividades (Leite & Löhr, 2012; Barutçu & Serinkan, 2013). A docência exige do professor a capacidade de se comunicar afetivamente, de motivar o aluno e incentivá-lo nos seus desafios e progressos (Demetriou & Wilson, 2009; Immordino-Yang & Damasio, 2007), além da habilidade de resolver problemas interpessoais inerentes ao convívio grupal (Ribeiro, 2010). Desta forma, a atuação do professor acaba influenciando a motivação do aluno e o seu envolvimento com o estudo (Cunha, 2005; Del Prette & Del Prette, 2001; Ribeiro, 2008). De igual forma, o modo como o professor se expressa e compartilha sua autoridade imprime um padrão de funcionamento na turma (Guimarães, 2001; Guimarães & Boruchovitch, 2004), podendo prevenir, inclusive, o bullying, fenômeno que tem atingido em proporções preocupantes (Oliveira-Menegotto, Pasini, & Levandowski, 2013). Nesta perspectiva, compreende-se que apesar das muitas dificuldades e desafios existentes no sistema escolar e no processo de ensino-aprendizagem, como em qualquer profissão, ensinar tem suas possibilidades e limites e os professores devem ser desafiados a assumirem suas responsabilidades, seu papel, visando mais eficácia em suas atividades e atitudes (Mellouki & Gauthier, 2004). Para tanto, sua instrumentalização se faz necessária (Guimarães & Boruchovitch, 2004), tendo em vista que, quando bem preparados, constituem uma grande ajuda para os alunos, podendo ensiná-los e ajudálos a enfrentar problemas emocionais ou interpessoais. Em contraponto, estudos indicam que o professor não se encontra instrumentalizado, pois tem havido uma perda progressiva de seu poder e sua autoridade, reforçada pela concomitante perda de autoridade das figuras parentais, sinalizando um momento de carência de referências para todos: pais, professores e alunos (Antelo, 2004). Tal dado reforça a necessidade de repensar a formação dos professores, pois um profissional autômato, sem poder, com sua identidade fragilizada pouco consegue auxiliar na construção de um ser autônomo. Conforme Honorato (2011), é preciso preparar-se para os desafios que este momento exige, buscando o maior empoderamento do professor, o encontro de sua identidade e consequentemente, sua capacidade de formar cidadãos. Nesse sentido, intervenções com professores no sistema escolar têm sido indicadas com vistas a auxiliá-los a lidarem com o estresse e o adoecimento oriundo de sua profissão (Barutçu & Serinkan, 2013) e algumas têm sido desenvolvidas e avaliadas por pesquisadores (Andaló, 1984; Cunha & Betini, 2003; Honorato, 2011; Leite & Löhr, 2012; Patias, Blanco, & Abaid, 2009). De modo geral, tais intervenções, por se constituírem como espaços que auxiliam a ressignificar o modo de ver e de fazer dos professores, proporcionam a eles se moverem de uma posição de culpabilização para uma postura de mediação, pois ampliam seu olhar, escuta, sensibilidade, identidade, consciência e motivação frente ao processo de ensino-aprendizagem. Assim, acreditase na validade de intervenções que instrumentalizem o professor, mesmo que sejam pontuais e de curta duração. Com esse intuito, o objetivo do presente estudo foi descrever uma intervenção desenvolvida com professores de uma escola pública da rede de ensino fundamental de São Leopoldo/RS. Esperava-se proporcionar um espaço de escuta e discussão com vistas a perceber a motivação dos professores, bem como auxiliá-los na busca de um novo posicionamento em relação à comunicação e a resolução de conflitos entre colegas e em sala de aula. Além disso, pretendia-se valorizar e destacar a importância do papel do professor na sociedade atual. 240 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Método A proposta da intervenção nasceu da necessidade, observada pela equipe diretiva de uma escola pública da rede de ensino fundamental de São Leopoldo/RS, de motivar os profissionais a pensar em possibilidades de maior aproximação entre eles e seus alunos, visando imprimir maior envolvimento e comprometimento de todos para fortalecer o processo de ensino-aprendizagem de crianças e adolescentes. A equipe diretiva possibilitou que os encontros fossem realizados no horário das reuniões já previstas na carga horária docente. Participaram, portanto, todos os professores da escola, totalizando 55 profissionais. A coordenação da intervenção foi realizada por duas psicólogas que já estavam inseridas nesta escola por serem mestrandas no Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), que tinha estabelecido uma parceria com o local para desenvolver uma proposta de pesquisa. Como dito, este estudo faz parte de um projeto de pesquisa maior1, motivo pelo qual os procedimentos éticos de autorização da Secretaria de Educação de São Leopoldo-RS e a carta de anuência da Direção da Escola para a realização da intervenção já haviam sido cumpridas (Protocolo de aprovação do CEP-Unisinos N° 12/084). A intervenção consistiu na realização de três encontros de frequência mensal com os professores no auditório da escola, que foram planejados e organizados de acordo com a disponibilidade do grupo na ocasião. O primeiro e o terceiro encontros tiveram uma hora e meia de duração e o segundo, uma hora. Foram abordados os seguintes temas: 1) motivação; 2) comunicação e relações interpessoais; 3) importância do professor e sua relação professor-aluno. Destaca-se que os temas dos dois últimos encontros foram sugeridos pelos próprios participantes. Como uma forma de avaliação, ao final de cada encontro, os professores responderam a um questionário sobre o trabalho desenvolvido. Resultados e discussão No primeiro encontro a intervenção teve seu início com a exibição do filme motivacional intitulado “O sapinho surdo”, cujo objetivo principal foi mostrar a importância da motivação diante dos desafios do cotidiano. A intenção era estimular a reflexão sobre o trabalho em equipe (apoio, estímulo), motivação individual e grupal e rede de apoio. Foi proposto que os professores se reunissem em grupos por afinidade e debatessem sobre o tema motivação, a partir de duas perguntas: 1) o que mantém sua motivação diária para o trabalho? 2) Quais as motivações que a/o mantém nesta profissão? Esta atividade foi seguida pela exposição dos conteúdos debatidos em quatro grupos (G1-G4) e vários temas foram explicitados, tais como a necessidade de contar com os colegas e a importância de manter a motivação, apesar do cansaço, conforme explicitam as falas: “É muito difícil se “automotivar” diante das dificuldades. Precisamos de parcerias 1 Projeto de pesquisa financiado pelo CNPq, que tem como título: “Fracasso escolar: sintoma e/ou reatividade ao sistema de ensino?”, coordenada pela Dra. Angela Helena Marin. Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 241 que realmente funcionem para não nos sentirmos isolados diante dos problemas” (G1)2; “O que nos move é a necessidade do trabalho, a construção de amizades sinceras e o reconhecimento!” (G2); “O que nos motiva é realizar sonhos, metas e objetivos (...) os desmotivadores também nos motivam!” (G3); “Apoiar-se uns nos outros, procurando apoiar quem está mais vulnerável e buscar amparo naqueles em quem confiamos quando estamos exauridos e desesperançados” (G4). Um dos professores relatou emocionado uma experiência pessoal, relacionando o sucesso em sua carreira e a relação prazerosa na sua vida particular decorrente de sua profissão. Ele referiu a sensação de orgulho e felicidade por poder sustentar sua família e ter comprado sua casa, o que o mantém motivado. Por outro lado, outros professores relataram as dificuldades que encontravam em manter sua motivação frente aos desafios diários. Alguns rostos na plateia apresentavam sinais de cansaço e seus corpos revelavam uma postura de desânimo e desmotivação. Seguiu-se uma roda de elogios, em que cada um se dirigia ao centro do grupo e suas qualidades eram nomeadas e reconhecidas por todos os demais integrantes. O encontro foi finalizado com uma música e muitos professores dançaram espontaneamente, demonstrando prazer por participarem desta atividade lúdica. A coordenadora da escola, orientada anteriormente por uma das psicólogas, tomou a palavra e elogiou todo o grupo de professores, parabenizando-os pela colaboração, persistência e profissionalismo que vinham demonstrando. A seguir, foi solicitado o preenchimento de uma avaliação da atividade e sugestões para os próximos encontros. As principais temáticas sugeridas foram: relações interpessoais, resolução de conflitos e convivência. Observou-se que o clima tenso do início foi aos poucos sendo amenizado e os debates aqueceram o encontro, motivando a participação e o envolvimento de todos. A roda de elogios emocionou muitos participantes e tornou o grupo mais receptivo. Houve troca de abraços