Vida de João Batista de la Sal
Salle
João Batista Blain, Sacerdote
VIDA DO PADRE JOÃO
BATISTA DE LA SALLE
Fundador dos Irmãos das Escolas Cristãs
Volume I
Tradução do original francês: Irmão Albino Affonso Ludwig, fsc
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
Carta dedicatória ao Santíssimo menino Jesus
Ó Menino Jesus, a teus pés colocamos esta obra como tributo que, por todos os títulos,
pertence a tua divina Majestade. Nós a empreendemos pelo desejo de te glorificar e edificar
aos filhos de tua santa Igreja. Inspira-nos a ousadia de a dedicar a ti o desejo de que tu a honres com tua santa proteção e a favoreças com a abundância de tuas bênçãos.
Uma vez que nenhum outro fora de ti se encarregou dos interesses da obra de que trata
este livro, a ti somente pertence sua dedicação. Uma obra que não teve outro protetor do que
tu não deve ambicionar outra proteção. Só tu lhe és bastante. Só tu saberás defendê-la contra
todos os poderes da terra e do inferno como o fizeste até o presente, quando os Filhos, seguindo o exemplo do Pai, souberem ter plena confiança em tua infinita bondade.
Por que haverão eles de pretender o favor de algum grande, ao colocar o seu nome no
cabeçalho desta obra? Não sabem eles, pelas luzes da fé, que o braço do homem mais ilustre
e poderoso apenas é um caniço frágil que não pode ficar de pé e deixa cair a quem o toma
como apoio? Não sabem eles pela história de seu Instituto e de seu Fundador, que a obra que é
de Deus não pode ser destruída pelos homens, e que em vão as nações rugem de raiva contra
ela e pretendem seu fracasso não sabem eles que é maldito quem toma o braço do homem
como esteio e coloca sua confiança na criatura?
Ó Menino de Belém! Tão pequeno e tão grande, tão pequeno no estábulo, tão grande
no céu. Diante de tua adorável majestade, o que são todos os grandes da terra? Quem poderá
prejudicar os que tu proteges? Quem poderá defender os que tu abandonas? O que são em tua
presença, ó Príncipe das eternidades, que sustentas a terra e que governas o universo, enquanto és carregado nos braços pela Virgem, tua Mãe, o que são, em tua presença, as potências do
mundo? São um nada, uma gota de orvalho, esterco, como tu mesmo nos ensinas na Escritura.
Já que toda grandeza se eclipsa diante da tua, já que todo poder perde seu nome e somente é
fraqueza diante de teus olhos, já que toda criatura é obra tua, somente nos interessa esquecer o
que tu não és e te cortejar.
Uma vez que toda criatura confessa a tua Majestade o seu nada e sua dependência ou
será obrigada a fazê-lo no último dia, quando vieres em glória de tua Majestade para julgar a
todos os homens, a sabedoria nos inspira a pensar somente em te agradar e procurar fortuna
em teu Reino. Aliás, a criatura participou tão pouco no nascimento, progresso e formação do
Instituto e cuja história nos ocupamos, que seria uma injustiça capaz de atrair tua ira e lhe
prestar homenagem.
Com efeito, quantas vezes se viu seus inimigos animados pelo espírito de Herodes,
que tomou tantas medidas para te matar nos braços da Virgem, tua Mãe, ó divino Messias,
desejado das nações, buscarem eliminar em seu berço, esta obra qie como um germe de graça
começou a brotar para o bem da Igreja? Quantas vezes o S. Fundador foi obrigado, a teu exemplo, Menino Deus, Rei do século futuro, a empreender a fuga para terras estranhas para se
livrar do furor de seus perseguidores? Quantas vezes tu viste sua obra como um frágil barquinho balança à mercê dos ventos da perseguição, prestes a encalhar ou naufragar, sem outro
piloto a não ser a tua Providência? Em que canto da França, ó Menino, a quem adoro como
meu Deus, poderia esconder-se o Arquiteto que encarregaste de construir este edifício, onde
não encontre cruzes?
O surpreendente é que, enquanto todo o mundo estava de acordo com a excelência, a
necessidade e os benefícios in estimáveis que esse Instituto podia produzir na Igreja, to o
mundo também trabalhava para o derrubar. O Instituto era aplaudido por toda a parte, o Fundador era repelido, desacatado, caluniado, perseguido, humilhado, abandonado por todos,
dentro e fora, por seus próprios filhos, bem como pelos estranhos tão universalmente que ele
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se parece contigo, ó divino Mestre. Ninguém se atrevia a declarar-se em seu favor, ninguém
ousava abrir a boca para o defender.
Onde o lugar em que não se lhe jogou pedras, a ele e a seus discípulos? Qual a cidade
em que ele e os seus não tenham enfrentado ignomínias, vexações, injustiças? Em toda parte,
o lixo do mundo! Considerados como o último dos homens, tratados como malfeitores, recusavam os serviços deles, ou os cobriam de ultrajes e lhes negavam o necessário para viver, de
maneira que eram vítimas da caridade, expostos ao trabalho, às calamidades, às vigílias, à
fome, à sede, aos jejuns, ao frio e `nudez. (Cf. 2Co 11,27). Em toda parte, os gracejos e os
insultos públicos, eram sua sorte. Muitas vezes, aos golpes seguiam afrontas, e a corja de malfeitores sentia prazer maligno em jogar-lhes barro e os bater.assim que apareciam nas ruas,
mãos malvadas se armavam com pedras para lhes atirar. De que gênero de opróbrio sua virtude não foi provada nos lugares a que foram prestar os serviços gratuitos e caritativos à juventude mais pobre e mais abandonada? Pobres, carentes de tudo, eles foram a toda parte, ó Salvador do mundo, para enriquecer com os tesouros da Doutrina cristã (2 Co 7,10) aos meninos
que levavam o nome de cristãos, quase sem conhecimento algum desse glorioso nome. Nunca
na abundância, sempre em penúria, em tribulação, em aflição, eram vistos semear entre lágrimas, a teu exemplo e de teus Apóstolos, seus ensinamentos em terras em que só podiam colher espinhos. Cerca de cem deles faleceram antes e depois de seu Patriarca, no seio da Cruz,
não receberam neste mundo outra recompensa, ó divino Infante, do que a honra de se parecer
contigo e de estar associados a teus sofrimentos,
Se o mundo os repelia, não é estranho. Ele os repelia também a ti, quando estavas no
seio de tua Mãe; e ele te obrigou a entrar pela primeira vez num presépio. Brilhante em milagres, mais tarde em tua vida, ele te desconheceu. E finalmente, quando tua caridade infinita
preparava o preço de sua salvação, ele te condenou à morte. Portanto, é reconhecimento, é
justiça, é necessidade, ó Santo Menino, consagrar a ti esta obra que te mostra a ti como único
autor, defensor, protetor do Instituto das Escolas Cristãs.os que foram os primeiros fundamentos, alguns deles ainda vivos, proclamam à uma só voz, que não tendo contribuído a seu estabelecimento mão de homem algum, dedicar a História a algum poder da terra seria tornar-se
culpado de ingratidão e infidelidade a tua divina Providência.
Além disso, tudo nos leva a recusar a outro fora de ti, esta dedicatória, já que
precisamente sob a tua santa proteção, ó adorável Menino, o Fundador colocou seu Instituto,
as Escolas de caridade, os meninos que as freqüentam e os Mestres que lhes ensinam. Este
santo varão, inspirado por teu Espírito, homem que teve por inimigos quase todos os homens,
entregou-se tão absolutamente aos cuidados de tua amável Providência, que nunca teve outra
ambição, nem procurou a proteção de nenhum dos grandes desta terra. Bem instruído pelas
luzes da Fé, que trabalha em vão o homem ao querer levantar o edifício do qual tu não colocas
as bases; que em vão o homem guarda em segurança o lugar que tu não guardas; que, ao
contrário, o mundo e o inferno estremecem inutilmente de raiva e conspiram em vão contra a
obra que teu Espírito inspira; ele se dedicou a ter a ti somente como protetor. De modo que
seria contradizer sua mentalidade e rebaixar a nobreza de seus sentimentos, dirigir a alguém
outro do que a ti, ó Menino Deus, a dedicatória de uma obra que em cada página testemunha
que tu és o único autor, protetor e defensor.
Nesse mesmo espírito de justiça e reconhecimento,amável Infante, nosso Rei, os Irmãos te dedicam sua primeira igreja com esta inscrição: Fundada pelo Altíssimo, para indicar
que somente tu a fundaste. Com efeito, se é assombroso que tantas obras feitas com tanto gasto esbanjamento, começa, a florescer a casa de São Yon, tão pobre e desprezível antes, conforme predisse o Senhor de La Salle em seu leito de morte, sem que nenhum grande da terra, nem sequer uma mão caridosa tenha contribuído com nada, seria mais assombroso que tu,
Divino Menino, que a fundaste, construíste e elevaste, não tenhas toda a honra de sua fundação.
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Sei que muitas pessoas importantes do mundo trabalharam em favor do Instituto, quer
para libertá-lo da opressão e de alguns maus tratos injustos, quer para conseguir o pagamento
das pensões que lhe eram devidas, quer para o defender contra a perseguição, quer para solicitar do Rei cristianíssimo as Cartas Patentes, ou a Bula de Aprovação da Corte de Roma. Mas,
como foi que o fizeram? Eu diria que quase por inspiração do Céu: uma coisa está certa; eles
só agiram pelos poderes secretos de tua Providência ou pelos movimentos de comiseração que
tu lhes inspiraste, de maneira que não houve quem tivesse querido aparecer claramente como
seu protetor. Portanto, somente a ti pe devida a honra, ó Rei das nações, Menino de Belém,
que tens em tuas mãos os corações dos grandes e que sabes quando queres servir-te da mão
deles, ou de sua língua, de sua piedade ou de sua autoridade, para chegar à execução de teus
desígnios.
Com o fim de render-te homenagem, Santo Menino, nosso Deus, prostrados a teus pés
te reconhecemos como único Fundador da obra cuja história apresentamos com a vida de seu
Fundador, que não foi mais do que um instrumento. E, em conseqüência dessa declaração, no
cabeçalho desta História, para indicar que a obra de que nela se fala é a tua obra, colocamos
este letreiro que os Irmãos colocaram no frontispício de sua igreja: Fundada pelo Altíssimo.
Somente, ó Majestade, fica-nos escondida nas nuvens da infância, suplicar-te com lágrimas e com um coração contrito, não olhes a indignidade da mão que escreveu esta História,
e não olhes os pecados do autor, mas derrames tuas bênçãos sobre uma obra que é tua em todo
caso, e que foi regada com suores, lágrimas e sangue daquele que escolheste para ser seu
Fundador.
Nós te conjuramos pela pobreza de teu estábulo, pelas primícias do sangue derramado
para nossa salvação na vergonhosa e cruel operação da circuncisão, pelas lágrimas e gritos
infantis de teu nascimento, pelos sacrifícios de tua vida oferecida no templo no dia de tua Apresentação, por tua fuga ao Egito e teu retorno a Nazaré, pela dor, a inocência, a santidade,
as virtudes e os méritos de tua santa Infância; enfim, pelas entranhas que te levaram, e os peitos virginais que te amamentaram. Por tudo isso, te conjuramos mantém o Instituto no espírito
do Fundador, e aos que o abraçaram, no fervor, na regularidade, a humildade, a obediência, a
mortificação; em uma palavra, na prática das virtudes de que seu Pai lhes deu exemplos heróicos. Nós te suplicamos estendas tua proteção q todas as escolas de caridade, aos meninos
que as freqüentam e aos mestres que tomam conta deles.
Ó Menino Deus, que amas as crianças, que durante tua vida mortal as honraste e abraçaste, que as deixavas em plena liberdade para se aproximarem de ti, que lhes davas sinais de
amor terno e sensível, digna-te comunicar-lhes um amor extraordinário pr sua educação, uma
docilidade perfeita para deixarem-se guiar, um desejo ardente para aprenderem a doutrina
cristã, e disposição alegre para receberem as sementes das virtudes. Digna-te inspirar a seus
pais um grande zelo pela educação dos filhos, uma santa solicitude para enviá-los às escolas
de caridade, e uma piedosa vigilância sobre seu comportamento, para que não matem, com
seus exemplos, a sementes das virtudes e os germes das graças que as crianças recebem em
terna idade, mediante a ação dos Irmãos. Digna-te comunicar a estes esse fundo de piedade,
caridade, zelo, vigilância, mansidão e paciência, de que precisam num emprego tão necessário, embora tão repugnante, tão aborrecido, tão mortificante, quando a graça de estado não o
anima. Digna-te inspirar um zelo ardente a todos os pastores para multiplicar e sustentar as
escolas de caridade; às pessoas importantes, para protegê-las, aos ricos para garantir-lhes os
fundos, visto que não existe meio mais eficaz para fazer conhecer, adorar, amar e servir a
Deus, teu Pai, e para retirar das portas do inferno uma juventude pobre e abandonada, há tanto
tempo na ignorância, na falta de educação e na libertinagem.
Em fim, ó Jesus Menino, Juiz e Árbitro soberano de minha sorte eterna, ao te oferecer
a dedicatória desta , escrita por mão tão indigna, permite-me pedir-te uma morte preciosa em
paga. Filho da Mãe Virgem, puríssima e Imaculada, que o nome de Salvador que tomaste oito
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dias depois do nascimento, que o serviço que prestaste ao dar as primícias de teu sangue, na
circuncisão, me dá a liberdade de suplicar-te com insistência que esqueças minhas iniqüidades
e a laves no banho salvífico que jorrou de tuas veias. Esta é a única graça que desejo no mundo. Aquele que é chamado o amigo dos pecadores, que desceu do céu ao seio de uma Virgem
e do seio da Virgem a um estábulo para os procurar e que do estábulo subiu à cruz para os
salvar, dá-me o direito de a pedir. Concede-a por tua misericórdia, por grande misericórdia,
pela multidão de suas misericórdias, Filho de Maria e Filho do Pai Eterno, a quem se reconhece teu vil, ingrata, impura e criminosa criatura, que te adora como seu soberano Senhor, te
honra como a seu Criador, te ama como a seu Deus, te deseja como a seu sumo bem, te teme
com a seu Juiz, e pede perdão e misericórdia como o maior dos pecadores.
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Vida de João Batista de la Sal
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Privilégio do Rei
Luís, pela graça de Deus, Rei da França e de Navarra:A nossos amados e fiéis Conselheiros, as pessoas que desempenham em nossas corte do Parlamento, Relatores ordinários de
nosso palácio, Grande Conselho, Preboste de Paris, Administradores de justiça, Senescais,
seus Lugar-tenentes civis, e outros Justiceiros a quem competir, saudação!
Nosso estimado senhor……, havendo nos manifestado seu desejo de imprimir e publicar a Vida de João Batista de La Salle, Fundador dos Irmãos das Escolas Cristãs, se nos dignaríamos conceder-lhe as Cartas de Privilégio, necessárias para tanto, oferecendo-nos fazê-la
imprimir em bom papel e tipos elegantes, limitando-se à folha impressa em anexo como modelo sob a contra-senha das presentes.
Em consideração do que se acaba de expor, querendo tratar favoravelmente o mencionado requerente, Nós lhe concedemos autorização e permitimos pelas presentes, fazer imprimir o livro acima especificado, em um ou vários tomos: juntos ou em separado e quantas vezes quiser, em papel e tipos iguais aos da folha impressa anexa, sob nossa contra-senha; e de
vendê-lo, fazê-lo vender e despachar a todo o nosso reino durante o período de seis anos consecutivos, contados desde o dia da data das presentes.
Proibimos a qualquer pessoa de qualquer qualidade e condição que seja, introduzir
uma impressão estrangeira em nenhum lugar de nosso domínio; como também a todos os livreiros impressores e outros, fazer imprimir, vender, despachar, nem falsificar o livro mencionado, no todo ou em parte, nem fazer extratos, sob qualquer pretexto; adições, correções,
mudança de título, ou outras coisas, sem a autorização expressa e por escrito do mencionado
peticionário, ou dos que estejam autorizados por ele,sob pena de confiscação dos exemplares
falsificados, de uma multa de 1500 libras contra cada um dos contraventores, das quais um
terço é para Nós, um terço para o Hospital de Paris, e o último para o requerente, e de todos
os gastos, prejuízos e juros. Sob a condição de que as presentes sejam registradas com todos
os pormenores no registro da Comunidade de Impressores e Livreiros de Paris dentro de três
meses a contar desta data. Que a impressão deste livro se execute dentro de nosso reino e não
em outro lugar, e que o requerente se conforme em tudo aos Regulamentos da livraria, e especialmente ao de 10 de abril de 1725. E que antes de o colocar à venda, o manuscrito ou impresso que serviu de cópia para a impressão do citado livro, seja remetido, o mesmo estado
em que se tenha sido aprovado, na mão de nosso caríssimo e fiel cavaleiro da guarda dos selos
da França, senhor Chauvelin; e que em seguida serão remetidos dois exemplares a nossa Biblioteca pública, um para o Castelo do Louvre e outro a nosso caríssimo e fiel cavaleiro guarda dos selos da França, senhor Chauvelin. Tudo isto sob pena de nulidade das presentes, de
cujo conteúdo, mandamos e prescrevemos permitir ao solicitante ou aos de direito gozarem
plena e pacificamente, sem que se lhes faça qualquer objeção nem impedimento.
Queremos que a cópia das presentes, que forem impressas em pormenores no início
ou no fim do citado livro seja considerada como devidamente publicada e que os exemplares
sejam cotejados por um de nossos amados e fiéis Conselheiros e Secretários sejam tidos autênticos como o original.
Ordenamos ao primeiro de nosso ordenança ou sargento, fazer todas as ações requeridas e necessárias para a execução desta, sem pedir autorização e apesar do grito de idignação
e cartas contrárias a esta. PORQUE ESTA É NOSSA VONTADE.
Dado em Versalhes, a 27 de novembro, do ano da graça de mil setecentos e trinta e
dois, e décimo oitavo de nosso reinado.
PELO REI E SEU CONSELHO
Assinado, SANSON, com firma.
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Registrado no registro oitavo da Câmara Real e Sindical da Livraria e a Imprensa de
Paris, número 452, fólio 435, conforme os Regulamentos de 1723, que proíbem no artigo 4º a
todas as pessoas de qualquer qualidade que sejam, fora dos livreiros e impressores, vender,
despachar, expor nenhum livro para vendê-lo em seu nome, mesmo que digam serem eles
mesmos seus autores ou outra coisa, sob condição de proporcionar os exemplares prescritos
pelo artigo 8º do mesmo Regulamento.
Assinado: G. MARTIN, Síndico.
O senhor……cedeu o presente Privilégio ao senhor Jeam Baptiste Machuel, coforme
acordo entre eles.
Registrado no Livro da Comunidade de Livreiros e Impressores de Ruão a 17 de janeiro de 1733.
Assinado: B. LEBRUN, síndico guarda.
Discurso sobre a instituição de mestres e
Mestras de Escolas Cristãs e Gratuitas
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Em que se mostra a importância dessa classe de centros, a necessidade que eles tem o
público e a fatuidade das objeções que se lhe podem fazer.
1. Importância dos Institutos dos Irmãos e das Irmãs das Escolas cristãs e gratuitas, tomada
da importância de saber e ensinar a doutrina cristã.
Qual é o objetivo, qual é o fim da instituição dos mestres e mestras das escolas cristãs
e gratuitas Qual é o objetivo, qual é o fim da instituição dos mestres e mestras das escolas
cristãs? A instrução e santa educação da juventude pobre e abandonada. O bem do Rein e da
Igreja depende dela porque são as crianças que substituem a seus pais e, por sua vez, se tornam membros da Igreja e do Estado. Uma geração vai, diz o Sábio, e outra geração vem. Os
pais deixam aos filhos que geraram, o lugar que ocupam no mundo; também suas casas e seus
bens. Em vão procuraria alguém chamá-los à ordem e fazê-los mudar de costumes e de comportamento: os vícios da juventude, crescidos neles com a idade, as paixões no cerne da infância, crescem no curso dos anos, fazem que esta reforma se torne quase desesperadora. Os
homens costumam falecer como viveram. Se alguns deles, que se convertem na idade adiantada, devem essa graça a uma particular misericórdia de Deus que faz concorrer numerosos
acontecimentos na ordem da natureza, e ainda mais na ordem da graça, para arrancá-los do
mundo e do pecado.
Quando velha, a árvore não se deixa dobrar; suas raízes, estendidas por todos os lados
na terra e já fortes, a mantêm imóvel e custa muito arrancá-la e derrubá-la. Quando é nova,
dócil na mão de quem a maneja, dobra-se e toma a direção que se lhe dá; cresce e segue a
forma que lhe dá um mão hábil, e obtém vantagem de sua solicitude. Quanto melhor é educada, tanto mais se robustece, trazendo frutos mais abundantes e saborosos.
Apresentemos assim o símbolo natural da educação dos jovens. A tenra idade que o
torna susceptíveis às primeiras impressões que se lhe dão, os torna também flexíveis, adotam
sentimentos de piedade quando encontram mestres solícitos para lhes inspirar tais sentimentos, aprendem a ciência da salvação ao aprender a doutrina cristã, mostram um fundo de religião, de temor de Deus e de horror ao pecado nos anos de maturidade quando receberam esse
sel nos primeiros anos; se depois chegam a relaxar, a consciência os acusa seus desvios e os
obriga a voltar de seus extravios. Estas reflexões são naturais: o sábio e piedoso Gérson as
formulou faz muitos anos.
E assim, com a boa educação dos jovens é que se deve procurar a formação do homem
bem educado e bem cristão. Esta verdade é tão evidente que não necessita de provas. Além
disso, são tantas as mentes privilegiadas que a fizeram tão patente que seria inútil falar disso.
Supondo a notoriedade pública, concluo por ela a importância das centenas de escolas gratuitas, e, por aí, da instituição de mestres e mestras aptos para as manter. Se é necessário abrir
em favor do público escolas gratuitas, é preciso construir casas em que os mestres e as mestras dispostos a ensinar por caridade às crianças pobres de ambos os sexos, para que possam
formar-se. Pois bem, para avaliar essa sorte de seminários, é preciso pensar na importância da
doutrina cristã, porque, para a ensinar, é para que, por assim dizer, como se fossem criados –
eles e elas – que ali se formam.
Na verdade, os mestres e as mestras das escolas de caridade fazem profissão de ensinar a ler, escrever e a aritmética. Mas essas funções estão subordinadas à outra. Essa é a principal, as demais são acessórias. De certo, nem a Igreja, nem o Estado necessitam de novas
congregações para ensinar a ler e a contar. Todos os séculos tiveram gente que disso faz seu
ofício, que lhe é lucrativo; mas os jovens não encontram nesses mestres que vendem seus serviços, o zelo necessário para ensinar a ciência da salvação e o raro talento de dar uma educação cristã.
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Também é certo que os filhos dos operários não têm os meios de procurar os ensinamentos que lhes são úteis. Assim, o Estado como também a Igreja, tinha necessidade de pessoas que quisessem prestar esses serviços gratuitos às crianças dos pobres de ambos os sexos.
Como tal é o mtivo da instituição ds seminários de mestres e mestras das escolas gratuitas, daí
se deriva quanto se pode dizer em seu favor. Para o fazer com certa ordem, que 1º Provar a
importância da instituição dos citados seminários recordando a importância de ensinar e de
saber a doutrina cristã. 2º Fazer que se previnam das obrigações do público os que se dedicam
por vocação a manter escolas de caridade. 3º Fazer patente, a causa da necessidade de instruir
separadamente os meninos das meninas, a necessidade de centros de mestres para os meninos
e de mestras para as meninas. 4º Mostrar pela doutrina e os exemplos dos santos, o apreço que
se deve ter pelo estado dos mestres e das mestras das escolas cristãs, e do zelo que é preciso
para os multiplicar. 5º Refutar todas as objeções que se pudessem formular contra essa classe
de centros.
Capítulo I
Im portância da Instituição dos Irm ãos e da Irm ãs das E scolas Cristãs, que se deriva da im portância
de ensinar e de saber a doutrina cristã.
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Vida de João Batista de la Sal
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1. Prim eira prova da im portância dos Institutos dos Irm ãos e das Irm ãs das E scolas de caridade,
tom ada da im portância de saber e de ensinar a doutrina cristã.
O fato de o Filho de Deus mesmo se tenha encarregado de ensinar (Mt 9,35), mostra
quão necessário é saber e ensinar a doutrina cristã.
Por ser necessária para a salvação a doutrina cristã, vê-se como é importante e imperiosa para a Igreja a instituição de mestres e mestras idôneos para ensinar gratuitamente, em
vista da falta dos ministros que ou não querem ou não podem dedicar a essa augusta função
todo o tempo que requer.
A segunda parte desta proposição está tão vinculada com a primeira que a prova de
uma também é a prova da outra. Assim, ao expor a obrigação de saber a doutrina cristã, se faz
sentir a importância dos mestres e mestras das escolas de caridade.
Porém, acaso será necessário dar probas de uma verdade tão clara? Será que se pode
tornar indiferente saber ou ignorar a doutrina que Jesus Cristo nos ensinou? Pode ser abitrário
instruir-se do que se refere a Deus, a suas perfeições, suas obras, seus benefícios, seus mistérios, suas promessas, suas ameaças, sua lei, seus sacramentos e a economia de nossa Redenção? É sem conseqüências descuidar a ciência da salvação, as verdades reveladas, os meios
para adquirir a vida eterna, o conhecimento do que nos acontecerá no outro mundo e o que
precisamos temer e esperar no século futuro?
A doutrina cristã tem tal importância que o Filho de Deus feito homem se encarregou
pessoalmente de a ensinar. Empregou nesse divino exercício os anos de sua vida pública. Caminhava a pé de cidade em cidade e de aldeia em aldeia, para instruir, para catequizar, para
ensinar com uma simplicidade sem par sua celeste doutrina. Se marcava todos os seus passos
com alguns serviços de caridade, se regava com suas lágrimas ou com seus suores os lugares
por onde passava, se deixava em todos, seus vestígios, efeitos de seu poder, era para dar autoridade a sua doutrina e ara a fazer aceita. Os milagres eram os testemunhos que o céu manifestava para dar fé e dispor os povos a que a escutassem e adotassem. Ainda que não creiam
em mim, creiam pelas obras, dizia ele aos judeus que o contradiziam.
As crianças, como todos os demais, eram objeto de seu zelo. “Deixai virem a mim as
crianças, não as impeçais, porque de pessoas como elas é o Reino dos Céus” (Mt 19,14). Sua
bondade para com os pequenos era tão conhecida que os pais, conforme São Marcos 10,1314, lhe apresentavam seus filhos para que os acariciasse.
Como os discípulos queriam impedi-las, o doce Salvador o achou mal e lhes disse:
“Deixem que as crianças venham a mim, não as impeçais, porque de gente assim pertence o
Reino de Deus”. Estende para com elas sua predileção até dizer que considera como feito a
sua pessoa o que se faz por elas (Mt 18, 5.10). E profere as mais terríveis ameaças contra os
que as escandalizam. Ó piedosíssimo Jesus, - exclama aqui o devoto Gerson – depois de tal
exemplo de tua humildade e de tua caridade para com as crianças, quem se envergonhará daí
em diante de abaixar-se para as instruir? Depois de te ter visto estender os braços para acariciar as crianças, quem é que se atreverá a escutar o sentimento de orgulho e de suposta
grandeza que o leva a desprezá-las?(Loc. Cit. Confide 4. circa initium). Seria talvez o caso
de que – diz ainda o piedoso autos, - os jovens sejam uma parte desprezível da Igreja, eles
aos quais pertence o Reino dos Céus? (Ibidem Prolog. Circa initium). Contudo, este grande
zelador da salvação das criança, faz notar quão numerosos são os que dizem que a função de
instruir os pequeninos não comvém e até é indigna de um grande teólogo, ou de um sábio, ou
de um eclesiástico elevado em dignidade. Quanto a mim, não conheço nada tão grande, acrescenta, que arrancar as almas das fauces do leão infernal e do abismo do inferno, trabalhando
particularmente no cultivo das crianças, lançando nos tenros anos a semente da virtude, regando com sumo cuidado esta parte valiosa do campo da Igreja.
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Com efeito, a salvação da maioria est[a vinculada com esta solicitude e se tantos se
perdem com o passar dos anos, é por falta de instrução. Quanto Jesus Cristo fez e sofreu para
ensinar sua divina doutrina, deve fazer-nos apreciar seu valor.
Para mostrar-nos sua importância e necessidade, como também sua excelência, diz: 1º
Que é a doutrina de Deus Pai que o enviou: “Minha doutrina não é minha, mas daquele que
me enviou”. 2º Que ele não ensina outra coisa do que aprendeu de seu Pai, “Eu falo o que vi
junto de meu Pai”. 3º Que decide que todos os que a repelem estão já condenados, e não podem ter a vida eterna.
2. E sta doutrina é a doutrina do céu, a ciência da salvação, a ciência dos santos.
Esta doutrina se chama celestial porque vem de Deus, porque o céu a revelou, porque
tem como objeto e fim somente o céu, e porque ensina o caminho para chegar a ele. Chama-se
divina porque não só o Filho de Deus a ensinou, mas que no seio do mesmo Deus é que a encontrou, isto é, o mesmo Deus é seu autor como Jesus Cristo é seu doutor. Chama-se ciência
da salvação, porque encerra o que, desde toda a eternidade, Deus determinou que os homens
tinham de saber e fazer para se salvarem. Chama-se também ciência dos santos, porque faz
que sejam santos todos os que a praticam à letra e que não se pode ser santo se alguém a descuida. Pode acaso, ser indiferente o saber ou o ignorar a doutrina do próprio Deus, , essas verdades eternas que revelou pela boca de seu próprio Filho, esses mistérios adoráveis que constituem a economia da Redenção do gênero humano, essa lei santa e essa moral tão pura, que
formam o fundo de nossa religião, esses sacramentos tão valiosos que são os canais das graças
e dos meios de salvação, e por fim, essas verdades tão sublimes que a carne e o sangue não
podem descobrir e que são reveladas somente pelo Pai celeste?
Pois bem; se nada é tão necessário nem tão importante do que o conhecimento dessa
doutrina, que se confesse, pois, que nada é tão importante e tão necessário do que a instituição
de escolas em que se ensina gratuitamente e por pura caridade.
Em todas as demais escolas se ensina a doutrina dos homens, somente nesta se ensina
a doutrina de Deus. Porque, no fim das contas, qualquer outra doutrina é uma doutrina humana, por conseguinte, perigosa ou perniciosa, ou inútil para a salvação, ou defeituosa.
Toda doutrina é a doutria de homens santos e cheios de Deus como a dos Padres da Igreja, ou de alguns supostos sábios como a dos filósofos, ou de homens astutos e sedutores
como a dos hereges e inovadores, ou de homens apaixonados, interessados que podem se enganar ou enganar os outros. assim, qualquer doutrina não pode ter o mesmo caráter de divindade, de santidade, de infalibilidade, de verdade, de autoridade, nem, por conseguinte, tornarse necessária ou obrigatória.
Ao ter por objeto somente as coisas perecíveis, todas as doutrinas do mundo carecem
de um fim de mais longa duração. O interesse, o prazer, a honra, a curiosidade que a fazem
atraentes e proveitosas se terminam no túmulo.
A doutrina de Jesus Cristo ée absolutamente diferente: seu objeto direto ou imediato é
a salvação. O Filho de Deus não desceu do céu senão para que os homens subissem a ele. todas as doutrinas tendem a esse fim. Por isso, seus nomes, como já disse, são a ciência da salvação, a ciência dos santos, a ciência de Deus, a ciência do céu. Conforme esssas idéias é
que se deve julgar a importância do catequista e das pessoas dedicadas às escolas de caridade.
Os professores de filosofia não têm outro fim além de procurar o conhecimento de causas
naturais a seus discípulos; os professores de medicina tratam de ensinar a seus discípulos a
estrutura do corpo humano, suas enfermidades e seus remédios; os que dão cursos de jurisprudência, de eloqüência, de de matemática, etc., se limitam a ensinar devidamente as leis, os
princípios de Euclides, as regras para compor e embelezar os discursos. Esses mestres das
ciências humanas não pretendem outra coisa. Suas lições não ensinam nada a respeito da sal-
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vação, nem sobre os meios de a realizar. Um objetivo tão elevado, tão nobre e vantajoso é
próprio dos que ensinam a doutrina cristã.
3.O que a doutrina cristã encerra: tudo o que é necessário crer, evitar, fazer, tem er e desejar para se
salvar.
Com efeito, o que encerra a doutrina cristã? Tudo o que se deve crer, fazer, temer e
desejar para se salvar. O que ensina o catequista? Aquilo que o próprio Jesus Cristo ensinou, o
que ensinaram os apóstolos depois dele. Por qualquer lado que se olhe, a doutrina cristã apresenta os caracteres de sua santidade e de sua divindade. A sublimidade de seus mistérios, a
pureza da moral, a eqüidade dos preceitos, a santidade de suas máximas, a perfeição de seus
conselhos, o alcance de suas promessas dão a conhecer que seu autor é um Deus.
Basta comparar com ela a doutrina dos filósofos e dos sábios deste mundo para sentir
a diferença da doutrina dos homens e a de Deus. Esta se vincula com seu princípio e se parece
com seu Autor: tem uma perfeição consumada. Nela não há nada que não seja digno de Deus
e que não contribua a santificar o homem. O espírito humano não podia ser o autor de um
plano de doutrina tão bem alinhavada e lógica, de idéias sobrenaturais, de sentimentos tão
nobres e elevados, de uma moral ao mesmo tempo tão conforme e tão superior à reta razão,
por fim, um plano de conduta tão santificante. É impossível o homem imaginar um sistema de
doutrina mais perfeito. Pode-se dizer que participa da perfeição infinita daquele que é seu
mestre e seu doutor. Suas promessas não podem ser mais magníficas, nem suas ameaças mais
tremendas, sua moral não pode ser mais pura, nem suas máximas mais santas, nem seus preceitos mais perfeitos. Seu objetivo é a glória de Deus; a caridade para com o próximo, seu
vínculo; a santidade do homem, seu efeito; o amor de Deus, seu mérito; a felicidade eterna,
sua meta. Esta doutrina é tão racional que deixa de o ser aquele que deixar de se conformar a
ela; é tão eqüitativa, que é preciso declarar-se favorável ao crime, se alguém a repele; é tão
adequada ao homem que não se pode viver contente sem a praticar; é tão perfeita que faz que
se tornem perfeitos todos os que se conformam a ela.
A doutrina dos homens é muito diferente. Defeituosa como eles, ou não tem nada de
sólido, nada de certo; ou não tem nada de digno de uma alma imortal. Ou tudo é vazio : idéias, máximas, preceitos, moral;; ou tudo é quimérico, ridículo, impraticável, especulativo; inútil para a outra vida. Ela não tem nada que fixe os desejos, nada que regule o interior; nada
que consiga a reforma do coração. Nada que leve o homem a superar-se, nada que o conduza
a seu último fim. Nada lhe ensina a abandonar-se {a solicitude da divina Providência, nada o
obrigue a renunciar-se em tudo, nem a não desejar somente o céu, a não estimar fora da pura
virtude, a não viver senão por Deus e a sacrificar-se a seu Criador. No que se refere â pobreza
perfeita, à obediência, à virgindade, à oração contínua, ao perdão das ofensas, ao amor aos
inimigos, à caridade fraterna, às bem-aventuranças evangélicas, são todas elas virtudes das
quais os sábios deste mundo não tiveram nem a menor idéia. Se em sua doutrina há alguma
coisa tolerável, é aquilo que parece aproximar-se à doutrina cristã.
Façamos agora a aplicação do que acabamos de dizer em honra da Doutrina cristã à
função docente. A glória de uma repercute sobre a outra, e ambas honram os Irmãos e as Irmãs das Escolas Cristãs. Catequistas por estado e destinados a ensinar a doutrina de Mesus
Cristo, eles têm a sorte de ensinar a ciência da salvação, a ciência da religião, a ciência dos
santos. Da importância desta ciência divina se colige a importância desses institutos. Se se
quisesse saber quão necessários são para o público, pondere-se de um lado, a necessidade da
ciência da salvação e do outro, a necessidade de ter mestres que a ensinem com zelo, edificação e êxito. Que se considere por um lado que a ignorância desta divina doutrina acarreta a
perda de um sem número de almas e, de outro, que essa perda não se pode reparar a não ser
estabelecendo escolas cristãs.
