A REPRESENTAÇÃO DO DÊMOS NAS COMÉDIAS DE ARISTÓFANES
Márcia Cristina Lacerda RIBEIRO
UNEB
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Nesse trabalho pensamos o conceito de representação da forma que nos
apresenta Chartier. Para ele, as estruturas do mundo social não são um dado objetivo,
tal como o não são as categorias intelectuais e psicológicas: todas elas são
historicamente produzidas pelas práticas articuladas (políticas, sociais, discursivas)
que constroem as suas figuras (CHARTIER p. 27). Assim, as representações não são a
realidade, mas um olhar sobre ela, que, apesar de construídas como universais, são
determinadas pelos interesses de quem as constroem.
Dessa maneira, esse trabalho procura entender se há e qual seria a representação
do dêmos ateniense elaborada pelo comediógrafo grego Aristófanes (ap. 448-380 a.C.).
Três peças são objetos de análise, todas apresentadas no Festival das Lenéias: Os
Acarnenses (425 a.C.), Os Cavaleiros (424 a.C.) e As Vespas (422 a.C.).
A palavra dêmos carrega em si dois significados diferentes: por um lado, designa
o corpo de cidadãos, que atuava através da assembléia, e os decretos desta, na
linguagem oficial dos documentos, eram votados pelo dêmos. Finley afirma-nos que
“aqueles que estavam presentes em qualquer reunião singular constituíam o “dêmos”
nessa ocasião e, por lei, os seus atos eram reconhecidos como ação de todo o povo”
(Finley, 1963); por outro lado, os textos antigos dão a ela outro sentido: povo, raiamiúda em oposição aos melhores. É nessa perspectiva que lançamos mão desse termo
no presente trabalho. Para enfatizar a nossa escolha, transcrevemos abaixo uma
passagem de Aristóteles em A Constituição de Atenas, onde o autor deixa claro essa
divisão dos cidadãos em duas facções, o povo e os notáveis:
...o primeiro líder do povo foi Sólon, e o segundo Pisístrato, ambos de berço nobre e
notáveis. Após a deposição da tirania foi Clístenes, da casa dos Alcmeônidas, o qual
não tinha nenhum adversário desde a expulsão dos partidários de Iságoras.
Posteriormente, Xantipo foi o líder do povo, e Milcíades o dos notáveis; em seguida,
Temístocles e Aristides: depois desses, Efialtes o do povo, e Címon, filho de Milcíades,
o dos abastados; em seguida, Péricles o do povo e Tucídides, parente afim de Címon, o
da outra facção. Após a morte de Péricles, Nícias... era líder dos cidadãos distintos, ao
passo que o do povo era Cléon (XXVIII).
Em Acarnenses, após celebrar uma trégua particular com os espartanos,
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Diceópolis é tratado como traidor da pátria e apedrejado pelos Acárnios. Toma um cesto
de carvão como refém e ameaça dar cabo do mesmo se não puder fazer a sua defesa.
Sem alternativas, os acarnenses resolvem ouvi-lo. Antes de se pronunciar, entretanto,
pede auxílio ao poeta trágico – Eurípedes – para tomar de empréstimo um traje utilizado
por um de seus personagens, aquele que mais piedade possa causar; precisa parecer
mais desgraçado do que realmente é. Observe na passagem seguinte que Diceópolis
acredita que com o disfarce e algumas tretas pode iludir o coro, aqui o próprio dêmos.
Hoje tenho de me fazer passar por mendigo, tenho de ser aquilo que sou,
não apenas parecê-lo. Os espectadores podem saber quem sou, mas o
coro tem de ficar aparvalhado, enquanto eu lhe faço o ninho atrás da
orelha, com meia dúzia de tretas (Acarnenses, v. 435-444).
A seguir o coro convence-se de que nessa disputa foi Diceópolis o vencedor:
Este homem saiu vencedor com a sua argumentação, pois soube levar o
povo a mudar de idéia em relação às tréguas (Acarnenses v 627-628).