e muitas lágrimas. A música também trouxe o desejo e a motivação para cantar e dançar em grupo, imprimindo sensibilidade ao encontro. Contudo, nenhum questionamento foi proferido pelos professores às psicólogas durante todo o encontro, causando a sensação de que aceitaram as atividades, mas não se sentiram à vontade para interagir, perguntar, contrapor, dar opinião de forma livre ou participar mais ativamente, lembrando a passividade a que se refere Honorato (2011). Alguns professores também foram embora sem preencherem o instrumento de avaliação. No entanto, nenhum deles deixou o ambiente da escola durante a realização da atividade, pois, de acordo com a equipe diretiva, o abandono durante as formações era uma atitude que vinha se repetindo nesta escola há bastante tempo. O segundo encontro, por sua vez, ocorreu um mês após e iniciou com a apresentação de slides que contemplaram o tema “comunicação e relacionamento interpessoal”. Um elo de relação com o primeiro encontro foi estabelecido em busca de reforçar as aprendizagens adquiridas, seguido por uma vivência de comunicação em duplas, na qual cada professor deveria escutar o colega e, em seguida, era pelo outro escutado. Após este exercício, foi promovida uma reflexão sobre como cada um se percebeu ao escutar e ser escutado. Em uma discussão dinâmica entre as psicólogas e os professores, exemplos da 2 A letra e o número entre parênteses identificam o grupo no qual a fala foi verbalizada. 242 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 forma como a comunicação e as relações interpessoais se estabeleciam no seu cotidiano foram trabalhados. Os professores mostraram-se, novamente, esquivos no início das atividades, mas a tentativa de proximidade e a utilização de humor e exemplos do cotidiano por parte das psicólogas possibilitou risadas e respostas mais espontâneas. A temática trabalhada mobilizou bastante o grupo e proporcionou reflexões sobre o comportamento e a responsabilidade de cada um frente aos desafios do convívio entre colegas, na relação com os alunos e também com seus familiares. Perceberam-se reações afetuosas e algumas expressões de raiva, observadas no questionário de avaliação do encontro, que foi respondido com fortes traços do lápis na resposta “ruim” ou “insatisfeito” com as atividades desenvolvidas. Entende-se que responsabilizar-se por seus comportamentos significa não culpabilizar o outro e este entendimento pode passar por uma primeira fase de negação. Por fim, no terceiro encontro, teve-se como objetivo exaltar a importância do professor e da relação afetiva entre professor-aluno, especialmente porque o encontro ocorreu no “Dia do Professor”. Para este momento, foram preparadas atividades com a utilização de recursos expressivos, tendo em vista a importância da arte como expressão da subjetividade humana e a suas possibilidades lúdicas e terapêuticas (Vasconcellos & Giglio, 2007). Na tentativa de propiciar novos agrupamentos entre eles e evitar a tendência percebida de trabalharem sempre com as mesmas pessoas foram distribuídos papéis contendo números de um a seis e solicitado que se reunissem pelo número, assim formando seis grupos (G1 a G6) de professores de vários locais do auditório. Cada grupo foi separado em uma sala de aula. Foi dado o poema “O professor e o aluno”, de autoria de Silas Corrêa Leite, e solicitado que lessem e trocassem opiniões, impressões e emoções sobre ele. Ao final da discussão, cada grupo foi orientado a expressar a essência do que foi debatido por meio de recursos expressivos e apresentar ao grande grupo, sendo que: o G1 deveria fazer uma peça teatral e o G2 um teatro mudo; o G3 confeccionaria algo utilizando sucatas (garrafas pet descartáveis, potes, caixinhas, linhas, fitas, lãs, papéis diversos, tintas, pincéis); o G4 faria uma colagem em papel pardo, utilizando papéis coloridos, revistas, tesouras, cola, grampeador, fitas, lã, canetas coloridas, lápis e giz de cera; o G5 faria uma pintura a guache em cartolina branca; e o G6 comporia a letra para uma melodia já existente, fazendo uma paródia. As apresentações dos trabalhos realizados ocorreram em meio a risadas e palmas de uma plateia receptiva, que homenageava cada grupo que se apresentava. Após as apresentações, houve uma dinâmica na qual os professores foram comparados a luzes, pois iluminam mentes, corações, sonhos e caminhos, ajudando a construir futuros. Cada um segurou uma pequena vela e, a partir de uma chama inicial, todos foram acendendo sua luz, incitando a ideia de que podem se iluminar, acendendo motivações e outros sonhos entre eles, para que sempre se sintam aquecidos nesta chama. O encerramento ocorreu com uma música trazida pelos próprios professores. Constatou-se que no início do terceiro encontro ocorreram algumas reclamações sobre a separação dos grupos e as tarefas propostas. Entretanto, as atitudes de rejeição desapareceram ao longo do encontro e todos se comprometeram com as atividades. Os grupos trabalharam com coesão, criatividade e a colaboração foi homogênea. A dinâmica Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 243 com as velas causou bastante emoção, mas novamente o encerramento revelou um rápido afastamento entre os colegas, numa demonstração de que seriam necessários vários encontros para que uma aproximação mais efetiva ocorresse. Considerando o conjunto dos encontros, algumas questões se destacaram e é importante refletir sobre elas. O trabalho teve início num clima tenso, por isso buscou-se fazer a aproximação entre os professores e as psicólogas através da empatia. Falou-se sobre a admiração pela profissão, sua importância social e de que modo a intervenção poderia colaborar para que todos refletissem sobre temas que considerassem importantes em seu fazer diário. Apesar disso, houve tentativas de esquiva ao contato por meio da escolha de lugares situados ao fundo do auditório, comportamento que se repetiu a cada novo encontro, como se não houvesse possibilidade de avançar na aproximação e intimidade. Assim, cada novo encontro era um recomeço, o que nos remete às considerações de Mahoney e Almeida (2005) e de Ribeiro (2010) quando se referem às dificuldades afetivas que podem envolver o processo de ensino-aprendizagem, especialmente devido às limitações dos profissionais de educação na expressão de seus sentimentos. Neste mesmo sentido, Patias et al., (2009) encontraram resistência por parte dos professores na intervenção que realizaram, mas obtiveram resultados satisfatórios quanto à instrumentalização destes profissionais. Leite e Löhr (2012) também discutiram que o início de um trabalho de intervenção com professores e o estabelecimento de um vínculo podem ser dificultados devido ao processo de culpabilização que ocorre na escola, ou seja, a tendência de a culpa pelas dificuldades encontradas serem atribuídas a eles e o consequente julgamento de que uma intervenção poderia ter a mesma intenção. Assim, para os autores, as intervenções devem ter o objetivo de instrumentalizar estes profissionais com vistas à deslocá-los da postura de culpabilização para a da mediação e resolução das dificuldades encontradas no cotidiano profissional. A brevidade da intervenção realizada não possibilitou este movimento, mas percebeu-se o desejo dos professores de continuarem obtendo ajuda para este fim, pois mesmo com os aparentes comportamentos evitativos, constatou-se que todos permaneciam até o término das atividades. Ressalta-se, também, que durante duas oportunidades em que as psicólogas foram convidadas pela equipe diretiva para lanchar junto com os professores, não houve nenhuma tentativa de aproximação, mas sim de afastamento. Este comportamento pode ser entendido como timidez, baixa autoestima ou baixa capacidade dos professores em se relacionarem afetivamente, haja visto que os temas relações interpessoais e resolução de conflitos foram solicitados pela maioria deles. Por outro lado, o convite para o trabalho tinha partido da equipe diretiva e não havia o estabelecimento de um vínculo anterior com esses profissionais, o que pode ter intimidado os participantes e dificultado o contato. Nesta perspectiva, ressalta-se a importância da construção de uma relação de confiança e afeto entre os professores e os coordenadores da intervenção, bem como entre seus pares, afim de que este espaço se torne potencializador de aprendizagens (Nunes, Pontes, Silva, & Dell’Aglio, 2014). Juntamente com as reflexões apresentadas, pode-se pensar sobre a perda de poder e autoridade à qual se refere Antelo (2004), que também foi expressa pelos professores através do modo como se omitiram de fazer perguntas, contrapor as psicólogas ou oferecer outro ponto de vista, mantendo-se numa posição passiva diante das propostas