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Vida de João Batista de la Sal
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Digamos, pois, com o sábio Chanceler de Paris, o célebre Gerson, que os que caluniam e criticam prestam um grande serviço ao demônio e dão a seus filhos um grande escândalo, ao menos indiretamente e de maneira oblíqua, se não o fazem manifestamente e a descoberto. Com efeito, continua o mesmo doutor, existe gente que, impelidos pelo espírito do demônio, ajuntam mais e mais pecados a pecados. Parece não ter outra ocupação do que a de
poder contar com companheiros de sua eterna condenação…nestes tempos, mais do que em
qualquer outro, o coração dos homens se volta para o mal desde sua juventude e as crianças
mamam o leite envenenado do pecado quase desde o momento em que o podem cometer. Sua
grande desgraça é que não têm nem pais nem mestres que procurem sua instrução e sua educação. Não se pode estranhar, pois, se elas se deixam arrastar facilmente para o mal.
“Esta é a vida eterna: que eles te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e aquele
que enviaste, Jesus Cristo (Jo 17,3). Que desgraça a desses pobres que, carentes de instrução,
ficam na mais profunda ignorância acerca de Deus e de Jesus Cristo! Pode-se ação lamentar
bastante essa situação? Pode alguém que tenha um pouco de zelo, não desejar que se multipliquem por toda parte as escolas cristãs, já que esses centros são o grande remédio contra a ignorância da salvação?
Que os pastores se recordem sempre – diz o catecismo do Concílio de Trento (no prefácio, nº 13, no início) – que toda a ciência do cristão consiste em conhecer o verdadeiro
Deus e a seu Filho Jesus Cristo. Por conseguinte, toda sua preocupação deve ser procurarlhes esse conhecimento. Isso mesmo havia recomendado com insistência o Concílio de Trento
aos bispos e Pastores, prometendo-lhes um Catecismo adequado para ensinar aos fiéis as coisas necessárias para a salvação (Sés. 24: Decreto de reformatione, 3 e 7, no início). Se vemos,
diz o devoto Gerson, aos homens buscarem até as extremidades do mundo umas coisas perecedouras, se eles têm tanto empenho em amontoar os bens da terra que, segundo o Apóstolo,
não são mais do que esterco, quão lamentável é a negligência dos cristãos que não pensam
na salvação de uma alma imortal! Quanto mais criminosa é a malícia dos que buscam briga
e murmuram contra as pessoas caridosas que se interessam por ganhar as crianças para Jesus Cristo afastando-as do caminho do inferno! Pode alguém olhar com indiferença esses
edifícios espirituais, esses templos do Espírito Santo que se maculam de vícios tornando-se
presa do fogo eterno? (loc. Cit. Consid. 3. Paulo post initium).
Será, pois, em vão que o Esírito Santo recomende tantas vezes na Sagrada Escritura,
instruir devidamente e educar santamente os filhos? “Educa-os, acostuma-os a obedecer desde pequenos”, diz o Eclesiástico (7,25). “Corrige a teu filho: ele te fará viver tranqüilo e te
dará satisfações”, diz o Sábio (Pr 29,17). Quantas vezes se recomenda aos pais, no Deuteronômio, que ensinem a seus filhos a Lei do Senhor e os benefícios com que os cumulou com
mão generosa! Quando teu filho te perguntar a esse respeito, lhes dizia Moises, dize: “O Senhor nos tirou do Egito com mão forte”, e depois de lhe ter contado todos os prodígios que
realizou e ter-lhe ensinado a Lei, acrescenta: “E o Senhor nos mandou que colocássemos em
prática todos esses preceitos, temendo o Senhor nosso Deus” (Dt 6,20ss).
Por sua vez, os filhos estavam obrigados pela Lei de Moisés a fazer-s instruir por seus
pais, aprendendo dos lábios deles, seus deveres e os pormenores das obrigações que tinham
para com Deus. “Pergunta a teu pai, se dizia ao menino, e ele te contará; a teus anciãos, eles
te dirão” (Ibid.32,7), diz a esse respeito o Profeta Rei. Quantas coisas quis o Senhor que os
pais ensinassem a seus filhos! Na realidade cumpriram com esse dever. Diz o mesmo Profeta:
visto que nossos pais nos contaram, não o calaremos a seus filhos, à outra geração o contaremos: as glórias do Senhor e seu poder, todas as maravilhas que realizou” (S. 77(78), 3ss).
Assim, pela Lei do Senhor bem como por dever d natureza, os pais devem instruir a
seus filhos, e os filhos devem pedir que sejam instruídos. Enquanto Israel permaneceu fiel a
essa obrigação, foi também fiel a Deus e feliz. À medida que o descuidou, tornou-se infeliz ao
se tornar ímpio. As crianças sem instrução se sumiram na ignorância da Lei de Deus. Esta
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funesta ignorância as deixou comprometer-se com o culto dos falsos deuses. O que fez então
o santo rei Josafat, para tirar o povo desta infame idolatria? Enviou a todas as cidades de Judá
príncipes de sua Corte com Sacerdotes e Levitas que, levando consigo o Livro da Lei do Senhor, o leram, o explicaram e o ensinaram ao povo (Cf. 2R 17 e ss). Instruído dessa maneira,
Judá reconheceu a seu Deus, voltou para Ele de todo coração. Por que o tinha abandonado?
Foi porque o ignorava. Ao descuidar a instrução de seus filhos, os pais os tinham abandonado
a seus vícios e às paixões da juventude abandonando-os à ignorância de Lei de Deus. Quando
alguém se alimentou com as palavras da fé e da boa doutrina, tais são os termos de São Paulo
(1Tm 4,6ss), ele está em condições de ensiná-las aos demais, de meditá-las, e de progredir nos
caminhos de Deus. Essa falta de instrução é que torna má a juventude e é, por conseguinte, o
maior flagelo da Igreja. De maneira que o grande meio – talvez o único – é suprimir o vício e
o pecado, e fazer reflorescer a piedade cristã, procurando a instrução e educação das crianças,
porque, dizia Gerson, não andava no erro aquele que afirmava que, se quiser empreender a
reforma dos costumes, precisa começá-la pelas crianças (Loc. Cit. Consid. 2, post médium).
Por ser correta esta máxima, é preciso que reconheçamos que os que colocam primeiro
nas mãos a este trabalho da reforma dos costumes são os que instruem e educam santamente
as crianças. Quanto deve, pois o público apreciar os mestres e as mestras das escolas cristãs e
gratuitas que lhe prestam esse serviço. Substituem os pais negligentes e incapazes de cumprir
com a mais essencial de suas obrigações. Que é a de ensinar a doutrina cristã e a ciência da
salvação a seus filhos, e, no que toca as crianças abandonadas, se tornam seus verdadeiros
pais e mães em Jesus Cristo.
4. Prova da im portância dos Institutos de m estres e m estras das escolas cristãs tom ada da excelência do m inistério de ensinar a doutrina cristã.
Mesmo que não fosse necessário – como de fato é – para salvar-se, saber a doutrina
cristã, não seria desculpável a ignorância, pois merece infinitamente mais do que qualquer
outra ser aprendida e ensinada, porque é totalmente divina. Assim, por pouco que se reflita
sobre sua dignidade e excelência, se reconhecerá a grandeza da vocação dos que se dedicam
ao ensino dela. Com efeito, como quer que se considere a doutrina cristã, tudo é divino, tanto
em seu fim, como em seu propósito, quer em seus caracteres, como em seus primeiros mestres.
Sabemos que as ciências tiram sua excelência de seus objetos. Quanto mais nobre e elevado for este, tanto mais enobrecem a função de as ensinar. A medicina estuda o corpo humano. E da qualidade deste objeto se honram os que a ensinam. A filosofia se ocupa da natureza e de tudo o que nela acontece, e, da nobreza desses objetos se apreciam os que os explicam. A astrologia contempla os astros e observa seus movimentos, influências e efeitos, e na
dignidade desse objeto se baseia a sua. A jurisprudência é a ciência do direito, que é necessária para que os magistrados exerçam a justiça e ára muitíssimos outros que por ela se interessam. Esta dupla vantagem é o que a torna valiosa.
Pois bem, essas ciências e todas as outras somente têm fins naturais, temporais, passageiros, caducos, e perecedouros. Somente a doutrina cristã tem por objeto a Deus, suas perfeições, suas promessas, suas ameaças, suas revelações, seus mistérios incompreensíveis e suas
leis: a eternidade, numa palavra. É preciso colocar, pois, entre a função dos e das que ensinam a doutrina cristã e a de um filósofo, de um médico, de um astrólogo, de um general do
exército, de um juiz, de um advogado, a distância que exise entre a natureza e a graça, entre o
céu e terra, entre o tempo e a eternidade.
Senhor, crerão quando o dissermos? O mundo que não julga das coisas senão pelo
brilho que as rodeia, quererá reconhecer que a função e a vocação de um pobre Irmão, muitas
vezes tão desprezado e apenas notado pelos grandes, está tanto mais acima do advogado que
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brilha no tribunal, do juiz a quem a fama de integridade lhe atrai a maior consideração no
mundo, do médico cuja habilidade e experiência o tornam tão valioso ao gênero humano, do
filósofo tão exaltado com sua ciência, do astrônomo e do matemático a quem os inventos curiosos e sábios lhe asseguram a fama, do soldado cuja coragem e habilidade na arte militar o
cumulam de glória, e o promovem ao mais alto grau da hierarquia?
Digamos mais alguma coisa. Ao comparar o uso que o catequista faz da doutrina cristã
com o que faz um teólogo especulativo, ou um pregador com demasiado floreio, é preciso
reconhecer que o primeiro é mais digno de Deus e mais conforme a seu fim, do que o de ilustrar, instruir e alimentar a alma. O primeiro junta à doutrina de Jesus Cristo coisas de sua colheita carregando-a de subtilezas e de raciocínios humanos, que, muitas vezes, longe de aclarar e realçar, a obscurecem e anuviam. O segundo, muitas vezes a disfarça ou, como diz São
Paulo, a altera e debilita ao querer engalaná-la. Demasiado amiúde, o uso da teologia serve
mais para a glória do teólogo do que para a de Jesus Cristo. Demasiadas vezes, se reduz a
secas demonstrações, raciocínios subtis, vãs disputas, questão de nomes, ou coisas de pouca
relevância. Ao contrário, o catecismo, sem dar fama a quem o explica, tende diretamente a
fazer conhecer, amar e servir a Deus, e não pretende outra coisa.
O catequista apresenta a doutrina de Jesus Cristo tal com ela é. Ao expô-la clara e
simplesmente, a mostra como é, deixando-lhe sua graça e seu encanto. Não lhe tira nada de
sua divina beleza quando, ao contrário, o pregador, ao enchê-la de floreios em excesso, a desfigura e empana sua pureza. Porque, depois de tudo, a doutrina cristã não necessita de adornos
estranhos. Quando melhor o coração a recebe é quando chega à mente com sua primitiva simplicidade. A graça lhe dá um atrativo que a arte mais esquisita não lhe pode comunicar.
Atrevo-me a dizer que é como uma mulher formosa que, para agradar, só precisa mostrar-se, e que deixa para as feias a maquilagem e adornos rebuscados. O que serve para estas
para cobrir ou para reparar os defeitos da natureza, cobre e oculta os atrativos da primeira.
Por outro lado, para quantas pessoas os mais eloqüentes sermões se tornam inúteis!
Não se pode negar que ¾ dos auditórios mais célebres, compostos de pessoas de sexo feminino e de outras, de todos os estados pouco conhecedores de sua religião, têm mais necessidade
de bons catecismos e instruções cristãs simples e familiares do que de discursos retumbantes.
Quanto mais elaborados e rebuscados forem estes, tanto mais inúteis se tornam para a maioria
dos que os escutam.
Para o catequista não é preciso muito tempo, nem trabalho, nem estudo, nem preparação para ensina com fruto a doutrina cristã. Além disso, raramente a ensina sem fruto para as
almas. Ao contrário, custa muitíssimo ao pregador, sem que recolha amiúde muito fruto.
Quanto mais energias mentais, quanto mais atormentar sua imaginação para fazer que surjam
idéias lúcidas e engenhosas, quanto mais se enovela o siso para que consiga um discurso acabado, quanto mais fizer que o admirem e aplaudem, tanto mais faz esquecer de Deus e torna
infecunda a semente que lançou nos corações dos ouvintes.
Confessemos, pois, que nunca a doutrina cristã é mais frutuosa do que quando é apresentada de maneira clara e simples, saída do coração dos que a escutam sem que perda sua
graça e unção com as galas da arte que se lhe acrescentam a função do catequista é a que mais
lhe convém. Com efeito, assim foi que procederam Jesus Cristo e os Apóstolos, com adiante
diremos.
Como o catequista, o pregador ensina a doutrina cristã. Mas, acaso não se pode dizer
que o catequista imita mais a Jesus Cristo na maneira de ensinar, simples e clara, e que a esse
respeito supera o pregador que engalana demais seus sermões?
Jesus Cristo é o primeiro autor e primeiro mestre da doutrina cristã: ele a trouxe do
céu, ele a ensinou na terra. Como? De maneira simples e familar.
A doutrina que se ensina nas escolas cristãs não é a doutrina de algum mortal, nem sequer a de um anjo. Está muito acima da de Moisés, tanto quanto Jesus Cristo está muito acima
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Vida de João Batista de la Sal
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do legislador dos judeus. Quanto às demais ciências, não merecem que se as compare com
ela.
A medicina crê vir de Esculápio e de Hipócrates. A nova filosofia reconhece a Descartes como seu primeiro mestre; a antiga atribui seus méritos a Platão, Aristóteles, Zenon, Pitágoras e a alguns outros. A eloqüência admira como seus modelos a Demóstenes e Cícero. A
arte militar reconhece como seus heróis a César, Aníbal, Scipião, Alexandre. Arquimedes pôs
em relevo a ciência da matemática. A teologia escolástica honra como seus primeiros mestres
a São João Damasceno, Pedro Lombardo, Santo Tomás, São Boaventura. Todos os discípulos
desses doutores se gloriam de tê-los por modelos, se esforçam por estuda-lhes a doutrina e
chegar à perfeição. Mas somente são alguns homens ensinados por outros homens. Por mais
que ponderem a doutrina que receberam, não podem encontrar sua origem no Filho de Deus.
A ciência da salvação é a única que esse divino mestre ensinou. Ele é o único autor do que se
ensina no catecismo.
Jesus Cristo não dissertou nem sobre os segredos da natureza como Salomão, nem sobre retórica como Cícero e Quintiliano, nem sobre o método de raciocinar corretamente como
Aristóteles, nem o talento de governar e civilizar uma república como Platão, nem sobre a arte
poético, como Horacio, nem sobre a maneira de alcançar o sublime como Teofrasto. Em resumo, não nos deixou nenhuma instrução sobre o caduco e perecedouro. Sendo Deus, só nos
falou de Deus e das coisas de Deus. Todo o resto pareceu-lhe indigno de si e de nós. As verdades eternas das quais recebeu o conhecimento com a geração eterna, constituem o corpo da
doutrina cristã e esta é a única que se ensina no catecismo.
São Paulo diz: “Muitas vezes e de muitas maneira falou Deus, no passado, a nossos
Pais por meio dos Profetas. Nestes últimos tempos nos falou por meio de seu Filho” (Hb 1,1).
A boca dos patriarcas e profetas servia, no passado, de órãos da voz de Deus. Era Deus quem
falava neles e por eles na lei da natureza e na de Moisés.
Mas na nova, escolheu a seu próprio Filho para oráculo de suas revelações e de suas
divinas vontades. Pois bem; o que aprouve a Jesus Cristo revelar-nos é o que se ensina no
catecismo. A pessoa que o faz não é outro que não o eco do Verbo feito carne. Ao ensinar o
que Jesus Cristo disse pessoalmente ou pela boca dos apóstolos, se estende quanto o cristão
precisa saber , e quanto lhe interessa saber. A ciência de todo o resto não lhe é necessária. A
ignorância de todo o resto não tem conseqüência para o outro mundo.
Ainda mais, não é nem Pedro, nem Paulo, nem Apolo que fala quando se ensina a
doutrina de Jesus Cristo em seu nome e com sua missão; é ele mesmo, Jesus Cristo. Este é
outra característica da divindade inerente à função de catequista.
Não somente Jesus Cristo é o autor e primeiro mestre da doutrina que se ensina na escola cristã, e sim Ele é o único que ensina pela boca de todos os que têm missão de o fazer. A
língua deles é órgão dele. Como somente dizem o que Ele disse, não o dizem senão em seu
nome e por autoridade sua. Eles o representam e somente falam em dependência dEle, de sua
força e de seu Espírito que fala neles e por eles.
Os cartesianos que ensinam o sistema de filosofia de Descartes podem, de certo, dizer
que sua doutrina é a de Descartes, mas não podem dizer que o próprio Descarte fala pela boca
deles, porque esse filósofo, já falecido, não tem outra língua a não ser os escritos que deixou.
Seu espírito não está reproduzido no do de seus discípulos. Sua alma não anima seus corpos,
não dá luz a seus espíritos, não move as língua. Contudo isso é o que faz Jesus Cristo em todos os que ensinam devidamente sua doutrina. Ele os ilumina com suas luzes, os anima com
seu Espírito, proporciona-=lhes os termos, inspira-lhes os pensamentos, reveste-lhes a palavra
de unção e de graça. Faz que se tornem frutuosas a suas instruções, é ele mesmo que fala neles. E ao falar neles, apenas faz repetir o que ele mesmo ensinou sobre a terra. Assim, eles, ao
ensinar somente o que Jesus Cristo falou, não estão expostos a erro, nem a ilusão, nem a men-
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Vida de João Batista de la Sal
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tira. Este é outro caráter da divindade da doutrina cristã e da excelência da função de ensinála.
Esta divina doutrina participa da infalibilidade de Seu autor e a comunica aos que a
ensinam pura e tal como é. Enquanto o catequista se mantém nos limites de sua função, e que,
como órgão da doutrina de Jesus Cristo, de seus apóstolos e de sua Igreja, não acrescenta nada
de seu próprio, torna-se infalível no que diz, e os que são ensinados estão protegidos contra
todo erro.
Nenhuma outra doutrina pode comunicar esse privilégio. Nenhum outro discípulo pode jurar pela palavras de seu mestre. Mesmo quando se propusesse não dizer senão o que disse o doutor, e dizê-lo com as mesmas palavras, não poderia regular-se de não se enganar nem
de não enganar os outros. Ao se limitar tenazmente às opiniões de seu mestre, muitas vezes se
desviaria para o erro, acreditando captar a verdade, porque toda opinião, por mais que tenha a
aparência de verdade, o o é na realidade. Por ser opinião está exposta ao erro. Pois bem, o que
não está baseado na fé ou na evidência, não passa de ser uma opinião e não tem apoio numa
autoridade certa. Por conseguinte, na medida em que é alheio à doutrina cristã, ou não tem
nenhum caráter de evidência ou de certeza, os discípulos se expõem a extraviar-se ao seguirem em tudo a seus guias.
Embora santo Agostinho e são Tomás ocupem ainda hoje uma posição elevada na escola, nenhum de seus discípulos quereria adotar todas as suas palavras, nem subscrever sem
modificação alguma a todas as suas opiniões como se fossem verdades infalíveis. O privilégio
de infalibilidade não se reconhece a nenhum homem, a não ser quando é órgão de Deus, ou
quando somente repete o que Deus falou por boca de seu Filho ou pela dos Profetas, Apóstolos, Autores Sagrados e a Igreja. Isto significa que somente quando ensina a doutrina cristã.
Vejamos agora onde é que se ensina tal doutrina em toda sua pureza e tal como é. Acaso não é
nos catecismos, nessas instruções simples e familiares que mais se aproximam à infalibilidade
da doutrina cristã?
Vou dizê-lo? E por que não dizê-lo? O Filho de Deus feito homem é o primeiro de todos os catequistas. Seu Evangelho é nosso catecismo. A maneira em que Jesus o publicou se
assemelha mais à forma de catecismos que a dos sermões.
O que encerra o Evangelho? Os dogmas da Fé, as verdades eternas que é preciso crer.
A fé, os preceitos, as máximas, os conselhos, a moral que se deve praticar. As promessas, as
ameaças, os avisos, os novíssimos e as instruções que se precisa meditar. A história da vida,
do nascimento, da paixão e da morte e dos outros mistérios de Jesus Cristo. Suas ações, seus
exemplos e suas virtudes que se deve imitar. Por fim, os sacramentos que se deve receber.
Essas cinco partes da doutrina cristã formam o Evangelho todo. Ensinar isto e não ensinar outra coisa. E o que dá realce à função de catequista, colocando-a acima de qualquer
outra maneira de anunciar a Palavra de Deus é que essa foi a maneira como procederam Jesus
Cristo e os apóstolos.
Ninguém se imagine que o grande Mestre da verdade e seus primeiros discípulos tenham feito sermões tais como os que se ouvem hoje em dia nos púlpitos, com exórdios, anúncio de pontos, divisões e subdivisões, perorações, transições delicadas, e outras partes do discurso vinculadas entre si e intercaladas. Esta maneira de instruir tão estudada, tão rebuscada e
trabalhosa só se fez moda quando, passados os tempos da simplicidade apostólica, se quis
enfeitar a eloqüência dos pregadores, e que, alguns ao ouvirem os mais refinados, deram a
preferência a discursos engalanados e não aos que eram desprovidos d arte e dos adornos.
Todas as instruções de Jesus Cristo e de seus apóstolos não podiam ser mais claras e
familiares. Os quatro evangelhos são um informe fiel, simples e nada rebuscado, da vida, das
ações, dos milagres, dos sofrimentos, dos mistérios, das máximas, da lei e da doutrina de Jesus Cristo. Os dogmas se enunciam com precisão; anunciam-se as verdades da salvação em
poucas palavras; a moral é clara, os preceitos e conselhos são formais e sem ambigüidades; as
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introduções são populares. Conta-se o essencial dos mistérios com poucas circunstâncias; as
promessas mais magníficas e as ameaças mais terríveis se expressam sem ênfase e sem pompa. Apresenta-se a instituição dos sacramentos com simplicidade. Em tudo se sente a eficácia
do Espírito Santo, que não precisa de muito tempo, nem muitas palavras, nem circunlóquios,
nem galas de palavra, nem de adornos do discurso para ensinar.
Por exemplo, que sentido mais profundo encerram as oito bem-aventuranças evangélicas! Podem servir de matéria a anos de reflexão. Contudo, cada uma delas se encerra em cinco ou seis palavras. Digo o mesmo dessas máximas e desses preceitos:
Renunciai a vós mesmos! O Reino dos Céus sofre violência e somente os violentos o
conquistam. Não temais os homens que matam o corpo, temei antes aquele que pode perder o
corpo e a alma, e enviá-los para o inferno. Quem não renuncia a tudo o que possui, não é
digno de mim. Fazei penitência, porque o Reino dos Céus está próximo. Que aproveita o homem ganhar o mundo inteiro, se perder sua alma?
Estes artigos da lei de Jesus Cristo não podem ser mais claros, mais precisos, mais
formais, mais absolutos, mais curtos. Não se pode acrescentar-lhes uma palavra que não seja
inútil, nem tira-lhe uma que seja supérflua.
Se denominarmos a instrução que Jesus Cristo fez sobre a montanha como um verdadeiro catecismo, não me engano. Se os padres da Igreja lhe deram o nome de “sermão”, davam a esta palavra o sentido de instrução simples e familiar, como eles mesmos chamavam de
Sermões as instruções claras, curtas e simples que davam aos fiéis.
Com efeito, o sermão de Jesus Cristo sobre a montanha é o compêndio da moral, exposta com clareza, sem prelúdio, sem distinção de pontos, sem transições, sem pinturas, sem
retratos, sem descrições e sem nenhum símbolo. A verdade clara que só deixa à graça a força
de fazê-la aceita.
Não convém perfeitamente o nome de catecismo ao primeiro discurso que S. Pedro
pronunciou depois da vinda do Espírito Santo e que conquistou para Jesus Cristo quase três
mil almas, e o segundo, que converteu a cinco mil? O príncipe dos apóstolos pare acaso orador nessas duas ocasiões em que se dirigiu ao povo? Prepara ele o que tem a dizer? Estuda ele
o que deve provar? Busca ele na força dos raciocínios argumentos para convencer ou para
agradar, em ordem das palavras, na beleza da linguagem? Não! O Espírito Santo, que fala or
sua boca, não faz depender da eloqüência humana o poder que se exerce sobre os corações.
Se S. Pedro tivesse sido um orador eloqüente ou um sábio filósofo, capaz de persuadir
a inteligência mediante a força das razões, ou seduzir o coração mediante as belas palavras, o
Espírito Santo não teria escolhido sua língua como seu órgão. Sem ciências humanas, sem
talentos intelectuais, sem engenho algum, era tal como se precisava para honrar a Jesus Cristo.
São Pedro converteu a oito mil almas nas duas primeiras vezes em que falou e que eficácia a
de sua palavra! Se oito mil sermões não convertem hoje a oito pessoas, não é acaso porque
perderam a unção e a eficácia dos de São Pedro, por perderam sua sim plcidade, e que já não
são apóstolos os que os pronunciam?
Examinem esses dois sermões de São Pedro: são duas instruções breves, simples e
sem arte, cuja força vem somente da graça e da unção do Espírito Santo. Este prícipe do Colégio aposytólico recorda simplesmente as profecias, aplica-as sem arte à vinda do Espírito
Santo e a Jesus Cristo. Mostra que este é o Messias, dá provas da ressurreição, explica a necessidade da penitência e do batismo, em pouquíssimas palavras, muito simples e ordinárias,
isto é, foi um catequista.
Por acaso São Paulo age de modo diferente quando fala diante do procônsul Félix? Na
qualidade de réu faz tremer a seu juiz. O que lhe diz Paulo? Falou-lhe da obrigação da castidade, da realidade do juízo de Deus e da necessidade de dar conta da vida. Isto é ele catequizou.
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Vida de João Batista de la Sal
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Observemos o mesmo apóstolo no meio do Areópago. Ali, como centro de todos os
olhares, na cidade que é considerada a mãe das ciências e a Academia dos gênios. Todos sabem disso. Atenas era o berço ou o lugar de reunião de todos os grandes filósofos e de todos
os oradores célebres; o teatro das belas produções do espírito e da eloqüência. Sim; o Apóstolo das nações se apresenta diante do senado mais célebre da Grécia e pretende confundir ou
converter a seus magistrados, todos eles notáveis por seu mérito e sua fama, todos gente de
um espírito ornado das belas letras e cultivado pela ciência. Por acaso ele estuda o que vai
dizer? Prepara ele as provas do que expor? Busca ele na graça da palavras as armas vitoriosas
em favor da verdade? Ele estaria pensando em insultar a Deus, que deve falar nele, e enfraquecer o fruto da Cruz de Jesus Cristo: Não com argumentos humanos, mas com a sabedoria
do Verbo…etc.
Entrega-se às moções do Espírito Santo e diz tudo o que lhe inspira esse Espírito. examinem o que diz diante dao mais célebre e sábio tribunal do mundo: anuncia aos greegos o
Deus desconhecido que adoram sem o saber; explica-lhes sua unidade, seu poder infinito, sua
imensidade, sua providência, sua espiritualidade. O último juízo, a ressurreição de Jesus Cristo, sua qualidade de juiz soberano e sua ressurreição dos mortos. E todo isso em tão poucas
palavras que não se pode dizer em menos, ou seja, lhes dá uma lição de catecismo, cujo fruto
é a conversão de São Dionísio Areopagita e alguns outros.
Este grande apóstolo confessa que fala sem arte, com simplicidade, sem as flores do
discurso (1 Cor 2,1ss).Porque, Irmãos, quando estive convosco, resolvi esquecer tudo, a não
ser Jesus Cristo, e especialmente sua morte na cruz. Quando vos visitei, eu estava fraco e
tremia de medo. O meu ensino e a minha mensagem não foram em linguagem de sabedria
humana, mas com provas firmes do poder do Espírito de Deus. Portanto, a fé que tendes não
depende da sabedoria humana, mas do poder de Deus. […] Nós não temos recebido o espírito deste mundo, mas o Espírito mandado por Deus, que nos faz entender tudo que Deus nos
tem dado. Portanto falamos com palavras ensinadas pelo Espírito de Deus, e não com palavras ensinadas pela sabedoria humana.
Pelo fato de o único objetivo deste grande apóstolo ser ensinar Jesus Cristo e sua doutrina divina, se esforçava por fazê-lo sem arte, sem pompa, sem as galas do discurso, porque,
segundo ele, se teria adulterado e corrompido ao se despojar de sua nobre simplicidade. Com
este único propósito de instruir com fruto, esta celeste águia que sabia erguer-se até o mais
alto do céu, sabia baixar e colocar-se ao alcance daqueles que devia instruir. Eu, Irmãos, não
pude falar-lhes como a homens espirituais, e sim como a homens carnais, como a crianças
em Cristo. Dei-lhes a beber leite e não alimento sólido, pois ainda não podíeis suportá-lo.
Nem agora os suportais, pois ainda sois carnais. (1 Cor 3,1 e ss).
Meus filhinhos, por quem sofro de novo dores de parto até ver a Cristo formado em
vós. Gostaria encontrar-me agora no meio de vós para poder adaptar o tom de minha voz,
pois não sei como as adaptastes à minha (Gl 4,19-20). Mostramo-nos amáveis convosco, como uma mãe quando cuida com carinho de seus filhos. (1Ts 2,7). É assim que o grande mester da sabedoria da perfeição cristã, sabia fazer-se fraco com os fracos, como ele mesmo disse
(1Cor 9,20), para os ganhar a Jesus Cristo; só empregava um linguajar simples e familiar, para
ensinar a doutrina cristã, fazendo assim catequese e não sermões.
Nos primeiros séculos da Igreja só havia mestres semelhantes aos apóstolos. Os catequistas eram seus doutores, e todos os bispos eram seus catequistas. Esta função divina de ensinar de maneira simples, popular e familiar a doutrina cristã, a exemplo de seu autor, era a
que os bispos tinham recebido dos apóstolos, a quem ansiavam por imitar, e que consideravam como inerente a sua qualidade de pastor. E, embora não esteja vinculada a seu caráter,
nem a sua dignidade, nem ao sacerdócio, nem às ordens sagradas, nem sequer às ordens chamadas menores, já que meros leigos e até as próprias mulheres podiam exercê-la, a exemplo
de Prisca e Áquila, já que todos os padrinhos e madrinhas faziam esse ofício com os afilhados
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Vida de João Batista de la Sal
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que levavam ao batismo. Contudo, esses primeiros sucessores dos discípulos de Jesus Cristo
faziam dessa função um dever capital; e se, portanto, se desincumbiam sobre outras pessoas à
medida que crescia o número de fiéis, para tão nobre tarefa, escolhiam somente grandes homens, os mais sábios de suas Igrejas.
Dava-se este encargo aos Parentes, aos Orígenes, aos Clemente de Alexandria e a outros análogos doutores que honram os primeiros séculos. Destinados à instrução dos catecúmenos, tinham em muita honra o dedicar suas melhores horas a ensinar o catecismo, fazendoo de maneira simples e familiar. Os catecismos de são Cirilo de Jerusalém e de alguns outros
Padres chegaram até nós. Encontramos alguns deles nas obras de santo Agostinho com o nome de explicação do Símbolo para os catecúmenos. Este sublime doutor até teve muito prazer
em estabelecer regras e um método para exercer bem este emprego, a pedido de Rogaciano,
diácono de Cartago, encarregado dessa função. Esta obra tem como título a matéria de que
está tratando, pois se intitula: Maneira de catequizar os ignorantes..
Se, com o passar dos anos, se descuidou e se abandonou essa função por parte dos ministros do Altar, que acreditaram dever preferir outras mais brilhantes e mais a gosto do amor
próprio, a Igreja o lamentou sempre, o inferno o celebrou, e a salvação das almas saiu muito
prejudicada.
Esta negligência produziu entre os cristãos uma ignorância tão lamentável que a maioria dentre eles, de cristão somente tinham o nome pois viviam como pagãos. Este descuido
favoreceu as heresias dos últimos séculos e proporcionou aos inovadores um fundo inesgotável de invectivas e insultos contra os eclesiásticos, dos quais alguns passavam a vida no ócio e
na moleza, e outros no exercício de funções mais brilhantes porém menos necessárias do que
a de ensinar a doutrina cristã. Numa palavra, esta negligência em evangelizar os pobres e de
catequizar as crianças é uma das maiores pragas da Igreja, e, para trazer-lhe remédio, é que
nestes últimos anos, alguns homens ilustres tomaram a peito os estabelecimentos das escolas
de caridade e os Institutos de mestres e mestras idôneos para as manter, como diremos em
seguida.
Movidos pela infelicidade de tantas crianças cristãs deixadas à funesta ignorância do
cristianismo, buscaram o meio eficaz de as fazer instruir e lhes procurar uma educação cristã.
E não encontraram outro melhor do que as escolas cristãs e gratuitas. Lá onde existem, não se
pode mais dizer: “A língua da criança de peito se cola de sede ao paladar; os pequenos pediram pão: não há quem o reparta” (Lm 4.4). Finalmente, esses homens iluminados pela luz do
alto, viam na doutrina cristã as prerrogativas e vantagens inestimáveis, que lhes infundiam a
maior estima dela, inspirando-lhes um zelo sempre novo pelo catecismo. Detenhamo-nos um
pouco para refletir sobre isso.
Mesmo que a doutrina cristã não fosse tão necessária para a salvação, como na verdade é, mesmo quando não tivesse sua origem no Filho de Deus, ela tem acima de todas as outras, vantagens tão apreciáveis e admiráveis que se torna estranho que seja tão descuidada por
que fazem profissão dela, que alguns não se esforcem para aprendê-la e outros não se preocupem em ensiná-la.
Despojemo-la por um momento de seus traços divinos, que a fazem participar da excelência infinita de seu Autor. Suponhamos por um momento que é indiferente e arbitrário conhecê-la, e que se pode ignorá-la sem que expor a perigo a salvação eterna. Se a compararmos
com todas as demais doutrinas que têm entre os homens mestres e discípulos, ela as supera
tanto e tem acima delas vantagens tão grandes, que o mero senso comum declara que ela merece nossa estima e nosso estudo, tanto quanto as demais merecem nosso esquecimento e nosso desprezo.
Com efeito, a doutrina cristã é infinitamente nobre e sublime, santa e perfeita, segura e
consoladora, breve, clara, inteligível, fácil de compreender e, por isso, ao alcance de todos,
valiosa e rara, e por fim, interessante.
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Vida de João Batista de la Sal
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1º Quão nobre e sublime em seu objeto, em seu fim, em sua substância e em tudo o
que contém. Nada de humano, nada de imperfeito, nada de defeituoso, nada inútil nela, seja
qual for a maneira de a examinar!
Quanto mais a examinamos, tanto mais se faz admirar, e tanto mais se parece a alguma
coisa digna de Deus, digna do homem. Sua verdade está à prova de todas as discussões e da
crítica dos mais severos censores. É tão justa, tão precisa, tão comedida que não se pode corrigir nada nela, nem aperfeiçoar, nem acrescentar, nem excluir, sem que se lhe tire algo de sua
beleza e sem que seja empanada.
Muito acima de tudo o que é caduco e passageiro, não mostra senão objetos eternos;
só leva a Deus, só fala do que conduz a Ele. Tudo o que está abaixo de Deus, ela o repele ao
esquecimento; inspira desprezo ao mostrar ao coração que é indigno dele.
5. Prova da im portância dos Institutos de m estres e m estras das escolas cristãs, tom ada das vantagens inestim áveis e das prerrogativas da doutrina cristã.
1º. Dignidade da função de ensinar a doutrina cristã
Não instrui seus discípulos sobre o sol e a lua, nem sobre os planetas e suas influências, nem sobre o que acontece na região superior ou no firmamento. Não dá lições sobre os
elementos e as causas físicas, nem sobre a terra e todas as suas produções, nem sobre os animais, sua natureza, suas propriedades, seus instintos, nem sobre o mar e a origem dos ventos e
das tormentas, nem sobre a arte de navegar e viajar com segurança sobre esta vasta extensão
de água que oculta tantos escolhos. Não apresenta instruções e cálculos, nem sobre os pesos e
as medidas, nem sobre a mecânica e todas as demais artes que tanto o mundo aprecia. Em um
palavra, nada de Astronomia, de Geometria, de Matemática, de Dialética, de Física e das demais partes da Filosofia. Da Jurisprudência, da Política, da Medicina, da Marinha e da Navegação; da Agricultura, da Pintura, da Escultura; enfim, nada das demais Ciências humanas,
das Artes liberais e mecânicas. Nada de tudo isso forma parte da Doutrina Cristã.