É ainda nesse momento, a parábase, que Aristófanes, através do coro, se reporta
à platéia sobre os ataques que lhe foram imputados pelos inimigos, de maltratar a cidade
e o seu povo em suas comédias; é o que entrevemos na passagem seguinte.
Ele (Aristófanes) sente a necessidade de hoje, aqui, responder a esses
ataques perante os Atenienses, sempre prontos a mudarem de decisões.
Seria a democracia, então, um lugar onde alguns, com os seus belos discursos,
conseguiriam persuadir o povo, vindo este a tomar decisões das quais se arrependeria
mais tarde. O povo seria dominado numa espécie de hipnose pelo poder persuasivo
exercido por alguns:
Dantes os embaixadores das cidades quando vos queriam enganar,
começavam por vos chamar “povo coroado de violetas”. Mal tais
palavras eram ditas, vocês ficavam logo de rabo alçado lá com a
história das coroas. Quem quer que fosse, para vos espicaçar a vaidade
chamasse “lustrosa” a Atenas, conseguia tudo com essa “lustrosa”, por
vos dar um epíteto próprio de sardinhas.
Nessa altura, o poeta se apresentaria como um contraponto aos que só desejam
enganar o povo, proporcionando a este o exame dos seus erros: diz ele que vos há de
ensinar muitas coisas boas, a felicidade, por exemplo, sem vos lisonjear, sem vos
prometer dinheiro, sem vos ludibriar nem um pouco que seja, sem trafulhices nem
catadupas de elogios (Acarnenses, v. 656-658).
Aristófanes dá ao herói o nome de Diceópolis; o adjetivo dikaios (justo) assomaANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 06 – Poder, cultura e
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se a pólis (cidade), significando o cidadão da cidade justa.
Em Cavaleiros, o salsicheiro ao ser informado que seria o novo líder do dêmos,
admira-se de como vai ser capaz de governá-lo. Entre os versos 214 e 220, o 1º escravo
esclarece que tais condições já lhe são próprias do ofício de negociante:
1º Escravo - É muito simples. Continua a fazer aquilo que já fazes:
misturas os negócios públicos, amassa-los todos juntos, numa pasta. O
povo, conquistá-lo quando quiseres, como umas palavrinhas
delicodoces, lá da tua especialidade. Tudo mais necessário à demagogia
tem-lo tu de sobra, voz de safado, baixa condição, ar de valdevinos. Tens
tudo o que é preciso para a governação.
Iniciado o Párodo, o grupo de cavaleiros, inimigos do paflagônio, participa de
uma conspiração para demovê-lo do poder. O servo paflagão, ao tomar pé da situação,
não tarda em se debater com o salsicheiro qual deles possuía as características mais
adequadas ao líder do povo. Aristófanes desfila então, a partir do verso 325, as façanhas
e manobras de cada um dos rivais: estará apto a governança aquele que vencer em
desfaçatez, mentira, trapaça e roubo. O salsicheiro, vencedor do primeiro debate, afirma
que, após um roubo fascinante do qual havia se safado, pois escondia o furto no rabo, e
negava a pés juntos (v. 424), um político não se conteve e lhe disse: “Não há dúvida,
este rapaz está talhado para governar o povo (V. 426).
Diante da derrota, o paflagônio dirige-se a Boulé no intuito de denunciar as
conspirações dos rivais, e é seguido pelo salsicheiro. No retorno, o candidato a líder do
povo informa o que se passara: o paflagônio obtivera grande receptividade, até que o
salsicheiro desse a informação que os preços das sardinhas haviam abaixado: todos
aplaudiram e ficaram pasmados a olhar para mim (v. 651-652). Inicia-se outra disputa
entre os rivais para ver quem é capaz de agradar melhor a Boulé.
O poeta nos sugere nesse momento que a Boulé, naturalmente volúvel e
corruptível, apóia aquele que mais lhe agrada aos ouvidos e ao estômago, esquecendo-se
dos interesses da cidade. O salsicheiro acrescenta que bastou um óbulo de coentros para
temperar as sardinhas e havia conquistado a todos. (V. 681).