trabalhadas 244 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 nos encontros. Essa passividade remete a pensar na possibilidade de fazer parte do contexto que apontam Cunha (2005), Del Prette e Del Prette (2001) e Ribeiro (2008), sobre a carência de uma formação mais global destes profissionais, que inclua razão, emoção, consciência e curiosidade por uma visão histórico-cultural mais ampliada. A pouca instrumentalização dos professores para lidarem com os conflitos em sala de aula e o escasso desenvolvimento de habilidades para o relacionamento entre colegas foi sinalizada pelos próprios participantes, o que vem ao encontro do que sugere Woolfolk (2000) sobre a importância de oferecer aos professores um melhor preparo acerca das dinâmicas de comportamento humano, para reconhecerem melhor suas próprias emoções e, em consequência disso, as de seus alunos e dos colegas. Estes ganhos poderiam marcar a mudança que o processo de ensino-aprendizagem necessita e merece. Destaca-se, assim, que é possível pensar em estratégias simples que venham ao encontro do resgate e fortalecimento da relação professor-professor-equipe diretiva e professor-aluno, para que possam superar as dificuldades decorrentes das situações cotidianas dentro do sistema escolar (Wagner, Dotta, & López, 2006). Quando incentivada, a equipe diretiva conseguiu acolher os professores, elogiandoos e parabenizando-os. Este seria um comportamento importante de manter, pois, de acordo com Leite e Löhr (2012), a falta de reconhecimento pode reforçar o desânimo e o desgaste emocional dos professores, colaborando para o aumento do adoecimento no trabalho. Foi possível perceber o esforço da equipe diretiva para auxiliar os profissionais e manter os momentos de formação apesar das inúmeras demandas de ordem institucional e burocrática que precisavam dar conta em conjunto com os professores, naquele único horário remunerado que dispunham para decidir essas questões. Por fim, salienta-se que o processo de ensino-aprendizagem é multifacetado, construído nas relações escolares e na história de vida de cada participante e, portanto, interligado às estruturas sociais e políticas (Asbahr & Lopes, 2006). Desta forma, ao planejar estratégias e intervenções, não se deve atribuir responsabilidade maior a equipe diretiva, professor ou aluno, mas refletir sobre a importância destes personagens na história e na construção do processo de ensino-aprendizagem. Considerações finais Frente ao exposto, acredita-se que cada professor teve a possibilidade de refletir sobre essas questões propostas para tentar se reposicionar frente aos seus colegas e alunos. A experiência de trabalho com esse grupo foi bastante positiva e reforça a necessidade da realização de mais trabalhos de apoio na área educacional. Sabe-se que historicamente a psicologia contribuiu com a educação na produção de laudos e pareceres dos alunos e, atualmente, o desafio centra-se em promover a saúde mental na escola, considerando os diferentes agentes e os seus papeis na instituição (Guzzo, Mezzalira, Moreira, Tizzei, & Neto, 2010). Uma limitação importante do presente estudo diz respeito à motivação dos professores para participarem das intervenções, pois esta decorreu de uma solicitação da escola, considerando o cumprimento de carga horária remunerada. Portanto, não foi possível avaliar até que ponto era um desejo deles permanecerem e participarem dos Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 245 encontros. Quanto ao fato de os professores evitarem expressar opiniões e escolherem uma posição mais passiva diante das atividades, podemos inferir que o receio de críticas ou julgamentos por parte dos colegas pode ter intimidado os profissionais, visto que, de acordo com as avaliações dos encontros, os professores, em sua maioria, mostraram-se satisfeitos. Para uma melhor efetividade, sugere-se a realização de intervenções com um grupo menor de professores, pois um grande grupo não permitiu maior aproximação, aprofundamento do vínculo, apoio às individualidades e um trabalho motivacional mais consistente. Referências Andaló, C. (1984). O papel do psicólogo escolar. Psicologia: Ciência & Profissão, 4(1),43-46. Antelo, E. (2004). Algumas consequências inesperadas do declínio da figura do professor tradicional. Anais 4 (pp.40-50). Colóquio do LEPSI. São Paulo: Universidade de São Paulo. Asbahr, F. S. F. & Lopes, J. S. (2006). “A culpa é sua”. Psicologia USP, 17(1), 53-73. 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Mestranda em Psicologia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Fernanda Aparecida Szareski Pezzi: Psicóloga. Mestre em Psicologia pela Unisinos. Professora do Curso de Psicologia da Sociedade Educacional Três de Maio (SETREM). Angela Helena Marin: Psicóloga. Mestre e Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora dos Cursos de Graduação e de Pós-graduação em Psicologia da Unisinos. Endereço para contato: [email protected] Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 247 Aletheia 43-44, p.248-251, jan./ago. 2014 Avaliação dos comportamentos dependentes Leda Rúbia Maurina Coelho Margareth da Silva Oliveira Comportamentos dependentes são transtornos complexos que se multiplicam a partir de predisposição genética, processos socioculturais, vulnerabilidades psicológicas, expectativas cognitivas positivas sobre os efeitos e consequências do consumo de álcool e outras drogas (bem como de outros comportamentos), traços de personalidade e temperamento, ausência de um repertório de habilidades de enfrentamento adequadas e baixa autoeficácia. Tal conceito foi postulado pelo modelo biopsicossocial, um modelo integrativo que, segundo Donovan (2009), é o modelo que pode proporcionar maior clareza para a área dos comportamentos dependentes, ampliando a probabilidade de evitar recaídas de forma mais eficaz. O livro Avaliação dos Comportamentos Dependentes – 2ª edição –, organizado por Dennis Donovan e Alan Marlatt, foi projetado para ser usado em conjunto com a 2ª edição de outro livro organizado também por estes autores Prevenção de Recaída: estratégias de manutenção no tratamento de comportamentos adctivos, visando aumentar a congruência e a inter-relação dos materiais; os mesmos autores de cada capítulo foram convidados a escrever tanto os capítulos de avaliação quanto o de prevenção de recaída. Quando utilizados em conjunto, os livros fornecem informações para o planejamento e a condução de um processo avaliativo mais focado em fatores de risco de recaída em um determinado comportamento dependente e oferece condições de construir um plano de tratamento individualizado destinado a prevenir a recaída e, caso ela ocorra, minimizar seus danos. A base para o planejamento do tratamento e da prevenção de recaída está na avaliação de situações que representam alto risco de recaída, avaliação das habilidades de enfrentamento, das expectativas cognitivas sobre o comportamento e percepção dos benefícios e consequências negativas do comportamento dependente. Para apresentar diferentes tipos de avaliação em variados comportamentos dependentes a obra está dividida em treze capítulos. No primeiro capítulo é apresentada uma introdução sobre a avaliação dos comportamentos dependentes na prevenção de recaída, discorrendo desde informações históricas até conceitos fundamentais que darão subsídios aos capítulos posteriores. Neste capítulo é apresentada uma breve visão geral da prevenção de recaída, onde a recaída é definida como um retorno à mesma intensidade do comportamento dependente, por exemplo ao abuso de álcool, enquanto que um lapso pode ser descrito como o uso inicial de bebidas alcoólicas depois de um período de abstinência ou um evento discreto, diferente da recaída, que envolve neste exemplo o uso ou abuso continuado depois deste deslize inicial. Ainda neste texto introdutório são apresentados diferentes domínios, fatores, dimensões e tipos de avaliação de comportamentos dependentes, conceituando cada uma destas. O livro segue apresentando especificidades na avaliação dos comportamentos dependentes em culturas das minorias étnicas onde são problematizadas as diferenças culturais na avaliação neuropsicológica, de comportamentos, de fatores cognitivos, na experiência de autoeficácia, bem como na avaliação de habilidades para múltiplas culturas. Os autores destacam que a validação de instrumentos de avaliação apropriados para uso em culturas diversas é um dos maiores desafios dos pesquisadores sobre dependências. A partir do terceiro capítulo a obra inicia o tratamento de temáticas de avaliação de comportamentos dependentes específicos, sendo o primeiro deles direcionado aos problemas com álcool. Entre as diversas avaliações apresentadas destacam-se as perguntas