Assim ela liberta o espírito humano de todas as investigações curiosas, de todas as dificuldades do estudo e de todo o peso de um estudo particularizado. Somente propõe ao homem a ciência da salvação. Somente lhe fala de Deus, de suas obras, de seus mistérios, de
seus sacramentos, de seus preceitos, de seus conselhos, de suas máximas, de seu culto, do que
Deus é a respeito do homem e do que o homem deve a Deus. Do que o homem é por si mesmo e em sua primeira origem, do que ele conseguiu ser pelo pecado e de sua reparação por
Jesus Cristo. Por fim, de tudo o que pode fazer o homem santo nesta vida e feliz na outra.
Mas, como é que a doutrina cristã fala de coisas tão sublimes? Com uma precisão,
uma exatidão, uma sabedoria e u a nitidez perfeita. Tudo o que ensina de Deus é grande, divino e digno dele. Um dia chamou ao mundo a atenção sobre verdades que os filósofos mais
sábios da antiguidade tinham examinado e estudado com tão pouco êxito, embaraçando-as,
obscurecendo-as, denegrindo-as por tantos sistemas monstruosos e absurdos pueris.
A doutrina cristã nos mostra um Deus digno de nosso coração, digno de nosso culto,
de nosso serviço e de todo nosso amor, quando no-lo apresenta como nosso soberano Senhor,
como nosso primeiro princípio e nosso último fim, como nosso pai e nosso benfeitor universal único.
A religião cristã nos descobre um Deus digno de Deus, e de ser Deus, por assim dizer
deste modo,. A idéia que nos dá é conforme ao que é, ao que deve ser, e ao que pode ser; conforme ao que a mera razão, ao que a idéia inata impressa no fundo de nossa natureza nos diz,
quando nos ensina que ele é criador de todas as coisas, do céu e da terra, dos anjos e dos homens, de todo o visível e do invisível. Mostra-nos um Deus digno de nossa homenagem e de
nossa adoração, o único que se deve temer, servir, honrar e amar, quando nos ensina que está
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Vida de João Batista de la Sal
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em toda parte, que vê tudo, que ouve tudo, que dispõe de tudo; que governa o mundo, que
nada se faz sem sua ordem, que enche todo universo sem estar encerrado nele, que é onipotente e que pode aniquilar o universo com a mesma facilidade com que o criou, ou criar um
milhão de outros mundos. Que criou o inferno para que este seja o cárcere da justiça, e constiua o suplício dos malvados; que encerrou no céu tudo o que possa contribuir à felicidade dos
bons, e que ele mesmo constitui sua felicidade.
A doutrina cristã nos revela um Deus conforme aos desejos do coração, quando nos
descobre nele todas as perfeições imagináveis em grau infinito, sem qualquer defeito. Que
consolação, quando nos ensina que Deus não é menos bom do que poderoso, que é tão misericordioso quanto justo, que se compraz em fazer o bem e que sua formosura e suas amabilidades são tão grandes que seduzem necessariamente os corações de todos os que têm a dita de o
ver, sem que seja possível vê-lo sem o amar, ou possuí-lo sem sentir-se feliz!
Quem sabe isso e o demais da doutrina cristã, sabe tudo o que deve saber e o que interessa saber – um interesse infinito. Quem sabe essa doutrina sabe o que os mais sublimes
gênios da antiguidade pagã não souberam, o que os Platão, os Aristóteles, os Zenão, os Diógenes, os Demóstenes, os Cícero, os Alexandre, os César não souberam. Se alguma coisa
souberam, souberam-no muito imperfeitamente e misturado com uma quantidade de fantasias
e de erros. Quem sabe essa doutrina sabe o que os melhores gênios entre os chineses, os japoneses, os hindus, os maometanos e de outras nações infiéis ignoram ainda hje para vergonha
de sua inteligência e em prejuízo de sua salvação.
Com efeito, a doutrina cristã é a única que nos dá um alto conhecimento de Dejs, de
sua Providência, de suas perfeições, de suas obras, de seus benefícios, de suas promessas, de
suas ameaças, de seus desígnios sobre o homem, do fim, da criação, da natureza inteligente e
de tudo quanto devemos saber.
Qual é a doutrina dos filósofos e dos maiores sábios do mundo sobre esses temas?
Uma série de sonhos, de erros, de impertinências, de extravagâncias. Nunca conheceram bem
a Deus, nem a unidade, me, a simplicidade nem a espiritualidade de seu ser; nem a imensidade, nem a imutabilidade, nem a eternidade, nem as demais perfeições de sua essência. Se todos falaram de tudo isso, quase todos não falaram senão como ignorantes e insensatos.
Tampouco conheceram melhor o fim do homem, nem em que consiste a felicidade,
como tampouco a origem das misérias da vida e da corrupção do coração humano. Numa palavra, souberam uma infinidade de coisas supérfluas, inúteis ou estranhas à salvação, e ignoraram tudo o que lhes interessava saber.
Isto é o que os doutores da Igreja lhes censuraram, por isso confundiram seu orgulho,
desprezando o estudo deles. O que tantos grandes filósofos pagãos ignoraram, a natureza da
soberana felicidade do homem, uma mulherzinha instruída na doutrina cristã o sabe. Varro,
segundo o que conta Santo Agostinho na Cidade de Deus, cita mais de duzentas opiniões diferentes de filósofos sobre essa questão, sem que nenhum deles, apesar de seu engenho e agudeza, conseguiram conhecer claramente uma verdade que a fé nos ensina e que a simples reta
razão faz sentir: que Deus pode fazer a felicidade do homem.
Uma pobre mulher bem insruída na doutrina cristã sabe que não há mais do que um só
Deus. Que Deus é puro espírito, eterno, imutável, imenso, que está presente em toda prte, poderoso , infinitamente perfeito; que há uma Providência, um juiz soberano do bem e do mal;
que castiga a um e recompensa a outro. Verdades notórias e claras que foram ignoradas e desconhecidas pelos melhores gênios da antiguidade pagã, e que ainda não são conhecidas pelos
chineses e por outros povos idólatras e cultos.
Um pobre camponês bem instruído na doutrina cristã sabe que há três pessoas em
Deus, distintas entre si e iguais em tudo, que Deus é o criador do céu e da terra, que tirou tudo
do nada, que deu o ser a um número infinito de anjos, que Adão e Eva são nossos primeiros
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Vida de João Batista de la Sal
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pais, que o que perdeu o gênero humano é o pecado, que Jesus Cristo se encarnou para o salvar, etc.
Verdades essenciais para a salvação, que somente a doutrina cristã ensina, e que é infinitamente necessário saber. Pois bem, se importa tanto conhecê-las, não importa menos ensiná-las, pois uma coisa depende de outra. A fé entra na alma pelo ouvido. Não pode crer se
não se prega. A necessidade de ensiná-la se mede pela necessidade de a conhecer.
A instituição das escolas cristãs é, pois, de capital importância, já que é absolutamente
transcendente estar instruído dessas verdades.
Por fim, que se examine a doutrina cristã em todos os seus outros pontos, pois seria
demasiado longo deter-se em todos, não encontrará nenhum que apresente à fé alguma coisa
de banal, pueril, indiferente e inútil, e que não seja nobre em todos os seus aspetos, que não se
levante acima de tudo o que é humano, que não honre o cristão, e que não seja perfeitamente
digno do Ser supremo.
2º. A doutrina cristã é tão sublime em todas as suas partes como nobre em sua natureza.. se por um lado, não há nada que contradiga a razão reta e ilustrada, de outro lado, tudo se
encontra acima dela, salvo o decálogo que pertence à lei natural e que é renovado, explicado,
e levado à suma perfeição, no Evangelho. O estranho e que é maravilhoso é que esta sublimidade se harmoniza com a maior simplicidade. Nada mais simples e nada mais sublime do que
a doutrina evangélica. Nisso se assemelha a seu autor que tem ao mesmo tempo uma essência
muito simples e perfeições sem limites.
Nisso é muito diferente da doutrina dos homens e dos sistemas de religião que são invenção de filósofos, ou de judeus, ou de maometanos, ou de hereges ou de outras mentes curiosas que, ao querer elevar-se, se dão importância e se perdem em sutilezas imaginárias, em
que não há quem as possa seguir. Nem se compreendem a si mesmos e nada estranha que os
outros não os possam compreender. Pomposas ficções, alarde de discursos, sutilezas metafísicas, dão a conhecer que não puderam captar o sublime da verdade pura e simples. O que dizem Maomé e os primeiros heresiarcas, os judeus posteriores a Jesus Cristo e os antigos filósofos parece fábula e sistema inventado que faz sentir o fastio de uma doutrina insulsa, pueril
e ridícula. Ao contrário, existe algo mais sublime do que todos os mistérios da religião? surpreendem, maravilham, e enquanto manifestam como incompreensíveis, levam credenciais
nos motivos de credibilidade que obrigam a todo espírito racional a submeter-se ao jugo da fé.
A unidade de Deus em três pessoas, a igualdade perfeita dessas divinas pessoas entre
si; sua imensidade e suas outras perfeições; a criação do céu e da terra, a encarnação do Verbo
e todas os seus mistérios, o pecado original e suas conseqüências, a eternidade das penas ou
das recompensas, são verdades que o espírito não entende, mas que, contudo, o fixam quando
as crê e colocam um limite a suas incertezas, suas inconstâncias, suas leviandades, suas variações e, ainda mais, que levam seu coração e seus desejos retendo-os sobre obmetos invisíveis
à verdade, mas superiores a todos os outros e dignos dele, dignos de seu culto e de todas as
suas inclinações.
O sublime da doutrina cristã se pode sentir nisso, porque, ao não propor nada evidente
para o espírito, ou que caia sob os sentidos, não propõe nada que não seja crível, nada que não
dê repouso ao espírito e ao coração quando eles aderem a ela, nada que não traga consigo o
gosto, o sentimento e uma espécie de experiência da verdade para aqueles que tê uma fé simples e viva.
Existe, por acaso, alguma coisa mais sublime do que a moral evangélica? Por mais penosa que seja para a carne e amarga ara a natureza, por mais contradições que suscite ao homem velho, o espírito e a razão reconhecem sua necessidade, sua beleza, sua santidade e até
seu consolo já nesta vida para os que a cumprem com fidelidade.
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Vida de João Batista de la Sal
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Esta moral, tão nov para aqueles que não a ouviram jamais, é muito antiga no coração
quando é consultado sobre o que inspira a reta razão, uma inteireza que o pecado não apagou
de todo, pois, no fim das contas, apesar de suas repugnâncias, sente que a mortificação é remédio universal único e eficaz para todos os males. Quanto mais violentas são as paixões,
tanto melhor vê, s abre os olhos, que é preciso combatê-las ou viver a vida dos animais, quanto mais sente o ardor da concupiscência e a atração do mal, tanto melhor lê em si mesmo que
o único meio de não se envolver em todos os vícios da carne e num sem fim de crimes, é fazer-se muita violência, e compreende que ao deixar de ser cristão deixa de ser um homem
razoável.
A moral cristã é tanto mais elevada acima da dos sábios do mundo, quanto o céu dista
da terra. Na dos mais célebres filósofos não se encontra nada tão elevado, nada tão adequado
para os homens, tão conforme à razão, tão apropriado a suas necessidades, nada tão adaptado
a sua natureza e tão necessário na prática. Todos traços morais que admiramos em Platão, em
Sócrates, em Epíteto são apenas toscos remedos da de Jesus Cristo. Na doutrina desses homens tão celebrados não se encontra nada que seja tolerável a não ser o que pode ter alguma
relação com a de Jesus Cristo. Esta, tão diferente da maior parte deles, não é quimérica, nem
especulativa, e sim toda ela muito prática. É uma doutrina que reforma todos os sistemas de
moral dos filósofos, dos fariseus e dos sábios entre os judeus e os pagãos. Somente o preceito
da dupla caridade praticada segundo o Evangelho supera todas as idéias dos homens e basta,
só ela, para regular os costumes, para melhorar as cidades, para manter uma paz eterna, baseada na concórdia e na união dos corações. Numa palavra, basta para voltar a uma sociedade
pacífica e para a felicidade dos campos e das cidades.
Os homens só são homens quando são verdadeiros cristãos; parecem demônios ou animais cruéis. O orgulho, a ambição, a inveja, a cólera, o ódio, a vingança e os demais vícios
da alma fazem deles cópias vivas do demônio, quando a cobiça, a avareza, a impureza, a intemperança, a sensualidade e as demais paixões brutais fazem deles cabritos machos, verdadeiros porcos, ursos, tigres e leões. Há pouca humanidade, confiança, caridade, amizade sincera, generosidade lá onde não há cristianismo. A injustiça, a violência, a perfídia e todos os
crimes reinam lá onde não chegou ainda a fé de Jesus Cristo. Se essas desordens não escasseiam entre os cristãos, é porque, entre eles existe hoje pouco cristianismo, e que entre inúmeras
pessoas que levam esse nome respeitável, é difícil encontrar algumas que o honrem com sua
vida.
Contudo, suponhamos alguns cristãos iguais aos dos primeiros cristãos, que viviam
segundo o Evangelho e que não contradiziam suas crenças e costumes. Veremos reinar a humildade, a mansidão, a cordialidade, a confiança, a honestidade, a bondade, a caridade. Os
vícios não se atrevem a manifestar-se entre eles. A lei de Deus é a lei de seu coração e a regra
universal de seus pensamentos, de seus sentimentos e de suas inclinações, como também de
suas ações.
Suponhamos o que aconteceu tantas vezes para honra da doutrina cristã, que seja pregada entre os bárbaros, e que os que entre eles a recebem, conformem a ela sua conduta. Em
pouco tempo veremos homens que deixam de ser o que eram, que mudem de costumes ao
mudarem de crença. Veremos como se tornam humanos, mansos, pacíficos, honrados e caridosos, homens que eram sanguinários, que só respiravam sangue e carnificina. Veremos que
praticam a castidade, a liberalidade, a misericórdia, a penitência, a mortificação, quando eram
homens sensuais, dissolutos, impudicos e entregues aos prazeres da carne.
Assim é aa doutrina cristã: dos que a seguem à letra, ela faz homens razoáveis, depois
faz deles verdadeiros cristãos e, por fim, anjos. Traz a paz aos estados, a concórdia às cidades,
a cordialidade às famílias, a honestidade e a simplicidade às conversações, a confiança à sociedade, a gentileza as corações, a piedade aos exercícios religiosos, o desprezo de si mesmo, o
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Vida de João Batista de la Sal
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desapego de todas as coisas e uma entrega total a Deus. Lá onde isto está em falta, a causa
está na falta da prática da m,oral cristã.
Acaso existe algo mais sublime do que suas promessas? Nada de visível oferece, nada
caduco,nada passageiro, nada perecível, nada que lisonjeie a carne e os sentidos, nada que dê
gosto à natureza. Pelo contrário, proíbe ao coração apegar-se a qualquer coisa do mundo e lhe
impõe a lei de não desejar senão o bem invisível.
Mas, como esses bens invisíveis são enormes! Não deixam jogar fora nada que é de
menos, que é de invejar, de desejar aos que os possuem. Até a fé que se esforça em jogar fora
do coração todas as criaturas, lhe promete o gozo do Criador, do sumo bem, do bem universal,
infinito e fonte de todos os demais bens. Já nesta vida, promete-lhe o cêntuplo, que se encontra na prática da mortificação mais perfeita. A graça sabe também fazer que brotem tesouros
espirituais do coração puro e desprendido e faz que encontre uma vida nova na própria morte.
Assim vemos quão santa é a fé.
3.
Se fossem submetidas a exame todas as partes da doutrina cristã, todos os seus
artigos e máximas, não se encontraria nenhuma que não obrigue ao mais severo censor correto
reconhecer sua santidade. Pois bem, é um exame que a doutrina dos sábios, dos filósofos, dos
escritores, dos fariseus e de Maomé não pode sustentar sem que sejam confundidos, acusados
em vários campos, de sonhos, de extravagância e de impiedade. Qual é a lei que ensina a dar
com tanta exatidão a Deus e ao próximo o que lhe pertence? E qual é lei que falou com mais
dignidade dos deveres da criatura para com seu Criador, que exigiu do homem mais serviços
para com seus soberano Senhor, que prescreveu deveres mais sinceros, mais interiores, mais
universais, mais precisos, mais absolutos, mais imprescindíveis para com seu primeiro princípio e seu último fim, que soube submeter e conquistar o coração do homem por Deus com
vínculos mais firmes, mais indissolúveis?
Existe algo no homem que o Evangelho não lhe pede para Deus? N]ap excetua nada,
nada que não o obriga a fazer a sacrificar ou sofrer por Deus nas ocasiões; nada que permite
coloque em comparação ou cotejo com o que se deve a Deus: bens, honras, prazeres, amigos,
parentes, vida. O evangelho obriga a imolar tudo a Deus tudo o que ele pedir. Nem sequer
deixa ao coração o uso arbitrário de um só de seus afetos. Não há nenhum que a lei cristã não
reivindique para Deus. Leva tão longe a obrigação de amar a Deus, que ele quer seja amado
de todo coração, de toda a alma, com todo o espírito e com todas as forças. Não se contenta
com que se ame a Deus acima de todas as coisas: pede que não se ame senão a Ele, e tudo o
mais nele e por ele. Daí as outras obrigações que impõe de renunciar a si mesmo, de odiar o
mundo, de ter cuidado com os sentidos e com todos os movimentos do coração, de guardar-se
até da sombra de pecado, de o condenar inclusive em pensamentos e desejos, de o sufocar na
hora em que nasce, de rezar sempre, de só agir com intenções puras, de referir a Deus todas as
nossas ações, de deixar a Ele o cuidado do que precisamos, de submeter-nos às ordens da
Providência mesmo quando sentirmos repulsa e aceitarmos de bom grado a morte e todas as
suas conseqüências.
Existe fora da lei cristã outra lei que imponha ao homem o dever de amar o próximo
como a si mesmo, sem exceção de ninguém, nem de tempos, de circunstâncias, de motivos
contrários? Esta lei ensina a honrar a Deus em sua imagem, a respeitar nossos Irmãos como
filhos de Deus, como membros de Jesus Cristo e templos do Espírito Santo. Quer que os tratemos com tanta honra e caridade que não se nos permita encolerizar-nos cotra eles, nem dizer-lhes uma palavra dura, devolver-lhes insulto por insulto, mal por mal, conceber o menor
desejo de vingança, mostrar-lhes o mínimo sinal de ofensas. Manda que lhes ajudemos em
suas necessidades, lhes aliviemos as misérias e, em caso de necessidade, lhes prestemos serviços que a caridade inspira. Existe, por acaso, outra lei, além da cristã, que para os maiores
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Vida de João Batista de la Sal
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inimigos, pede o amor do coração, o perdão e esquecimento sincero dos insultos, e ordene em
termos expressos que falemos bem dos que no-los fizeram e rezemos por eles?
Fora de Jesus Cristo, existe algum legislador que diga a seus súditos que se odeiem a
si mesmos e o pecado, crucifiquem a carne, combatam as paixões, amem a soledade, a pobreza, a humilhação, os sofri mentos e as cruzes, que sacrifiquem sua vontade própria, amando a
vida oculta, cultivando seu interior, retirando-se em si mesmos e conversando consigo mesmos quanto lhes permita a natureza humana.
Comparem todas as outras leis, todas outras doutrinas, todas as outras religiões com a
cristã, se quiserem realçar a santidade desta para fazer patente a índole ridícula ou a impiedade das outras. Em uma palavra, encontram-se Santos entre os cristãos e não o seriam todos, se
seguissem o Evangelho e, e somente há santos entre os cristãos. Não há santos em nenhum
outro lugar.
Os judeus ainda têm fariseus, os maometanos têm ainda hipócritas, os idólatras têm
ainda gente que apresentam rosto de pessoas honradas, mas inutilmente encontrareis em alguns a homens interiores, mortificados e mortos a si mesmos, sinceramente humildes e amigos do desprezo e do esquecimento, ansiosos da cruz e dos sofrimentos, interiores e unidos a
Deus, cheios dele e semelhantes a Jesus Cristo> somente se encontram no cristianismo. somente a religião cristã os cria e produz.
4. A doutrina cristã tem um privilégio: é segura e produz perfeita segurança durante a
vida e na morte. Não se corre perigo algum ao segui-la, e tudo se arrisca ao recusar-lhe a homenagem do espírito e do coração. Examinai-a sob todos os aspectos, em sua substância, em
suas conseqüências: não apresenta nada para a fé e a conduta que esteja contra a razão ou a
consciência, embora não seja apoiado sobre bases sólidas e inconcussas.
Qualquer outra religião, fora da de Cristo, é evidentemente falsa, absurda, ridícula e
ímpia. Com efeito, não há no todo, mais do que quatro religiões dominantes no mundo: a judia, a idólatra, a maometana e a cristã. Pois bem, as três primeiras trazem na fronte os caracteres de sua reprovação. A lei judaica de hoje é o opróbrio de sua nação, e portanto não mais do
que uma enfiada de fábulas, de absurdos, de sonhos e de extravagâncias pueris e grosseiras. A
dos idólatras desonra a razão e é prova sensível da obcecação do homem pelo pecado, porque
seu culto e suas práticas são tão injuriosos ao bom senso como contra a divindade. A de Maomé se parece com seu autor: é totalmente carnal e grosseira. O Alcorão nada mais é do que
um agregado de contos e fábulas que uma pessoa sensata nem sequer tem paciência de ler. A
crueldade, a inumanidade, a injustiça, a bandidagem, a avareza, a impureza dos enganados
dão a conhecer que na escola do demônio é que se torturam e matam os precursores do anticristo. O paraíso que promete por recompensa a seus seguidores só merece esquecimento eterno e horroriza as almas puras. Com efeito, os prazeres voluptuosos que a religião cristã
proíbe e condena, inclusive em pensamento, or ser criminosos quando voluntários, são precisamente os que o ímpio propõe como recompensas eternas a homens tão impuros como ele.
Quando essas três doutrinas apresentam absurdos, impiedades e precipícios para a razão e os costumes, a doutrina cristã se nos oferece verdadeira, certa, segura. Se não é evidente, é evidentemente crível baseada na fé, oferece ao fiel mistérios incompreensíveis e verdades
sublimes mas baseadas sobre provas tão certas de sua verdade, que qualquer espírito razoável
se sente obrigado a adotá-la, a reconhecer que merece crédito, que somente ela é digna de
nosas fé, e que não há nela nenhum perigo, e sim, pelo contrário, perfeita segurança em as
crer e seguir. De fato, essa doutrina está admiravelmente de acordo com a de Moisés e com a
dos Profetas, como também com a que é inata em nossas almas, isso é, com a lei natural com
as luzes de uma sã razão que não foi de todo pervertida pelo vício, a paixão e os preconceitos.
Nada se desdiz nela, não se contradiz, nada é insubstancial nem indiferente, nada pequeno ou
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Vida de João Batista de la Sal
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inútil. Nela tudo é firme, grande sublime, perfeito e digno de Deus. O mais admirável nessa
doutrina é que quem a aprecia, vê sua beleza e sente suas vantagens à medida que a vai praticando.
Observada à letra por uma infinidade de santos de ambos os sexos em todos os lugares
e tempos, a todas as idades, e em todas as condições, mostra que, por austera, sublime, difícil
e perfeita que seja, é praticável e que a graça ameniza o jugo da austeridade. Esta prática exata
da doutrina cristã por tantas pessoas de caracteres, de educação, de gênio, de países e de gostos diferentes demostra sua verdade, pois mostra que não é um invento do homem nem um
sistema estudado detidamente, em um plano traçado com arte e habilidade. Esta doutrina descobre à primeira vista tudo o que se ocultava sob o véu das figuras da antiga lei, tudo o que os
filósofos mais ilustrados, tinham visto e sentido na consideração das misérias da vida, na depravação do coração humano e nas obras de Deus; e tudo o que restou de verdade no espírito
dos homens.
Esta doutrina não propõe nada que não seja muito santo, muito perfeito, muito necessário, muito interessante, muito sábio, muito razoável. Nada que não tenda à glória, ao culto,
ao serviço e ao amor de Deus nem nada que não consiga que o homem seja melhor, mais racional, mais virtuoso e mais feliz.
Aquele que a propõe, deu exemplo de tudo o que prescreve de mais heróico, e deixou
em sua pessoa o modelo mais perfeito das virtudes que exige. Também a autorizou mediante
surpreendentes prodígios que seus inimigos mais acérrimos não desmentiram e a firmou com
seu sangue e com a de uma infinidade de seus mártires, que alegres e com glória, morreram
por Ele. Não ensinou nada que não tivesse praticado à letra, e em altíssimo grau de perfeição.
Não disse nada que não tivesse feito, em contraposição aos antigos filósofos e sábios da terra
que ensinaram uma bela moral que não praticaram, e que marcaram uma diferença muito
grande entre suas lições e suas ações.
O Autor desta doutrina ressuscitou depois da morte como tinha prometido a seus apóstolos e como tinha predito a Sagrada Escritura, e, com essa prova terminante, deu à lei, toda
sua autoridade e o grau de credibilidade que pode ter. nada menos enganoso do que esta promessa. Ela é certamente verdadeira ou certamente falsa. Os apóstolos e os discípulos lhe deram fé como certamente verdadeira a oiti de a sustentarem diante dos que os mataram, sem ter
medo de suas ameaças nem de suas perseguições, percorreram o mundo inteiro para persuadir
os povos, sofrendo mil tormentos e, finalmente, morrendo para dar testemunho de sua fé.
Certamente não puderam crer em Jesus Cristo ressuscitado sem que ele o fosse efetivamente, pois tinham tantos meios de descobrir a verdade, e não tinham nenhum interesse
temporal para a sustentar; pelo contrário, todos os seus interesses humanos e naturais eram de
não o acreditar, ou de a trair ou ocultar. Jesus Cristo havia lhes prometido também o dom de
fazer milagres. Pois bem, souberam, de maneira certa, se tinham esse poder ou não o tinham,
pois bastava que o experimentassem, como o fizeram de fato. De outro lado, Jesus Cristo não
podia incitar a seus apóstolos a que enganassem os demais, pois uma pessoa não se mete em
tais empresas, a não ser com a esperança de conseguir algum proveito, alguma honra ou algum prazer neste mundo.contudo, Jesus Cristo não prometeu a seus seguidores mais do que
sofrimentos, perseguições, dores nesta vida e, finalmente, a morte. Assim, os que Jesus Cristo
escolheu para ensinar sua doutrina foram homens rudes, sem cultura, sem poder, sem autoridade, isto é, as pessoas menos aptas para convencer e contudo, a gente a publicou e conseguiram que fosse aceita em toda a parte, o que mostra o braço de Deus.
Finalmente, esses homens falam com uma simplicidade e retidão admiráveis e inimitáveis até em detrimento de sua fama e de amor próprio. O mesmo Espírito que anima a seu
Mestre, também os anima a eles. Pregam a pobreza, a mortificação, a penitência, e as praticam. Seus exemplos inspiram o amor a essas virtudes com mais eficácia ainda do que seus
discursos. Não querem, nem desejam, e não pedem nada das coisas deste mundo. Sua vida é
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Vida de João Batista de la Sal
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mais eloqüente do que sua palavras; pois ela e os milagres que fazem são que os persuadem
da doutrina de seu Mestre. O estranho é que todos morrem alegres para confirmá-la e esse
espírito de sacrifício penetra no coração de seus discípulos de tal maneira que, por três séculos, a terra enrubesce em toda parte com o sangue dessas testemunhas e com essas vítimas
voluntárias da fé de Jesus Cristo.
Essa doutrina, em toda parte,encontra contradição, é atacada, e, contudo é seguida em
todos os lugares em que é acolhida. E torna santos todos os fiéis observantes dela. Esses são
alguns dos motivos que a tornam fidedigna, certa e segura. Examinemos sua substância. Acaso propõe ela alguma coisa que pudesse oferecer algum risco para a alma de alguém? O que
ela prescreve que supõe um perigo nesta vida ou na outra? Crendo e praticando o que ela ensina, tudo é segurança. Se alguém não a crê e a pratica está em perigo.
Existe, por acaso, algum perigo em crer que Deus é um Ser infinito em perfeições, soberanamente amável e digno de todos os nossos serviços, que é puro espírito eterno, imutável,
imenso, onipotente, etc.? existe algum risco em crer tudo o mais que a doutrina cristã ensina
sobre a Providência, sobre a justiça, sobre sua santidade?
Existe algum risco em crer que o céu e a terra e tudo o que encerra são obra do todopoderoso, que criou tudo do nada, que os anjos lhe devem o ser e reconhecem seu domínio
soberano, e que alguns dentre eles se rebelaram, vítimas da justiça, enquanto os outros mereceram a glória por sua obediência e submissão?
Existe algum risco em mostrar a fonte de todos os nossos males na queda do primeiro
homem e o pecado original e em descobrir o remédio no Filho de Deus feito homem?
Acaso há algum perigo em reconhecer o Filho como nosso salvador, nosso libertador,
nosso mediador, nosso legislador e nosso soberano juiz: e em procurar em seus sacramentos
os canais de suas graças, e em todos os seus mistérios, sobretudo no de sua paixão a fonte de
nossa salvação?
Que risco corre quem se submete aos poderes situados acima de nós, honrando nos
príncipes a majestade de Deus, sendo-lhes fiéis, pagando-lhes exatamente o tributo, respeitando nos superiores a autoridade Deus, obedecendo-lhes como a Jesus Cristo, servido-lhes como
ao próprio Senhor, humilhando-nos diante de todos os homens, pelo menos em espírito, colocando-os acima de si, considerando-os como nossos superiores?
Esta doutrina forma pessoas fiéis, faz que os empregados se tornem obedientes e dóceis, os filhos, sujeitos e alegria de seus pais. Estabelece a paz no Estado, a segurança no serviço, a bondade nas famílias. Não praticar esta doutrina produz em toda parte a desconfiança,
a suspeita, a inquietação, o desconcerto, e autoriza o orgulho, a rebeldia, a perfídia, a ingratidão, e todas as desordens. Qual é o risco que se corre com acreditar nos novíssimos, no juízo
particular e universal, num exame exato de toda nossa vida, numa prestação de contas de todas as nossas ações, até dos meros desejos e pensamentos, num inferno para os malvados,
num paraíso para os justos, num suplício que não acaba e numa felicidade eterna? Que movimentos propícios podem produzir estas grandes verdades no coração que crê, movimentos
propícios para a penitência, a conversão, o temor, o terror, a vigilância, a oração! Quando se
pensa seriamente sobre ela, apodera-se de nós o horror, e o estremecimento abala o coração a
pesar dele, mesmo quando recusa crer nessas verdades, como aconteceu com o prefeito da
Judéia, quando São Paulo lhe anunciou estas terríveis verdades: Felix tremeu!
O que é que alguém pode temer ao acreditar nelas, a não ser melhorar, decidir-se a
emendar a vida, desprender-ser do mundo, preparar-se a comparecer diante desse juiz terrível,
aplacar sua cólera, desarmar a justiça, chorar os pecados,pensar e trabalhar em se salvar, apressar-se a fazer boas obras para evitar a morte eterna e merecer o céu? Pelo contrário,que
risco enorme em não crer nesta doutrina! A pessoa se expõem a viver como ateu, como ímpio,
como libertino, e viver sem Deus, sem fé, sem religião, sem consciência, sem temor nem esperança num futuro, e como um animal, ou como um demônio. Que risco enorme em recusar
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Vida de João Batista de la Sal
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esta fé! A pessoa se expõe a beber a iniqüidade como água, a não se dar conta do pecado, a
não evitar nenhum ao não discernir o bem do mal, a não admitir a Providência, ao não fazer
caso algum da virtude como tampouco do vício, ao não desejar outra coisa do que o que perece conosco.
Que risco enorme ao não querer escutar esta doutrina! A pessoa se expõe a tornar-se
ou a permanecer orgulhosa, vazia, ambiciosa, hipócrita, arrogante, insolente presumida, ambiciosa, invejosa, colérica, arrebatada, brutal, inumana, cruel, injusta, pérfida, sensual, intemperante, voluptuosa, dissoluta, impudica, numa palavra, tornar-se um operário de iniqüidade e
homem de pecado.
Existe algum perigo em crer que se deve amar a Deus acima de todas as coisas e o
próximo como a si mesmo: que se precisa fazer penitência; levar a cruz; rezar, humilhar-se,
ter cuidado consigo mesmo, etc?
Esta doutrina é tão justa que, ao renunciar a ela, se deixa de ser justo e virtuoso. É tão
racional que se deixa de o ser quando descuida a prática, porque então se deixa à concupiscência e aos vícios império e autoridade absolutos sobre a razão.
A fé nesta doutrina nos leva a dar a Deus, ao próximo e a nós mesmos o que se lhes
deve. Mantém os homens em paz e união. Faz reinar a eqüidade, a justiça, a boa fé e todas as
virtudes.
A recusa de crer nela acarreta toda sorte de desordens, de males e desgraças inumeráveis. Ao crer em Jesus Cristo, no inferno, na eternidade feliz ou infeliz, na imortalidade da
alma e nos castigos ou recompensas proporcionada a seus méritos ou desméritos, é evidente
que nada se arrisca, e mas tudo se arrisca ao não querer crer nestes artigos infinitamente importantes.
A fé nestas verdades só pode fazer que alguém seja melhor, mais humilde, mais timorato, mais manso, mais caridoso, mais justo, mais virtuoso durante a vida e, na morte, estar
mais tranqüilo e seguro. A obstinação em duvidar delas, só me pode fazer-me incerto, irresoluto e inquieto acerca do que pode ocorrer; ou temerário, ou loucamente audaz para correr
esse risco, se forem verdadeiras. Qual é minha situação, se não quiser crer nelas? Nesse caso
está em jogo a perda de minha alma; corro perigo de me condenar ao ficar duvidando delas;
porque é impossível, depois de tudo, encontrar provas e convencer-me de que não existe nada
a temer e nada a esperar; que não há nem castigo nem recompensa destinados para a virtude e
o vício e que tudo morre com o corpo.
Por ser impossível estar seguro da falsidade do que ensina a religião cristã sobre esses
pontos, não é possível também subtrair a alma das impressões devoradoras e amargas de inquietação, de temor e de perturbação que essas dúvidas originam. Mesmo supondo que na
morte alguém se desse conta da falsidade desses artigos da doutrina cristã, não se poderia ter o
pesar de as ter crido; ou então teria a temer o pesar de ter vivido como homem justo, razoável
e virtuoso; de ter vivido com moderação, frugalidade, piedade, justiça, caridade e segundo as
luzes de sã e pura razão.
Assim chegamos à conclusão de que a Doutrina cristã é muito segura, e que se goza
dessa segurança quando se age por caridade, já que, longe de que haja nela alguma coisa contrária à razão, ela é que guia, ilumina e aperfeiçoa a razão. Seguro se está na mais completa
segurança quan do se a segue, pois é evidente que n~~ao ensina nada que não seja digno de
Deus, nada que não seja agradável a Deus, nada que não tenda à maior glória de Deus, nada
que não tenha por objetivo o serviço e o amor de Deus, nada que não honre a quem a pratica,
que não contribua à felicidade da sociedade, ao interesse dos estados, das cidades e das famílias. Não se arrisca nada ao fazer dela a regra de nossa conduta, já que não ensina nada que
tenha o menor assomo de perigo para o presente e para o futuro, que não faça um homem de
bem de quem a pratica, porque, seguindo-a, se encontra sem espanto na morte a respeito do
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Vida de João Batista de la Sal
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futuro e com a consciência tranqüila durante a vida. Por conseguinte, não se arriscaz nada em
a seguir, e se arrisca tudo se não se a pratica.
5º Prerrogativa da doutrina cristã: ela é uma e simples. A doutrina de Moisés esta carregada de preceitos, de regulamentos e de cerimônias. Sua multidão engloba a memória, sua
variedade atrapalha o espírito, e sua dificuldade era difícil até às melhores boas vontades. Esta
lei é um peso, dizia Estevão a seus compatriotas, tão pesado que nem nós, nem nossos pais
pudemos carregá-lo.
A respeito da doutrina dos filósofos e dos sábios do mundo, ela se apresenta em quantidade de volumes para serem lidos por quem quiser se instruir. É preciso estudá-los detidamente e com esforço.além disso não bastaria a vida inteira para alguém se colocar a par de
seus sentimentos: não tem a unidade, nem a simplicidade, nem a brevidade como características. Extensa, difusa, sutil, além de múltipla como são os diversos filósofos, é ela , porque cada qual tem a sua que difere das dos outros. Não é de estranhar: é a doutrina dos homens e não
a do mesmo espírito que a tivesse inspirado e, por isso, há tantos quantas as cabeças diferentes.