O paflagônio derrotado dirige-se a Demos, personagem que representa o próprio
povo na peça, sei como se lhe adoça a boca (v. 715) e em seguida nos versos 720-721
salienta: habilidade não me falta para fazer o povo esticar ou encolher. Nesse aspecto,
o salsicheiro é obrigado a concordar, pois o negociante de curtumes está acostumado a
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ceder migalhas ao povo enquanto arrebata três vezes mais.
Na assembléia, na Pnix, Demos decidirá a quem entregará o seu amor e o seu
comando. Inicia-se um novo agon entre salsicheiro e paflagônio. Este relembra ao
demos quantas benesses lhe propiciara, e o salsicheiro logo providencia um presentinho
– uma almofada – para aliviar o povo que sempre se sentara numa pedra dura nas
assembléias. Acrescenta ele que o Povo, com a guerra e a poeira que ela levanta, não
veja as trafulhices que tu fazes; antes por miséria, por necessidade e falta de salário,
ande atrás de ti como um cordeirinho (V.802-805). Nos versos seguintes, vemos o
desfile dos regalos ofertados ao dêmos por ambas as partes, desde sapato, camisa,
remédio, até a promessa de um prato de salários (v. 905) para não falar dos próprios
cabelos que o paflagônio oferece ao povo para que ele, após assuar, limpe os dedos (v.
910). O negociante de salsichas vence mais essa batalha, mas tenta mais uma vez, num
último embate, convencer o povo de que faz um mau negócio trocando-o por outro.
Entre os versos 1100 a 1200, o dêmos é brindado, num combate em que os rivais tentam
se superar nas suas tentativas de corrompê-lo, com farinha, torta, empada, purê de
ervilhas, sopa, peixe, carne, pinga, enfim tudo que agrada ao estômago insaciável do
povo.
O salsicheiro solicita ao Povo que escolha o melhor e, diante da dúvida, pede-lhe
para que examine a cesta de presentes que cada um havia trazido para ofertá-lo. Qual
não é a surpresa do dêmos ao descobrir que enquanto a cesta do negociante de salsicha
estava vazia, porque ele havia ofertado tudo, a do atual líder do povo permanecia
cheinha de tudo o que é bom (v. 1219), pois, enquanto dava a menor e pior fatia ao
demos, assegurava para si a melhor.
Ainda insatisfeito com a vitória do salsicheiro, o paflagônio diz que possui um
oráculo pítico informando quem era o demagogo capaz de desentronizá-lo, bastava o
seu rival responder a algumas perguntas. Em relação à escola que freqüentou, o
salsicheiro informa que havia sido os matadoiros, a força do soco (v. 1236); interpelado
em relação aos golpes, havia aprendido a roubar e jurar falso, olhando as pessoas de
frente (v. 1239), e, por fim, quanto à profissão informara vendia chouriços e fazia uns
servicinhos de mariquice à porta da cidade (v. 1243-1247).
Vespas está repleta de passagens que nos assevera um povo que age
irrefletidamente, sem mensurar os alcances dos seus atos e que acredita no líder que o
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guia. Afirma Diceópolis: O próprio Cléon com sua voz de trovão, não só não nos
morde, mas ainda nos guarda e, conservando-nos em seus braços, enxota-nos as
moscas (v. 597-598). Logo na abertura, dois escravos conversam sobre os sonhos que
tiveram. Sósia informa que no primeiro sonho pareceu-lhe “ter visto uma assembléia de
carneiros reunidos no Pnix com bastões e mantos curtos; depois, me pareceu que a
esses carneiros falava uma baleia voraz, que tinha voz de porco chamuscado”. (Vespas
v. 31-34). O sonho é uma referência à assembléia popular e ao líder Cléon, numa alusão
a subserviência com que o povo acatava as suas propostas.