sobre quantidade e frequência da ingestão de bebidas alcoólicas, gravidade da síndrome de abstinência do álcool, avaliação das dimensões cognitivas e comportamentais (o que inclui a avaliação da prontidão para mudança, autoeficácia, estratégias de enfrentamento e expectativas em relação ao resultado do beber), e a avaliação de psicopatologias comórbidas. A avaliação do comportamento de fumar é descrita na sequência e envolve, entre outros itens, o histórico do fumar e parar, quantidade do fumar e natureza do hábito, diários de automonitoramento, medidas neuroquímicas, motivação para parar, avaliação do humor e outros transtornos psiquiátricos e avaliações relevantes para compreender a recaída. O quinto capítulo discorre sobre a dependência de cocaína listando diversos instrumentos de avaliação selecionados para populações de usuários de cocaína e derivados que foram construídos para diferentes constructos. O texto descreve os transtornos comórbidos e de personalidade, sugerindo uma avaliação multidimensional que vise auxiliar no planejamento e avaliação dos resultados do tratamento. O texto avaliação dos transtornos por uso de anfetamina apresenta a substância psicoativa, seu histórico e dados epidemiológicos (destacando populações vulneráveis). Apresenta também um sistema de avaliação que contempla critérios diagnósticos que permitem avaliar o uso e a dependência no passado e no presente. Considerações médicas na avaliação dos usuários de metanfetamina e avaliação de condições para alcançar a abstinência também estão descritas em detalhes no decorrer deste capítulo. Segundo o texto, a avaliação do uso de opioides deve contemplar os critérios diagnósticos, considerando os sistemas de avaliação de sintomas biológicos/físicos – onde a tolerância e a gravidade dos sintomas de abstinência determinam a necessidade de desintoxicação –, avaliação psicológica, de transtornos psiquiátricos e de outros transtorno de uso de substâncias, avaliação social/ cultural e avaliações específicas relacionadas a prevenção de recaída (como por exemplo: situações de alto risco e de eficácia de resposta). Já os transtornos por uso de cannabis são contemplados no oitavo capítulo, onde os autores explanam sobre a aplicabilidade de um modelo biopsicossocial para transtornos causados pelo consumo desta substância específica. Além de ser discutido o papel da avaliação no tratamento são descritos fatores psicossociais, biológicos e de saúde no uso e abuso da maconha. São apontadas como possibilidades de avaliação: a gravidade da dependência, consequências negativas, deficiências cognitivas, situações de alto risco, autoeficácia, habilidades de Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 249 enfrentamento e expectativas. O nono capítulo inicia conceituando drogas recreativas, alucinógenos inalantes e esteroides, e na sequência versa sobre o diagnóstico de cada uma destas substâncias e dificuldades adicionais a este, em função dos transtornos psiquiátricos concomitantes comuns aos indivíduos que são dependentes deste grupo de substâncias. Trazendo à tona a questão da avaliação de transtornos alimentares e obesidade, o décimo capítulo apresenta a avaliação dos aspectos comportamentais, psicológicos e sociais dos transtornos alimentares, incluindo as medidas de dimensões múltiplas (cognições e comportamentos) em formato de entrevistas e de inventários estruturados. Também apresenta medidas de cognições relacionadas ao comer e medidas de expectativas do ato de comer. Já os transtornos relacionados ao jogo estão contemplados no décimo primeiro capítulo, onde os autores conceituam o jogo patológico e o discutem como uma questão de saúde pública. São abordados fatos históricos do jogo patológico, sintomas, epidemiologia, estimativas de prevalência, tendências em diferentes segmentos da população, a prevalência de transtornos relacionados, a prática e alicerces da avaliação e diagnóstico, bem como instrumentos de rastreamento e obstáculos deste processo. Os dois últimos capítulos referem-se, respectivamente, a transgressores sexuais e comportamentos sexuais de risco. No penúltimo capítulo a aplicação da prevenção a recaída na transgressão sexual é descrita sugerindo a identificação do ciclo de recaídas. Ainda são apresentados um exemplo de caso hipotético, explanadas limitações da aplicação da terminologia da prevenção de recaída para transgressão sexual, resultados de pesquisas recentes na área e avaliação dos fatores dinâmicos no planejamento e implementação do tratamento (os quais são exemplificados em um apêndice contendo relatório de avaliação de riscos dinâmicos). O décimo terceiro capítulo finaliza o livro abordando o que são comportamentos sexuais de risco, apresenta o estado do campo de estudo, as propriedades de medidas psicométricas sólidas para aplicação nestes comportamentos e seus modos de administração (que podem ser no formato de questionário autoaplicável, entrevista por telefone, entrevista em pessoa, autoentrevista assistida por computador). Este último capítulo contempla ainda a avaliação culturalmente apropriada dos comportamentos sexuais de risco, considerando diferenças culturais que não podem ser banalizadas nem super enfatizadas, pois se corre o risco de fortalecer a estigmatização. Por fim, é importante ressaltar que o texto possibilita uma leitura acessível do modelo biopsicossocial a partir de capítulos independentes que contemplam diversas áreas das dependências, indo além do abuso de álcool e outras drogas. A obra se apresenta como uma excelente fonte de inspiração para o planejamento e desenvolvimento de processos avaliativos e intervenções baseadas em evidências. 250 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Referências Donovan, D. M. & Marlatt, G. A. (Orgs.) (2007). Avaliação dos comportamentos dependentes. São Paulo: Roca. Donovan, D. M. (2009). Avaliação dos comportamentos dependentes na prevenção da recaída. In: Donovan & Marlatt (Orgs.), Avaliação dos comportamentos dependentes (pp.1-50). São Paulo: Roca. _____________________________ Recebido em março de 2015 Aceito em abril de 2015 Leda Rúbia Maurina Coelho: Psicóloga. Doutoranda PUCRS. Margareth da Silva Oliveira: Psicóloga. Doutora Profa. PPG PUCRS. Endereço para contato: [email protected] Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 251 Instruções aos autores Política editorial A Aletheia é uma revista quadrimestral editada pelo curso de Psicologia da Universidade Luterana do Brasil destinada à publicação de trabalhos de pesquisadores envolvidos em estudos produzidos na área da Psicologia ou ciências afins. Serão aceitos somente trabalhos não publicados que se enquadrem nas categorias de relato de pesquisa, artigos de revisão ou atualização, relatos de experiência profissional, comunicações breves e resenhas. Relatos de pesquisa: investigação baseada em dados empíricos, utilizando metodologia e análise científica. Artigos de revisão/atualização: revisões sistemáticas e atuais sobre temas relevantes para a linha editorial da revista. Relatos de experiência profissional: estudos de caso contendo discussão de implicações conceituais ou terapêuticas; descrição de procedimentos ou estratégias de intervenção de interesse para a atuação profissional dos psicólogos. Comunicações breves: relatos breves de experiências profissionais ou comunicações preliminares de resultados de pesquisa. Resenhas: revisão crítica de livros recém-publicados, orientando o leitor quanto a suas características e seus usos potenciais. Aspectos éticos: todos os artigos envolvendo pesquisa com seres humanos devem declarar que os sujeitos do estudo assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido, de acordo com as diretrizes nacionais e internacionais de pesquisa. No caso de pesquisa com animais, os autores devem atestar que o estudo foi realizado de acordo com as recomendações éticas para esse tipo de pesquisa. Os autores também são solicitados a declarar, na seção “Método”, que o protocolo da pesquisa foi previamente aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do local de origem do projeto. Conflitos de interesse: os autores devem declarar todos os possíveis conflitos de interesse (profissionais, financeiros, benefícios diretos ou indiretos), se for o caso. A falha em declarar conflitos de interesse pode levar à recusa ou cancelamento da publicação. Normas editoriais 1. Serão aceitos somente trabalhos inéditos. 2. O artigo passará pela apreciação dos Editores. 3. Após a avaliação inicial, os Editores encaminharão os trabalhos para apreciação do Conselho Editorial, que poderá fazer uso de consultores ad hoc de reconhecida competência na área de conhecimento. A Comissão Editorial e os consultores ad hoc analisam o manuscrito, sugerem modificações e recomendam ou não a sua publicação. 