Ao contrário, a unidade, a simplicidade, a brevidade são características da doutrina
cristã; e isso tem algo de divino. É uma em seus preceitos, em suas máximas, em seus conselhos, em seus mistérios, nos sacramentos, nas promessas e em ttodos os seus pontos; porque
nela tudo tende ao amor perfeito de Deus como as linhas do círculo convergem para o centro.
Para falar verdade, na dei cristã só existe um preceito: amar a Deus em si mesmo e
amar a Deus no próximo e amar o próximo por ele. Este é o preceiro universal, soberano e
único, que é a alma da lei. Se existirem ainda outros diferentes dele, ele é o término e a meta,
o fim e o princípio, e tudo o mais que pede o evangelho serve para dispor o coração à caridade
ou para a aumentar e aperfeiçoar; tudo o mais serve para voltar a acendê-la quando se apagou
e para a conservar em sua pureza, para a inflamar e arder. A caridade é o fim da lei, a alma da
lei, resumo e substância da lei: que a observa, observa a lei.
Mas examinemos os outros preceitos, os outros conselhos e as outras máximas da doutrina cristã em si mesmas e sem relacioná-las com a caridade que as reúne: não são muitas e
não se precisa de muito tempo nem de muito trabalho para as conhecer
Toda a lei evangélica se resume em oito verdades, chamadas as bem-aventuranças, em
número mais reduzido de conselhos de perfeição, na obrigação de fazer penitência, de ter cuidado consigo mesmo, de rezar, de renunciar a si mesmo, de levar a cruz, de se fazer violência, de odiar o mundo e de se afastar dele, de ter intenções puras, de ser sincero, autêntico,
fiel, casto, humilde, mortificado, obediente; de esquecer as injúrias, de perdoar os inimigos e
de amar o próximo como a si mesmo. Pode-se traçar um plano mais breve, de uma lei apropriada para regular a conduta do homem ao longo de sua vida, em todas as idades, em todos
os estados, e para dirigir o conjunto dos deveres para com Deus, com o próximo, consigo
mesmo, para com os superiores, os iguais, os inferiores. Na enfermidade e na saúde, em casa e
nas viagens, sempre e em toa parte?
Poderia alguém, fora de Deus, regulamentar com menos leis todo o interior e exterior
do homem, dirigir seus pensamentos, seus desejos, suas ações, seus desígnios e todas as suas
vontades?
Que fundo de moralidade encerra este único mandamento: renuncia a ti mesmo! Volumes inteiros de espiritualidade, todos os livros que tratam da salvação e da perfeição, não
são outra coisa do que seu comentário. Estas quatro palavras encerram, com clareza, tudo o
que dizem esses livros; e tudo o que esses livros dizem, embora inúmeros, ainda não dizem
tudo o que significam essas palavras: nelas resta um sentido, uma essência, um miolo que os
livros não esgotaram; e quando ágüem tivesse lido tudo o que ensinaram nossos mestres da
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Vida de João Batista de la Sal
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vida espiritual, se possível fosse, neles nada encontraria de útil e necessário saber que não se
encontre nestas quatro palavras. O que digo da moral cristã, digo também da fé. A fé nos
principais mistérios e verdades mais necessárias de saber está encerrada no símbolo dos apóstolos. Pois bem; não se precisa de muito tempo nem de muito trabalho para o aprender, decorar e, menos ainda, para o compreender.
Será que não é preciso confessar que tal brevidade é divina e que somente Deus pode
dizer tantas coisas unicamente em quatro palavras? Assim é toda a lei de Jesus Cristo; breve, e
além disso, muito clara e inteligível.
6. Prerrogativa da doutrina cristã: é muito clara e muito inteligível, muito fácil,
de entender e decorar; e por isso está ao alcance de todos, até dos mais frases em inteligência. Deste modo, aqui é que se faz sentir a sabedoria de seu Autor: porque, quando o
homem quer abreviar muito, torna-se obscuro; e ao abreviar o que deseja dizer, torna-se
um enigma e um mistério. A arte de encerrar em palavras simples e breves, em duas
palavras ou em poucas, um sentido inesgotável, uma moral de extensão quase infinita,
tal é a arte de Jesus Cristo. Sôo ele a possui porque somente ele é a sabedoria de Deus, e
sendo ele mesmo a verdade, só ele soube mostrá-la despojada aos espírito mais ineptos,
sem obscurecê-la sob uma nuvem de palavras, como fazem os homens que não conseguem
dizer muita coisa sem muitos discursos extensos.
Que diferença entre os Mestres da doutrina celeste e os mestres da doutrina humana!
Quanto tempo, trabalho, esforço, aplicação e estudo se requer para se colocar a par de todas as
artes e de todas as ciências! Só os mais esforçados, os mais arguto podem consegui-lo. As
ciências não são nem para os preguiçosos, nem para os ineptos. Quanto tempo se precisa para
ler, estudar, compreender e reter as leis civis e a jurisprudência: os livros de Hipócrates, de
Galeno, dos outros médicos; os de astrologia, geometria, matemática, filosofia, etc! quantos
comentários se fizeram acerca da doutrina do Mestre das Sentenças e de Santo Tomás! Enchem as bibliotecas, e muitas vezes, esses comentários, em vez de esclarecer, só embrulham a
doutrina dos doutores. Sem falar dos outros antigos filósofos. Quanta necessidade teve Aristóteles de sábios para o interpretar! Quanto custou a seus discípulos encontrar a chave de sua
doutrina e o verdadeiro sentido de suas palavras ou, melhor, de seus enigmas! Durante mais
de dois mil anos, seus escritos foram postos à prova pelos sábios em todo o mundo, e em todo
o mundo houve discípulos zelosos que se esforçaram por esclarecer sua doutrina. Contudo,
deu problema aos espíritos que procurar consegui-lo; ocorreu-lhes que depois de anos de sagaz aplicação sobre sua dialética e o demais de sua doutrina, ninguém pode ufanar-se de ter
captado o sentido. Como iriam compreendê-lo? O próprio Aristóteles não o entendia e, com
suma perspicácia, a quem dizia que não entendia, ou que não o compreendia, o disse de maneira incompreensível: ou não quis apresentar a doutrina de maneira clara, ou não o podia.
Seis escritos são enigmas e uma espécie de Apocalipse humana e natural.
Até Moisés e os profetas têm seus pontos escuros. Muitas vezes, as verdades que anunciam em seus livros são verdadeiros mistérios. Além disso, as figuras que envolvem esses
mistérios são escuros: os próprios termos e as expressões que as cobrem precisam de explicação. Isto não ocorre na doutrina de Jesus Cristo: é clara e inteligível, fácil de aprender, de decorar e, por isso, ao alcance de todos, até dos menos inteligentes.
Não que eu queira dizer que os mistérios de dêem a conhecer, que se descubram à razão: são incompreensíveis; sua verdade é velada; para submeter-se a ela é preciso cativar a
razão; a fé que obriga a crer não mostra coisa alguma ao espírito.
Esta virtude não teria mérito se nala houvesse evidência ou se os sentidos tivessem alguma experiência da mesma. Mas, então, em que sentido a doutrina cristã é tão clara e inteligível? O que acontece é que, se não mostra os obmetos da fé, ela os propõe de maneira clara e
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Vida de João Batista de la Sal
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fácil; toda a lei e a moral são claras como a luz do dia; o método de quem se serve para as
construir é o mais fácil, o mais acessível.
1º A doutrina cristã propõe à fé os mistérios mais sublimes incompreensíveis, mas de
maneira que não ode ser mais clara nem mais inteligível. Os mistérios que encerra o símbolo
são os mais essenciais e os mais necessários para salvar-se. Contudo, por maiores e incompreensíveis e obscuros que pareçam ao espírito, são propostos com uma clareza surpreendente.
Os doze artigos do símbolo dos apóstolos, que mostram sem sombra, sem palavrório, sem
sombra, as verdades que a fé requer. Se há outras verdades necessárias fora do que o símbolo
enumera, a Igreja as ensina com tanta clareza que os fiéis não odem ignorar o que sua Mãe
lhes propõe para crer.
De certo, não ocorre o mesmo com os princípios e noções fundamentais das outras ciências. De começo, o espírito os encontra eriçados de dificuldades; não os compreende a não
ser depois de algum tempo e mediante trabalhoso estudo. Os que, ao sair do curso de humanidades, iniciam um curso de filosofia, sabem os abrolhos que encontram ao iniciar esse estudo.
Os termos, as definições, as noções, as questões da dialética, são para eles verdadeiros
enigmas. Sentem-se desorientados e, de começo, não entendem nada do que querem aprender.
Como se eles se encontrassem em meio selvagem; não sabem se o que desejam aprender está
em grego ou hebraico, somente ouvem o som das palavras, sem compreender sua significação. Se os princípios de Euclides apresentam uma certa evidência, sua subtileza, sua abstração
os coloca tão acima de espíritos toscos, que estes não conseguem chegar até eles. Por excelentes que sejam os aforismos de Hipócrates, os que não são médicos não conseguem compreender-lhes o sentido., se não com auxílio de mestres ou graças à grande agudez de sua inteligência ou mediante longo estudo. O mesmo acotece com as outras ciências. Requerem aplicação,
tempo e sagacidade; e com tudo isso, ninguém está seguro de ter encontrado a verdade. A
doutrina cristã é muito diferente: apresenta os conceitos essenciais da fé em termos claros e
conhecidos, e em número muito reduzido. Propõe sem equívoco, sem ambigüidade o que é
preciso crer.
2º Sua lei e sua moral, isto é, seus preceitos, seus conselhos, suas máximas, suas recomendações chegam ao espírito com clareza meridiana. Renunciai a vós mesmos, fazei penitência, carregai a cruz, etc. estes são ,mandamentos que o espírito mais rude pode compreender e reter. Facilmente. Todo o resto da moral evangélica é tão luminoso. Para compreender a
de Jesus Cristo, somente é preciso ter olhos ou ouvidos. Aliás o modo de se instruir é breve,
rápido e fácil.
3º E assim, está ao alcance de todos, até dos mais ineptos. Se o método de a aprender é
o mais breve, o mais rápido e o mais fácil, como é que se aprende então? Através da autoridade e de uma autoridade muito racional e não como as demais doutrinas que não se aprendem
senão mediante a discussão, o estudo e o raciocínio. Com efeito, para se persuadir da verdade
da doutrina cristã, basta crer na autoridade infalível do Filho de Deus que a revelou aos homens, sem que seja preciso empregar a discussão, o estudo e o raciocínio como ocorre com as
outras ciências.
Pois bem; é visível que este método de ensinar pela autoridade é ao mesmo tampo o
mais sublime, o mais perfeito, o único próprio dos homens, o úico seguro e infalível, o único
breve e fácil, e além disso, é muito racional. É o mais sublime e o mais perfeito, porque é o
único digno de Deus, que, ao ser infalível e a verdade suprema, não pode enganar nem ser
enganado; e tem somente o direito de exigir uma submissão cega a tudo o que diz, quer na
fala pessoalmente, quer mediante o órgão de sua Igreja.
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Vida de João Batista de la Sal
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É o único próprio dos homens, porque todos os homens podem crer e mantê-lo numa
autoridade infalível quando muito poucos homens são capazes de estudo, de discussão e de
longo raciocínio.
É o único seguro e infalível, porque todos os raciocínios humanos estão exposto ao erro e que somente Deus, que revela a doutrina cristã, se livra de erro.
É o único breve e fácil, porque para crer e aceitar com gosto a autoridade infalível,
basta um momento, e que se requer muito trabalho e muito tempo para aprender pelo estudo e
raciocínio. Além disso, é muito racional, porque, se propõem coisas que superam a razão,
proporciona os motivos legítimos para crer.
7º Finalmente, a doutrina cristã é infinitamente valiosa. Esta é a sétima prerrogativa. Uma coisa é muito valiosa, quando é muito rara, muito bonita, muito necessária,
excelente. Por isso, nada no mundo é muito valioso, porque, se uma pérola, ou um diamante, ou alguma jóia é muito rara, muito bonita e encerra em sua ma´teria u no seu
feitio atrativos que agradam, no fundo não nenhuma necessidade ou utilidade para os
usos da vida e a satisfação do coração. Toda pessoa se acostuma a vê-la, e costuma a olhá-la cansa o prazer que antes oferecia e, assim, perde seu valor.
Nada mais necessário para os usos do homem do que a água, o fogo, o ar, a luz do dia,
e outras mil coisas desta sorte. Contudo, não sã consideradas como preciosas, porque são comuns e o gênero humano as aproveita em toda a parte. Se alguma vez, em certos lugares ou
em em certas ocasiões chegam a faltar, então todos se dão conta de seu valor e então se tornam preciosas. Numa grande necessidade, aprecia-se mais a água, o pão e o fogo do que as
pérolas e diamantes; e então se muda sem pestanejar para salvar a vida. Tendo em conta tudo
isso, como deve ser considerado precioso o conhecimento da doutrina cristã, que é infinitamente bela, necessária, excelente e, muito rara, aliás!
1º Ela só é revelada a muito poucas pessoas, que são os cristãos.
2º Ela não é concedida a não ser mediante uma graça e misericórdia especiais.
3º Os que a ignoram não pode ser virtuosos e santos, nem felizes neste mundo e nem
no outro.
Com efeito, ela é ignorada por um inúmero de judeus, maometanos, idólatras, ateus e
outros que vivem sem religião, e coisa lamentável, pela maioria dos cristãos que não se preocupam por aprendê-la ou que não cuidam de a ensinar.
Entre eles, os mais dignos de compaixão são as pessoas do campo e a gente humilde
que carecem de instrução ou de um ensino simples e familiar adequado a pôr a seu alcance o
pão do Evangelho. Porque é inútil pregar a pessoas que não sabem o catecismo. É inútil pronunciar eloqüentes discursos a gente que, ao sair da igreja, retornam vazios da palavra de
Deus, porque não a compreendem. O que lhes falta é leite e não o pão. Por faltar o primeiro
elemento, morrem de fome e perecem. Se estes merecem que se lamente sua funesta ignorância, quantas lágrimas e soluços não merecem os jovens mais pobres e abandonados que carecem absolutamente de instruções e de educação cristã.
Em seu favor falamos aqui, ao tratar de colocar em relevo a necessidade de estabelecimentos das Escolas Cristãs e Gratuitas, e a importância de sociedades que se dedicam à instrução e à educação dos jovens pobres e abandonados.
Com que olhos se deveria olhar as pessoas que, formadas durante longos anos na piedade, e no exercício dos deveres de sua profissão, se encarregam com trabalho assíduo e zelo
infatigável a educar nos princípios da religião e a instruir na ciência da salvação a quem? A
crianças seletas, ricas, de posição, gentis, dóceis e amáveis? Não! Para tais jovens plantas não
faltam nunca mãos hábeis para fazê-las crescer. Abrem-se colégios para eles e sociedades
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Vida de João Batista de la Sal
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inteiras os cultivam com êxito: mestres e preceptores contratados para essas pessoas têm muito cuidado de sua conduta e dirigir seus passos na vida. Assim, se se perdem e se condenam,
será por culpa deles mesmos; não será por ignorância, nem por falta de educação, e sim sua
própria malícia. São instruídos, conhecem seus deveres. Sabem o que devem a Deus e ao próximo, à Igreja e à religião. Se são infiéis e tudo isso, serão duplamente culpados, segundo a
declaração de Jesus Cristo, porque conhecem a vontade de Deus e não a praticam.
Mas estas crianças pobres de ambos os sexos, essas crianças que, pelo que parece, não
recebem a vida do corpo senão para perder a da al a, que em casa não encontram só maus
exemplos perniciosos, e que não recebem instrução senão para o mal, essas crianças vagabundas que correm pelas ruas , que só sabe brincar, que só fazem travessuras, pregam peças, gracejam, resmungam; fazem troça, brigam, armam rixas; essas crianças que só aparecem na
igreja para perturbar ou fazer ruído e escândalos, ou para permanecer nela como animais, sem
saber onde estão, nem o que pretendem fazer nela, nem o que devem a Aquele diante do qual
estão, rindo, brincando, agarrando-se, dizendo insultos; essas crianças que, ao crescerem, se
tornam blasfemos, bêbados, libertinos de profissão e que, ao substituírem seus pais, continuam a geração de homens sem fé, sem religião e sem uso da razão, quando devem ou podem
procurar a instrução cristã.
Em suas paróquias, de certo, - mas se não a encontram ? E em quantas paróquias, cidades e lugares do campo se procura encontrá-la? E quantas paróquias na França há que não
proporcionam uma instrução suficiente às crianças pobres? Quantos eclesiásticos há no Reino
que fazem o que querem fazer o que fazem os Irmãos para com esses pobres jovens, que querem como eles assumir uma profissão, a única profissão de ter escolas gratuitas e cristãs?
Se, na falta deles, aparecem os Irmãos para prestar o serviço desta porção da Igreja, a
mais digna de compaixão, como é que se os deve receber? Como enviados de Deus, como os
apóstolos dos pobres jovens, como os vigários dos pastores para esta parte do ministério, como os substitutos do clero, que substituem no exercício de um ofício sumamente importante e
necessário. Não devemos agradecer e louvar a bondade de Deus que supre, mediante a instituição das Congregações de homens e mulheres que têm escolas gratuitas e cristãs, na falta dos
ministros evangélicos que não têm nem o zelo, nem a vontade nem o atrativo de se dedicar a
uma função tão divina?
Não devemos agradecer efusivamente a Deus porque, em nossos dias, concede meios
de salvação tão fáceis e abundantes aos jovens descuidados, abandonados, repelidos e que
serão sempre o lixo dos que somente vêem as coisas com os olhos da carne?
Quem olhar essas crianças de ambos os sexos cuja multidão é quase infinita, a pedir o
pão da instrução, com os olhos abertos pela fé, se sentirá comovido ao pensar na perda delas,
e sentirá as inspirações do Espírito que moveu a São Paulo, quando entrou em Atenas, viu a
cidade mãe das ciências e dos gênios, o teatro da superstição mais monstruosa, e não poderá
deixar de lamentar-se ao ver inúmeros jovens que não conhecem a Deus e que não encontram
a ninguém que lhes ensine as verdades necessárias.
Que é que poderia ver com os olhos da fé essa multidão de crianças que crescem na
ignorância da religião, sem pagar um justo tributo de suas lágrimas ao deus desconhecido?
Quem é qu poderá ficar indiferente diante desse espetáculo sem sentir-se movido a erigir nessas ternas almas um altar ao soberano Senhor, ao qual foram consagrados pelo batismo, e não
fazer todo o possível para multiplicar as escolas cristãs?
Poderá alguém, que é rico, regatear parte de seus bens para uma obra tão boa? Se alguém não tem bens, ficará por acaso com os braços cruzados, sem incitar os que os têm a dispor algumas quantias para restabelecer escolas gratuitas e para resgatar do cativeiro dos vícios a tantas almas resgatadas ao preço do sangue de Jesus Cristo? Se alguém não pode fazer
nada, e se, sem influência alguma, sem autoridade, sem indústria, só tem algumas orações e
suspiros para contribuir a um bem tão importante, fica a possibilidade de contribuir dessa ma-
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Vida de João Batista de la Sal
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neira ao estabelecimento de uma obra tão necessária. Pode acaso alguém alegrar-se ao ver os
Irmãos à frente de grande número de meninos pobres, fazendo-lhes de pais no Senhor, de
mestres e anjos da guarda? Que luve a Deus por ter concedido a sua Igreja e aos membros de
Jesus Cristo mais necessitados os meios de salvação tão abundantes e que se beije a terra que
esses novos obreiros evangélicos estão regando, felicitando-os por trabalharem com tanto
fruto uma obra tão importante, tão necessária, tão vantajosa, tão divina, tão excelente.
Este é o fruto que vamos recolher do que dissemos em honra da doutrina cristã. Não
começamos, com balbuceio a fazer seu elogio e sim para fazer da instituição dos mestres e
mestras das escolas cristãs. Da importância, da necessidade, da excelência, das vantagens da
doutrina cristã se deduzem, pois, a importância, a excelência, a necessidade e as vantagens da
instituição dos mestres e das mestras das escolas cristãs e gratuitas.
Por escolas se entendem lugares em que vivem os jovens para aprender com pagamento a ler, escrever, contar. E por escolas cristãs gratuitas se entendem lugares aonde as crianças vêm para buscar de graça a instrução cristã e uma santa educação. As primeiras escolas,
em contraste com as segundas, devem ser consideradas como profanas e como seculares, porque as crianças não procuram nelas outra coisa do que a instrução profana bastante indiferente, pelo menos, pouco importante, e de nenhuma maneira necessária para se salvarem. Pór
isso, não é a caridade, mas o interesse que as abre e chama a elas. Quem não possui dinheiro
para dar aos mestres e mestras, encontra suas portas fechadas.
Para ensinar as verdades da salvação e os princípios da religião aos que vêm a elas,
enquanto aprendem a ler, escrever e contar, é que se abrem as escolas gratuitas. Esta última
classe de instrução está subordinada à primeira. Esta é a que interessa e é o principal; por conseguinte, somente às escolas gratuitas se deve aplicar tudo o que foi dito em honra da santidade, da excelência, da necessidade e das vantagens da doutrina cristã.
Se a doutrina cristã é necessária para a salvação, os fiéis não a podem ignorar sem perigo para essa salvação. Portanto, é para eles necessidade aprendê-la. Os primeiros anos são os
destinados como os mais próprios e cômodos para essa aprendizagem. Quando passam sem
que os aproveitar para se instruir acerca dos princípios da religião, mais tarde já não encontram nem tempo nem facilidade, nem os meios. Muitas vezes até se tem vergonha e se desdenha a procura e o uso. Quem não aprendeu a religião em sua juventude, costuma passar o resto de sua vida na ignorância e crê que não lhe fica bem aprender a conhecer, amar e servir a
Deus, já que não lhe foi ensinado em idade oportuna.
Nada mais importante, pois, do que aprender na juventude a doutrina, única e absolutamente necessária.
Mas, como aprender, se não se encontra lugares abertos e mestres e mestras caridosos
que a ensinem gratuitamente, sem acepção de pessoas? Nas outras escolas, não se faz profissão de educar cristâmente ee de instruir os jovens nos princípios da religião e da ciência da
salvação. E menos ainda, se está disposto a oferecer ensino gratuito.
Os e as que têm dinheiro não podem pensar em se apresentar nelas. Os e as que oferecem dinheiro não vão para encontrar a ciência da salvação. Seria inútil que pedissem lições
sobre essa matéria.
Portanto, se quisermos que as crianças saibam a religião, é preciso abril para elas, escolas em que se faz profissão de ensinar os princípios da mesma e dar instruções por pura
caridade porque nem todos os filhos dos pobres podem pagar por isso.
Mas, onde encontrar pessoas idôneas para manter perpetuamente tais escolas gratuitas
e cristãs, se não é nas comunidades estabelecidas para os educar?
Fora dos seminários instituídos para a formação de mestres e mestras de escolas de caridade, podem-se acaso encontrar outras capazes de instruir e educar de forma crista os jovens?
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Sim! Dirá alguém; mas quando, como, para quanto tempo? Isto ocorre raramente, por
casualidade, e no fim das contas, para somente por alguns poucos anos. Acontece, às vezes,
que alguns piedosos eclesiásticos se dediquem a este santo ofício. É claro, mas é raro. Há
também seculares ou meninas que se dedicam a esse caridoso ofício. Mas, ordinariamente,
carece de capacidade, de jeito e de método necessário para o fazer devidamente. Até, supondo
que não carecem de jeito natural e de piedade para desempenhar esse ofício com bom resultado, sempre fica certo, que ao falecerem deixam o lugar vazio e não se encontra quem os substitua.
Então a necessidade obriga a recorrer às comunidades que as formam e perpetuem, se
se quiser pessoas idôneas.
Nada mais necessário, portanto, que o estabelecimento dessa espécie de institutos em
que se eduquem mestres e mestras para manter as escolas cristãs e gratuitas. Esta necessidade
corre parelha com a de saber a doutrina cristã e com a incapacidade em que se encontram os
jovens pobres e abandonados de aprenderem essa doutrina fora das escolas de caridade. Em
favor desses mestres e dessas mestras, acrescentemos que nenhum ofício é mais santo, mais
excelente, mais augusto, mais vantajoso do que o deles: porque a doutrina que ensinam é uma
doutrina da salvação, ma doutrina infinitamente bela, pura, santa, segura, excelente e vantajosa. Por conseguinte, seu ministério é um ministério celeste, divino, que tem seu modelo em
Jesus Cristo e nos exemplos dos santos, um ministério excelente e infinitamente vantajoso,
que acarreta frutos para a eternidade e que não tem por fim outro que o céu e a salvação das
almas..
Tudo é grande no que se refere às escolas cristãs, diz, de maneira elegante, um novo
autor que tratou com muita competência esta matéria em algumas palavras.
O que elas são em si mesmas, as vantagens que nelas se encontram, s necessidade que
a Igreja e o estado têm delas, são tão patentes e tão conhecidas de todos que seroa om[útil
deter-se a expor sua excelência, sua utilidade e necessidade! Estas verdades tão manifestas
chamaram tanto a atenção de vários grandes homens que se esforçaram para nos comunicar
suas idéias relativas a essa questão; e se superaram a si mesmos nesta empresa ela maneira em
que falaram e escreveram sobre este assunto. São estas as expressões que empregaram para
nos dar a conhecer o que pensavam das escolas cristãs e que bastam para não as recordar e
elogiáveis demais para nelas mudar alguma coisa.
As escolas cristãs, dizem alguns, são como os seminários ou viveiros da Igreja e do
Estado, em que as crianças se educam como jovens plantas para serem transplantadas depois
em diferentes condições de ambos os sexos para que tragam fruto em seu tempo. Com efeito,
nesses lugares é que se cultiva a virtude e se corrigem os hábitos viciosos da natureza corrupta, mediante a educação cristã que nelas se dá.
Outros disseram que são o Noviciado do cristianismo no qual se formam as crianças
na religião cristã na qual entraram pelo batismo, como se formam os religiosas em seu noviciado à religião na qual vão professar e que, como ordinariamente não há bons professos nas
diferentes religiões da Igreja, a não ser os que tiveram bons noviços, assim não há bons cristãos a não ser os bons alunos nas escolas cristãs.
Dizem outros que são: 1º Os asilos das crianças contra a corrupção do mundo. 2º Lugares de pureza para proteger a pureza e para conserva o tesouro inestimável da graça batismal. 3º Refúgios para os que começaram a se perder em meio do mundo. 4º Exercícios públicos estabelecidos para aprender a ciência da salvação e a prática das virtudes cristãs.
Degundo alguns, as escolas são academias sanas em que as crianças se preparam para
a guerra espiritual que terão de fazer ou sustentar durante toda a vida contra os inimigos de
sua salvação e em que se lhes ensinam os meios e se lhes dão as armas necessárias para saírem sempre vitoriosas desta sorte de combates.
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Assim também, nas academias é que começam a se formar os bons operários, os santos magistrados, os bons pais de família, os santos eclesiásticos, os bons religiosos, etc. Segundo alguns, é nesses lugares em que o castigo da disciplina faz fugir a loucura do coração
das crianças e liberta sua alma da morte, e em que a correção lhes comunica a sabedoria.
Se acreditamos em alguns, as escolas são como as igrejas das crianças, porque nelas
adoram a Deus, fazem nelas suas orações, cantam seus louvores e aprendem a amar e servir a
Deus. São instruídas a praticar a virtude, a fugir do vício, a seguir as máximas cristãs. aprendem nelas a rezar, a se confessar bem, a comungar dignamente, etc.
Suprimam as escolas cristãs, dize a maioria, e solapam desta maneira nos cristãos, a
religião em seus fundamentos; o campo da Igreja se torna uma eira cheia de espinhos e abolhos, como uma densa nuvem se estenderá a ignorância or toda a superfície da terra; e a corrupção, como torrente impetuosa, brotará e inundará toda a parte da terra privada desse recurso.
Com efeito, quantos males são de temer, dizem outros para terminar, quando já não se
instruem as crianças, quando se descuida sua educação e que já não se as corrige deixando-as
abandonadas a si mesmas. Quando forem adultas, encheriam a Igreja de crianças que a cobrirão de confusão; suas famílias, por seres que constituirão uma praga, e, por fim, o inferno se
povoará de réprobos.
Nenhuma dessas expressões não faça sentir a excelência das escolas de caridade, a utilidade que delas se tira e a necessidade infinita que delas têm as crianças. Pr fim, sua fundação
é um dos meios mais eficazes e mais universais da santificação da juventude. E numa palavra,
é a obra por excelência.
Depois disso tudo não se deve estranhar que a Igreja e o estado tenham trabalhado em
parceria e com tanto zelo para as fundar.
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Vida de João Batista de la Sal
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Capítulo II
Serviços im portantes que prestam ao público os mestres e as m estras
D as escolas gratuitas e cristãs
Se os que são indiferentes para com os centros das escolas cristãs e gratuitas refletirem sobre os importantes serviços que o público recebe delas, se animariam de zelo para as
procurar e teriam de reconhecer que a Igreja e o Estado têm igualmente interesse em favorecer
as iniciativas para as ter com êxito e edificação.
Pensando bem, se verá que quase todos os membros do Estado e da Igreja devem muito aos e às que se encarregam de instruir e educar gratuitamente as crianças de seu sexo porque, a respeito da Providência, são instrumentos valiosos; a respeito dos membros da Igreja e
do Estado; são anjos da guarda; a respeito dos pais, são suplentes; a respeito dos pastores da
paróquias, são substitutos e a respeito das crianças, são mestres, doutores, pastores e até me
atrevo a dizer, são salvadores.
Vamos desenvolver, em poucas palavras, esses títulos gloriosos dos mestres e das
mestras das escolas de caridade. Nada pode inspirar ao público nem aos próprios interessados
maior apreço da vocação deles.
Em primeiro lugar, são os instrumentos da bondade de Deus para a salvação das crianças pobres e mais abandonadas: porque é disposição da Providência estabelecer escolas cristãs
e gratuitas em favor dessas crianças.
Se Deus não deve nem pode ficar devendo alguma coisa ao homem, fica devendo a si
mesmo (se assim se pode falar) procurar ao homem os meios de conhecer a ele, de amá-lo e
de o servir; porque esta obrigação, de o amar e lhe servir surge do nada com a criatura. Este
dever está gravado no fundo da natureza. Não cabe escusa, nem dispensa, nem exceção. Com
a mesma necessidade que Deus é Deus, a criatura inteligente deve amá-lo e lhe servir. E, por
conseguinte, aprender a fazer isto, continua um dever, se por infelicidade, sua origem o jogou
na ignorância do que deve a seu Criador. Se a sua infelicidade prossegue e não fica conhecendo os meios de chegar ao conhecimento da ciência da salvação, cabe à Providência proporcioná-los aos fiéis. Esta boa vontade de Deus está encerrada no desígnio de salvar todos os homens e está vinculada ao título infinitamente glorioso que Jesus Cristo alcançou mediante seu
sangue, de ser Salvador de todos os homens e particularmente dos fiéis.
Quer que todos os homens cheguem ao conhecimento da verdade, e por conseguinte,
de seus mistérios, de suas promessas, de suas ameaças, de seus mandamentos e de tudo o que
constitui a ciência da salvação. Quer ta,bem que todos se salvem: e como sua sabedoria e sua
bondade presidem a todos os seus decretos, o de salvar a todos os homens implica o de proporcionar-lhes todos os meios. Em virtude da ilação necessária entre os meios de salvação
esta benevolência implica a instrução e educação cristã. As escolas cristãs e gratuitas são,
pois, esses meios de salvação que sua bondade proporciona a todas as crianças abandonadas.
Os mestres e as mestras dessas escolas são, pois, os ministros que ele emprega na execução
desse grande desígnio. São os operários que o pai de família envia a trabalhar em sua vinha ou
em seu campo, para limpar o que ficou inculto. São os arquitetos que emprega na edificação
que está construindo. Sua boca é o órgão que abre para anunciar a essas crianças o evangelho
de seu Filho.
Na medida em que se valorizar uma vocação tão sublime, se encontrarão atrativos em
se dedicar com zelo a levar para Deus as crianças, em lhes dizer a palavra de reconciliação,
em lhes confiar o Espírito Santo para que Ele mesmo as exorte, regando essas ternas plantas
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Vida de João Batista de la Sal
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com instruções saudáveis e lançando em terra virgem de seu coração a semente das verdades
evangélicas. Nunca é cedo demais para lhes falar de Jesus Cristo e ensinar-lhes, com sua
Cruz, palavras simples e familiares.
Para a execução deste decreto eterno da salvação dos homens é por que Deus declarou,
na lei da natureza, pela boca dos patriarcas, o que os homens deviam fazer e evitar, já que não
podiam ler nas tábuas de seu coração, em que o pecado tinha obscurecido, se não apagado
toda a lei natural.em conseqüência desta bondade de Deus, os profetas, instruídos pelo Espírito Santo, se tornaram oráculos e órgãos seus para anunciar as verdades do céu. Para os instruir
com clareza, o Filho que está no seio do Pai, desceu à terra e depois de ter desempenhado o
mesmo ofício de cate quista, enviou para toda a terra, seus apóstolos, para que ensinassem aos
homens o que ele mesmo lhes havia ensinado. Esses homens de Deus morreram; mas seu ministério não morreu com eles: tiveram sucessores aos quais o transmitiram com sua autoridade.
Assim, de século em século, e através de todas as nações do mundo, a doutrina d Jesus
Cristo se estendeu mediante a sucessão ininterrupta de ministros que a ensinaram de muitas
maneiras. A mais familiar sempre foi a mais universal, porque é a mais eficiente.
Nunca faltaram catequistas na Igreja. Deus os devia a sua Igreja – se assim se pode falar - pois ao impor aos homens a obrigação de conhecer as verdades da fé e da salvação, se
compromete, por assim dizer, a procurar os meios de instruir; assim, nessas disposições dos
decretos eternos, as escolas cristãs têm sua importância, porque as crianças precisam de mestres que lhes ensinem que são cristãos e os deveres que essa qualidade supõe. Como é que os
homens creriam, diz o apóstolo, naquele de quem não ouviram falar? Como ouviriam, se não
há quem lhes anuncie as existência? Tenho, pois, o direito de deduzir que os que o fazem são
os substitutos da divina Providência.
Em segundo lugar, os mestres e as mestras de escola são os anjos visíveis e tutelares
das crianças. O que é que fazem os anjos da guarda para com os que Deus lhes cofia? Isto é
algo que olho algum jamais viu, nem ouvido percebeu, e o que o espírito humano não pode
conceber. Cada qual de nós verá somente no momento da morte tudo o que recebeu de seu
santo anjo, tudo o que lhe deve. Por ele fomos cumulados de todos os dons, diz o jovem Tobias a seu pai, ao falar do santo anjo Rafael que Deus lhe tinha enviado em forma humana para
que lhe servisse de guia.
Perigos afastados, males espirituais e corporais impedidos, ataques do demônio desbaratados, ocasiões de pecado afastadas, tentações dissipadas, cuidado e vigilância contínua
sobre nossas pessoas, atenção sobre nossas necessidades, uzes em nossas dúvidas e nas trevas, consolo em nossos sofrimentos e aflições, cólera de Deus cotra nós ,muitas vezes aplacada, seu braço erguido para nos castigar desarmado, suas graças obtidas, sua clemência e misericórdia solicitadas sem cessar em nosso favor, nem se pode acabar, se quisermos pormenorizar todos os bons ofícios que nos prestam nossos Anjos da Guarda.
São nossos irmãos mais velhos, nossos pais, nossos advogados, nossos mediadores diante de Deus, nossos guias, nossos benfeitores, nossos preceptores, nossos mestres, nossos
diretores e nossos verdadeiros amigos. Sua caridade para conosco não tem limites, sua bondade é sem medida, sua paciência inesgotável, suas atenções assíduas, seu zelo sempre novo.
Portanto, tive razão de dizer que somos cumulados de toda sorte de bens graças a eles.
Seja me permitido expor que eles têm vigários e substitutos na terra, que, às crianças,
fazem visivelmente o que eles mesmos fazem invisivelmente. Se alguém quiser entrar em
pormenores do que um Irmão zeloso ou uma Irmã caridosa e cuidadosa fazem nas escolas
cristãs para com as crianças que Deus lhes confia, será fácil honrá-los com o nome glorioso de
anjos visíveis. Imitando esses espíritos bem-aventurados, estão sempre atentos às crianças de
suas escolas, atentos a todos os seus movimentos, os mantêm silenciosos e respeitosos, inspirando-lhes santos pensamentos e santos afetos, ensinando-lhes a levantar seu coração para
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Vida de João Batista de la Sal
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Deus e a ocupar-se dele, a fugir das companhias perigosas e os incentivos de pecado, a reelir
as tentações do demônio e a lhe resistir, a descobrir os artifícios dele e implorar, mediante a
oração, a ajuda de Deus.