Tal subserviência é constatada ainda na fala do corifeu, que deixa claro o poder
de manipulação que o líder detém:
É voz corrente que ele [Laques] possui um cortiço cheio de dinheiro. Por isso,
ontem Cleão, nosso protetor, nos pediu para chegar na hora, com uma
provisão... de cólera terrível de três dias, para o punirmos de seus crimes
(Vespas, v. 244-246).
Nessa altura, uma criança dirige-se ao pai, solicitando que lhe compre figos,
dando oportunidade para mencionar como os heliastas dependiam de tal atividade para
sustentar a sua família.
CORO -... porque com esse magro salário, tenho que comprar pão, lenha,
carne, e ainda me pedes figos?
UMA CRIANÇA - Dize-me, pai, se o Arconte não abrir hoje o tribunal, que
haveremos de almoçar? Tens alguma salutar esperança a nos oferecer ou
apenas “o caminho sagrado de Hele?”
CORO – Ai! Ai! Por Zeus, não sei realmente como almoçaríamos! (Vespas v
291-315)
O demos seria aquele que se deixa seduzir facilmente, subordinado,
passivo, comprado com migalhas e corruptível.
Bdelicleão - Porque tu, pai, seduzido por essas palavras, te submeteste ao
domínio deles. Essa gente arranca de uma só vez às cidades dezenas de
talentos, com ameaças assim: “pegareis o tributo ou trovejarei e arrasarei
vossa cidade”. E te contentas em roer as migalhas de tua realeza. Os aliados,
percebendo que a ralé vive com o produto das urnas, enfraquecida e
alimentando-se, por assim dizer, de nada, fazem tanto caso de ti como do
sufrágio de Conos. (Vespas 667 e seg).
Tu, desde que te dêem três óbolos, estás satisfeito (Vespas v 686).
Além do mais, vives sob as ordens deles (Vespas v. 688).
Toma por cúmplice um dos seus colegas e se um acusado manda um presente,
ambos se estendem rapidamente sobre o assunto como dois serradores, dos
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quais um solta e o outro puxa, e tu, de boca aberta, olhas para o colácreto, sem
perceber a manobra (Vespas v. 693-696).
Considera ainda que poderias ser rico, tu e todos os outros, mas te deixas
ludibriar, não sei como, pelos eternos bajuladores do povo (vespas v. 700-702)
Bdelicleão afirma que tudo isso acontece por obra e graça do demagogo, no
desejo de manter o povo submisso enquanto ele reina; com as riquezas que a cidade
possui seria fácil assegurar o bem-estar do povo se assim fosse o desejo daqueles que
orientam a política.
Filocleão, tomado de dúvidas, parece ir se dando conta de que, em vez de senhor
absoluto, não passava de um reles objeto nas mãos dos demagogos:
Fazem isso comigo? Que dizes? Tu me perturbas profundamente e desorientas
ainda mais meu espírito! Não sei realmente o que me fazes (Vespas v 696-699).
O dêmos seria então, na verdade, uma multidão de incapazes, subornáveis com
meia dúzia de tretas ou palavras delicodoces, facilmente induzida a mudar de idéias?
Não haveria nele qualquer capacidade crítica de discernimento? Incapazes de ir além de
seu estômago e de seu bolso, bastariam algumas lisonjas e, como cordeirinhos,
ludibriados, seria exemplo do mais alto grau de servilismo?
Em Vespas, não seria diferente, pois alude à platéia de espectadores
imprevisíveis (v. 1054). O demagogo também não escapa: seria um sujeito sem tradição,
um ladrão astuto, mal educado o suficiente para manipular o dêmos com trapaças e
vilanias.
Neste sentido, a confirmar tais impressões, praticamente a totalidade dos relatos
antigos respeitante ao dêmos comungaria da posição de Aristófanes quando alude a esta
sua pretensa irracionalidade e incapacidade na direção da política da cidade: Platão,
Pseudo- Xenofonte e Tucídides entre eles.