252 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 4. Os artigos poderão receber: a) aceitação integral; b) aceitação com reformulações; c) recusa integral. Em qualquer dessas situações, o autor será devidamente comunicado. Os originais, em nenhuma das possibilidades, serão devolvidos. 5. O(s) autor(es) do artigo receberá(ão) cópia dos pareceres dos consultores e será(ão) informado(s) sobre as modificações a serem realizadas. 6. No encaminhamento da versão modificada do seu manuscrito (no prazo máximo de 15 dias após o recebimento da notificação), os autores deverão incluir uma carta ao Editor esclarecendo as alterações feitas e aquelas que não julgaram pertinentes e a justificativa. No texto, as modificações feitas deverão estar destacadas com a ferramenta Word “pincel amarelo”. O encaminhamento com as modificações realizadas pode ser realizado via e-mail ([email protected]). 7. Os Editores reservam-se o direito de fazer pequenas alterações no texto dos artigos. 8. A decisão final sobre a publicação de um manuscrito sempre será do Editor Responsável e Conselho Editorial que fará uma avaliação do texto original, das sugestões indicadas pelos consultores e as modificações encaminhadas pelo autor. 9. Os artigos poderão ser escritos em outra língua além do português (espanhol e inglês). 10. Independentemente do número de autores, serão oferecidos dois exemplares por trabalho publicado. O arquivo eletrônico com a publicação em PDF será disponibilizado no site www.ulbra.br/psicologia/aletheia. 11. As opiniões emitidas nos artigos são de inteira responsabilidade do(s) autor(es), e sua aceitação não significa que a revista Aletheia ou o curso de Psicologia da ULBRA lhe dão apoio. 12. A matéria editada pela Aletheia poderá ser impressa total ou parcialmente, desde que obtida a permissão do Editor Responsável. Os direitos autorais obtidos pela publicação do artigo não serão repassados para o autor do artigo. Apresentação dos manuscritos 1) Os artigos inéditos deverão ser encaminhados em disquete ou CD e uma via impressa, digitada em espaço duplo, fonte Times New Roman, tamanho 12 e paginada desde a folha de rosto personalizada. A folha deverá ser A4, com formatação de margens superior e inferior (no mínimo 2,5 cm), esquerda e direita (no mínimo 3 cm). A revista adota as normas do Manual de Publicação da American Psychological Association - APA (4ª edição, 2001). Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 253 2) O número máximo de laudas deve atender a seguinte orientação: relatos de pesquisa (25 laudas); artigos de revisão/atualização (20 laudas); relatos de experiência profissional (15 laudas), comunicações breves (5 laudas) e resenhas (máximo de 5 laudas). 3) Encaminhamento: toda correspondência deve ser encaminhada à revista Aletheia, aos cuidados do Editor Responsável. 4) Todo manuscrito encaminhado à revista deverá ser acompanhado de uma carta de autorização, assinada por todos os autores, onde deve constar: a) a intenção de submissão do trabalho à publicação; b) a autorização para reformulação da linguagem, se necessário; c) a transferência de direitos autorais para a revista Aletheia. 5) O artigo deve conter: a) folha de rosto identificada: título do artigo em língua portuguesa; nome dos autores; formação, titulação e afiliação institucional dos autores; resumo em português de 10 a 12 linhas; palavras-chave, no máximo 3; título do artigo em língua inglesa; abstract compatível com o texto do Resumo; key-words; endereço para correspondência, incluindo CEP, telefone e e-mail. b) folha de rosto não identificada: título do artigo em língua portuguesa; resumo em português, de 10 a 12 linhas, 3 palavras-chave, título do artigo em língua inglesa, resumo (Abstract) em inglês, compatível com o texto do Resumo; key-words. c) corpo do texto. d) sugere-se que os artigos referentes a relatos de pesquisa apresentem a seguinte seqüência: Título; Introdução; Método (população/amostra, instrumentos, Procedimentos de coleta e Análise de dados – incluir nessa seção afirmação de aprovação do estudo em Comitê de Ética em Pesquisa de acordo com Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde – Ministério da Saúde); Resultados; Discussão, Referências (títulos em letra minúscula e em seções separadas). Usar as denominações tabelas e figuras (não usar a expressão quadros e gráficos). Colocar tabelas e figuras incorporadas ao texto. Tabelas: incluindo título e notas de acordo com normas da APA. Formato Word – ‘Simples 1’. Na publicação impressa, a tabela não poderá exceder 11,5 cm de largura x 17,5 cm de comprimento. O comprimento da tabela não deve exceder 55 linhas, incluindo título e rodapé(s). Para assegurar qualidade de reprodução, as figuras contendo desenhos deverão ser encaminhadas em qualidade para fotografia (resolução mínima de 300 dpi). A versão publicada não poderá exceder a largura de 11,5 cm para figuras. Anexos: apenas quando contiverem informação original importante, ou destaque indispensável para a compreensão de alguma seção do trabalho. Recomenda-se evitar anexos. 6) Trabalhos com documentação incompleta ou não atendendo às normas adotadas pela revista (APA, 4ª edição) não serão avaliados. 254 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Normas para citações - As notas não bibliográficas deverão ser colocadas ao pé das páginas, ordenadas por algarismos arábicos que deverão aparecer imediatamente após o segmento de texto ao qual se refere a nota. - As citações dos autores deverão ser feitas de acordo com as normas da APA (4ª edição). - No caso da citação integral de um texto: deve ser delimitada por aspas, e a citação do autor seguida do ano e do número da página citada. Uma citação literal com 40 ou mais palavras deve ser apresentada em bloco próprio em itálico e sem aspas, começando em nova linha, com recuo de 5 espaços da margem, na mesma posição de um novo parágrafo. A fonte será a mesma utilizada no restante do texto (Times New Roman, 12). • Citação de um autor: autor, sobrenome em letra minúscula, seguida pelo ano da publicação. Exemplo: Rodrigues (2000). • Citações de dois autores: cite os dois autores sempre que forem referidos no texto. Exemplo: (Carvalho & Santos, 2000) – quando os sobrenomes forem citados entre parênteses, devem estar ligados por &. Quando forem citados fora de parênteses, devem ser ligados pela letra e. • Citação de três a cinco autores: citar todos os autores na primeira referência, seguidos da data do artigo entre parênteses. A partir da segunda referência, utilize o sobrenome do primeiro autor, seguido de e cols. Exemplo: Silva, Foguel, Martins e Pires (2000), a partir da segunda referência, Silva e cols. (2000). • Artigo de seis ou mais autores: cite apenas o sobrenome do primeiro autor, seguido de e cols. (ANO). Na seção referências, todos os autores deverão ser citados. • Citação de obras antigas, clássicas e reeditadas: citar a data da publicação original, seguida da data da edição consultada. Exemplo: (Kant 1871/1980). • Autores com a mesma idéia: seguir a ordem alfabética de seus sobrenomes e não a ordem cronológica. Exemplo: (Foguel, 2003; Martins, 2001; Santos, 1999; Souza, 2005). • Publicações diferentes com a mesma data: acrescentar letras minúsculas, após o ano de publicação. Exemplo: Carvalho, 1997, 2000a, 2000b, 2000c. • Citação cuja idéia é extraída de outra ou citação indireta: utilizar a expressão citado por. Ex: Lopes, citado por Martins (2000),... Na seção Referências, incluir apenas a fonte consultada (Martins). • Transcrição literal de um texto ou citação direta: sobrenome do autor, data, página. Exemplo: (Carvalho, 2000, p.45) ou Carvalho (2000, p.45). Normas para referências As referências bibliográficas deverão ser apresentadas no final do artigo. Sua disposição deve ser em ordem alfabética do último sobrenome do autor e em minúsculo. Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 255 Livro Mendes, A. P. (1998). A família com filhos adultos. Porto Alegre: Artes Médicas. Silva, P. L., Martins, A., & Foguel, T. (2000). Adolescente e relacionamento familiar. Porto Alegre: Artes Médicas. Capítulo de livro Scharf, C. N., & Weinshel, M. (2002). Infertilidade e gravidez tardia. Em: P. Papp (Org.), Casais em perigo, novas diretrizes para terapeutas (pp. 119-144). Porto Alegre: Artmed. Artigo de periódico científico Dimenstein, M. (1998). O psicólogo nas Unidades Básicas de Saúde: desafios para a formação e atuação profissionais. Estudos de Psicologia, 3(1), 95-121. Artigos em meios eletrônicos Paim, J. S., & Almeida Filho, N. (1998). Saúde coletiva: uma “nova saúde pública” ou campo aberto a novos paradigmas? Revista de Saúde Pública, 32 (4) Disponível: <http://www.scielo.br> Acessado: 02/2000. Artigo de revista científica no prelo Albuquerque, P. (no prelo). Trabalho e gênero. Aletheia. Trabalho apresentado em evento científico com resumo em anais Corte, M. L. (2005). Adolescência e maternidade. [Resumo]. Em: Sociedade Brasileira de Psicologia (Org.), Resumos de comunicações científicas. XXV Reunião Anual de Psicologia (p. 176). Ribeirão Preto: SBP. Tese ou dissertação publicada Silva, A. (2000). Conhecimento genital e constância sexual em crianças préescolares. Dissertação de Mestrado ou tese de Doutorado. Programa de Estudos de PósGraduação em Psicologia do Desenvolvimento, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS. Tese ou dissertação não-publicada Silva, A. (2000). Conhecimento genital e constância sexual em crianças préescolares. Dissertação de Mestrado ou tese de Doutorado não publicada. Programa de Estudos de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS. Obra antiga e reeditada em data muito posterior Segal, A. (2001). Alguns aspectos da análise de um esquizofrênico. Porto Alegre: Universal. (Original publicado em 1950). 256 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Autoria institucional American Psychological Association (1994). Publication manual (4ª ed.).Washington: Autor. Endereço para envio de artigos Universidade Luterana do Brasil Curso de Psicologia Revista Aletheia Av. Farroupilha, 8001 – Bairro São José Sala 121 - Prédio 01 Canoas – RS – Brasil CEP: 92425-900 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 257 Instructions to authors Editorial policy Aletheia is a three-times yearly journal edited by the Psychology Program of the Lutheran University of Brazil, which purpose is to publish papers in Psychology and related sciences. Only unpublished papers will be accepted into these categories: original articles, review/update articles, professional experiences reports, brief communications and book reviews. Original articles: empirical research reports with scientific methodology. Review articles/ Update articles: systematic and update reviews about relevant themes according with editorial policy. Professional experiences reports: case reports with discussion of its conceptual or therapeutic implications; description of intervention procedures or strategies of psychology practitioners’ interest. Brief communications: brief reports of professional experiences or preliminary communications of original character. Book review: critical review of recently published books that may be of interest to psychology. Ethical aspects: All the articles involving research with human subjects must state that individuals included in these studies gave a Written Informed Consent, according to the national and international ethical regulations. In case of research with animals, authors must confirm that the study was done in accordance with the ethical care standards for the animals involved in the research. The authors are also requested to state in the “Methods” section that the research protocol was previously approved by a Research Ethics Board. Disclosures: The authors are requested to disclose all possible kinds of conflict of interest (professionals, financials, direct or indirect benefits), if the case. The failure to disclose properly can lead to publication refusal or cancellation. Editorial rules 1. Only unpublished articles will be accepted. 2. The articles will be evaluated by the Editors. 3. After initial evaluation, the Editors will send the submitted papers to the Editorial Board, which will be helped, whenever necessary, by ad hoc consultants of recognized expertise in the knowledge area. The Editorial Board and ad hoc consultants will analyze the manuscript, suggest modifications, and recommend or not its publication. 258 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 4. The papers may be: a) fully accepted; b) accepted with modifications; c) fully refused. In any of the situations the author will be properly communicated. The originals will not be returned in any case. 5. The authors will received a copy of the consultants’ analysis and will be informed about recommended modifications. 6. When the modified version of the manuscript is sent (this may happen up to 15 days after receiving the notification), the authors must include a letter to the Editors, elucidating the changes that have been made and justifying the ones they did not judge relevant to make. All modifications must be highlighted with Word’s tool “yellow brush”. The modified version of the article may be sent by e-mail ([email protected]). 7. The Editors have the right to make small modifications in the text. 8. The final decision of publication of a manuscript will always be of the Editor and of the editorial board in charge. They will take into consideration the original text, the consultant’s recommendations and the modified version of the article. 9. Articles may be submitted in other languages besides Portuguese (Spanish and English) 10. Regardless the number of authors, two copies of the journal per published article will be offered. The electronic version of the printed article (PDF file) can be accessed in Aletheia homepage www.ulbra.br/psicologia/aletheia. 11. The opinions emitted in the articles are full responsibility of author(s), and its acceptance does not mean that Aletheia supports it. 12. Total or partial reproduction can be made only after permission of the Editor. Aletheia owns the copyrights and will not transfer them to authors. Preparation of manuscripts 1) The unpublished articles must be sent in diskettes or CD and also one printed copy, typed in double space, Times New Roman letter, size 12, numbered since the title page. The sheet must be A4, with inferior and superior margins of 2,5 cm, and right and left margins of 3 cm. The journal follows the rules of Manual of Publication of American Psychological Association - APA (5th edition, 2001). Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 259 2) The maximum number of pages should be as follow: Original articles (25 pages); Review articles/Uptade articles (20 pages); Professional experiences reports (15 pages); Brief communications (5 pages); Book review (5 pages). 3) Submissions: All correspondence should be addressed to Aletheia in behalf of the Editor in charge. 4) Every manuscript sent to the Journal must be accompanied by an authorization letter, signed by all of the authors, stating: a) The intention of submission the article to publication; b) Authorization for modification of language if necessary; c) Transference of copyrights for Aletheia Journal. 5) The manuscript should contain: a) Title page: article title in Portuguese ; authors’ name; authors’ essential title and institutional affiliation; abstract in Portuguese from 10 to 12 lines; key words, at least 3; article title in English; abstract compatible with the text of Portuguese abstract ; key words; Correspondence address, including Zip Code, telephone and e-mail. b) Non identified title page: article title in Portuguese; abstract in Portuguese from 10 to 12 lines; key words, at least 3; article title in English; abstract compatible with the text of Portuguese abstract ; key words; * If article was not written in Portuguese, it must contain the same information in its original language. c) Body of the text. d) Original articles may have the following sequence: Title, Introduction, Method (population/sample; instruments; procedures; and data analysis. In this section the study approval in a Ethics Research Committee should be stated), Results, Discussion, Conclusion or Final Considerations, References (in small letters and in separate section). Use the denomination “table” and “figure” (and not graphs or other terms). Place tables and figures embedded in the text. Tables: including title and notes in accordance with APA’s standards . Word format - ‘Simple 1’. In the printed version the table may not exceed 11.5 cm wide x 17.5 cm in length. The length of the table should not exceed 55 lines, including title and footer(s). To ensure quality, the reproduction of pictures containing drawings should have photograph quality (minimum resolution of 300 dpi). The printed version can not exceed 11.5 cm width for pictures. Appendixes: only when they contain new and important information, or are essential to highlight and make more understandable any section of the paper. The use of appendixes should be avoided. 