Considerando com os olhos da fé a essas pobres crianças repelentes, como filhos de
Deus, e sua inocência como um tesouro confiado a sua guarda, exercem todo seu cuidado para
lhes inspirar o horror de tudo o que poderia estragá-la, bem de pressa com o temor das mínimas imodéstias, dos jogos grosseiros, das liberdades desonestas, dos vícios e dos pecados, até
da sombra da aparência de pecado. Procuram instruí-las e guiá-las em tudo o que devem evitar e praticar; introduzi-las no caminho da justiça e guiar seus primeiros passos, afastam delas
todos os enganos e perigos que o demônio semeia diante de seus pés, afastam delas as ocasiões, os incentivos e exemplos de pecado que lhes apresenta o mundo, formam sua mentalidade, seus corações e seus costumes conforme às verdades de sua religião.
Tudo isto é verdade à letra, mas são coisas gerais: digamos alguma coisa mais particular, para mostrar como os mestres e as mestras das escolas de caridade desempenham a função
de anjos da guarda para com as crianças.
De ordinário, as crianças carecem lentas diante das coisas de Deus, pouco dispostas à
virtude, muito despreocupadas com sua inocência, cujo valor desconhecem; pouco firmes para
o bem e muito dispostas a cair; pouco capazes de conceber as coisas de Deus, é penoso para
elas ocupar-se com elas; pouco inclinadas ao bem, sentem até asco antes de o praticar; muito
descuidadas no que se refere à graça do batismo, fazem o primeiro uso da razão para a perder.
Muito frágeis em razão de sua idade, manifestam um debilidade assombrosa no caminho de
Deus. Assim têm necessidade de que se lhes ensine, as disponha, as anime e as afirme no caminho do bem.
A isso se dedicam os anjos da guarda com zelo incomparável, mas que somente tem
êxito quando encontram junto destas crianças outros anjos visíveis que ajudem sua solicitude.
1º Os anjos da guarda das crianças cuidam de fazer entrar nas almas ainda
afundadas na matéria e como adormecidas, à luz de Deus e as impressões da graça. Mas, como o fazem? Com arte, com sabedoria dignas deles. Por assim dizer,
seguem nelas todos os progressos da idade e aproveitam o despertar da razão à
medida que esta se desenvolve, para lhes comunicar as luzes celestes. Preparam
seus espíritos para as coisas de Deus à medida que se desenvolvem e enquanto as
vêem abrirem-se às coisas do mundo, procuram fazê-las entrar as coisas de Deus.
Como esses espíritos bem-aventurados têm luzes superiores às dos homens, podem
contribuir muito a estender, purificar, apurar as dos homens, dando-lhes assim um conhecimento mais vivo, mais puro e mais perfeito de Deus e das coisas de Deus. Se isso é verdade
para todos os homens, então o é muito mais ao se tratar de crianças que são como uma massa
de carne na qual a alma parece, primeiro, oculta e como num túmulo durante vários anos ,
torna-se difícil separar-se da matéria e mostrar-se como espiritual e dotado de razão.
Pelo fato de o espírito das crianças ser rudimentar e unido à carne e ao sangue, só se
nota a sua presença depois de muitos anos. Assim como não se desenvolve senão lentamente ,
não se podem comunicar-lhes as verdades cristãs a não ser depois de muito tempo, trabalho e
paciência, e sempre de maneira proporcionada a sua lentidão, isto é, de maneira muit clara,
simples e familiar. Pois bem; se tal é a função dos anjos da guarda das crianças, não é precisamente o que fazem os mestres e as mestras das escolas gratuitas? Merecem, pois, que sejam
denominados seus anjos visíveis a respeito desta primeira função dos anjos da guarda. Não o
merecem menos a respeito da segunda, que é a de inspirar às crianças o amor do bem, o gosto
da virtude, o medo do pecado e o horror do vício,
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É isso que fazem os anjos da guarda. Com efeito, como engrandecer o que fazem esses
espíritos puros e zelosos para abrir os olhos do espírito a essas crianças lentas para tudo o que
é de Deus, crianças levianas e descuidadas da conservação da graça do batismo? Mas, como
Deus faz raramente milagres e que seriam continuamente necessários em favor de ma infinidade de crianças abandonadas, sem educação e sem instrução, para que aprendam o que devem temer, o que devem odiar, fugir, amar e fazer, acontece que a solicitude desses preceptores cheios de amor se torna de todo inútil porque não têm a ajuda dos pais nem de mestres e
mestras caridosos. Quando os anjos encontram essa ajuda, então é que se tornam frutuosas
suas lições interiores.
Abrem o espírito e o coração dessas almas flexíveis às palavras dos mestres e mestras
e, às instruções de fora, acrescentam as inspirações interiores para que aquelas se tornem eficazes. O que o anjo não pode dizer sem milagre ao ouvido da criança que está guardando sobre o horror do vício, sobre o ódio ao pecado, sobre o preço da graça, e da inocência, sobre a
fuga das más companhias e sobre as outras verdades da salvação, eles o dizem os mestres e as
mestras da escola de caridade, e o dizem repetida e incansavelmente e o inculcam. Assim,
fazendo o ofício dos santos anjos e cooperando com eles na salvação dessas crianças, merecem o nome que se costuma dar-lhes.
2º. Não basta iluminar o espírito das crianças e dispor-lhes o coração à prática do bem:
é preciso introduzir e confirmar seus passos titubeantes no caminho da justiça. Também isso
fazem os Irmãos e as Irmãs que cuidam da instrução e educação cristã , fazendo-as rezar, levando-as à Missa e aos ofícios divinos, preparando-as a receber os sacramentos, acompanhando-as ao sacramento da penitência e da santa comunhão, iluminando seus passos, corrigindo-lhes os defeitos, induzindo-as a dar conta de sua conduta, submetendo-as aos deveres
do cristão, falando com elas em certos momentos do dia, reunindo-as aos domingos e festas
para lhes falar de Deus,fazer-lhes santas leituras, fazê-las cantar cânticos espirituais e fazer
outros exercícios de piedade que as afastem dos bailes, das cantinas, dos lugares perigosos,
das más companhias e de todas as ocasiões de pecado. Este é o ofício dos anjos da guarda,
com razão os honro com o nome tão glorioso.
3º. Em terceiro lugar, suprem os pais no que se refere à instrução e educação cristã de
seus filhos. Não é preciso refletir muito para mostrar, na qualidade de pais, a obrigação que
encerra ser instruído e educado de forma cristã em seus filhos.
O Pai celeste que é pai comum de todos os homens, o primeiro e o mais terno, a fonte
de toda paternidade e dos sentimentos mais vivos da natureza impõe a todos os pais esse dever imprescindível.
Os filhos são o depósito que ele confia a seu cuidado e a sua guarda. São seus, infinitamente mais do que dos pais. Deus os escolheu para que sejam os educadores e mestres ao os
escolher para serem pais. É um bem que lhe lhes empresta e do qual terão de lhe dar conta.
Ele os retomará como os deu, quando e como lhe apraz, sem que tenham o que criticar;
´porque, ao dar-lhes a vida, não se desfaz nunca do direito de a tirar como lhe apraz. De maneira que a autoridade dos pais sobre os filhos não é mais do que uma imagem da de Deus.
Sobre uns e outros não se perde jamais o domínio de Deus. Esse domínio é universal, absoluto, irrevogável..
De Deus recebemos o ser. O que somos, o que temos, o que esperamos, tudo é dele,
deve voltar a Ele. Como primeiro princípio dá vida a todos os seres vivos, e como último fim,
tudo o que sai de suas mãos deve voltar a Ele como a seu centro.
Se nossos pais contribuem de alguma forma à vida que recebemos de Deus, nisto eles
têm uma parte tão pequena em comparação com o Criador, que não se pode considerar mais
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Vida de João Batista de la Sal
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do que causas segundas. Essas causas segundas são tão cegas e impotentes, que nem sequer
sabem em que momento Deus faz que sejam fecundas. Uma mão invisível trabalha na formação da criança no seio da mãe, inconsciente e inativa como dizia a mãe dos Macabeus, aos
que ela tinha no mundo. Nem os filhos são escolhidos elos pais, nem os pais o são pelos filhos. Se essa escolha fosse livre, a distribuição feita pela divina Providência não contentaria a
quase ninguém: tão verdade é que somente Ele preside a formação de nosso corpo como também Ele criou nossa alma. Assim, lhe pertencemos completamente e nossos pais não são mais
do que substitutos de sua Providência.
Pois bem; devem a instrução e educação cristã aos que Deus lhes deu por filhos. Se os
filhos não são enviados ao mundo a não ser para conhecer, amar e servir a Deus, os ais, em
virtude de seu caráter, estão obrigados a ensinar-lhes isso. Como esses filhos não estão no
mundo a não ser para Deus, os pais têm que educá-los somente para Deus. Ao lhes dar a vida
natural, contraem a obrigação essencial de procura para eles a graça e de trabalhar para lhes
procurar a glória. Esse dever é essencial e inseparável de sua qualidade de ais. E deixar de
guardiães, substitutos e depositários da inocência de seus filhos. Se descuidam ensinar-lhes a
conhecer seu primeiro Pai que está nos céus e tudo o que a Ele devem, essa negligência os
torna culpados. Por mais virtuosos que sejam para as demais coisas, não há salvação para eles.
Contudo, se examinarmos a maneira em que acontecem as coisas no mundo, verificaremos
que, na maioria dos casos, uns são incapazes, outros não tempo e muitos deles não se esforçam para educar cristãmente a seus filhos. Na verdade, os ricos, os da classe remediada, confiam essa tarefa essencial a outros, enviando-os aos colégios de crianças ou a conventos. Estes, ao menos cumprem, graças a outras pessoas, o dever que não querem ou não podem assegurar pessoalmente.
Mas os pobres, os menos capacitados para assegurar a educação de seus filhos, não
têm nem os meios nem a facilidade de confiar a outros esse encargo recebido de Deus, de
instruir e educar cristãmente a seus filhos. A maioria deles é incapaz disso e eles mesmos
estão afundados em sua lamentável ignorância de sua religião. Muitos deles nem pensam nessa obrigação ou na lista das coisas desta vida que não lhes competem, e custa-lhes muito encontrar os meios de remediar às necessidades de sua famíia, ou às de sua intemperança que
consideram como um tempo de diversão que normalmente lhes seria necessário usar para a
instrução cristã de seus filhos. Finalmente, há alguns que são ímpios que proferem palavras de
libertinagem, prejudiciais para os pobres filhos que têm.
Incumbia, pois, à divina Providência e a sua atenção amorosa, efeito da sincera vontade de salvar a todos os homens, sobretudo aos fiéis, suscitar para essas crianças, outros pais
segundo a graça, capazes de suprir os pais naturais para o exercício dessa tarefa.
De modo que, nesta economia de salvação, as crianças devem considerar como seus
pais segundo o espírito a aqueles que Deus lhes enviou para os instruir gratuitamente. Os mestres e as mestras que se destinam por estado e por vocação a este emprego tão nobre, necessário e útil, devem considerar como seus próprios filhos a aqueles que vêm a suas escolas e
amá-los entranhadamente.
Com olhos assim é que os pais devem olhar os Irmãos e as Irmãs que instruem a seus
filhos enquanto os substituem na tarefa que aos pais competia. Com este enfoque, como não
devem apreciar essas pessoas que cumprem com Deus e seus filhos o que eles próprios deviam fazer. Como devem ficar agradecidos para com eles por sua condição e seus cuidados.
Quanto interesse devem ter em que suas escolas gratuitas se multipliquem e quanto interesse
quanto se devem interessar para a elas enviar seus filhos.
Por sua vez, quanto não devem estimar sua vocação os e as que prestam, por amor a
Deus, esse serviço; que se reconhecem ministros da Providência e suplentes dos pais para com
os filhos de Deus! Que honra para eles serem cooperadores da salvação de tantas crianças
abandonadas, de dar-lhes a conhecer a Deus, os mistérios e as verdades eternas. Como não
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Vida de João Batista de la Sal
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devem se esmerar para colocar no coração das crianças, como bons arquitetos, os fundamentos da religião e da piedade cristã, segundo a graça que Deus lhes deu. Assim, vós a quem
Deus chamou a este augusto ministério, mostrai todo o zelo em instruir ensinando, em exortar
cumprindo o principal dever dos pais para com seus filhos.
4º - Em quanto lugar, os mestres e as mestras encarregados de instruir a essas crianças
são depositários da autoridade dos pais, da Igreja e do Estado sobre essas crianças, porque os
pais, a Igreja e o Estado contam com eles para a educação e a instrução dos jovens.
Suposto isso (na realidade incontestável) não arriscamos nada ao declarar que esses
mestres e essas mestras, preceptores e preceptoras, protetores e protetoras, dos jovens cristãos
têm em suas mãos o tesouro da Igreja e do Estado, a esperança do céu e o reino de Jesus Cristo.
A quem têm eles nas mãos? A filhos de Deus. De que estão encarregados no que se
ocupam? De os instruir na ciência de Deus e da alvação. De os formar nos bons costumes e
na virtude. Qual é o objetivo de sua solicitude? O de formar o corpo dos Santos, de aumentar
o número dos eleitos, de povoar a santa Sião, de trabalhar na construção da edifício espiritual
eda estrutura da Jerusalém celeste.
Se o bem do Estado depende da formação das crianças, que se vão tornar seus súditos,;
se toda a santidade da Igreja tem seu princípio em jovens santificados que substituem os maus
cristãos,; se as crianças bem instruídas e educadas no cristianismo constituem a maioria dos
habitantes do céu, com razão eu pude dizer que o bem do Estado, da Igreja e do céu está nas
mãos dos mestres e das mestras de escolas.
São eles os que lançam na solo virgem a semente que deve germinar e levar ao cêntuplo, o bom grão que deve encher os celeiros do Pai celeste. São eles que preparam os corações
à graça, às virtudes e à perseverança final. Eles é que cultivam as plantas que devem produzir
frutos para a felicidade eterna, que depois serão transplanntadas para lá. Comparemos o emprego deles com o dos preceptores do Príncipe. Quanto mais rico for o Príncipe, quanto maior
e poderoso, tanto maior será a honra de lhe ser preceptor. Este emprego atrai a todos os cortesãos ou suscita o respeito. Pois bem, se o olho do corpo enxerga tesouros, honras e dignidades
nessa função, o olho da fé descobre outros maiores e eternos no ofício de dirigir os filhos do
Rei dos Reis, dos filhos de Deus, herdeiros de seu Reine e nascidos para reinar com Ele.
Os Irmãos e as Irmãs das escolas cristãs são os mestres e as mestras, os preceptores e
preceptoras que Deus escolheu para uma vocação especial, acompanhada de graças particulares para instruir as crianças na piedade e lhes dispensar uma educação cristã. Pede-lhes que as
considerem como príncipes da eternidade, que as eduquem para Ele, que as preparem para o
céu, que lhes infundam sentimentos dignos de sua nobreza, ensinando-lhes a viver como filhos de Deus, reproduzindo nelas sua imagem, formando a de Jesus Cristo, esboçando os traços das virtudes e emendando as falhas de suas inclinações ao vício.
Digamos mais algumas coisas em honra das pessoas iluminadas para dirigir as escolas
cristãs: elas têm o lugar de Jesus Cristo, porque há dois mestres numa escola cristã. O primeiro é Jesus Cristo que ensina ao coração e ao espírito e que tem sua escola dentro do coração
em que somente Ele pode entrar e dar suas lições. O segundo é a pessoa que preside em nome
dele, a quem as crianças vêem, a que fala aos ouvidos delas e que lhes ensina o que o próprio
Jesus Cristo ensinou. Digamos, pois, que este mestre e esta mestra, em sua escola, estão sentados na cátedra de Jesus Cristo, ocupando seu lugar, representando-o e falando em seu nome,
que somente deve dizer o que diria Jesus Cristo, se estivesse visível. Com este olhar de fé,
quanta nobreza, quanta santidade e grandeza descubro no emprego exercido pelos mestres ou
mestras da escola cristã!
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5º - Em quinto lugar, os mestres e as mestras das escolas cristãs são os apóstolos, os
pastores, os doutores, os médicos e – desculpem a expressão – os salvadores das crianças. Por
acaso, não posso aplicar às escolas cristãs e gratuitas, dirigidas com zelo, assiduidade e vigilância por mestres e ,mestras zelosos e hábeis, o que diz o jovem Tobias do santo anjo Rafael:
por meio dele fomos cumulados de todos os dons? Com efeito, este mestre piedoso e caridoso
é para com as crianças, um verdadeiro Rafael que afasta de suas almas toda sorte de males, e
os dispõe para receber toda sorte de bons.
Quais são os males que uma criança vai ter em sua idade e no futuro? São inumeráveis. Contudo resumo-os nos seguintes quatro, que são sua fonte: a ignorância, a reguiça, a
má educação, a libertinagem. Quem pudesse falar com mais eloqüência para pintar esses males, ao natural: o espetáculo seria tão espantoso que não se poderia olhar para ele sem horror;
e, sem dúvida, essa visão inspiraria a caridade dos ricos e que têm um fundo de religião, incitando-os a fundar escolas cristãs e gratuitas.
Lá onde elas não existem, o que é que se vê no campo e nas cidades? Jovens de ambos
os sexos, vagabundos, reunidos para sua desgraça, que se ensinam mutuamente tudo mau que
conhecem ou que o demônio lhes inspira. São como escolas de jogos frívolos, de diversões
pueris, e de entretenimentos imodestos que ferem o pudor e que dispõem aos maiores crimes.
O que é que se vê? Um bando de crianças que, em sua idade, são incapazes de uma
ocupação séria e que se servem de suas mãos ainda sem forças párea trabalhar, para jogos, e
se causar dano. Como rebanhos sem pastor, expostos às goelas do leão infernal, estão afundadas em profunda ignorância da ciência da salvação, porque não há quem as instrua.
Ao crescerem, crescem em malícia, aprendem o mal, do qual recebem, em toda a parte, lições e da parte de todos. Ignoram também a Jesus Cristo e os mistérios, a lei e suas máximas. Há alguns – e quantos! – que não sabem ainda o que vieram fazer no mundo, a quem
devem a criação, a que título receberam o ser, as obrigações e os serviços que devem a seu
Criador. Há alguns – e quantos! – que ignoram até se tiveram necessidade de um Redentor,
que é ele, quem é que causou sua perda, e quem veio çara a reparar. O Evangelho é para eles
uma lei bárbara e não conhecem suas máximas, seus conselhos e sua moral como se tivessem
nascido na China ou no Canadá. Também não sabem a diferença que há entre as virtudes e os
vícios, a oposição entre o mal e o bem, e as conseqüências para o futuro da vida boa ou má.
Assim, nascidos na ignorância de sua religião e dos deveres do cristianismo, levam um nome
do qual se esquecem e que desonra e que lhes tanto quanto ao judeu ou o muçulmano.
Deixados em tal ignorância lamentável na idade adulta, eles terão vergonha e preguiça
insuperável de a vencer e preferirem pôr em perigo a eternidade para sofrer a suposta confusão de se instruir. Que se pode esperar da ignorância dos princípios da religião, a não ser um
fundo de impiedade e de irreligião, e a desordem que dela se origina?
As crianças sem mestres e mestras que as instruam têm todo o tempo para estudar a
ciência do inferno. Têm inúmeras ocasiões de aprender o vício por falta de escolas de virtude
e de ciência da salvação, encontram academias do vício, porque a ociosidade, mãe de todos os
pecados, é o segundo mal de que sofrem.
Que farão as crianças cujas mão são demasiado fracas para trabalhos úteis? Reúnemse em bandos de barulho, procuram-se, se encontram e se voltam para o mal. Assim passam
os dias, os meses, os anos, sem fazer nada ou sumidos no mal. Basta que o maior dentre eles
ou o mais vivo os inicie. O primeiro uso que costumam fazer de sua razão é para perder a inocência. Como se esse grande tesouro lhe pareça molesto e tivessem pressa de o jogar para
longe. Como não conhecem o preço disto nem suas conseqüências, sacrificam tudo por bagatelas, e quando a venderam ao demônio, semelhante nisto ao profano Esaú, que trocou seu
direito de primogenitura por um prato de lentilhas, isso não as preocupa, não lhes importa em
nada.
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Vida de João Batista de la Sal
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Daí a conseqüência de haver tantas crianças terem conhecimento surpreendente do
mal. Sabem o que deveriam ignorar e o que na realidade ignoram as pessoas de cinqüenta
anos que foram educadas no cristianismo. A ociosidade e a diversão ensinam às crianças o
que deveriam ignorar e elas encontram muito prazer em aprender tudo o que não podem aprender à custa de sua alma. Se a ociosidade não serve para o demônio quanto ele deseja, para
desgraça dessas crianças sem instrução, a supre a má educação ao ver em sua própria casa
exemplos de uma sagacidade e de uma fecundidade de espírito prodigiosas para o mal. Pois
que lições recebem daqueles que lhes deram a vida, a não ser as lições más próprias para fazer
deles obreiros de iniqüidade? De seus pais não podem aprender os princípios de religião, já
que seus pais os ignoram; mas aprendem deles a blasfemar, a falar mal dos outros, a dizer
insultos, a manchar sua língua e seus ouvidos com canções e palavras indecentes. A jogar, a
rolar no vício e na comedeira, freqüentar as más companhias e tornar-se conhecedoras da
ciência do mal.
Será que daí resultaria a libertinagem? Sim: é a quarta desgraça das crianças sem instrução nem educação cristã. Ao não terem aprendido a não ser o mal, é natural que andem
para esse lado. Como é que podem gostar dos exercícios de religião dos quais somente receberam um verniz? Como podem gostar da piedade quando somente ouviram as críticas contra
ela? Que germes podem produzir as virtudes quando não receberam sua base na terra de seu
coração? Podem eles fazer outra coisa do que sabem, do que aprenderam já quase desde o
berço com os pais, gente sem pudor, sem educação, sem instrução, sem religião, que se deixam seduzir pelas paixões que os dominam?
Assim, essas crianças familiarizadas com o vício e quase conaturalizadas com ele, mal
e mal se dão conta do mal e já não o temem ao cresceram. Jovens ainda, são curtidos libertinos; e na adolescência se tornam malvados ou ímpios empedernidos que escandalizam e aterrorizam os vizinhos. Esses são os progressos do mal quando falta a ciência da salvação. Se
buscardes a causa de tudo isso, a encontrareis na falta de escolas cristãs e gratuitas.
Com efeito, examinemo-la: as crianças encontram estas quatro vantagens que devem
contribuir para sua predestinação: a instrução, a ocupação e as sementes da religião e da virtude.
Primeira vantagem das escolas gratuitas para as crianças: a instrução. Nelas aprendem
a ler, escrever e contar, o que as prepara a se instruírem mais a fundo e sua religião, em seus
deveres mediante a leitura, e em se formarem, a adquirirem cultura, a melhorarem os costumês que herdaram de seus pais; o que as dispõe a viver de maneira mais disciplinada em casa,
pondo ordem e método ou a dar-se conta quandomisso é insuficiente, tornando-se capazes de
levar bem seus negócios, de organizar empresas. Quem não sabe ler, nem escrever nem contar
não consegue os mesmos resultados. Esta vantagem tem pouca importância, sem comparação
com os interesses da eternidade.
Nas escolas gratuitas, as crianças aprendem a doutrina cristã, a ciência da salvação e
os princípios de sua religião. Como somente a caridade abre a boca dos e das que ali ensinam,
cuidam de lançar bem cedo nessas ternas almas as sementes da verdade, do temor de Deus,
com o horror ao vício e ao pecado, à imodéstia e tudo quanto tende a empanar o pudor e a
inocência e a corromper o coração. Se, pois, durante a vida, não faze tudo o que aprenderam,
pelo menos fazem uma parte. E, pelo menos, não fazem todo o mal que teriam feito, e não o
fazem sem remorsos e angústia do coração. Pelo menos sabem confessar-se e conhecem a
maneira de voltar a Deus. Por mais desordenada que se torne sua vida nos anos seguintes,
carregam consigo no fundo de uma consciência iluminada, o remédio que as impele e solicita,
assim a se corrigir e a não correr o risco de se perderem para sempre.instruídos em seus deveres gerais e particulares, se não os cumprirem todos fielmente, censuram-se a si mesmos
quando os omitem e num momento favorável de um jubileu ou de alguma ocasião propicia de
salvação, retornam ao caminho de que se tinham afastado.se nem sempre viveram como jus-
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tos, muitas vezes terminam seus últimos anos ba penitência, e na hora da morte se pode notar
que os princípios de religião semeados em sua alma durante a infância, permanecem firmes e
vivos contra o pecado e eficazes nesse momento. Do contrário, os que cresceram na ignorância da doutrina cristã, vivem e morrem assim como eram, ímpios, insensíveis à salvação por
falta de conhecimento.
Com efeito, eis dois princípios que é preciso reconhecer: o primeiro é que o pecador
quase sempre deve ao remorso e à delicadeza de sua consciência, seu retorno a Deus, que ordinariamente, o santo artifício da graça é colocar o pecador em contradição consigo mesmo,
suscitando discórdia entre suas inclinações e suas luzes, para deter, por esse meio, o curso de
suas desordens. O segundo é que esse remorso vivo e pungente, esses horrores e angústias
saudáveis de uma vida criminosa, são efeitos de uma alma iluminada que sabe o que deve
fazer e que se censura não o ter feito, de sorte que o remorso de sua consciência surge do fundo dessas luzes.
Desses dois princípios tiro estas duas conclusões: a primeira, que a consciência empedernida, que não sente nada, e que não censura coisa alguma, tende a se tornar impenitência
final e que sem um milagre da graça chega a esse extremo. A segunda ~e que não há sensibilidade e remorso quando não há luzes e ilustração, e que, pelo contrário, a alma iluminada não
pode permitir-s o pecado, sem que sua consciência se rebele secretamente.
Deduzimos, pois, que não quase nada a esperar na ordem comum da graça para a salvação das crianças que não recebem instrução nem educação cristã; e que, pelo contrário, até
os que se extraviam ao sair das escolas gratuitas, levam um fundo de luzes que a graça sabe
depois utilizar, para remédio de suas desordens.
Primeira vantagem das escolas gratuitas para as crianças: a instrução cristã. Depois de
tudo, os que conhecem a vontade do Senhor e que não a cumprem são mais culpados do que
os que não conhecem essa vontade. Conforme a palavra de Jesus Crosto, conhecer o bem e
praticá-lo são os dois artigos da ciência do cristão. Para o praticar é preciso conhecê-lo. Assim,, é uma grande vantagem ter uma escola em que essa aprendizagem é gratuita. A segunda,
ainda mais perfeita, é ser introduzido na prática do bem como conduzido pela mão, mediante
assíduas lições de exemplos.
Com efeito, esses mestres e mestras caridosos, entregues ao bem público nas escolas
gratuitas, se esforçam para unir a educação com a instrução cristã. Não se contentam com
iluminar o espírito; aplicam-se a reformar o coração. Ao ensinar os princípios da religião,
ensinam a moral de Jesus Cristo, se esforçam mais para formar os costumes do que para cultivar o espírito. Como? Ensinando às crianças a rezar com atenção, fervor e modéstia. Levando
as aos domingos e festas aos ofícios da paróquia, e dando-lhes exemplo de assistir a eles com
religião e recolhimento; inspirando-lhes o desejo de fazer uma boa cofissão geral e ajndandolhes a se dispor para ela; preparando-as para a primeira comunhão, sem esquecer nada do que
é necessário para que a façam com proveito.
Sem entrar em pormenores para todas as demais práticas de piedade que se lhes inspiram e que se usam nas escolas cristãs, tais como a de recitar com devoção o terço, de se pôr
na presença de Deus ao toque das horas, de elevar com freqüência o coração, exercer atos de
fé, esperança e caridade, de pensar em Deus nas ações, de visitar o Santíssimo, de iniciar e
terminar bem o dia e o ano, de se consagrar à Santíssima Virgem, de fazer o exame de consciência e uma centena de outras deste tipo. As que estou mencionando mostram o proveito inestimável que as crianças podem tirar das escolas gratuitas. Esses frutos são essenciais, duradouros e se manifestam ao longo da vida.
A terceira vantagem que as crianças encontram em suas mãos é a fuga da oeciosidade
e da preguiça. Esses jovens dissipados se encontram então felizes, úteis e santamente ocupados durante parte do dia numa escola cristã: os exercícios que nela se praticam estão todos ao
alcance e são apropriados a sua idade. Enquanto aprendem a ler, a escrever, a contar, o cate-
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cismo, as orações da manhã e da tarde e, enquanto cantam cantos religiosos, fazem coisas
semelhantes, se encontram longe de mil pensamentos do mal, afastados da companhias perigosas e protegidos de jogos que ameaçam a inocência. Do trabalho da escola resultar[a fácil
aos pais fazê-los passar a um trabalho mais penoso, acostumando-os insensivelmente a não er
tempo e a ganhar a vida. Ao contrário, quando se acostumam à preguiça, às diversões frívolas,
a jogos e brincadeiras, a vagabundear por ali, na ociosidade, será difícil aos pais para os manter em casa e a os ocupar quando tiverem a idade de trabalhar e quando a necessidade o exigir.
Finalmente a quarta vantagem que essas crianças pobres encontram nas escolas de caridade é um fundo de religião difícil de apagar mais tarde, e que nem o crime pode destruir na
idade madura, porque lançou raízes profundas em suas almas, quando era jma terra nova e
bem preparada. O homem deixa raramente o caminho que empreendeu em sua juventude. Não
perde facilmente os hábitos que contraiu durante longos anos. Se o inimigo pode semear em
idade avançada a cizânia sobre a boa semente, não pode impedir que germine, nem asfixiar
seus frutos.
Se há pessoas que desviam o caminho da vida e se afastam do caminho da virtude que
empreenderam em seus primeiros anos, e que não conservam as impressões de piedade que
receberam nas escolas cristãs, outras há que não se perdem nunca, honram seus mestres e
mestras e serão coroa no céu para eles. O que não lhes devem, pois, as crianças a esses mestres e mestras caridosos que os educam sem esperança de lucro, que se encarregam gratuitamente de as formar à piedade, que vela por sua inocência e que se esforçam para afastar delas
o que poderia empanar a inocência ou lhes inspiram os meios de a reparar quando a perderam.
Quanto devem os pais a essas pessoas que preparam seus filhosa ganhar a vida temporal e que
as colocam no caminho da eternidade.
Se alguém quisesse duvidar dos frutos das escolas gratuitas, que compare as crianças
que as freqüentam com as que não o fazem. Estas últimas, que leviandade, que imodéstia,
que impiedade nas igrejas! Não sabem nem para que vieram nem quem reside nelas, nem o
que devem, nem o que é preciso fazer para o honrar.Entram nela como num mercado público,
passam esse tempo como tontos, completamente distraídos, de coração vazio, e saem dela
como entraram, conversando, rindo, gracejando, escandalizando. Tomam suas refeições e o
repouso como animais sem pensar absolutamente em Deus, sem que lhes ocorra oferecê-las a
ele. Seu afastamento dos sacramentos se torna menos criminoso do que aproximar-se deles, já
que não sabem o que é preciso dizer nem a maneira de se confessar devidamente, nem t}em
consciência de se aproximar do ]Santo dos Santos sem qualquer discernimento e com uma
incompetência assombrosa.
Os discípulos dos Irmãos e das Irmãs que se consagram às escolas cristãs, pelo menos,
se farão notar: são crianças que sabem render a Deus, de manhã e de tarde, os deveres de religião que lhe devem; que sabem o que têm de fazer na igreja, e a maneira de se ocupar de Jesus Cristo; que examinar sua consciência e se confessar devidamente, preparar-se à santa Comunhão e conversar com Jesus Cristo depois de o receber; que sabem elevar seu coração a
Deus e lhe oferecer suas ações.
Por acaso são pouca coisa os frutos das escolas cristãs? Por acaso é possível apreciálas como merecem? Quanto zelo não se deve sentir para que uma obra tão fecunda em bens e
em méritos!
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Capítulo III
Necessidade da instituição dos Irmãos e das Irmãs das escolas cristãs e gratuitas, pela necessidade
De instruir separadamente as crianças de ambos os sexos
Ainda que se esquecesse tudo o que dissemos em favor da instituição dos Irmãos e
das Irmãs das escolas cristãs, obstinando-se nos falsos preconceitos que se propalam facil-
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mente contra os novos estabelecimentos, é preciso fazer umas considerações que devem inclinar-nos em favor das mesmas conciliando-as com os maiores inimigos, se estes não forem
indiferentes ao bem do Estado e da Igreja e à pureza dos costumes das crianças de ambos os
sexos.
E me atrevo a dizer que a inocência dos jovens corre sempre grandes perigos nas escolas ordinárias em que se juntas os dois sexos. Em verdade este perigo não se refere aos filhos
dos ricos e endinheirados, porque seus filhos são instruídos e educados separadamente: os
meninos com preceptores e as meninas vão ao convento ou se educam com as aias. Se algumas vezes os pais encarregam os mestres calígrafos que ensinam a escrever e a contar a suas
filhas, isso não costuma apresentar nenhum perigo porque se realiza em casa e diante dos pais.
Mas, não o mesmo quando seus pais não têm dinheiro. É difícil imaginar o perigo em que se
encontra sua inocência nas escolas ordinárias em que se reúnem os dois sexos. Para expor em
poucas palavras os inconvenientes que resultam dessa mescla, cito três fatos cuja verdade me
parece tão clara que ninguém a pode negar.
Primeiro fato: ordinariamente, nas escolas pagantes, se admitem crianças de ambos os
sexos sem distinção, contanto que paguem, são bem acolhidas. Ocorre poucas vezes que as
pessoas que vivem desse ofício têm receio dos inconvenientes dessa mistura.
Segundo fato: nas escolas cristãs e gratuitas rege uma lei inviolável de não admitir crianças de sexo diferente. Uma menina nunca entra numa escola de Irmãos, nem um menino
numa escola de Irmãs por mais jovem que seja, para receber o ensino. Se isso acontecesse,
haveria um escândalo.
1. Inconveniente das escolas mistas.
Terceiro fato: a mistura dos sexos nas escolas é o mais perigoso. Basta usar a razão e
recordar as inclinações do coração humano para reconhecer este fato. A evidência desta afirmação salta aos olhos no acima exposto. Quando se admira uma menina numa escola de Irmãos, como aluna, ou um menino numa escola de Irmãs como aluno,, causa-se escândalo. E
então, por que não se escandalizar pelo mesmo caso tão freqënte nas demais escolas? É preciso pensar nisso.
E por que haveria escândalo, se se misturam os sexos nas escolas cristãs? Ah! É que
tal mistura tem grandes conseqüÊncias: 1º da parte das crianças,. 2º da parte dos e das professoras que ensinam; 3º isto está em contradição com a modéstia e a prudente precaução que
deve afastar os dois sexos para não se fiar um no outro.
Por essas razões afirmo que a instituição dos Irmãos e das Irmãs das escolas gratuitas é
necessária para o bem da Igreja e do Estado, porque as crianças de sexos diferente são nelas
instruídas separadamente. Onde há mistura, os inconvenientes são sérios.
1º A respeito das crianças. As inclinações entre os dois sexos são recíprocas. Essa inclinação nasce conosco e permanece a pesar de nós. Essa propensão é inata e não morre
antes de morrer a pessoa. O único remédio para este mal do coração, tão natural e antigo,
baseado na própria natureza é a desconfiança, a fuga, a precaução. Nesta matéria, a ocasião é fecunda para o mal. Que não a evita, busca a queda. os corações mais puros e fortes
não encontram mais do que debilidade nas ocasiões e sucumbem insensivelmente, se não
se afastam da ocasião. A razão, por luminosa que seja, a integridade, por mais perfeita que
seja, não as podem defender. Somente a graça pode sustentar num lance tão escorregadio,
e não há promessa para os temerários que presumem ser fortes.
Se isso é verdade, geralmente, até para os que têm um conhecimento perfeito do bem e
do mal e que têm a atração de um vício que surpreende aos mais castos se não estão de sobre-
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aviso, se todo o uso de sua razão e todas as reflexões que podem fazer não conseguem sem a
graça preservar-se da corrupção, quanto mais certo é no caso das crianças que apenas podem
fazer uso da razão nascente, que muitas vezes não fazem uso dela a não ser para perder a inocência, que, pouco susceptíveis ao temor de Deus, ao horror do pecado, às impressões da graça, recebem com surpreendente facilidade as do vício e dos maus exemplos.