Sócrates, no diálogo com Críton, quando este tenta persuadi-lo a fugir da cidade
e escapar ao julgamento que certamente será a sua ruína, afirma que o dêmos toma as
decisões sem qualquer reflexão, não sendo capaz de fazer nem o bem nem o mal.
Quem dera, Críton, que a multidão fosse capaz de realizar os maiores males,
contanto que fosse igualmente capaz de realizar os maiores bens! Seria bom que
assim fosse... Mas a verdade é que ela não é capaz nem de uma coisa nem de
outra. Não tem em si o poder de tornar um homem sensato ou insensato: o que
faz é pura e simplesmente ao acaso (Platão, Críton, 44-b).
...que [o dêmos] com toda a facilidade manda matar um homem e que, morto
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este, o ressuscitaria, se pudesse, sem a mínima reflexão (Platão, Críton, 48-c).
Pseudo-Xenofonte, em A Constituição dos Atenienses, afirma que não aprova a
sua constituição por que eles deram o poder aos piores e não aos melhores (I.1). O autor
divide os cidadãos em duas partes – piores e melhores, sendo estes últimos de tradição
aristocrática, virtuosos e de elevado grau de instrução, e aqueles, destituídos dessas
prerrogativas, são, portanto, incapazes de exercerem o bom governo da pólis.
Ora, em todo lugar o melhor se opõe à democracia. Porque os melhores são
menos sujeitos à perda do autocontrole e à injustiça e mais disciplinados em
relação ao que é respeitável, enquanto o povo manifesta extrema ignorância e
desordem, porque a pobreza provoca-lhes vergonha e, em alguns casos, a
ausência de riqueza leva alguns à falta de educação e à ignorância (I.5)
Mas os atenienses acreditam que a ignorância, a incultura e a benevolência são
mais úteis que a virtude, a sabedoria e a intolerância dos homens honestos (I.7).
A memória tucidedeana apresenta-nos um dêmos também carregado com a
pecha da irracionalidade. Tucídides divide a história de Atenas em dois momentos
absolutamente distintos: antes e depois de Péricles. Aponta o Olímpico como o líder por
excelência, aquele que podia conter a multidão sem lhe ameaçar a liberdade e conduzila ao invés de ser conduzido por ela (Magalhães, 1996, p.6), o mesmo não se aplica aos
seus sucessores, equivalentes uns aos outros, mas cada um desejoso de ser o primeiro,
procuravam sempre satisfazer aos caprichos do povo e até lhe entregavam a condução
do governo (Idem, p.6). A derrota de Atenas consistiu, portanto, justamente no fato de o
governo da cidade passar às mãos de demagogos que não sabiam conduzir a multidão,
ficando a mercê dos seus desejos, e o que é ainda mais grave, entregavam a essa
multidão o governo da pólis.
Embora não seja nosso propósito aqui analisar as memórias de Tucídides, Platão
e Pseudo-Xenofonte, cumpre salientar que acreditamos que, ao relatarem um dêmos
incapaz de conduzir a política, ambos revelam uma mentalidade aristocrática que
vincula a participação popular à ignorância e à irracionalidade.
Para Ehrenberg (1951), Atenas alcançou o sucesso na época de Péricles, mas
após a sua morte tudo mudou; era então natural que muitos Atenienses quisessem
encontrar a resposta para a mudança de rumos da cidade. É o caso de Tucídides que
imputa ao novo tipo de liderança, incompetente na condução do demos, a ruína da pólis.
No que diz respeito às comédias de Aristófanes, elas parecem nos levar a um
comediante/educador, que dedicou o seu métier a ensinar ao dêmos como agir sem ser
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levado por palavras lisonjeiras que os deixasse apalermados. Na Parábase de
Acarnenses, entre os versos 656-658, o poeta é taxativo: há de sempre defender a
justiça, e, como transcrevemos acima, afirma que há de ensinar muitas coisas ao povo,
inclusive como não se deixar enganar.