260 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 6) Papers with incomplete documentation or that do not attend the norms adopted by Aletheia (APA, 4th edition) will not be appraised. Citations norms - The non bibliographical notes must be put in the lower margin of pages, arranged by Arabic numerals that must appear immediately after the segment of text to which the note refers to. - The authors’ citations must be done in agreement with norms of APA (4th edition). - In the case of full citation of a text: it must be delimited by quotation mark and the author’s citation followed by the year and number of page mentioned. A literal citation with 40 or more words must be presented in proper block and in italic without quotation mark, starting a new line, with pullback of 5 spaces of margin, in the same position of a new paragraph. The letter will be the same used in the remaining of text (Times New Roman, 12). • Citation of an author: author, last name in small letter, followed by the year of publication. Example: Rodrigues (2000). • Citation of two authors: cite both authors always that they are referred in the text. Example: (Carvalho & Santos, 2000) – when the last names are cited between parentheses: they must be connected by &. When they are cited outside the parenthesis they must be connected by the letter e. • Citation from three to five authors: cite all the authors in the first reference, followed by the date of article between parentheses. Starting from the second reference, use the last name of the first author, followed by e cols. Example: Silva, Foguel, Martins and Pires (2000), starting from the second reference, Silva and cols. (2000). • Article of six or more authors: cite just the last name of the first author, followed by e cols (YEAR). In the references all the authors must be cited. • Citation of old, classic and reedited works: cite the date of original publication, followed by the date of edition consulted. Example: (Kant 1871/1980). • Authors with the same idea: follow the alphabetical order of their last names and not the chronological order. Example: (Foguel, 2003; Martins, 2001; Santos, 1999; Souza, 2005). Different publications with the same date: Increase capital letter, after the year of publication. Example: Carvalho (1997, 2000a, 2000b, 2000c). • Citation whose idea is extracted from other or indirect citation: Use the expression cited by. Ex: Lopes, cited by Martins (2000),... In the Bibliographical References, include just the source consulted (Martins). • Literal transcription of a text or direct citation: last name of author, date, page. Example: (Carvalho, 2000, p.45) or Carvalho (2000, p.45). Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 261 References norms The bibliographical references must be presented at the end of article. Its disposition must be in alphabetical order of the last name of author in small letter. Book Mendes, A.P. (1998). A família com filhos adultos. Porto Alegre: Artes Médicas. Silva, P.L., Martins, A., & Foguel, T. (2000). Adolescente e relacionamento familiar. Porto Alegre: Artes Médicas. Chapter of book Scharf, C. N., & Weinshel, M. (2002). Infertility and late pregnancy. Em P. Papp (Org.), Couples in danger,, new guideline for therapists (pp. 119-144). Porto Alegre: Artmed. Article of scientific journal Dimenstein, M. (1998). The psychologist in the Basic Units of Health: Challenges for the formation and professional performance. Studies of Psychology, 3(1), 95-121. Articles in electronic means Paim, J. S., & Almeida Filho, N. (1998). Collective Health: a “new public health” or open field for new paradigms? 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Some aspects of analysis of a schizophrenic person. Porto Alegre: Universal. (Original published in 1950) 262 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Institutional Authorship American Psychological Association (1994). Publication manual (4th edition). Washington: Author Address for submissions Universidade Luterana do Brasil Curso de Psicologia Revista Aletheia Av. Farroupilha, 8001 – Bairro São José CEP: 92425-900 Sala 121 - Prédio 01 Canoas – RS – Brasil Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 263 Instrucciones a los autores Política editorial Aletheia es una revista quadrimestral editada por el Curso de Psicología de la Universidad Luterana de Brasil, destinada a la publicación de trabajos de investigadores, implicados en estudios producidos en el área de la Psicología o ciencias afines. Serán aceptados solamente trabajos no publicados que se encuadren en las categorías de relato de investigación, artículo de revisión o actualización, relatos experiencia profesional, comunicaciones breves y reseñas. Relatos de investigación: investigación basada en datos empíricos, utilizando metodología y análisis científica. Artículos de revisión/actualización: revisiones sistemáticas y actuales sobre temas relevantes para la línea editorial de la revista. Relatos de experiencia profesional: estudios de caso, contiendo discusión de implicaciones conceptuales o terapéuticas; descripción de procedimientos o estrategias de intervención de interés para la actuación profesional de la psicología. Comunicaciones breves: relatos breves de experiencias profesionales o comunicaciones preliminares de resultados de investigación. Reseñas: revisión crítica de libros recién publicados, orientando el lector cuanto a sus características y usos potenciales. Aspectos éticos: Todos los artículos implicando investigación con seres humanos deben declarar que los participantes del estudio firmaron algún Término de Consentimiento Libre y Esclarecido, de acuerdo con las directrices brasileñas e internacionales de investigación. En el caso de investigación con animales los autores deben atestar que el estudio ha sido realizado de acuerdo con las recomendaciones éticas para este tipo de investigación. Los autores también son solicitados a declarar, en la sección “Método”, que el protocolo de la investigación ha sido previamente aprobado por algún Comité de Ética en Investigación del local de origen del proyecto. Conflictos de interés: los autores deben declarar todos los posibles conflictos de interés (profesionales, financieros, beneficios directos o indirectos), si es el caso. El fallo en declarar conflictos de interés puede llevar a la recusa o cancelación de la publicación. Normas editoriales 1. Serán aceptados solamente trabajos inéditos. 2. El artículo pasará por la apreciación de los Editores. 264 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 3. Seguido de una evaluación inicial, los Editores enviarán para apreciación del Consejo Editorial, que podrá hacer uso de consultores ad hoc de reconocida competencia en el área de conocimiento. La Comisión Editorial y los Consultores ad hoc analizan el artículo, sugieren modificaciones y recomiendan o no su publicación. 4. Los artículos podrán recibir: a) aceptación integral; b) aceptación con reformulaciones; c) recusa integral. En cualquier de estas situaciones el autor será debidamente comunicado. Los originales, en ninguna de las posibilidades, serán devueltos. 5. El autor del artículo recibirá copia de los pareceres de los consultores. Será informado sobre las modificaciones que necesiten ser realizadas. 6. En el envío de la versión modificada del artículo (en el límite máximo de 15 días después del recibimiento de la notificación), los autores deberán incluir una carta al Editor, esclareciendo las alteraciones hechas y aquellas que no juzgaran pertinentes y la justificativa. En el texto, las modificaciones hechas deberán estar destacadas con la herramienta Word “pincel amarillo”. El envío del archivo con las modificaciones realizadas puede ser realizado por e-mail ([email protected]). 7. Los Editores se reservan el derecho de hacer pequeñas alteraciones en el texto de los artículos. 8. La decisión final sobre la publicación de un manuscrito siempre será del Editor Responsable y del Consejo Editorial, que hará una evaluación del texto original, de las sugerencias indicadas por los consultores y las modificaciones enviadas por el autor. 9. Los artículos podrán ser escritos en otra lengua además del portugués (español e inglés). 10. Independientemente del número de autores, serán ofrecidos dos ejemplares por trabajo publicado. El archivo electrónico con la publicación en PDF estará disponible en el site www.ulbra.br/psicologia/aletheia. 11. Las opiniones emitidas en los artículos son de entera responsabilidad de los autores, su aceptación no significa que la Revista Aletheia o el Curso de Psicología de la ULBRA le soportan. 12. La materia editada por la Aletheia podrá ser impresa total o parcialmente, des de que obtenida la autorización del Editor Responsable. Los derechos autorales obtenidos por la publicación del artículo no serán repasados para el autor del artículo. Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 265 Presentación de los originales 1) Los artículos inéditos deberán ser enviados en disquete o CD y una vía impresa, digitada en espacio doble, fuente Times New Roman, tamaño 12 y paginado desde la hoja de rostro personalizada. La hoja deberá ser A4, con formatación de márgenes superior e inferior (mínimo de 2,5 cm), izquierda y derecha (mínimo de 3 cm). La revista adopta las normas del Manual de Publicación de la American Psychological Association - APA (4ª edición, 2001). 2) El número máximo de laudas debe atender a la siguiente orientación: Relatos de investigación (25 laudas); Artículos de revisión/actualización (20 laudas); Relatos de experiencia profesional (15 laudas), Comunicaciones breves (5 laudas) y Reseñas de libros (máximo de 5 laudas). 3) Dirección: Toda correspondencia debe ser dirigida a la Revista Aletheia, a la atención del Editor Responsable. 4) Todo manuscrito dirigido a la Revista deberá acompañar una carta de autorización, firmada por todos los autores, donde deberá constar: a) la intención de sumisión del trabajo a la publicación; b) la autorización para reformulación del lenguaje, si necesario; c) la transferencia de derechos autorales para la Revista Aletheia. 5) El artículo debe contener: a) Hoja de portada identificada: título del artículo en lengua portuguesa; nombre de los autores; formación, titulación y afiliación institucional de los autores; resumen en portugués de 10 a 12 líneas; palabras-clave, en el máximo de 3; título del artículo en lengua inglesa; abstract compatible con el texto del resumen; keywords; dirección para correspondencia, incluyendo CEP, teléfono y e-mail. b) Hoja de portada no identificada: título del artículo en lengua portuguesa o castellana; resumen en portugués o castellano, de 10 a 12 líneas, 3 palabras-clave, título del artículo en lengua inglesa, resumen (abstract) en inglés, compatible con el texto del Resumen en lengua original; keywords. c) Cuerpo del texto. d) Sugiérase que los artículos referentes a Relatos de Investigación presenten la siguiente secuencia: Título; Introducción; Método (populación/muestra, instrumentos, procedimientos de recogida y análisis de los datos, (incluir en esta sección afirmación de aprobación del estudio en Comité de Ética en Investigación de acuerdo con la Resolución 196/96 del Consejo Nacional de Salud – Ministerio de Salud o declaración de haber atendido a los criterios de dicha resolución); Resultados; Discusión, Referencias (títulos en letra minúscula y en secciones separadas). Utilizar las denominaciones tablas y figuras (no utilizar la expresión cuadros y gráficas). Dejar las tablas y figuras 266 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 incorporadas al texto. Tablas: incluyendo título y notas de acuerdo con las normas de la APA. Formato Word – ‘Sencillo 1’. En la publicación impresa la tabla no podrá exceder 11,5 cm de ancho x 17,5 cm de largo. El largo de la tabla no debe pasar de 55 líneas, incluyendo título y notas al pié. Para garantizar cualidad de reproducción, las figuras que contengan dibujos deberán ser dirigidas en cualidad para fotografía (resolución mínima de 300 dpi). La versión publicada no podrá ultrapasar el ancho de 11,5 cm para figuras. Anexos: solo cuando tengan información original importante, o destaque indispensable para la comprensión de alguna sección del trabajo. Recomendase evitar anexos. 6) Trabajos con documentación incompleta o no atendiendo las normas adoptadas por la revista (APA, 4ª edición) no serán evaluados. Normas para citaciones - Las notas no bibliográficas deberán ser puestas al pié de las páginas, ordenadas por números arábicos que deberán figurar inmediatamente después del segmento de texto al cual se refiere a la nota. - Las citaciones de los autores deberán ser hechas de acuerdo con las normas de la APA (4ª edición). - En el caso de la cita integral de un texto: debe ser delimitada por comillas y la citación del autor, seguida del año y del número de la página citada. Una cita literal con 40 o más palabras debe ser presentada en bloque propio y en cursiva y sin comillas, empezando en nueva línea, con una retirada de espacio de 5 espacios del margen, en la misma posición de un nuevo párrafo. La fuente será la misma utilizada en el restante del texto (Times New Roman, 12). • Citación de un autor: autor, apellido en letra minúscula, seguida por el año de publicación. Ejemplo: Rodrigues (2000). • Citaciones de dos autores: cite los dos autores siempre que sean referidos en el texto. Ejemplo: (Carvalho & Santos, 2000) - cuando los apellidos sean citados entre paréntesis: deben estar separados por &. Cuando sean citados fuera del paréntesis deben ser vinculados pela letra e, en publicaciones en portugués y por la letra y para publicaciones en castellano. • Citación de tres a cinco autores: citar todos los autores en la primera referencia, seguidos de la fecha del artículo entre paréntesis. A partir de la segunda referencia, utilice el apellido del primero autor, seguido de y cols. Ejemplo: Silva, Foguel, Martins y Pires (2000), a partir de la segunda referencia: Silva y cols. (2000) • Artículo de seis o más autores: cite solamente el apellido del primero autor, seguido de y cols. (AÑO). En la sección Referencias, todos los autores deberán ser citados. • Citación de obras antiguas, clásicas y reeditadas: citar la fecha de la publicación original, seguida de la fecha de la edición consultada. Ejemplo: (Kant 1871/1980). Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 267 • Autores con la misma idea: seguir el orden alfabético de sus apellidos y no el orden cronológico. Ejemplo: (Foguel, 2003; Martins, 2001; Santos, 1999; Souza, 2005). • Publicaciones distintas con la misma fecha: Añadir letras minúsculas, luego el año de publicación. Ejemplo: Carvalho, 1997, 2000a, 2000b, 2000c. • Citación cuya idea es extraída de otra o citación indirecta: Utilizar la expresión citado por. Ej.: Lopes, citado por Martins (2000),... En la sección Referencias, añadir solamente la fuente consultada (Martins). • Transcripción literal de un texto o citación directa: apellido del autor, fecha, página. Ejemplo: (Carvalho, 2000, p.45) o Carvalho (2000, p.45). Normas para referencias Las referencias bibliográficas deberán ser presentadas en el final del artículo. Su disposición debe ser en orden alfabético del último apellido del autor (cuando presente más de uno) y en minúscula. En el caso de autores hispánicos, se puede utilizar la normativa de la APA, y presentar los dos apellidos a la vez, separados por un guión. Ej.: Martínez-Cruz. Libro Mendes, A. P. (1998). A família com filhos adultos. Porto Alegre: Artes Médicas. Silva, P. L., Martins, A., & Foguel, T. (2000). Adolescente e relacionamento familiar. Porto Alegre: Artes Médicas. Capítulo de libro Scharf, C. N., & Weinshel, M. (2002). Infertilidade e gravidez tardia. Em: P. Papp (Org.), Casais em perigo, novas diretrizes para terapeutas (pp. 119-144). Porto Alegre: Artmed. Artículo de publicación periódica científica Dimenstein, M. (1998). O psicólogo nas Unidades Básicas de Saúde: desafios para a formação e atuação profissionais. Estudos de Psicologia, 3(1), 95-121. Artículos en medios electrónicos Paim, J. S., & Almeida Filho, N. (1998). Saúde coletiva: uma “nova saúde pública” ou campo aberto a novos paradigmas? Revista de Saúde Pública, 32 (4) Disponível: <http://www.scielo.br> Acessado: 02/2000. Artículo de revista científica en prensa Albuquerque, P. (en prensa). Trabalho e gênero. Aletheia. 268 Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 Trabajo presentado en evento científico con resumen en anales Corte, M. L. (2005). Adolescência e maternidade. [Resumo]. Em: Sociedade Brasileira de Psicologia (Org.), Resumos de comunicações científicas. XXV Reunião Anual de Psicologia (p. 176). Ribeirão Preto: SBP. Tesis o monografía publicada Silva, A. (2000). Conhecimento genital e constância sexual em crianças préescolares. Dissertação de Mestrado ou tese de Doutorado. Programa de Estudos de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS. Tesis o monografía no-publicada Silva, A. (2000). Conhecimento genital e constância sexual em crianças préescolares. Dissertação de Mestrado ou tese de Doutorado. Programa de Estudos de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS. Obra antigua y reeditada en fecha muy posterior Segal, A. (2001). Alguns aspectos da análise de um esquizofrênico. Porto Alegre: Universal. (Original publicado em 1950). Autoría institucional American Psychological Association (1994). Publication manual (4ª ed.). Washington:Autor Dirección para el envío de artículos Universidade Luterana do Brasil Curso de Psicologia Revista Aletheia Av. Farroupilha, 8001 – Bairro São José Sala 121 - Prédio 01 Canoas/RS – Brasil CEP: 92425-900 E-mail: [email protected] Aletheia 43-44, jan./ago. 2014 269