Quando se juntam rapazes e moças todos os dias e por muitas horas, quando eles vão à
escola e voltam juntos, quem pode dizer o perigo que encontram? E quão fácil é que se familiarizem, brincando juntos, fazendo gracejos de mau gosto! Então o demônio tem todo o tempo e toda a liberdade de sugerir-lhes curiosidades arriscadas, liberdades perigosas, imodéstias
que ofendem o pudor e empanam a pureza. Uma só criança entre cem pode perverter as demais. Ela se torna como um pequeno demônio capqz de ensinar o mal. Embora todas fossem
antes inocentes, não o serão por muito tempo. O demônio sabe a arte de profanar a imaginação, de pegar de surpresa pelo que lhes mostra e diz, e de atacar o coração com idéias de sensualidade. Desde que os dois sexos se encontram juntos, ele está no meio deles e sabe incitálos de solapa a diferentes pecados, mediante os incentivos nascentes do prazer e da curiosidade que lhes sugera. Isto é fatal e, sem milagre, as coisas não podem ocorrer de outro modo.
2º Se o perigo é grande quando se trata de crianças, não é menor ao se tratar dos mestres e mestras. Embora seu luar requer prudência e precauções, podem esquecer facilmente aquilo que são, quando têm sob sua autoridade alguns objetos que os impressionam. Assim, fossem eles uns José ou elas, umas Susana, encontram ocasiões de queda
em sua escola, ou pelo menos ocasiões de tentação contínua. Quão fácil é nesses encontros que um mestre de escola, ao se tornar semelhante aos dois juízes corruptos que se
deixaram seduzir pelos atrativos da inocente filha de Elcias, se esqueça do Céu e dos juízos do Senhor. A autoridade de que goza favorece a perversão; a ingenuidade das crian
ças que estão sendo instruídas por ele lho facilita: o direito que se arroga de os corrigir
é uma armadilha que seu dever parece ocultar. Quanta gente foi tentada nessas ocasiões,
quantos vacilaram, quantos caíram! Acaso não ocorreu nunca esse escândalo? A Carta do
Rei Luís XIII, escrita pelo Sr. Bispo de Poitiers com data de 15 de dezembro de 1646, atesta que tal coisa ocorreu em Poitiers. Em quantos outros lugares não teria acontecido o
mesmo escândalo?
O seguinte foi ouvido publicamente de um bispo muito zeloso, muito cuidadoso e
muito dado a seu ministério. Por ocasião de suas visitas, ao exortar os habitantes a que fizessem o possível para teremuma mestra de escola piedosa e capaz de instruir e educar bem as
meninas, em toda a parte só encontrou oposição porque o pessoal do campo se empenhavam
em enviar os meninos e as meninas à escola dessa mestra. O bispo se viu forçado a lhes aplicar as palavras de Jesus Cristo aos filhos de Zebedeu: “Não sabeis o que estais pedindo”. Já
que me obrigam a lhes dizer o que eu quereria enterrar no eterno esquecimento, que me vi
forçado a lançar em interdito mais de uma dúzia de mestres porque, infelizmente, se fizeram
corruptores das alunas que lhes foram enviadas.
Devo notar que a diocese desse zeloso pastor era pequena. Pois bem, se numa diocese
de pouca extensão se encontravam tantos sedutores no reduzido número de mestres aos quais
alguns pais imprudentes confiavam a instrução de suas filhas, quantos demônio não encontrarão as jovens garotas nas grandes dioceses, entre os que lhes recebem como mestres.
3º Ainda que não houvesse nada a temer nessa mistura de sexos, nem para os
mestres nem para as mestras, nem para as crianças – caso que não é de supor na prática –
e ainda que as crianças – caso que é de supor na prática – e ainda que pudesse ocorrer
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Vida de João Batista de la Sal
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por milagre que não houvesse nenhum escândalo, ao menos é preciso reconhecer que a
decência não permite misturar os sexos nas escolas e que essa mistura não favorece uma
boa educação.
Depois de tudo, as meninas são mais tímidas por natureza, mais dóceis e mais fáceis
de serem tratadas do que os meninos que, por temperamento, são mais impetuosos, mais atrevidos e menos susceptíveis de vergonha e de boas reações.deve-se, pois ter receios de que sua
presença e com seus exemplos, as meninas se tornem estonteadas e desembaraçadas, perdendo sua afabilidade, seu pudor, sua docilidade natural. E isso é o que costuma ocorrer. As meninas que se educam com os meninos se tornam como estes: atrevidas, estonteadas, insolentes, descaradas. Além disso, é possível que um mestre ensine numa boa distância, sem se achegar as meninas, sem as tocar sem as agarrar, lisonjear, louvar, castigar e é possível que o
faça com as meninas sem faltar ao decoro e ao recato.
Mesmo assim, pode-se supor que as crianças de sexo diferente se encontrem junsas na
escola, uma parte do dia sem se encarar, sem se achegar, sem se tocar, empurrar, fazer cair,
agarrar ou acariciar, sem brincar juntos, sem encontrar-se nunca distantes ao ir à escola e voltar de lá? Pois bem, se o pudor, a modéstia, a pureza não estão em perigo com esses inconvenientes, podem acaso, tolerados o decoro, o recato e a boa educação?
2. Mandatos de nossos reis em que proíbem as escolas mistas.
Estas reflexões, expostas livremente, recalcam a necessidade do Instituto dos Irmãos
para a instrução cristã dos meninos e o dos mandatos dos bispos e de nossos reis que determinaram que as escolas para meninos deverão ser regidas por homens e as das meninas, somente
por mulheres sem que se possa admitir nas mesmas escolas a meninos e meninas por nenhum
motivo, como se pode ver nos Art. XLV, do Cap. 2, tit. 5 das “Escolas menores” do Tomo I
das Novas Memórias do Clero, p.1078 ss. Ali consta que existem regulamentos sobre esse
assunto no Mandato da maioria das dioceses e se citam três da diocese de Paris qud dão a conhecer sua importância. Pelo primeiro que é de D. Pierre de Gondy, bispo de Paris, com data
de 4 de abril de 1570, proíbe-se, sob pena de excomunhão a todos os mestres de escola receberem meninas em suas escolas e às mestras, receberem meninos, seja qual for sua idade, conforme o decreto do Rei e decisão do Parlamento, publicado ao toque de trombeta e algazarra
do povo nas esquinas de Paris.
3. Proibição das escolas mistas por mandato dos bispos.
D. Jean François de Gondy, arcebispo de Paris, renovou esta proibição sob as mesmas
penas com seu mandato de 8 de janeiro de 1554, conforme os estatutos sinodais da diocese,
estabelecidos por ele e por seus predecessores.
D. Hardouin de Perefixe confirmou semelhante proibição sob as mesmas penas com
seu mandato de 20 de março de 1666. Merecem ser citadas as razões e as declarações:
Nada mais apropriado para destruir o império do pecado na Igreja e fazer que Jesus Cristo reine em seu povo mediante a pureza de costumes e da doutrina do que gravar fortemente e bem cedo na vida, no espírito dos jovens, sentimentos e inclinações dignos da santidade de nossa religião,
pois, como não há nada mais fácil de corromper esses espíritos com maus exemplos, conversas
perigosas e costumes depravados de nosso tempo, como, tampouco há coisa mais difícil de extirpar do que os hábitos contraídos nessa idade. Assim, nada mais fácil do que dar-lhes, com os ele-
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Vida de João Batista de la Sal
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mentos das letras, santas e saudáveis impressões das virtudes cristãs. Estas se tornam tão fortes
e poderosas que as conservam toda a vida para sua própria santificação e para a glória da Igreja.
O conhecimento desta importante verdade foi que obrigou nossos predecessores a colocar entre suas maiores preocupações a da instrução dos jovens e a cuidar de maneira particular das “escolas menores” e dos mestres e mestras que se escolhem para as dirigir. Isto lhes pareceu tão importante que procuraram a direção e a boa ordem dessas escolas mediante vários estatutos sinodais e regulamentos gerais, que foram muitas vezes renovados nos sínodos pparticulares que se
realizaram para esse fim. Mas, embora reconheça todos a utilidade e até a necessidade desses
regulamentos, ouvimos dizer todos os dias que se transgridem os mesmos em muitos lugares; isto
ocasionaria grave prejuízo se não se exercesse de novo nossa autoridade. Renovando na medida
em que é – ou fosse possível – os citados regulamentos, entre os quais o do dia 08 de janeiro de
1641, formulamos expressas proibições so pena de excomunhão, a todos os mestres e mestras de
escola, aos mestres calígrafos e aos demais homens, sejam quais fores sua qualidade e condição,
na extensão desta cidade, subúrbios e dioceses de Paris, de receber ou admitir no futuro meninas
em suas escolas, sob qualquer pretexto, como também às mestras de receber meninos em suas
escolas. Queremos e ordenamos ob as mesmas penas de excomunhão, que, se este costume se
introduzir em alguns desses lugares mencionados, dentro de três dias após receber nossa instrução, todos os mestres de escolas e mestres calígrafos acima citados, despeçam as crianças.
Quanto às paróquias rurais em que não hpa bastantes meninos para ocupar e manter ao mesmo
tempo um mestre e uma mestra, ordenamos, sob as mesmas penas, que se ensine os meninos e
as meninas em lcais separados, ou em horas diferentes. Sob as mesmas penas, ordenamos aos
pais que retirem seus filhos, no mesmo lapso de tempo. Se não o fizerem, os declaramos, excomungados ipso facto.
Vimos acima que Luiz XIII, informado de grande escândalo ocorrido em determinada
escola em que um preceptor recebia meninas, tinha escrito uma carta ao senhor Bispo de Poitiers com a ordem de, no futuro, as escolas para meninos fosssem dirigidas por homens e as
das meninas por mulheres sem que meninos e meninas pudessem ser aceitas nas mesmas escolas, por razão alguma nem sob qualquer pretexto.
Em conseqüência dessa carta do Rei, e para cumprir o que nela se ordenava, o senhor
Bispo de Poitiers publicou um mandato, com a data de 7 de janeiro de 1541, para a execução
das Cartas e ordens supracitadas. Esses documentos constam no tomo I das Memórias do
Clero. Consta também uma decisão do Parlamento de Paris, de 19 de maio de 1628, que formula proibições bem expressas aos mestres de receberem meninas em suas escolas e às mestras de admitirem meninos nas delas.
Esta decisão é confirmada por outra de 7 de fevereiro de 1654, na qual a Corte ordena
ao “Chantre” da Igreja de Paris que proíba aos mestres receberem meninas em suas escolas
para que estudem com os meninos, e, igualmente, às mestras de escola receberem meninos
para que estudem com as meninas. Inclui-se também uma carta do rei ao arcebispo de Châlons, a 16 de maio de 1667, em que se ordena que as escolas de meninos sejam dirigidas por
homens corretos, e as das meninas por mulheres, sem que, na mesma escola çlssam estar meninos e meninas. No mesmo lugar cita-se uma sentença do Tribunal Supremo, de 5 de janeiro
de 1667, que proíbe aos mestres das escolas menores da cidade e diocese de Amiens, receberem meninas em suas escolas e às mestras receberem meninos. No lugar que adiante citaremos, Van Espen se serve desta decisão do Parlamento para comprovar nossa tese e acrescenta
que outros casos semelhantes, conforme refere o autor do Diário das Audiências.
Para separar as escolas dos meninos das das meninas, Luiz XIV ordenou que nos lugares em que não houver outros fundos, se poderia impor a todos os habitantes, a quantia de 150
libras anuais para os mestres e 100 libras para as mestras. Este edito é de 13 de dezembro de
1698 e foi registrado no Parlamento de Paris a 20 do mesmo ano.
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Vida de João Batista de la Sal
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4. Proibição das escolas mistas pelos concílios
Esses regulamentos não são novos. O Concílio de Aix, reunido em 1585, tinha ordenado expressamente que houvesse estabelecimentos de escolas para os meninos e as meninas,
em vista de os separar.
Na de Bourges, reunido um ano antes, tinha ordenado que se confiasse a instrução e a
educação das meninas a viúvas ou mulheres de costumes irrepreensíveis..
Esta disciplina, tão necessária para a boa ordem e a conservação da inocência das crianças não é exclusiva da França. Os bispos de Flandres fizeram também bonitos regulamentos, como diz van Epen (T. I, p. 2, tít. XI, C. 5. nº 9). Por isso a primeira preocupação de um
“Écolâtre” (inspetor de escolas) e daqueles a quem se confiam as escolas – diz esse autor –
deve ser a de ter cuidado de que as crianças não percam sua inocência nas escolas destinadas
a conservá-la, da parte de seus colegas ou, inclusive, de seus mestres. E assim, o desejo de
nosso concílio é que os meninos somente tenham mestres e que as meninas estejam com pessoas de seu mesmo sexo, quer nas escolas dominicais, quer nas outras; e que, nos lugares em
que não for possível atender a este regulamento, se tenha cuidado dde separar os meninos das
meninas e de afastar uns das outras nas lições de catecismo que se fizerem para ambos. É isto
o que manda o Co cílio de Malinas, p. 11, tít. 20, c. 3. E o de Cambrai do ano de 1614, tít. 2c,
c. 2, com estas palavras: “que as crianças de sexos diferentes não se misturem, principalmente
nas escolas das cidades e de outras aglomerações, mas que, quanto possível, as meninas tenham mestras e os meninos, mestres”.
Com estas provas torna-se evidente que os bispos, os reis e os primeiros magistrados
do Reino convergem nesse desejo de que as escolas para os meninos estejam separadas das
das meninas e que proíbam bem expressamente que se admitam eles com elas na mesma escola. Mas, é claro que esses regulamentos tão sensatos, tão santos, tão necessários, são transgredidos, violados atrevida e impunemente quase por toda parte: a maioria dos mestres e mestras
que recebem pagamento procuram encher suas escolas com meninos e meninas. Somente nas
escolas cristãs e gratuitas se pode esperar a instrução separada deles e delas.
Capítulo IV
E m que se dem ostra, pela Sagrada E scritura, pela doutrina e os exem plos dos santos, pelos decretos
dos Concílios e dos B ispos, e pelas O rdenanças R eais, o apreço que se deve ter dos Institutos de m estres e de
m estras de escolas cristãs e gratuitas e o zelo que se deve ter para os fudar.
Vimos acima que a maneira de instruir simples familiar que se parece mais à de fazer
o catecismo do que a fazer sermões foi a que usaou o grande Mestre da Sabedoria celeste e,
depois dele, os apóstolos.
Os discípulos desses homens de Deus não introduziram outro método. As Instruções
simples e sem arte duraram na Igreja todo o tempo em que seu fervor primitivo não se rela-
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Vida de João Batista de la Sal
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xou. Isto é tão certo que o grande argumento que os críticos empregam contra certas obras
atribuídas aos mais antigos Padres da Igreja é que não manifestam a simplicidade desses primeiros tempos. Basta com isso, a sua opinião, para deduzir que essas obras não são deles.
Vimos que a função catequética e de instruir os catecúmenos era uma função inerente
do episcopado e que, quando o grande números dos que pediam o batismo obrigou os bispos a
se descarregar dessa tarefa se acudia aos homens mais sábios de muita fama.
Somente se admitia ao batismo os que estavam muito bem instruídos na doutrina cristã, e este cuidado de ensinar a doutrina cristã era o ofício dos bispos ou dos maiores doutores
da Igreja.
As coisas continuaram nesse pé até que o mundo conhecido se tornou quase inteiramente cristão e ao faltarem catecúmenos, desapareceu paulatinamente a função de os catequizar.. durante todo esse tempo, os pais, e na falta destes, os padrinhos e madrinhas, perfeitamente instruídos na doutrina cristã e zelosos pela salvação de seus filhos, cuidaram de os ensinar. Assim os mestres próprios para a ensinar não se tornaram necessários a não ser quando
os pais, esquecendo seus deveres, descuidaram a instrução e educação dos que eles tinham
gerado..
Assim, a Igreja se preocupou de estabelecer escolas cristãs e gratuitas recomendando a
seus ministros que dessem aulas de catecismo com zelo e assiduidade. A Igreja não o deixou
no esquecimento e senore voltou a incitar mediante novos decretos a seus ministros a que não
descuidassem o catecismo e ensinassem na doutrina cristã as crianças e os ignorantes.
Teódulo, bispo de Orléans, em seu Capitular de 797, recomenda encarecidamente a
seus sacerdotes que tenham nas vilas e aldeias, escolas gratuitas para instruir as crianças com
grande caridade sem exigir nada delas.
Gautier, bispo de Orléans, tornou a publicar este decreto de Teodulfo, um de seus predecessores, segundo o qual, no c. 3 de suas decisões Capitulares, ordena que cada sacerdote
tenha um clérigo capacitado para manter uma escola na Igreja.
Hincmar, arcebispo de Reims, mandou se fizesse o mesmo em sua diocese, conforme
consta em sua segunda Capitular, c. 2. em que se diz, falando dos Párocos que devem examinar, se têm um clérigo capaz de manter uma escola.
Um cânon atribuído a um Concílio de França reunido em Mâcon, diz o mesmo. Os
bispos publicaram também vários decretos, cada qual em sua diocese. Yves de Chartres publicou em sua diocese, repetindo todos os termos do cânon que acima citamos, como consta nas
notas sobre esse cânon.
O concílio de Mogúncia, de 813, manda a seus sacerdotes que instruam com esmero a
seus fiéis nas verdades da fé encerradas no símbolo e na oração dominical, castigando por
meio de jejum e outras penitências a ignorância criminosa dos que descjidam de aprender,
obrigando também enviar seus filos à escola para que lhes fossem ensinadas as verdades da fé
católica.
Em Valencia, em 855, o bispo recomenda com força o estabelecimento das escolas
cristãs e considera a negligência de ter deixado decair os recursos tão necessários, como origem da ignorância das coisas de Deus e da fé que podia notar em toda parte.
Também Horardus, arcebispo de Tours, em seu Capitular de 858 recomenda aos sacerdotes o estabelecimento das escolas.
Se tivessem observado exatamente estas sábias regulamentações sobre a instrução e
educação das crianças. A Igreja, sem dúvida, se teria livrado desse dilúvio de males que a
afligiram durante os últimos séculos e cuja causa se deve atribuir à ignorância funesta da doutrina cristã e que originou uma horrível corrupção de costumes. Mas Deus, que pr sua bondade infinita assiste sempre a sua Igreja, enviou em seu auxílio entre vários outros grandes santos e doutores o incomparável Carlos Borromeu.
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Vida de João Batista de la Sal
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Este santo cardeal, certo de que o mal provinha da ignorância da doutrina cristã e da
má educação das crianças, pensou que o curaria em sua origem se pudesse multiplicar as escolas cristãs e de caridade. Trabalhou nisso com zelo incansável, Omo vamos dizer adiante.
Em vista de inspirar esse mesmo zelo a todos os ministros do altar, publicou decretos sábios e
fortes em todos os concílios de Milão, para obrigá-los a fazer com cuidado o catecismo e procurar estabelecimentos de escolas da doutrina cristã. No primeiro que reuniu em 1565 (part. I,
tit. 4, de fidei initiis a Parocho tradentis, initio) mandou aos pastores que ensinem cada qual
em sua paróquia, todos os domingos e festas os elementos da fé, e que façam vir as crianças
ao catecismo, imediatamente depois de almoçar, ao repique dos sinos. Mais ainda, depois de
ter fundado em Milão uma Companhia da Doutrina Cristã, isto é, uma sociedade de pessoas
idôneas para formar semelhantes em outros lugares, como diremos adiante, mas como não era
possível encontrar em todas as paróquias pessoas idôneas para formar semelhantes sociedades, para suprir a isso, determinou em seu segundo Concílio de Milão de 1569 (tit. I, Dec. 2,
Paulo post médium) escolher em cada lugar dois ou três homens sábios e piedosos que tivessem o cuidado de reunir todas as crianças e os jovens para os levar ao catecismo.
No terceiro Concílio de Mição no ano de 1573 (tit. 1. de Scola Doctrinae Christianae
Paulo ante médium) teve o cuidado de exortar aos bispos para que estimulem por todos o modos grande número de homens e mulheres de todas as condições, de todos os estados e idades,
mas de costumes seguros e puros, a entrar nessas sociedades da doutrina cristã, concedendolhes, ou pedindo para eles, grandes indulgências para os animar. Também procurou que houvesse escolas cristãs em todos os hospitais e outras casas piedosas de sexo diferente.
No quarto Concílio de Milão, de 1576, (parte 2, tit. 2, de scholis christianis, circa médium) determinou todos os modos imagináveis para que nem a chuva, nem o frio, nem o inverno, nem a distância da igreja impedissem a assistência às escoas da doutrina cristã.
Eu diria que, mesmo antes de S. Carlos Borromeu, o zelo pelas escolas da doutrina
cristã se tinha manifestado na França. O cânon 13 do Concílio de Ruão, me 1445, supõe que
antigamente havia escolas fundadas para instruir os jovens, já que manda que não fossem confiadas a pessoas que não fossem maduras, de costumes e capacidade propícias çara desempenhar devidamente esse ofício. Com efeito, existem ainda lugares em que subsistem antigas
fundações, ao menos em parte; e até desde muito tempo fora estabelecida nas catedrais,, uma
dignidade, com o nome de “Écolâtre” ou chanceler, ou de “Cantor” para se ocupar dessas funções.
O Concílio de Carbona, em 1551, vai mais longe: deu ordem aos que tinham o direito
de escolher mestres de escola, de os apresentar ao bispo ou ao vigário Maior, ou a outros eclesiásticos a quem incumbia, quer por direito, quer por costume, de os aprovar para que os examinassem no que se referia à vida, aos costumes, à fé e à doutrina. Esta precaução tão necessária chegava um pouco tarde porque os novos erros já tinham feitto surpreendentes progressos, graças aos ,mestres de escolas luteranas e protestantes.
Além disso, este Concílio prescreveu a esses mestres terem vida ilibada, de fé indubitável e de doutrina ortodoxa , para que ensinem com cuidado às crianças, as verdades da salvação, a Ave Maria, o símbolo dos Apóstolos, e o Eu pecador, a Salve Rainha, o ofício parvo
da Santíssima Virgem, os salmos penitenciais, com as ladainhas dos santos e as orações pelos
defuntos, levando-as à igreja,nos domingos e dias festivos.
A assembléia geral d clero da França, em Melun, em 1579, vai mais longe do que esses sábios regulamentos, pois adverte aos mestres de escola que sua vida deve ser uma eloqüente lição de bem viver, e que devem empenhar-se em educar as crianças na piedade e nos
bons costumes, afastando-as da leitura de livros heréticos e profanos, e de todos os que induzem a idéias de voluptuosidade, q eu devem tomar a peito o instruí-las devidamente nas verdades da fé, levando-as pessoalmente à missa paroquial não somente aos domingos e dias
festivos, mas também nos outros dias, segundo o regulamento do Concílio de Latrão, e final-
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Vida de João Batista de la Sal
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mente, procurar que sejam instruídas na fé católica, ensinando-lhes o catecismo do Papa Pio
V.
O Concílio de Ruão, em 1631, can. Im recomenda aos bispos que restabeleçam as antigas escolas em suas dioceses procurando fundar outras nos lugares em que não houvesse
alguma, em vista de educar os jovens nos caminhos de Deus.
Nada mais bonito do que aquilo que diz a este respeito o de Bordéus, em 1533, tit. 27,
das escolas:
“Com muita razão, dizem os Padres do Concílio, um sábio do mundo deixou escrito que
nada é mais importante do que a boa educação das crianças. Com efeito, os jovens são a esperança e o recurso da República, que produz frutos admiráveis se são educadas desde cedo;
que, pelo contrário, não produzem nenhum ou poucos frutos amargos, se forem descuidadas. Por conseguinte nenhum meio mais seguro e ráido de introduzir a reforma em todo o
corpo da República cristã, do que a formação dos jovens. Já que noss primeira preocupação
deve ser procurar uma educação santa e cristã para as crianças, ordenamos que não se confiem as escolas a nenhuma pessoa suspeita de ortodoxia ou de bons costumes e que não tenha feito profissão de fé que prescrevemos… Portanto, é preciso oferecer a todas as paróquias, ao menos as mais célebres, mestres de escola que sejam capazes de instruir as crianças
nas verdades da religião, ensinando-lhes os artigos da fé, os mandamentos de Deus, a oração
dominical e outras coisas do gênero”.
O Concílio de Aix, em 1585, vai mais longe. Depois de ter dado ordem aos bispos a
obrigarem os párocos a dar catecismo a todas as crianças, todos os domingos e festas, e a
chamá-las mediante o repique dos sinos a determinadas horas, acrescenta: para que os párocos
sejam ajudados nesse ministério próprios os próprios leigos, o bispo deve tornar possível o
estabelecimento, em todas as cidades e vilas, de congregações da doutrina cristã e de escolas
tanto para meninos como para meninas. Nos lugares em que for impossível estabelecer essa
espécie de congregações, escolham-se dois ou três homens de peso que se encarreguem, motivados pela piedade, de levar as crianças à igreja para que os párocos as instruam nos elementos da fé. Que, ale, disso, o bispo cuide de visitar essas escolas procurando que lhes dêem conta da maneira em que se cumpre, o número de crianças que vêm, de quanto pode procurar o
progresso espiritual dessa classe de congregações. Que também tenha zelo de lhes procurar
bons confessores e pregadores capazes de estimular, pouco a pouco, o zelo delas, elo interesse
dessas escolas; finalmente, que o bispo procure estabelecer também nos hospitais e outros
lugares em que se oferece comida a homens e mulheres, sobretudo, lá onde se recebem crianças expostas, essa sorte de Instituto dedicado a ensinar a doutrina cristã.
O concílio de Toulouse, em 1590, 3, P.C. 3, Das escolas, publica os mesmos regulamentos:
Se qualquer espécie de ignorância é funesta, dizem os Padres desse Concílio, a das coisas
de Deus é infinitamente perniciosa. Por ussi, os bispos não podem aplicar-se bastante à instrução e à boa educação dos jovens cristãos, sobretudo procurando-lhes a ciência das verdades da fé e dos deveres do cristianismo. Obriguem os párocos a considerar como um dever
capital o de ensinar, por outros eclesiásticos idôneos, todos os domingos e festas, pela tarde,
na igreja, a todas as crianças e ignorantes, a maneira de viver bem, de se confessar e comungar. Também procurarão estabelecer em cada cidade, vila e povoado, congregações da doutrina cristã semelhantes às que foram aprovadas pelas bulas de Pio V e de Gregório XIII.
Erijam, pois, escolas cristãs em favor dos sexos que ficariam sujeiras a essas congregações, lá
onde existirem, ou ao pároco do lugar. Por fim, terão cuidado de que a doutrina cristã contida no catecismo que se vai imprimir por ordem desse Concílio, seja ensinada com zelo nos
hospitais e outros lugares em que se encontram muitas crianças de ambos os sexos.
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Van Espen, tomo I, p.2. tit. C. 5, Das escolas das crianças, cita semelhantes regulamentos publicados pelos concílios de Flandres.
Conforme esses regulamentos dos Concílios, alguns bispos da França ordenaram em
suas dioceses o estabelecimento das escolas para instruir os jovens na fé e na religião. Pode-se
ver isso nos estatutos sinodais de Paris, em 1654, de Amiens, em 1667, c. 1. art. 8, de Beauvais, em 1543, de Châlons, em 1657, 1661 e 1662. vale a pena citar o que se diz no art. 8, de
1662. Nos termos seguintes:
Cada ano se reserve uma quantia dos ingressos da Fábrica para ajudar a manter um mestre de escola nos lugares em que ainda não existe., em razão da pobreza dos habitantes, se
puder pessoalmente contribuir em alguma coisa para a subsistência desse mestre; prefira esta
esmola às que não são tão necessárias e não tão prementes; numa palavra, não se esqueça de
nada que estiver a seu alcance para procurar o estabelecimento de um mestre de escola em
suas paróquias, porque esse meio é o mais adequado e mais seguro para procurar que os jovens recebam sempre instrução referente a suas crenças e que seja educados no temor de
Deus, do qual depende a renovação completa de sua paróquia.
Publicamos os mesmos regulamentos dos bispos de Flandres, como consta nas passagens
de Van Espen acima citados.
A instituição dos Concílios demostra como nossos Padres tomaram a peito a fundação
das escolas para a educação dos jovens nos bons costumes e nos princípios da religião, porque o
único objetivo deste ofício ou dignidade que conta já cinco séculos desde a fundação, foi de assegurar a boa ordem das Escolas menores, de estabelecê-las em seu primitivo esplendor e de sustentá-las contra o relaxamento e a negligência que, no correr dos anos fazem cair as obras melhores e mais necessárias. Com efeito, como diz Nouët para a Chancelaria de Amiens em seua alegação citada nas novas Memórias do Clero (t. I, das Escolas Menores, cit. 5, c. II, p. 1017) foram os
cônegos das igrejas catedrais que compõem o antigo Presbitério da igreja, e que são como os assessores, os conselheiros ou coadjutores dos bispos para os assistir e aliviar no amplo e pesado
empenho do apostolado, e que foram os primeiros encarregados do cuidado das escolas, os que
executaram as Ordenanças das igrejas a respeito deste particular; são as igrejas catedrais que têm
Chanceleres para governar as escolas menores, teologais para as escolas de Sagrada Escritura,
preceptores para as escolas de humanidades e mestres ara as escolas de coroinhas com o nome
ordinário de “coro”, das quais se originaram as demais escolas que se estenderam no resto da
diocese. Daí vem a autoridade que conservaram os Chanceleres sobre as escoas e que vem confirmada por decretos Parlamentares e por toda sorte de provas desta mesma alegação.
Como não há nada mais necessária para o público e especialmente para os pbres do que
as escolas gratuitas e de caridade, onde as crianças carentes recebem uma boa educação e instrução, necessárias para a salvação, desde há muito, como acabamos de ver, a Igreja determinou
estabelecer tais escolas e nestes últimos séculos, o Espírito Santo inspirou que se fundassem por
toda a parte. Para falar somente da Capital do Reino, se vêem poucas paróquias importantes em
Paris que não tenham cada uma sua escola de caridade, como são Severino, de são Paulo, de são
Medrico, são Roque, santo Estevão do Monte, são Tiago do Alto, são Tiago do Açougue, são
Nicolau dos Campos, são Leu, são Pilles, são Lourenço, santo André das Artes, são Sulpício,
cujos piedosos párocos empregam os Irmãos em várias escolas gratuitas.
Esse grande zelo, que se intensificou nos últimos séculos em favor das escolas de caridade, se origina no santo Papa Pio V, e mais ainda, em são Carlos Borromeu, no venerável César de
Bus, que instituiu e fundou a Congregação da Doutrina Cristã. O que se diz desse respeito na
vida desse santo varão, merece um lugar aqui, e dará satisfação à curiosidade do leitor, que ao
tudo isso, sentirá um grande apreço dos santos institutos que se dedicam ao ensino gratuito e a
educar no cristianismo os filhos dos pobres.
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Vida de João Batista de la Sal
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Vida de Charles de Bus
Fundador da Congregação da Doutrina Cristã
Estado em que se encontra a Doutrina Cristã quando César fundou sua Congregação.
Tudo o que dissemos até agora, diz o autor desta vida, acerca dos serviços prestados à Igreja por César de Bus, não deve ser considerado mais do que seus primeiros ensaios. Agora
resta-nos falar da fundação de seu Instituto, que foi sua verdadeira obra mestra. Deus lhe inspirou essa idéia e lhe deu o zelo, a força e todas as demais virtudes necessárias para a realizar.
Teve como protetor, por assim dizer, como coadjutor nesta santa empresa a um santo arcebispo que depois foi cardeal. Agora governa sua Congreação e lhe impõe poucas leis, mas excelentes. Consegue confirmação por um grande Papa, dividida por uma lamentável separação,
estabelecida em vários lgares e desejada por todos.
Como este Instituto toma seu nome de Doutrina Cristã, e é por assim dizer, sua função
preferida, pareceu-nos que seria bom apresentar aqui o estado em que se encontrava, desde o
princípio do século XVI, que foi o de César, até que o mandaram para ensiná-la e para fundar
a Congregação.
Pode-se dizer que o estado da doutrina cristã, durante os vinte ou trinta primeiros anos
do século XVI, não era diferente do de muitos anos que precederam, isto é, que estava muito
descuidada para não dizer sumamente degradada. Parecia como se houvessem esquecido que
era a mesma que Jesus Cristo tinha ensinado sobre a terra depois de a ter recebido de seu Pai
celeste, da qual os apóstolos se tinham servido como de um anzol para a grande pescaria do
Universo e que tinha sido cultivada com tanto fruto e glória pelos Orígenes, os Gregório e os
Agostinho. Por demais descuidada pelos pastores, encontrava-se abandonada pelos mestres
de escola, que, por serem quase os únicos catequistas da Igreja, comunicavam a este divino
emprego, que lhes incumbia por sorte o envelhecimento em que havia caído sua profissão se
alguma pessoa importante por seu saber ou por alguma posição importante na Igreja tivesse
empreendido catequizar as crianças e os pobres, seria objeto de risada do mundo e teria sido
obrigado a recorrer a apologias como ocorreu, um século antes, ao piedoso e sábio Chanceler
Gérson.
Foi então que veio Lutero. Ao ver o catecismo tão abandonado, não deixou de acusar de
zelo disso a Igreja de Roma. Mas deveria ter o cuidado com que essa Igreja que ele abandonava com tanta temeridade, acabava de trazer remédio a esse abuso mediante um decreto do
Coincílio de Latrão. O heresiarca, quer ignorando, quero dissimulando esta determinação,
creio que, como enviado do céu para reformar a Igreja (pois tal era sua ímpia pretensão), devia fazer consistir uma parte de sua reforma em restabelecer as instruções familiaes. Ele
mesmo se dedicou muito a isso e seus discípulos continuaram seu exemplo. Melancton, Ecolampadio, cem outros inovadores compuseram catecismos que, como um diúvio desolador,
inundaram a Alemanha e as nações vizinhas. Esta foi a última humilhação da Doutrina Cristã.
Por que? Será que pode haver algo mais humilhante do que ver esta casta Sara nas mãos de
outros tantos egípcios como penas e bocas hereges que se metiam a escrever ou a falar?
Mas, quando parecia mais humilhada, aprouve a Deus levantá-la de repente, fazendo erguer-se ao ponto mais alto da glória como no passado. O espírito do catecismo se estendeu
então por toda a parte na Igreja e principalmente sobre os pastores desse divino rebanho com
mesma efusão que nos tempos apostólicos.
Os Papas e os concílios pareciam então não ter outro assunto mais importante, ao menos
tinham maior solicitude do que restabelecer esta forma de instrução em seu primitivo esplendor. O concílio de Trento, mediante dois decretos, urge os párocos e bispos pedindo deles
que não omitam nada para evitar a vergonha dessa censura; que os pequenos pediram pão e
ninguém lhes deu nada. Uma série de concílios provinciais que seguiram de perto o Concílio
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Vida de João Batista de la Sal
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ecumênico, pareciam animados pelo mesmo zelo. Pio IV, Pio V, Gregório XIII, vários de
seus sucessores deram sua aprovação, empregaram sua autoridade, abriram os tesouros da Igreja, para animar a todos a que dessem ou recebessem lições sobre esta divina doutrina, se
esforçaram em opor uma torrente de catecismos católicos à outra torrente de catecismos hereges que mencionamos.
O primeiro que então saiu (pelo menos não conhecemos outro anterior) foi o de Frederico. Bispo de Viena (Áustria) , um dos Padres do Concílio de Trento. Este piedoso prelado tinha
mais gosto e encontrava mais razões de estar orgulhoso em instruir os pastores do que em fazer a
corte dos príncipes, pois catequizava todos os dias e somente uma vez foi visitar o imperador
Fernando do qual tinha sido preceptor e que muito lhe queria e apreciava.
A instrução cristã do Cardeal Grosperus será sempre elogiada por todos os católicos em
razão de seu próprio mérito e, também pela consideração de seu autor. Foi um poderoso baluarte
da fé da Igreja contra as novidades de seu tempo: e seu zelo pelo restabelecimento da disciplina o
tornou terrível para os que viviam no relaxamento. Seu desinteresse e sua humildade não foram
menos admiráveis do que seu zelo. Elevado ao cardinalato, mostrou-se inquebrantável na resolução de não subir a essas alturas por julgar que não merecia uma honra da qual toda a Igreja o
considerava digno.
Não é de estranhar o apreço que gozo sempre o grande catecismo de Canísio, se pensarmos que este autor precisa calar-se ao falar aos santos Padres. A este respeito, diz ele estas palavras notáveis: Toda sabedoria que não for a dos mestres da Igreja, é uma loucura; ao não abraçar continuamente
essas colunas do templo de Deus vivo, qualquer pessoa está a ponto de uma funesta queda. querer ver de outra
maneira do que com esses olhos é tornar-se cego e caminhar em noite escura, tropeçando e caindo a cada passo.