Seria, afinal, Aristófanes um oligarca? MacDowell (1996) não acredita nessa
versão. Para este autor, o poeta apenas pensa que os cidadãos não estão fazendo um
bom uso do poder, deixando-se levar por discursos inteligentes, por isso satiriza a
tendência do dêmos em pensar somente na gratificação imediata; ele deveria agir com
mais criticidade e não como lhes mandam os políticos, o que [o poeta] quer é mais
democracia e não menos (op. cit.: p. 353).
Para MacDowell, Aristófanes é um educador dos atenienses e toma para si a
tarefa de conscientizá-los; é o próprio poeta que afirma que assim se conduz. Logo,
embora em teoria muitas daquelas passagens tenham sido interpretadas como ironia
elaborada, não há realmente motivo para adotar essa interpretação distorcida. É bem
provável que eles [os poetas] dissessem exatamente o que pensavam (Idem, p. 355).
Oligarca ou não, atuando ou não como educador, há quem negue, como
MacDowell e aqueles por ele criticado imaginam, que Aristófanes propusesse alguma
mensagem. Segundo Byl (apud Magalhães, 1996: p.141):
O tripudiar cômico ao dêmos, assim como o escárnio às celebridades da época,
tem sua motivação situada nas origens religiosas da Comédia Antiga: por sua
vinculação ancestral a certas festividades religiosas, a Comédia teria se
desenvolvido caracterizada pelo humor agressivo, de zombaria, de insulto,
dirigido contra inúmeros alvos (op. cit.: p. 141)
O propósito de disseminar insultos à democracia e ridicularizar os protagonistas
do regime, apontado por muitos dos estudiosos que vêem em Aristófanes uma
mensagem política, argumenta-se, seria incompatível, com o fato de muitas dessas peças
terem ganho os primeiros prêmios e do apoio dado pelo Estado a tais festividades.
A Comédia por estar inserida em festas ligadas ao deus Dionisos tomava para si
as suas características, como a transgressão das normas e a subversão da ordem. Lima
Reis (2002) salienta: este espaço aberto de licenciosidade permite a liberação do riso,
através da exposição do grotesco, da deformação, da caricatura, dos excessos, da
‘depravação sexual’, do ridículo, mesmo porque o próprio riso supõe certa distorção
em relação ao real (op. cit.: p.4).
ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 06 – Poder, cultura e
diversidade na Antiguidade e no Medievo.
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Pois bem, neste último caso, as imagens postas em cena nas comédias
aristofânicas nada representariam, não remetendo, de modo algum, ao demos ateniense
ou a qualquer pensamento do autor. Não passaria, então, de um jogo, no âmbito do
qual, tais zombarias eram permitidas como válvula de escape social.
Sobre qual das leituras acima é a mais adequada, ou se um terceiro caminho
interpretativo pode ser adotado, é algo que só um estudo mais atento e contextualizado
das peças pode vir a nos proporcionar, o que pretendemos desenvolver em nossa
pesquisa.
BIBLIOGRAFIA
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ARISTÓFANES. Os Acarnenses. Tradução de Maria de Fátima de Souza e Silva.
Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1985.
ARISTÓFANES. Os Cavaleiros. Tradução de Maria de Fátima de Souza e Silva.
Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1985.
ARISTÓFANES. As Vespas. Trad. Junito de Souza Brandão. IN Teatro Grego:
Eurípedes e Aristófanes. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, s.d.
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Hucitec, 1995.
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FINLEY, Moses. Os Gregos Antigos. Lisboa: Ed. Setenta, 1963.
FINLEY, Moses. Democracia Antiga e Moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
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MAGALHÃES, Luiz Otávio de. Curtumeiros e Salsicheiros – A Representação
Cômica da Demagogia em Cavaleiros de Aristófanes. Dissertação de Mestrado. São
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REIS, Rachel Correia Lima. Homossexualidade e Política nas Comédias de
Aristófanes. In: Revista Eletrônica Hélade 3 (1), 2002 – http://www.heladeweb.net
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Márcia Cristina Lacerda Ribeiro