Depois de Luís de Granada ter composto suas excelentes obras, que são lidas por todos
os que sabem ler, que proporcionam cada dia aos anjos novos motivos de alegria pela conversão
de inúmeros pecadores, coroou seus trabalhos com seu admirável catecismo, que não é feito como a maioria dos demais para instruir, nem para combater hereges, mas para que sirva para a
conversão e instrução dos mouros da Espanha e da África. Nada mais agradável nem mais sólido
do que esta obra: agrada por sua variedade e convence por seus raciocínios; seu autor paece sumamente versado na leitura dos antigos Padres que tiveram de combater contra os judeus e os
pagãos.
Mas, o mais autorizado de todos os catecismos que saíram então é o do Concílio (assim
se costuma chamá-lo). A Igreja dedicou todas as atenções a prepará-lo e publicá-lo. Os teólogos
mais profundos, os mais hábeis canonistas, inclusive os que melhor conheciam as finuras da língua latina, se dedicaram a isso. O Concílio de Trento ordenou sua composição, os Papas a fomentaram, são Carlos, o cardeal Sirlet, que são Carlos julgava o mais digno de ser Papa, e outros
vários do Sagrado Colégio se preocuparam por ele. Escolheram-se as matérias com sumo esmero
e se realizaram com grande precisão. Terminada a obra, foi submetida a nova revisão e exame.
Finalmente se publicou, foi acolhida com o aplauso de todos. Contam-se até vinte e um Concílios
provinciais que ordenaram sua leitura e seu uso em suas províncias. Começou-se a tradução em
numerosas línguas: italiano, francês, espanhol, alemão, polonês, ilírico. Não foram poupados os
elogios das pessoas eminentes por sua ciência ou por razões diferentes. Disseram que era uma
obra a cuja excelência e beleza não se podia acrescentar nada; que era comparável a tudo quanto
os antigos tinham escrito de mais definitivo, e de tudo o que é digno dos melhores séculos da
civilização romana. Nele se encerra toda a teologia dos cristãos, pelo menos em seus princípiow;
e que absolutamente não era necessário que os pastores aos quais se dirige soubessem mais; que
não eram homens comuns os que nele falavam e sim que se faziam ouvir os próprios apóstolos, a
publicarem as maravilhas de Deus.
Não somente pelos escritos e livros se ensinou a doutrina cristã. As bocas mais santas
procuravam santificar-se mais ao a anunciar. Santo Inácio e seus companheiros tomaram a peito
esse ministério, e esse fundador quis, no mesmo dia em que o destinaram ao governo da Compa-
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Vida de João Batista de la Sal
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nhia, descer à igreja para dar catequese às crianças, pois não julgava rebaixar seu generalato e sim
honrá-lo e, por assim dizer, consagrá-lo.
Ao mesmo tempo, pasmado, o oriente vê o grande Xavier percorrer as rãs com uma sineta nas mãos, reunindo escravos e crianças para os instruir, entoando com eles canos sagrados em
que estão encerradas as verdades principais da religião. Tal é o segredo de seu império sobre os
elementos da natureza e da influencia de suas palavras sobre o espírito e o coração de seus ouvintes. Assim triunfou na Índia com maior glória do que do que aquele diante de quem a terra se
calou. Tal foi a função privilegiada de seu apostolado bem como o direito inalienável dessa sahgrada dignidade. Se a compartilha com outros, é sob a condição de que não lhe tirem essa honra:
ele continua catequizando, disposto a ceder ao que quizesse a qualidade de Legado Apostólico,
que se torna molesta para sua humildade. Conseva sempre a de catequista que o cumula de alegria.
Bartolomeu dos mártires gasta os últimos anos de sua vida, isto é, os mais santos, nesse
exercício de caridade. Este homem é sempre admirável. Prostrado aos pés de Granada, seu superior, é preciso que seja mandado em virtude de oobediência para que aceite um arcebispado. encontrando-se no Concílio de Trento, desestimula toda consideração humana e, contemplando só
os interesses da Igreja, quer levar a reforma para onde fosse necessária. Ao gozar do favor de Pio
IV, não se prevalece desta vantagem a não ser para prestar um serviço importante a todo o Episcopado. De volta a Bragança, procura conseguir da Corte de Felipe I, como também de Roma, a
licença de deixar seu arcebispado para voltar a sua primeira profissão de religioso. De volta a sua
solidão, interrompe muitas vezes seu retiro e descanso para ir instruir as pessoas humildes dos
arredores. Como é belo ver saí-lo dessas instruções simples e familiares com que, no passado,
explicara aos reis, dera conselhos ao Papa e pronunciara oráculos nos Concílios ecumênicos.
Deus é impenetrável em seus desígnios. Para instruir, a Mestra do universo escolhe um
homem sem estudos. Marcos de Sádis, fidalgo milanês, simples leigo, veio a Roma para dar lições
de doutrina cristã à gente humilde dessa cidade. Seu zelo incansável pela salvação das almas perdidas pela ignorância, sua humildade que o manteve por muitos anos afastado do santo ministério
e o muito que sofreu quando uma autoridade absoluta o obrigou a entrar nele; seu máximo desprezo das riquezas, pois dizia as riquezas consomem demasiado tempo e que era justo que os que se
dedicam às funções do apostolado imitem a renúncia dos apóstolos, virtudes e todas as demais
fazem com que se elogie sua memória na Congregação dos Sacerdotes da Doutrina Cristã, fundada por santa Águeda de Roma, com a ajuda e sob a direção de Henri Petra, excelente sacerdote
do Oratório.
Mas, entre os que, naquele tempo, trabalharam na renovação do catecismo e na honra da
doutrina cristã, ninguém se assinalou mais do que são Carlos Borromeu. Embora o catecismo do
Concílio fosse obra de vários grandes homens, a Igreja reconhece que é preciso atribuir a esse
santo cardeal essa obra. Ninguém soube melhor e ninguém procurou dar a conhecer os males
oriundos da ignorância, e os bens que a instrução proporciona. Se tem tanta dificuldade em permanecer em Roma, ausente de sua diocese, somente é porque sabe que a instrução ali está sendo
descuidada. Ao chegar a ela teve um concílio e fez publicar um decreto urgente em favor da instrução familiar. Para pôr em prática esse decreto, funda em toda parte escolas da doutrina cristã.
Foram inúmeras: nenhum bairro nas cidades nenhuma aldeia no campo que não tenha uma escola e, às vezes, várias. Essas escolas, de que uma grande Congregação cuidava, juntamente com
Oblatos, eram muito apreciadas pelo santo Prelado. Ele as considerava como os mais ricos florões e pedras preciosas de sua coroa pontifícia. Quando algum bispo ou pessoa ilustre vinha visitá-lo, levava-os ali para verem como se fossem a coisa mais excelente e mais curiosa que havia na
diocese.
Na Itália a gente gosta muito dos espetáculos: ele não encontrava nenhum tão agradável
do que os debates que tinham lugar com freqüência nas escolas. Considerava-os como um concerto melodioso quando uma multidão de bocas inocentes falavam e discutiam sobre as verdades
mais importantes da religião. Assim como essas escolas fazia suas delícias durante sua vida, foram
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Vida de João Batista de la Sal
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o melhor adorno de suas pompas fúnebres. Cinqüenta mil alunos da doutrina cristã se encontravam em seu enterro, todos inconsoláveis por perderem um pai que tanto de tinha preocupado
com romper-lhes o pão santo da palavra. O grande número era a garantia da caridade do santo:
era uma multidão de anjos terrestres que, acompanhando seu cadáver à sepultura, disputavam
com santa êmulo com os anjos do céu que levavam sua alma ao céu no seio de Deus, querendo à
porfia render-lhe a maior honra.
Este santo prelado foi receber no céu um desses lugares eminentes, destinados aos que
fazem o que ensinam e que ensinam o que fazem. O espírito do catecismo que possuía em plenitude passou, por assim dizer, os Alpes e foi derramar-se com rica efusão na alma de César de Bus
que começou a fazer, na França, o que tantos grandes homens tinham feito já na Itália e em outras regiões.
César estava cheio do espírito de são Carlos e conhecia a fundo a teologia do catecismo
do Concílio. Tinha um coração ainda mais cheio de seu espírito. Decidiu dedicar-se, no resto de
sua vida, a glorificar a Deus mediante as instruções, seguindo o conselho do Profeta.
Embota houvesse homens sábios no clero de Cavaillon, o povo estava afundado em extrema ignorância. E toda essa ciência dos sacerdotes estava encerrada em eles mesmos e não se
manifestava a não ser em alguns sermões muito bem caprichados, que tinham objetivo de agradar
às pessoas ilustradas e não ensinavam nada ao povinho. Ninguém sabia o que eram essas instruções familiares e o Concílio de Trento que as tinha mandado fazer de maneira tão expressa não
tinha despertado a esses pastores negligentes e obedecendo ao Concílio, empreendeu ensinar a
esse ovinho de Cavaillon.
Dava catequese na igreja da catedral e restaurou uma prática santa que, com grande prejuízo das almas, tinha sido interrompida desde vários séculos. Por mais que ao santo agradasse o
repouso da soledade, em que se tinha retirado, saía dela para ir pregar o Evangelho aos pobres
nas aldeias vizinhas, como Jesus Cristo. Embora as pregações do advento e da quaresma não se
distinguissem muito da divina simplicidade do catecismo, descia do púlpito e se misturava à multidão das crianças e da gente humilde do povo, para os mais fortes tomarem o leite de suas instruções santas e se alimentarem com o pão sólido de seus sermões. A diocese de Cavaillon, o
resto do condado, o Principado de Orange, os lugares de Provença edo Languedoc, que ficavam
bastante perto, foram os departamentos deste apóstolos das crianças e deste catequista dos pobres. Não podendo acudir a todos os lugares, multiplicava-se mediante numerosos discípulos que
sua santidade e habilidade atraía. Instruía-os e os formava com muito esmero enviando-os depois
para os lugares em que não podia ir pessoalmente.
O mais conhecido de seus discípulos assim formados por ele foi sem dúvida João Batista
Romillon. Era de Lille, cidade do Condado, na diocese de Cavaillon, e de parte de Ana Sufren,
sua mãe, pessoa de qualidade, era parente próximo do Serve de Deus. a apostasia de seu pai o
tinha arrastado à heresia em que perseverou até os vinte e cinco anos. Não só estava obstinado
em seus erros; sedento de sangue dos católicos, para satisfazer essa sede, tinha se juntado aos que
tomaram as armas contra eles com o objetivo de os exterminar quanto podiam.
Além disso, seu pai, herege furioso, ao descobrir que pensavam em converter seu filho,
tinha jurado que ele mesmo o mataria na hora que prestasse ouvidos aos termos contrários a sua
religião. Mas, embora grandes, os obstáculos foram superados pela graça de que César foi o instrumento.
Depois de retirado da heresia, trabalhou muito para o formar na piedade e o conduziu pelos caminhos mais penosos da penitência. Este maravilhoso mestre da salvação encontrou tanta
docilidade neste excelente discípulo que o encontrou sempre disposto, não só a executar o que se
lhe mandava, mas até ir mais longe, se não o retinham.traabalhava durante o dia e rezava de noite.
Caso tomasse algum descanso, somente o fazia por poucas horas e sobre o chão duro. Nunca se
desfez dos cilícios; jejuava continuamente, de ordinário a pão e água. Parecia que seu coração
estava aceso de amor a Deus e seu zelo pelas almas o sempre o mantinha em arroubos.
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Vida de João Batista de la Sal
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Esses dons da graça, cuja duração e uniformidade não davam lugar à desconfiança, irmanavam-se com várias prendas naturais. Tinha o juízo seguro, saúde robusta e capaz de suportar as
maiores fadigas, uma atividade avessa a todo descanso, uma bondade natural e, sobretudo, falava
com muita liberdade, força e energia, até conquistar os espíritos.
Ao ver essas qualidades, César pensou que Romilhão poda ser útil operário na vinha do
Senhor e que tomaria os meios de o elevar ao ministério sagrado. Mandou-o a Turmon para estudar e, como seu pai não tinha o desejo de pagar os gastos, porque era herege, nem sequer os
meios porque lhe haviam confiscado seus bens, César não deixou de estender a esse pobre mas
virtuoso estudante a liberalidade que manifestava com muitos outros. Quando Romilhão termino
seus estudos, César o obrigou a se apresentar às ordens e o dotou com um canonicato na igreja
colegial de Lille. Pouco depois se aplicou a recolher a colheita que era muita, fazendo catequizar,
pregar, levando-o consigo às missões. E, como no começo, o novo sacerdote não tinha ainda
todo o fundo necessário para tantos sermões que tinha diante de si em certas ocasiões, ou porque
não tinha tempo para os preparar, podia suprir aproveitando a abundância do Padre César. Com
essa ajuda, e todas as demais vantagens, que lhe procurava a união com esse santo varão, produziu muitíssimo bem em Lille e nos arredores, quer ensinando a doutrina cristã, quer em todas as
demais funções de seu ministério, o que mostra o acerto de César ao escolher a este homem como primeiro companheiro na fundação de sua Congregação.
Havia muito que César pensava nessa fundação. Deus lho tinha inspirado desde sua infância e nessa idade em que se costuma pensar em diversões, sua maior alegria era ver-se à frente
de um grupo de eclesiásticos, servindo a Deus e santificando-se com eles. A grande Congregação
da Doutrina Cristã, fundada por são Carlos e, mais ainda, a dos Padres Oblatos, lhe deu a idéia da
sua, servindo-lhe como de pauta. Muitas vezes, em suas mais ardentes orações e em sua mais
sublime contemplação tinha reconhecido, por sinais indubitáveis, que era para o que Deus o
chamava. Com essa segurança tinha trabalhado desde havia algum tempo em fazer entrar em seu
espírito e em seus intentos alguns piedosos eclesiásticos, e tinha respondido ao bom êxito a seus
desejos, pensou que não dava mais esperar para dar início.
O que fez em primeiro lugar foi comunicar sua idéia a seu bispo, pois não era jsto nem
sequer possível empreender alguma coisa sem a aprovação deste. D. João Francisco Bordini ocupava naquele tempo a sé episcopal de Cavaillon. Fora discípulo de são Felipe Néri e associado a
Barônio em seu grande trabalho dos Anais da Igreja; inclusive nos resta uma obra dele sobre essas matérias. César lhe disse que o Concílio de Trento e os sumos pontífices tinham pensado que
não havia coisa mais apropriada para fazer voltar à da igreja e para restabelecer a pureza dos costumes entre os fiéis, do que as instruções familiares. Por isso tinha empregado esse meio desde
havia alguns anos tanto na diocese de Cavaillon como nos arredores de modo que tinha decidido,
com a autorização de sua Excelência, passar i resto de sua vida nesse exercício. Mas, como lhe
restava pouco tempo de vida e desejava que esse santo exercício pudesse continuar até a consumação dos tempos, seria bom fundar uma congregação cujo espírito essencial, o dever indispensável, fosse ensinar a doutrina cristã e que fosse na Igreja uma Ordem de Catequistas como a de
santo Domingos era uma Ordem de Pregadores; que, se Deus a olhava com favor, poderia durar
para sempre, estender-se por toda a parte e procurar, por esse meio, que o exercício da doutrina
cristã, fosse perpétuo e universal; que haveria igrejas na medida do desejo; que os pastores teriam
assim um exemplo disponível que poderiam aproveitar em caso de necessidade; que comporia
principalmente de eclesiásticos que seriam os membros essenciais; que, contudo, poderiam associar-se os seculares como coadjutores; que todos eles estariam obrigados, por profissão, a tender
à perfeição cristã e que todos os eclesiásticos, além disto, procurariam praticar o que os cânones
tinham prescrito de mais puro e de mais adequado para a perfeição de uma Ordem tão sagrada;
que por este meio se trataria a doutrina cristã de maneira digna de Deus e de seu Evangelho.
Com efeito, não há coisa m,ais lamentável do que ver passar mistérios tão santos e verdades tão
adoráveis por lábios incircuncisos, que os teriam purificado com o carvão ardente tomado do
altar, que teve a honra de falar desse projeto com diversos prelados que o tinham aceito com
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Vida de João Batista de la Sal
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gosto; que, se sua Excelência se dignasse honrá-lo com sua aprovação ajudando-o alem disso
com sua autoridade, encontra eclesiásticos bem dispostos a se dedicarem a essa obra; e que esperava que lhe concederiam o favor de o receber como o menor de todos para servir a todos.
A resposta do bispo foi que ele era bispo e discípulo de Felipe Néri e esta dupla razão lhe
ditava o que devia à doutrina cristã: que os bispos eram os primeiros catequitas da Igreja e que,
no Oratório, não havia nada que se recomendasse tanto do que as instruções familiares. Que considerava feliz seu episcopado por encontrar-se num tempo num lugar em que esta Congregação
iria nascer; que a aprovava e para que esta aprovação fosse mais autêntica e tivesse maior força
nesta circunstância, à autoridade que lhe dava sua qualidade de bispo da diocese de Cavaillon,
juntava sua dignidade de Vicelegado da Legação de Avinhão.
O zelo pelo catecismo e a doutrina cristã tinha passado da Itália a outro lado dos Alpes,
mas não se limitou à Provença.
Depois dos filhos de santo Inácio e de César de Bus, que fizeram desse ministério um de
seus principais deveres, veio o beato Vicente de Paula, fundador dos sacerdotes da Missão, que
fez do catecismo e das instruções simples e familiares o objeto de sua caridade e o espírito da
sociedade.
Quase na mesma época, Lê Noblettes, homem muito apostólico e um dos maiores santos
sacerdotes do último século, dedicou-se com um zelo e um fruto maravilhoso a catequizar e instruir de maneira a mais simples e familiar as crianças e os pobres das cidades e do campo da baixa
Bretanha, em que faleceu em notável odor de santidade. Em seu santo ministério teve como sucessor o Pe. Ubi, jesuíta que também faleceu nessa província em fama de santidade; e outros santos sacerdotes e religiosos continuaram com muito êxito na mesma província os trabalhos apostólicos e quase com a mesma maneira simples e familiar a ensinar..
O padre Eudes, a exemplo do beato Vicente de Paula e animado com o mesmo espírito,
fundou outra Congregação de sacerdotes que também, em suas missões, consideram como dever
capital dar o catecismo e a ensinar de maneira popular e evangélica.
E assim, os que hoje se dedicam a trabalhos de missões se impõem o dever não só de dar
o catecismo às crianças, mas também a ensinar a exemplo de Jesus Cristo e dos apóstolos.
Não posso deixar de colocar na categoria dos maiores zeladores dos catecismos, o padre
Olier, fundador do célebre seminário de São Sulpício, escola de tantos ilustres bispos e de tantos
santos e sábios eclesiásticos que honram a Igreja da França.
Este homem de virtude eminente, que se fez sacerdote depois de ter recusado a mitra, tinha muita hora de ir pelas ruas de Paria com uma campainha na mão para avisar as crianças e
levá-las ao catecismo. Humilde função que ainda hoje têm muitos jovens eclesiásticos de primeira
qualidade, quando se encontra nessa casa de fervor. Santa função, pois, que exerceram com grande edificação vários ilustres prelados e abades que ocupam agora os primeiros lugares da Igreja da
França.. grande lição para os outros eclesiásticos que deveriam aproveitar este exemplo e ter em
grande honra a catequização e instrução dos pobres.
Além disso, se o zelo de tantas santas pessoas pode diminuir la ignorância da doutrina
cristã, não suprimiu completamente. Não se fazem missões em toda parte, nem todos os dias. Os
catecismos que se fazem nas paróquias mais organizadas e pelos eclesiásticos mais zelosos não se
dão fora dos domingos e festas e, por fim, somente tal ou qual dia ordinário durante o advento
ou a quaresma. Desta maneira, por diferentes motivos que explicaremos adiante, as crianças pobres não pode, ordinariamente, receber boa instrução de doutrina cristã. Mesmo, supondo-o, não
receberiam a boa educação, que não é menos necessária do que a própria instrução.
Somente as escolas cristãs é que essas crianças pobres gozam de todas essas vantagens.
Porque, no fim de contas, nem os padres da Doutrina Cristã se encarregam de educar as crianças.
Além disso, embora a tarefa de ensinar a doutrina cristã seja o fim principal de seu Instituto, não
fazem dela o único objeto de seus trabalhos. Sabe-se que se dedicam às outras funções do ministério.
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Vida de João Batista de la Sal
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O reverendo padre Barre, e o padre La Salle foram, pois, os primeiros que pensaram em
fundar institutos dedicados à instrução gratuita à educação cristã das crianças abandonadas e pobres.
O primeiro deles se dedicou às meninas, o segundo, aos meninos. E essas duas classes de
institutos inspiraram a formação de outros. Tudo o que foi dito a esse respeito deve inspirar sumo respeito aos que não são de todo indiferentes à religião de Jesus Cristo. Mas, como as obras
mais excelentes são as mais contraditas pelos homens, e os demônios, ninguém se deve surpreender quando estas são ainda maior alvo das mais cruéis intrigas em mitos lugares. Sempre se encontram pessoas mal dispostas contra as novas fundações. Nada de estranho!
A própria religião cristã foi perseguida durante três séculos. A santidade, tão patente dos
anacoretas e dos solitários, que edificou tanto o mundo cristão, sobretudo no quarto e quinto
século, e que foi um prodígio de graça até mais surpreendente do que o dos mártires, não conseguiu fechar a boca de censores perversos e ímpios. E mais de uma vez, foi preciso que se abrisse
a de são João Crisóstomo para fazer a apologia desses homens de Deus que eram a glória da Igreja.
Todas as ordens religiosas, como se pode ler em sjas histórias, receberam da parte do
mundo semelhantes insultos no início. As de são Francisco e de são Domingos, e em geral as
ordens mendicantes encontraram, quando se manifestaram no mundo muitos detratores e inimigos, até na universidade de Paris, sem falar dos frades negros, isto é, de todas as demais ordens
religiosas para as quais estas se tornavam odiosas e objeto de inveja. A discussão chegou a tanto
que os grandes doutores são Boaventura e são Tomás intervieram para, de pena em riste, utilizar
sua ciência para fazer a apologia de suas ordens.
Quanto à Companhia de Jesus, embora nascida há quase cem anos, não conta hoje nem
com menos invejosos nem com menos inimigos. E contudo alguns pensam que não se deve muito a santo Inácio por ele ter dado à Igreja a Companhia de Jesus, quando lhe proporcionou uma
multidão de homens verdadeiramente apostólicos que publicaram a fé entre os infiéis em todas as
regiões do universo e a defenderam em toda a Europa contra os hereges, muitas vezes à custa de
sua vida, e e embora seja verdade que nenhuma Congregação há dois séculos teve mais mártires,
mais santos religiosos, mais teólogos e mais homens ilustres em todos campos.
É de esperar, pois que, por mais eminente que pareça a virtude de La Salle, não poderá
fechar todas as bocas ou em todos os espíritos os murmúrios e preconceitos contra seu Instituto.
Vamos examinar o que se lhe pode opor e procurar responder às objeções.
Capítulo V
Resposta às objeções
obje ções que se costum am form ular contra os Institutos de m estres e m estras
das escolas gratuitas e contra todas as novas fundações
As mentalidades e os gostos dos homens são tão diferentes de maneira que não é possível esperar vê-los reunidos e unânimes em muitas opiniões. O interesse, o humor, o orgulho,
a vaidade, os ciúmes, a extravagância, os preconceitos, as paixões, a malevolência, o espírito
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Vida de João Batista de la Sal
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de crítica e de contradição influem tanto sobre as opiniões dos homens que chega a parecer
surpreendente que estejam de acordo num mesmo ponto. O espírito encontra sempre, em seu
coração, alguma energia recôndita que o move, fazendo fracassar a raz~qo ao enfraquecer
suas luzes. Assim, por melhores que sejam as razões que militam em seu favor e mostrem a
importância e a necessidade das escolas cristãs e gratuitas, não é possível esperar que produzam a mesma impressão sobre todos; deve-se esperar até que haja contraditores que se se riem
delas. O minguado interesse que tantas pessoas têm pelo verdadeiro bem público, a pouca
religião que se encontra hojee entre os fiéis, fazem que alguns e outros se oponham ou se
mostrem muito indiferentes no que se refere à fundação das escolas cristãs.
O interesse e a inveja do ofício armam os mestres mercenários contra os Irmãos e só
têm despeito que outros trabalhem melhor do que eles e por pura caridade no ofício que eles
exercem por interesse.
Em certos lugares existem ainda pessoas que pensam que o bem público requer que se
fechem as portas das cidades aos novos Institutos. Os que não se preocupam nada com a perda
das almas que a ignorância da ciência da salvação coloca no caminho do inferno, perguntam:
por que estes adventícios vêm à vinha do Senhor? Até os que parecem bem intencionados
imaginam que são inúteis, ou que vêm fazer o trabalho dos outros. cada qual apresenta suas
objeções. É preciso responder-lhes.
O fUndamento sobre o qual se baseia a importância das escolas cristãs e gratuitas e
dos Institutos de mestres e mestras de escola idôneos para as manter é a importância para os
filhos dos pobres de saberem a doutrina cristã. Este fundamento é sólido, dirão alguns, se não
houver, para os pobres, outro meio de aprenderem a doutrina cristã do que o de irem às escolas gratuitas. Mas quem se atreverá a afirmar que não instruir-se a fundo na ciência da salvação em outro lugar e não com os Irmãos ou com as Irmãs, fundadas para lhes ensinar?
1º Este ofício de caridade não seria por acaso um dever de justiça para os pais, padrinhos e madrinhas? Não estão eles obrigados a instruir ou procurar que sejam instruídas as
crianças que deram ao mundoou que trouxeram em seus braços na pia batismal?
2º este benefício de caridade não é acaso um dever de obrigação para todos os pastores
que não têm outro dever mais essencial do que o de procurar a instrução cristã a seus fiéis,
pessoalmente ou por meio de outros?
3º Não se exerce, por acaso, este ofício de caridade com zelo e assiduidade em não
poucas paróquias pelo menos aos domingos e dias de festa do ano, no advento e na quaresma?
4º Se a fundação das escolas cristãs e gratuitas é tão necessária para a educação e instrução dos jovens de ambos os sexos, a Igreja teve carência por longo tempo deste meio de
salvação, visto que somente há meio século estas fundações são conhecidas na França.
5º Não houve, por acaso, em todos os tempos ministros santos e zelosos que exerceram com fruto esta função tão salutar?
6º Desde as origens da Igreja não se encontraram fiéis entre os apóstolos, entre os discípulos do Senhor e entre seus sucessores um número suficiente de catequistas.
7º Na falta deles, houve alguma vez falta na Igreja de mestres ou mestras de escola,
capazes de ensinar os jovens ignorantes de ambos os sexos?
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Vida de João Batista de la Sal
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8º Os que sabem ler, não podem, por acaso, estudar por si e instruir-se na doutrina
cristã?
9º Os Institutos são um peso para as cidades.
10º Prejudicam as pessoas do ofício, que vivem e mantêm sua família com as taxas da
escola.
Todas estas reflexões minoram a fundação das escolas cristãs e gratuitas. Se estiverem
certas, mostram ao menos que a Igreja não tinha grande necessidade de Irmãos nem de Irmãs
dedicados, por estado à educação e instrução cristã das crianças. Se sua fundação era tão importante, por que chegaram tão tarde? Poderia-se pensar que esses operários, que vieram em
último lugar para trabalhar na vinha do Pai de Família, sejam tão necessários, sem subestimar
a ajuda de Jesus Cristo que procura à Igreja todos os meios necessários de salvação? A meu
entender,isto é tudo quanto se pode opor de mais verossímil ao que foi dito acima. É preciso
responder a tudo isso. É fácil e a verdade aparecerá mais evidente porque essas dificuldades
não são todas apropriadas para mostrar sua importância. Com as respostas se verá que, como
as sombras num quadro não servem a não ser para dar resplendor às cores do retrato, essas
objeções somente servem para realçar nossas razões.
PRIMEIRA OBJEÇÃO
A instrução da doutrina cristã é um dever de caridade e de justiça que os pais devem
a seus filos e os padrinhos e as madrinhas aos que tiveram em seus braços na pia batismal.
Por conseguinte, a fundação das escolas cristãs é desnecessária.
RESPOSTA:
Esta dedução é correta se os pais e, na falta deles, os padrinhos e madrinhas cumprem
com seu dever. Do contrário, é falsa, quando não a cumprem.
Na verdade, os pais devem a seus filhos a instrução cristã e, na sua falta, os padrinhos
e as madrinhas estão encarregados disso. De acordo. Mas, será que na realidade a dão? Quem
se atrevesse a afirmar isto receberia um desmentido por toda parte, a começar pelos próprios
interessados no assuntos. Um grito universal saído de todas as famílias populares seria a confissão de que sua ignorância é tão grande como a de seus filhos, o que lhes tornaria impossível
esse dever. Portanto:
1º É sabido que, se os pais devem a seus filhos a instrução e que, na falta deles, os padrinhos e as madrinhas devem suprir esse dever. Isto é incontestável.
2º Também está certo que a ignorância da doutrina é universal entre a gente do povo e
que há poucos pais ou padrinhos ou madrinhas entre os pobre que estejam pessoalmente instruídos e capazes de instruir devidamente.
3º Da mesma forma, está certo que os instruídos e capazes de ensinar não se preocupam disto e abandonam seus filhos como os abandonaram a si mesmos em seus anos de juventude, deixando-os afundados numa ignorância religiosa lamentável e presa de libertinagem
e de impiedade. Que exemplo recebem essas pobres crianças em casa? Somente exemplos
capazes de as perverter: blasfêmias, palavrões, calúnias, impiedades; isto é o que essa vítimas
infelizes e mal educadas vêem e ouvem em casa.
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Vida de João Batista de la Sal
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E assim terão de buscar em outra parte uma educação cristã e a ciência da salvação.
Ao não a encontrar em casa, é preciso que a procurem nas escolas de caridade. A necessidade
que essas crianças têm de pessoas que supram com elas as obrigações contraídas por seus pais
ao colocá-las no mundo, a necessidade que têm de pessoas que possam suprir os deveres de
seus padrinhos e madrinhas, fundamentam a importância a instituição dos Irmãos para os meninos e das Irmãs para as meninas. A Igreja proporciona aos primeiros os pais espirituais, e às
outras, as mães caridosas e gratuitas que supremos pais segundo a carne, como também os
padrinhos e as madrinhas.
SEGUNDA OBJEÇÃO:
O dever dos pastores é instruir seus fiéis. Os jovens de sua paróquia são confiados à
solicitude principal deles. Seu dever é procurar-lhes a instrução da doutrina cristã. portaanto é preciso contar com eles.
RESPOSTA:
É conhecido o fundamento que esta proposição encerra. Todos os pastores devem a
seus fiéis a instrução religiosa. Por isso é uma obrigação de estado. Mas, será que a cumprem?
Podem os mais zelosos entre eles cumpri-la? Podem cumpri-la tanto quanto for necessário? É
o que vamos examinar:
1º É claro que a Igreja de Deus vê hoje, em vários pastores, um zelo intenso em instruir a seus fiéis e uma preocupação edificante para dar-lhes ou fazer que se dê aos jovens a instrução religiosa. Mas, quantos descuida esse dever essencial! Quantos o abandonam completamente. Quantos que a ignorância ou a velhice ou os achaques incapacitam para a dar! Todos
estes, que seguramente são a maioria, podem ser substituídos? Sim; ouço dizer e costuma ser
ou por coadjutores ou por outros eclesiásticos. Mas, será que isto é o correto? Quantos párocos do interior não querem sacerdotes coadjutores? Quantas paróquias que não possuem os
maiôs para sustentar coadjutores? Quantos excelentes párocos que gostariam de tê-los e não
podem porque não são mais ricos que os fabriqueiros de suas igrejas e não podem suportar os
gastos de um segundo coadjutor! Não é, por acaso, necessária uma escola cristã nesses casos
tão comuns em toda parte?
2º Lá onde os pastores ou os coadjutores e outros eclesiásticos se encarregam do catecismo, têm eles bastante tempo ou estão eles dispostos a dedicar a ele tudo o que se precisa
para ensinar a doutrina cristã? Quando é que dão o catecismo nas paróquias melhoir organizadas? Quando muito nas festas e aos domingos do ano e em certos dias nos sermões da semana durante o advento e a quaresma. Para quem se dão essas lições de catecismo? Para as
crianças que se preparam para sua primeira comunhão e que, ordinariamente e quase em toda
a parte, não voltam mais depois. O que é que se lhes ensina? O pequeno catecismo. Como é
que o sabem? Alguns poucos, a maioria muito imperfeitamente e quase sem o compreender.
Sabem-no de caturritas adestradas. Por quanto tempo o retêm de memória? Muito pouco. muitas vezes, depois de um ano após a primeira comunhão esqueceram já a metade e por fim não
se recordam mais nada e, geralmente, nada mais durante o resto de sua vida.
Daí, em tantas pessoas de idade avançada e a ponto de comparecer diante de Deus, a
lamentável escusa da ignorância da doutrina cristã: conhecia bem meu catecismo quando criança e quando fiz a primeira comunhão; mas o esqueci. Como é que se permitem esquecer a
doutrina cristã! Como se não fosse mais necessário conhecê-lo na idade madura! Como se, em
qualquer idade, não fosse necessário saber os principais artigos da fé, os grandes mistérios da
religião, as verdades mais importantes da salvação, os preceitos da lei, o que se relaciona com
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Vida de João Batista de la Sal
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os novíssimos, a natureza do pecado e o que se precisa para o evitar, oi que se refere aos sacramentos que se deve receber e a maneira de se preparar a eles, o método de oração e de render a Deus os deveres essenciais da religião, da adoração, do amor, do agradecimento, de petição, de fé, de esperança e os demais que a criatura deve a seu Criador.
Os párocos, os coadjutores, os eclesiásticos encarregados da instrução dos fiéis, por
acaso têm bastante tempo? Estão eles dispostos a dedicar suficiente tampo a isso? Embora
queiram, podem eles dedicar bastante tempo para ensinar a fundo e de maneira que os ouvintes não se esqueçam nunca do que precisam recordar em qualquer idade?
Para o conseguir, seria preciso dar o catecismo durante longos anos e faltaria que os
ouvintes estivessem atentos e desejosos de aprender. Seria preciso separar os meninos e as
meninas e dar-lhes as lições em lugares diferentes; deveria-se acostumá-los a um grande silêncio e obrigá-los a assistir com assiduidade ao catecismo. Pois bem; isso se vê raramente
nas paróquias. Na verdade, há algumas na França em que se dá o catecismo com exatidão.
Mas quantas? São muito poucas. Por isso se precisa de um clero numeroso, zeloso, edificante
e com muita entrega a essa função tão importante. Na verdade, existem casos em algumas
paróquias célebres da capital do reino e am algumas outras cidades, mas fora desses lugares,
há poucos casos.
Uma vez feita a primeira comunhão, as crianças crêem-se dispensadas de aprender
mais. Os próprios pais são negligentes neste assunto.Quantos dentre eles nem sequer dão a
seus filhos o tempo necessário para se instruírem no mais necessário para a primeira comunhão e até quantos o abandonam sob pretexto de que precisam ganhar a vida! Esses pobres
cegos consideram o tempo perdido para o trabalho e não há maneira de os desiludir. Assim, o
zelo dos melhores pastores é frustrado e fica sem efeito.
Daí, entre os cristãos comuns, essa deplorável ignorância dos deveres da religião. A
maioria não sabe preparar-se aos sacramentos mais necessários e mais importantes.não sabem
nem o método de examinar sua consciência, nem o de declarar seus pecados, nem o de pedir
perdão a Deus. Sabem menos ainda a maneira de comungar devidamente. Ignorantes acerca
da santa Comunhão mais do que em qualquer outro assunto, não sabem conversar com Deus
que reside em seu peito, nem sequer lhes ocorre uma palavra. A maioria sai da igreja, depois
da comunhão, assim como dela se aproximaram. Aproximam-se sem preparação de Jesus
Cristo e se afastam dele sem fazer a ação de graças. Possuem dento de si o Salvador sem lhe
dar nenhum ou quase nenhum sinal de respeito e de ação de grzaças, como se estivessem em
praça pública. Digamos sinceramente: apresentam-se como irracionais em sua presença e lhe
trazem o corpo sem lhe trazer seus corações nem seus espíritos. Por que essa falta de atenção
e de respeito chocantes em tantos cristãos de ambos os sexos? É que nunca foram instruídos
sobre a maneira de se preparar para a santa comunhão, de fazer a ação de graças ao comungar,
de assistir às bênçãos do Santíssimo e de o visitar, de assistir co proveito a santa Missa. A
maioria até se sentem mal ou não sabem fazer atos de fé,. de esperança e de caridade.. Não
sabem como adorar e de agradecer a Deus, de lhe prestar homenagem pelos benefícios, de lhe
oferecer suas ações, de invocar o Espírito Santo e de lhe pedir suas graças: tudo isso forma
parte dos deveres essenciais para com Deus.
Bem claro está que as crianças que não vêm ao catecismo, no máximo aos domingos e
festas do ano e alguns dias da semana, no advento e na quaresma, esquecem de um dia a outro, o que aprendem, ou o aprendem só imperfeitamente, e o que aprenderam se esmaece paulatinamente porque, uma vez feita a primeira comunhão, desaparecem.
Conhecido também está que, inclusive os que sabem perfeitamente o que deles se exige para a primeira comunhão, têm ainda muitas coisas importantíssimas a aprender, mas não
as aprendem nunca porque não voltam ao catecismo.
Está certo, dirão alguns, mas podem as escolas cristãs e gratuitas suprimir completamente esses inconvenientes? Sim; o podem e o fazem: fazem-no em favor dos filhos de gente
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simples o que fazem para os filhos dos ricos e remediados dos colégios e mosteiros das religiosas. Os meninos encontram colégios bem organizados onde recebem a instrução cristã enquanto fazem os estudos das letras humanas. As meninas internas nos conventos encontram
ali as mesmas vantagens e, comi eles e elas costumam passar vários anos nesses lugares de
estudo, quando saem, conhecem de sua religião, ao menos, o que é necessário saber.
Com efeito, nas escolas cristãs se dá o catecismo ao menos todos os dias. Há escolas
nas quais se dá duas vezes ao dia, obrigando a todos os que vêm aprender a ler, a escrever e a
contar, a que assistam ao catecismo e respondam as perguntas. Assim, num ano, uma criança
pode, sob a direção de um Irmão ou de uma Irmã, aprender mais do que em outras em vários
anos. As razões são as seguintes:
1ª razão: Nas escolas cristãs as crianças estão reunidas segundo o grau de seus conhecimentos – ou de sua ignorância – o que significa que aqueles que não sabem nada estão com
as primeiras lições da doutrina cristã. Os que sabem um pouco mais, estão também juntos, o
que não acontece nos catecismos ordinários nas quais todas as crianças estão num só grupo.
Daí vem muita perda de tempo para uns e para outros, pouco silêncio e pouca atenção. Com
efeito, é quase impossível que as crianças que ainda estão nas primeiras lições do catecismo
assistam sem se distrair, sem brincar e conversar enquanto as mais adiantadas estão com as
lições mais adiantadas. Da mesma forma, enquanto estas ouvem as lições destinadas às mais
ignorantes, não deixam de se dissipar, se mover, e de fazer desordem. Isto não ocorre nas escolas cristãs, em que é fácil manter a ordem, o silêncio e a atenção, porque os alunos de quase
de mesma idade e grau de conhecimento – ou de ignorância – estão juntos e separados do outro grupo, e desta maneira, não ouvem mais do que o que lhes convém e respondem por turno
à mesma pergunta. Além disso, ouvem as mesmas perguntas e respondem tantas vezes quantos alunos houver numa classe, o que lhes inculca no espírito o que devem reter, dando-lhes
muita facilidade para aprender.
2ª razão: Nas escola cristãs, os alunos assistem ao catecismo uma ou duas vezes ao dia
e assim assistem a mais catecismos num ano do que em outros lugares, durante vários anos. A
diferença é considerável. Nas paróquias nas quais se ensina o catecismo com maiôs solicitude
não se faz o catecismo a não ser, quando muito, nas festas e domingos, durante o advento e a
quaresma e alguns dias da semana e nunca mais do que uma vez ao dia. Assim,num ano, o
número de aulas de catecismo apenas pode ser maior do que cem e, ordinariamente, até é em
número menor. Nas escolas cristãs, ao contrário, o catecismo se dá uma ou duas vezes ao dia
aos mesmos alunos. E assim, se ainda sobra tempo nas férias, dadas a todos, e o dia feriado de
cada semana, o número de lições de catecismo que os alunos recebem num ano sobre o doutrina cristã chega a quase trezentas, quando se dá aula de catecismo uma vez por dia, e supera
a quinhentas, se forem dadas duas vezes ao dia. O resultado então é que numa escola cristã se
dá mais lições de catecismo num ano do que em vários anos nas paróquias melhor organizadas. Daí se deduz que os alunos são, sem comparação, mais instruídos em sua religião numa
escola cristã do que em qualquer outro lugar.
3ª razão: São as seguintes as vantagens que favorecem a instrução que as crianças encontram nas escolas cristãs e que não existem em nenhum outro lugar: 1º Estão reunidos os
que estão no mesmo nível de conhecimento. 2º são pouco numerosos porque estão repartidos
em grupos conforme seus conhecimentos – ou conforme sua ignorância. 3º por serem poucos,
podem todos perguntar e responder por turno em cada lição de catecismo, o que os obriga a
escutar e reter. 4º Ao repetir as mesmas perguntas e respostas tantas vezes quantos alunos há
na classe, se imprimem mais nono espírito dos mais lentos. 5º O Irmão ou a Irmã que dão a
lição de catecismo não falam a não ser em caso de necessidade, isto é, poucas vezes porque
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um dos alunos está encarregado de corrigir os erros e se torna fácil assim manter o silêncio e a
atenção e, em conseqüência, se consegue aprender muito mais.
Pois bem, é conhecido que esta organização das escolas cristãs se torna impossível nas
paróquias em que as crianças não são alunos; em que, ao serem mais numerosas, não têm ocasião de se exercitar cada dia, e estando misturadas, as mais adiantadas com as atrasadas, atrasa-se a aprendizagem. Grande parte das perguntas e das respostas está acima ou abaixo do
alcance de uma parte dos ouvintes e daí resulta facilmente a dissipação. Ao não ouvir as lições
que precisa conhecer e sem poder exercitar-se nos artigos que deve aprender, cada criança
assiste muitas vezes ao catecismo que não lhe traz proveito algum.
4ª razão: Nas paróquias, costumam vir ao catecismo somente por ocasião da primeira
comunhão e a maioria não vem a não ser quando se aproxima a cerimônia; e depois, a maioria
não volta. Portanto, nunca estão bem instruídos.
Nas escolas cristãs, a situação tem outro aspecto: as crianças vêm para aprender a ler,
escrever e contar e em geral, não a abandonam a não ser quando sabem o que vieram estudar.
Pois bem, para aprender essas coisas são necessários vários anos; assim precisam escutar durante todo esse tempo as lições de doutrina cristã, saindo da escola bem instruídos na religião.
Verdade é que is pastores devem dar a instrução a seus fregueses .e fazer catequizar os
jovens, como um de seus deveres principais. Precisamente daí se colige que têm sumo interesse em contar na paróquia com escolas cristãs, mediante o que prestam um grande serviço a
seus paroquianos. Porque, no fim das contas, o pastor mais vigilante, mais zeloso, mais sábio
e mais robusto não pode fazer tudo. Os pobres, os enfermos, os moribundos, os pecadores,
como também as crianças foram-lhe confiados. Deve ocupar-se de todos, a caridade o aperta:
deve ajudar a uns, consolar outros, prepara alguns para o céu e procurar converter a outros.
cumpridos esses deveres, restam-lhe ainda outros que não são menos importantes. A assiduidade ao tribunal da penitência para dar conselhos e escutar as confissões requer boa parte do
tempo de uma pessoa. O tempo necessário para preparar bons sermões todos os domingos
ocupa parte das melhores horas da semana se alguém não quer correr o risco de dizer o que o
que lhe ocorrem naquele momento. As visitas, as consultas, as horas de um estudo necessário
para esclarecer pontos de teologia ou examinar casos de consciência tomam ainda parte do
tempo. Ao longo dos anos vêm os achaques, as enfermidades e pouco a pouco a velhice. outras tantas razões decisivas para um pastor para se associar a coadjutores para o catecismo
para as crianças, procurando-se a satisfação de ter mestres e mestras de escolas cristãs para
lhes confiar a instrução dos jovens.
TERCEIRA OBJEÇÃO:
Se o objeto principal das escoras gratuitas é ensinar a doutrina cristã, sua fundação
não é muito necessária, já que quase não há paróquias em que se descuidam totalmente os
catecismos e a instrução das crianças.
RESPOSTA:
Ao contrário dever-se-ia dizer: 1º que há muitíssimas paróquias em que se descuidam
completamente os catecismos e a instrução na doutrina cristã, com grande vergonha para a
religião e enorme prejuízo para os fiéis. 2º que aquelas em que se procura instruir os jovens,
não se ensina o catecismo tempo bastante, muitas vezes durante o ano para que as crianças
estejam suficientemente instruídas no que precisam saber para o resto da vida. Por exemplo,
nas paróquias em que não.se explica o catecismo apenas no advento e na quaresma, as crianças esquecem rapidamente parte do que conseguiram aprender durante esse tempo. 3º como
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ficou assinalado acima, já que as crianças não costuma vir ao catecismo das paróquias a não
ser para a primeira comunhão e depois não aparecem mais, não é possível que estejam suficientemente instruídas em sua religião. Finalmente, como dissemos acima, nas paróquias, em
que é quase impossível distribuir as crianças em classes de mesmo nível de conhecimentos –
ou de ignorância – é quase impossível conseguir ordem, silêncio, atenção e emulação;.o resultado é que se torna ainda mais difícil fazer exercício de todos e fazer falar a todos cada dia.
Isto demostra que, ainda que disponha de muito tempo, não podem aprender muito e progredir
na ciência de sua religião, inclusive nos catecismos melhor organizados da paróquias. somente nas escolas cristãs e gratuitas podem encontrar a facilidade de se instruir. Assim, esta objeção – como as demais – serve para colaborar a importância da fundação das comunidades
fundadas para formar mestres e mestras capazes de ensinar devidamente a doutrina cristã.
QUARTA OBJEÇÃO:
Se a fundação das escolas cristãs é tão necessária, Deus deixou de ajudar a sua Igreja
al demorar tanto em lhe um auxílio tão importante. Jesus Cristo abandonou por muito tempo
a seus filhos, já que as primeiras fundações das escolas não tem sequer um século de existência, ou apenas são anteriores.
RESPOSTA:
1º Pode-se fazer a mesma objeção a todas as demais boas obras, para as melhores e as
mais necessárias.
Se a instituição dos retiros, das missões, dos seminários, etc., era tão necessária para a
conversão das almas e a formação dos ministros da Igreja, Deus deixou de ajudar a sua Igreja
ao demorar tanto para lhe enviar esses socorros para a salvação. Se a celebração d Concílio de
Trento era tão necessária para deter o curso das heresias de Lutero, de Zwinglio e de Calvino,
Deus deixou de ajudar a sua Igreja ao não ter convocado e terminado antes.
Digamos o mesmo de todas as reformas que corrigiram os danos da disciplina monástica e de todas as diversas congregações de santos e de sábios que Deus vem suscitando há
dois séculos para a defesa e edificação de sua Igreja. Se essas instituições eram tão importantes, por que Deus demorou tanto para sua fundação?
A este raciocínio leviano não cabe outra resposta do que a do Apóstolo: “Ó excelsitude
dos desígnios de Deus! Seus juízos são incompreensíveis. Quem se atreverá a sondar sua profundidade? Quem é que pode entrar nos conselhos de Deus? “ Não há resposta a não ser a do
Sábio: “A glória de Deus oprime o presunçoso que quer examinar a conduta da majestade de
Deus. Deus não deve nada ao homem, somente sua bondade o levou a enchê-lo de graças.
Deixemos à sabedoria e à Providência o cuidado de dispensar as graças e socorros da salvação. Ele faz tudo com peso, número e medida. E tudo o que faz, ele o dispõe e ordena com
equidade, sabedoria e bondade.
2º Mas, será verdade que a fundação das escolas cristãs é tão recente? Se a considerarmos em suas circunstâncias, confesso, é de data recente. É o reverendo Padre Barre, é o
Padre La Salle, os que parecem ser seus primeiros fundadores. Ou se quisermos dar-lhes uma
origem mais antiga na França, encontraremos um esboço nas Instituições religiosas das Ursulinas e nas Instituições das Filhas de Nossa Senhora de Estonac, das Filhas do mesmo nome,
fundadas pelo padre Fourier, pároco de Mataincour, e, finalmente, as Filhas Pardas, que devem sua fundação ao padre Vicente e à senhora Lê Grãs. Mas , se examinarmos tudo em seu
fundamento, no que atinge seu objetivo e a seu fim prindipal, nada mais antigo: tudo é tão
antigo quanto a Igreja.
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Vida de João Batista de la Sal
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Com efeito, qual é seu objetivo? Qual é seu fim principal? É ensinar a doutrina cristã
dando uma educação santa aos jovens, sobretudo aos pobres e abandonados. Acaso não achou
a Igreja em seu Chefe, em seu Legislador e autor seu primeiro catequista? Seus doze fundadores, os Apóstolos não exerceram, por acaso, esta função? Esses pregadores da fé de Jesus
Cristo por toda a terra, não deixaram a seus sucessores o cuidado de sua condição?não era
necessário – observa o padre Freury – para ser sacerdote ou bispo, saber as ciências profanas,
isto é, a gramática, a retórica e os demais campos da filosofia; nem tampouco a geometria e e
as demais partes da matemática. Os cristãos chamavam tudo isso os estudos de fora, por os
pagãos o terem cultivado e porque eram estranhos à religião, Porque está certo que os Apóstolos e seus primeiros discípulos não se tinham dedicado a esse estudo. Santo Agostinho não
tinha em menor consideração um bispo da região vizinha daquela de que fala porque não sabia nem gramática nem dialética, e vemos que elevava-se ao episcopado bons pais de família,
negociantes, artesãos, que provavelmente não tinham feito tais estudos. O conhecimento das
línguas era ainda menos necessário; os próprios pagãos até somente as estudado para praticar
o comércio e os romanos, que queriam ser mais sábios, aprendiam o grego. Em toda parte se
faziam discursos públicos na língua do país. Assim, a maioria dos bispos e dos clérigos não
conheciam nenhum,a outra. Isto é, o latim em todo o ocidente, o grego na maior parte do oriente, o siríaco na alta Síria. De sorte que nos concílios em que se reuniam bispos de diferentes
nações, falava-se por intérpretes. Às vezes encontram-se diáconos que não sabem ler; a isso se
chama então não ter letras. O que é que se pedia, pois, a um sacerdote, a um bispo? pedia-se
ter lido e relido a Sagrada Escritura até sabê-la de cor, se possível; ter lido a Bíblia e meditado
para encontrar nela as provas de todos os artigos de fé, as grandes regras dos costumes e a
disciplina, ter aprendido, quer de viva voz, quer pela leitura, a maneira em que os antigos a
tinham explicado. Tinham de conhecer os cânones isto é, as regras de disciplina, escritas ou
não escritas, tê-las visto praticar e ter observado esmeradamente o uso delas. Contentavam-se
com esses conhecimentos, contanto que se juntasse uma grande prudência para o governo e
uma grande piedade. Não que não tenham existido sempre bispos e sacerdotes muito instruídos nas ciências profanas, mas, em geral, eram os que tinham praticado antes de sua conversão, como são Basílio e santo Agostinho. Sabiam muito bem utilizá-las depois, para a defesa
da verdade e responder aos que a criticavam, como santo Agostinho ao gramático Crescêncio.
Assim vemos que, se havia entre os primeiros sucessores dos Apóstolos grandes filósofos e grades oradores, mais numerosos eram os que não eram nem um nem outro, eram apeas excelentes catequistas, isto é, idôneos unicamente para ensinar a doutrina cristã. Conheciam-na a fundo e a praticavam, era o que bastava para dar lições aos outros acerca da maneira
mais útil e frutuosa, do que é a maneira simples e familiar, a que um pai prudente e atente a
educar como se deve a sua família, não se preocupam pela subtileza ou por reflexões agudas
nem por fazer estudos trabalhosos para instruir os outros. Considerariam esse trabalho como
inútil e supérfluo, que não conviria nem a sua qualidade de pai, nem à de seus filhos e que
seria para eles de pouco proveito ale de ser muito custoso.
Certo de encontrar em sua autoridade o direito de fazer escutar a seus filhos o que tem
a lhes dizer e de encontrar no carinho deles o segredo de persuadir e de se fazer aceito, não
pede nem a arte nem a seu trabalho o que pretende ensinar-lhes, e sim que deixa falar seu coração. Deixa que fale nele a razão e colabore em seus filhos a natureza.isto lhe basta para instruir devidamente e todo o resto é de sobra.
Os bispos se consideram como pais, instruem a seus fiéis como a seus filhos. Não vejo, observa o mesmo historiador, nesses primeiros séculos outras escolas públicas… a não ser
as igrejasem que os bispos explicam assiduamente a sagrada Escritura e, em algumas grandes
cidades, uma escola fundada especialmente para os catecúmenos, em que um sacerdote lhes
explica a religião que queriam abraçar, como em Alexandria, são Clemente e Orígenes.
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Com efeito, não se pensa que os Potamon, os Pafúncio, os Espiridion, os Tiago de Nisible, os anfião, os Hispácios, os Nicolau e outros mais que assistiram ao Concílio Edumênico
fosse tão ilustres por sua ciência como por sua santidade. Esses santos, dos quais alguns haviam confessado a Jesus Cristo diante dos tiranos me detrimento de um olho arrancado ou de
algum membro mutilado, outros tinham feito grandes milagres, sabiam, mediante o brilho de
suas virtudes e a ação de sua palavra e não por sua eloqüência, persuadir para a fé de Jesus
Cristo e para a doutrina cristã. Aquele venerável ancião, confessor de Jesus Cristo, que, conforme referem três historiadores, converteu no Concílio de Nicéia a um famoso filósofo, que
com sua dialética desbaratava os argumentos dos prelados mais sábios da assemblpéia, sabia
ainda menos. Todos os padres ficaram surpresos e atemorizados quando viram a esse santo
bispo que não sabia outra coisa fora de Jesus Cristo crucificado, pedir-lhes autorização de
entrar em luta com o sofista. Deram-lhe essa autorização, mas tremendo de medo de não repelir a um homem que tinha confessado a Jesus Cristo diante dos tiranos. Mas, saíram rapidamente de apuros porque a discussão com o filósofo foi breve e sua vitória rápida. Escuta a
verdade, filósofo, em nome de Jesus Cristo! – disse ele. Terminado esse breve preâmbulo,
declarou-lhe em poucas palavras o resume da doutrina cristã encerrado no Símbolo. Se crês
essas verdades – lhe disse – segue-me e vem receber o batismo de minha mão.
O filósofo conquistado para Jesus Cristo voltou-se para os padres conciliares e lhes
disse: “Quando quiseram raciocinar comigo, eu opus raciocínio ao raciocínio, mas agora
que o espírito de Deus acaba de falar pela boca deste venerável ancião, não pude resistir e
me rendo”. Assim é a força da doutrina cristã na boca puras e santas. Nunca tem tanta eficácia do que quando ela se apresenta em sua primitiva simplicidade. A experiência o demostra:
A Igreja da França nunca teve oradores cristãos tão célebres do que no século passado. contudo, nunca vi menos fruto dos sermões do que quando foram tão eloqüentes e feitos por homens aos quais, parece, o úico que lhes faltava para mover os corações, era a simplicidade
evangélica. Nos catecismos e nas instruções familiares é que a doutrina quer falar sua primitiva simplicidade e por conseguinte sua antiga eficácia e fecundidade. É isto que mostra sua
necessidade e faz desejar mais do que nunca seu uso. É um emprego que pertence, em primeiro lugar, aos ministros do Evangelho. Com certeza é uma função que deveriam ter em muita
estima o exercer e seu zelo deveria incitá-los a desempenhá-la com alegria e entusiasmo. Mas,
como são tão poucos os que se dedicam a isto, fazendo desse ofício sua ocupação assídua e
ordinária, é preciso que, na falta deles, outros operários se encarreguem desse ministério. E
nunca agradeceremos bastante a Deus por ter dado à Igreja neste tempo, comunidades inteiras
de pessoas de ambos os sexos que se deducan Pa instrução e educação cristã dos pobres.
3º A instrução das escolas cristãs é de todas as épocas e sempre foi o objeto do zelo de
grande número e santos em todos os séculos. São Carlos Borromeu as estendeu por toda a
diocese de Milão com resultado que recompensou seus esforços. O apóstolo da Índia se comprazia em catequizar as crianças. César de Bus fundou uma ordem com o nome de Padres da
Doutrina Cristã para fazer essa função como dissemos acima. O mártir são Cassiano exercia a
profissão de mestre de escola para ter ocasião de dar aos filhos dos fiéis e dos pagãos a instrução e educação cristã.. este segredo de conquistar à fé os idólatras estava em uso entre os cristãos. Encarregavam-se com gosto para ensinar a ler e escrever ou ensinar as letras ou as ciências superiores para ter a liberdade de dar a conhecer Jesus Cristo e sua doutrina. Mediante
esse piedoso trabalho é que Orígenes conquistou para o Evangelho tantas pessoas célebres que
honraram a Igreja. Já vimos que a instrução das escolas cristãs teve grande interesse para os
bispos da França e que, nestes últimos anos, nossos reis muito a favoreceram.
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QUINTA OBJEÇÃO:
Por acaso não houve em todos os tempos ministros santos e zelosos que tomara a peito esta função importante?
RESPOSTA:
Sempre os houve e os haverá sempre, mas não são numerosos e, por maior que seja
seus zelo, não pode repetir-se nem multiplicar-se bastante para catequizar a todos os ignorantes e dar às crianças a educação cristã que elas não encontram em casa. Por isso é tão necessária a fundação dos seminários para formar mestres e mestras de escolas, capazes de ensinar
como se deve aos jovens, dando-lhes uma educação santa.
SEXTA OBJEÇÃO:
Desde sua origem, faltou alguma vez na Igreja um número suficiente de pessoas idôneas para ensinar a doutrina cristã?
RESPOSTA:
nunca faltou gente capaz de exercer devidamente este ofício, mas faltou gente que quisesse fazê-lo com zelo e desinteresse. Se existem muitos do primeiro grupo, há muito poucos
do segundo. Se houvesse um número suficiente, os mestre e as mestras das escolas cristãs
poderiam sobrar. Na falta dos primeiros é preciso recorrer aos outros.
SÉTIMA OBJEÇÃO:
Na falta de ministros da Igreja, faltaram alguma vez à Igreja mestres e mestras de escola idôneos, para ensinar os jovens ignorantes de ambos os sexos?
RESPOSTA:
Certamente, para desgraça das almas que sofreram dessa carência; e que continua ainda a existir. Por acaso não é a censura que fizeram tantas vezes os protestantes? Não procuraram acaso na lamentável ignorância da doutrina cristã, sobretudo da gente humilde das cidades e entre os pagãos do campo, um fundo inesgotável de invectivas contra a Igreja romana e
seus ministros? Não é, por acaso, nessa ignorância criminosa que encontraram tão grandes
vantagens para seus erros e uma facilidade tão grande para os semear? Com que habilidade
souberam aproveitar o descuido dos pastores em procurar escolas católicas para fundar as suas
e semear em idade propicia para se deixar enganar, recebendo cegamente as primeira impressões que se lhes dão, seus dogmas perniciosos e suas máximas ímpias!
Com certeza, nunca faltaram mestres e mestras de escol: em todas as épocas, algumas
pessoas de ambos os sexos fizeram disso seu ofício tão lucrativo. Assim, 1º não é a caridade,
mas o interesse que abre as escolas. Os e as que ensinam nessas escolas, vendem seus serviços
e não têm vontade alguma de os prestar gratuitamente. Eles e seus familiares têm necessidade
dessas lições que dão a não ser que tomem o caminho da caridade pública. Desta maneira, não
lhes interessa ter os filhos dos pobres. Para estes, fecham as portas. 2º Na maioria dessas escolas em que somente com dinheiro se conseguem lições, que exemplos se vêem? Que educação
se recebe? Existe ordem? Que companhias se encontram? Que conversas se podem ouvir?
Quando se enviam para lá crianças que ainda estão em estado de inocência e de simplicidade,
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Vida de João Batista de la Sal
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podem elas guardá-la por muito tempo? 3º Os e as que dirigem essas escolas têm sempre o
jeito necessário para instruir devidamente e educar a esses jovens? Cuidam eles de formá-los
nos bons costumes e ensinar-lhes como se deve a doutrina cristã? 4º Por sábios sejam esses
mestres e essas mestras na arte de ensinar a ler e escrever, conhecem eles bem a arte de os
instruir na religião? Estão eles mesmos bastante instruídos? Há algum risco de incorrer em
mentira ao afirmar que a maioria deles são verdadeiros ignorantes no que se refere a esse
campo e que quase nenhum sabe bastante para si mesmo? Muito atrapalhados ficariam se fossem obrigados a responder a muitas perguntas relativas a pontos de doutrina cristã, assim como muitas crianças que freqüentam as escolas gratuitas. Neste ponto de vista, que diferença
entre eles e os e as que estão nessas comunidades, formados durante muito tempo e com assiduidade para que possam exercer dignamente seu emprego!
OITAVA OBJEÇÃO:
Os que sabem ler podem instruir-se na doutrina cristã por si mesmos e assim não precisam de ajuda alheia.
RESPOSTA:
1º Se esta objeção é razoável, todos os catecismos e instruções que se dão nas paróquias estão sobrando. Pode-se prescindir deles também as escolas cristãs, se basta a leitura
para se instruir. 2º Têm os que sabem ler livros à vontade? Têm eles todos os meios para os
comprar? Saberão comprar os mais necessários e úteis? As novelas, os livros de comédias, de
amor e outros, tão perniciosos, não são acaso mais de seu agrado do que os catecismos? Entre
os jovens, quais são os que encontra satisfação na leitura ou a fazem por dever em vez de em
vez de encontrar enfado e até tormento? 3º Entre as pessoas do povo, quais são os que sabem
ler, quando não o aprenderam nas escolas gratuitas? Lá onde não existe uma escola gratuita
não se encontram, no campo ou na cidade, pessoas que saibam ler, já que ninguém pode aprender de graça, pois os pobres não têm meios de pagar mestres ou mestras mercenários.
Por fim, esta mesma objeção se torna um argumento contundente em favor da necessidade das escolas gratuitas porque, ao mostrar a vantagem que existe para se instruir na religião, em saber ler, mostra que lá onde há escolas gratuitas, quase todos os filhos dos pobres
sabem ler, e lá onde não existem, quase ninguém o sabe, por falta de pessoas que queiram
instruí-los unicamente por amor a Deus.
Será que não tenho razão de dizer que todas essas objeções dão testemunho excelente
da necessidade de escolas, de mestres e mestras capazes de ensinar e educar cristãmente e de
graça os jovens obres e abandonados?
NONA OBJEÇÃO:
Esses novos institutos de mestres e mestras de escola aumentam o número de comunidades, e essa multiplicação tem grandes inconvenientes.
RESPOSTA:
Esta idéia parece estranha. Contudo, é muito comum e se encontra até em pessoas bem
intencionadas e de mentalidade religiosa que se inquietam por isso. É preciso confessar, inclusive, que dão razões sutis de sua opinião. Depois de tudo, a prevenção contra os novos institutos não é coisa de ontem; e até os que parecem mais santos e mais necessários à religião cristã
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sofreram muito por isso. Este preconceito foi uma barreira que paralizou seu progresso e passaram , por vezes, séculos antes de superar os obstáculos.
As ordens de são Francisco e de são Domingos, e de todas as demais que se chamam
“mendicantes”, como também todas as que vieram ao longo dos séculos tiveram de superar
essa dificuldade. Se Deus, em sua misericórdia, prepara mais algumas a sua Igreja, terão de
combater esse preconceito e é de temer que exija mais força ao envelhecer.
Não se deve estranhar quando se vêem no mundo pessoas prudentes e de boa índole
que se armam contra todas as nova instituições, já que o zelo do bem da Igreja promoveu esses sentimentos nos próprios concílios. No de Latrão, em 1215, proibiu inventar novas religiões, isto é, novas Ordens ou Congregações, para que não – disse o Concílio – sua demasiada
diversidade cause confusão na Igreja. Quem desejar entrar numa Ordem, escolherá ua das que
foram aprovadas.
Esta proibição era muito prudente e conforme ao espírito da mais autêntica antiguidade, diz um autor daquele tempo. São Basílio, em suas Regras, se pergunta se
convém ter no mesmo lugar duas comunidades religiosas. Responde que não… Não se
tratava de duas Ordens diferentes e sim de duas casas do mesmo instituto. São Basílio
dá duas razões de sua resposta negativa. A primeira: é difícil encontrar um bom superior e mais ainda encontrar dois. A segunda: a multiplicação dos mosteiros é uma emulação para elogiar os que melhor observam a Regra. Logo, a emulação se tornará inveja,
desprezo, aversão; vai-s procurar desprestigiar e prejudicar a outra comunidade. Tão
grande é a corrupção da natureza. Os próprios pagãos estabeleceram como fundamente
da política, que a república fosse uma quanto fosse possível e que se evitasse entre os
cidadãos toda semente de divisão. Quanto mais se deve evitá-la na Igreja de Jesus Cristo, baseada na união dos corações e a caridade perfeita! É o verdadeiro corpo do qual
Ele é chefe, e os membros devem entender-se e adaptar os gênios uns com os outros.
Pois bem; as diversas ordens religiosas são outros tantos corpos e como outras
antas igrejas na Igreja universal. É moralmente im,possível que uma ordem aprecie outro instituto tanto quanto o seu e que o amor próprio não incite a cada reigioso a preferir o instituto que escolheu a desejar para sua comunidade mais riquezas e reputação do
que a qualquer outro, ressarcindo-se assim do que sofre a natureza ao não possuir nada
como bem próprio.
Deixo a cada religioso que se examine sinceramente acerca disso. Se apenas fosse uma mera emulação de virtude, acaso se veriam pleitos sobre a preferência e as honras e discussões são acérrimas para saber de que ordem era tal ou qual santo ou o autor
de um livro de piedade?
O segundo concílio de Latrão tinha proibido, pois, com prudência que se fundassem novas ordens religiosas, mas seu decreto fora tão mal observado que se fundaram muitas outras, mais do que em outros séculos anteriores. Houve queixas no concíio
de Lião, celebrado sessenta anos depois. Nele se reiterou a proibição e se suprimiram
algumas novas ordens, mas a multiplicação não deixou de continuar e de aumentar
sempre desde então.
Se os fundadores de novas ordens não foram a maioria santos canonizados se
poderia suspeitar de que se deixaram seduzir pelo amor próprio, querendo brilhar mais
do que os outros. mas, sem prejuízo de sua santidade, pode-se desconfiar de suas luzes e
temer que não tenham sabido tudo o que era importante saberem. São Francisco cria
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Vida de João Batista de la Sal
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que sua regra era meramente o Evangelho, retendo particularmente estas palavras:Não
deveis possuir nem ouro nem prata nem bolsa de viagem, nem calçado, e o resto…E
como o Papa Inocêncio III se opunha a aproar esse instituto tão novo, o cardeal de são
Paulo, bispo de Sabina, lhe disse: “se recusar o pedido deste pobre homem, tenha cuidado de recusar o Evangelho”. Mas nem este bom cardeal, nem o próprio santo, tinham
considerado bastante a continuação do texto. Jesus Cristo, ao enviar seus apóstolos para
pregar, tinha lhes dito, primeiro: curai os enfermos, ressuscitai os mortos, purificai os
leprosos, expulsai os demônios. Daí de graça o que recebestes de graça. Depois acrescentou: não levem ouro nem prata, e o resto… Está claro que quer somente que fiquem
longe da avareza e do desejo de aproveitar o dom dos milagres que Judas não tinha observado. E o que não teriam dado pela ressurreição de um morto? O Salvador acrescentou: o operário ´´e digno de seu sustento. Como se tivesse dito: não tenham medo
de que lhes falte alguma coisa ou que os curados e ressuscitados os deixarão morrer de
fome. Este é o sentido desta passagem do Evangelho.
Mas daí resulta que o povo devia alimentar essas pessoas que, sem fazer milagres
nem dar sinais de missão extraordinária, iriam pelo mundo a pregar a penitência; mas,
quando a gente podia dizer: “temos bastante para manter nossos pastores ordinários aos
quais pagamos o dízimo e outros encargos”.
Parece teria sido mais útil à Igreja que os bispos e os papas se tivessem preocupado pela reforma do clero secular restabelecendo o plano dos quatro primeiros séculos, sem pedir a ajuda de tropas estrangeiras.
Desta forma teria havido duas espécies de pessoas consagradas a Deus: os clérigos destinados à instrução e direção dos fiéis, perfeitamente sujeitos aos bispos, e os
monges completamente separados do mundo e dedicados unicamente à oração e ao
trabalho em silêncio.
Este é, na minha opinião, o resumo dos argumentos desse autor contra os novos
institutos: 1º o Concíio de Latrão e depois o de Lião os proibiram. 2º sua demasiada diversidade causa confusão na Igreja. 3º é difícil encontrar tantos bons superiores para os
dirigir. 4º sua multiplicação é causa de divisão, de inveja, de aversão, de murmurações.
5º a Igreja, e mais ainda a República, deve ser uma quanto possível. 6º poder-se-ia suspeitar de que os fundadores cedem a sentimentos de vaidade, de amor próprio, de orgulho, se a maioria não fosse de santos canonizados. 7º sem prejuízo de sua santidade,
alguém pode desconfiar de suas luzes e temer que não tenham sabido o que era importante saber.8º são Francisco pensava que sua Regra era meramente o Evangelho, refletindo nas palavras: Não levem nem ouro etc… Mas nem o santo, nem o cardeal de São
Paulo, bispo de Sabina, tinham pensado bastante sobre o que vem depois no texto, etc.
9º Será que o povo devia alimentar a essas pessoas que, sem fazer milagres, nem dar sinais de missão extraordinária, iriam pelo mundo a pregar a penitência? 10º não poderia
dizer a gente: temos bastante com sustentar nossos pastores ordinários aos quais pagamos o dízimo e outros tributos? 11º acaso não teria sido mais útil reformar o clero secular sem chamar o auxílio de tropas estrangeiras à Igreja? 12º não ficaria, talvez, melhor
se houvesse apenas duas espécies de pessoas consagradas a Deus: o clero e os monges
separados do mundo?
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RESPOSTA GERAL:
Se o autor do oitavo discurso preliminar sobre a História Eclesiástica tivesse lido sobre esse tema o que diz Granada no capítulo XXI do segundo livro do Guia de Pecadores,
ou se o tivesse lido, não o teria esquecido, teria podido suprimir em seu discurso a sátira
partidária contra as ordens mendicantes e contra os santos que as fundaram. As reflexões de
Granada sobre as diferentes maneiras de viver que existem na Igreja são tão inteligentes e
tão cristãs , de modo que não posso deixar de citar parte delas:
Essa variedade – diz ele – procede em pare da natureza e em parte da graça. Procede da natureza porque, embora o princípio de todo ser espiritual é a graça, não obstante, certo é que a graça – como ocorre na água – ao ser recebido no copo de formatos diferentes, toma formas diferentes adaptando—se à natureza e à condição de cada um,
pois é certo que há homens naturalmente mansos e moderados que, deste jeito, estão
muito mais dispostos para a vida contemplativa e outros mais inquietos e ativos que se
são próprios para a vida ativa; outros, mais robustos e santos, menos fortes de saúde, que
são mais capazes de praticar a penitência. Nisto se manifesta maravilhosamente a bondade de Deus. quis ele tanto comunicar-se a todos que não quis que somente houvesse
u,m caminho para ir até Ele.ele pés ou em vários, e todos diferentes segundo as diversas
condições dos homens, para que o que não é idôneo para um, o seja para o outro.
A segunda causa desta diversidade é a grala, porque o Espírito Santo que é seu
autor, quer que essa variedade exista entre os seus para conseguir maior perfeição e maior beleza da Igreja. Porque, como para a perfeição e a beleza do corpo humano são necessários membros e diversos sentidos, assim para a perfeição e a beleza da Igreja é necessário que haja diversidade de virtudes e graças, porque, se todos os fiéis se parecessem, como é que se poderia chamar isso de corpo? Se todo o corpo – diz são Paulo – so-
mente fosse olho, onde estaria o ouvido? Se somente houvesse ouvido, onde ficaria o olfato? Por isso, Deus quis que houvesse vários membros e um só corpo, com objetivo de
que, estando a multidão irmanada com a unidade, houvesse uma proporção de várias
coisas numa só, para conseguir a perfeição e a beleza da Igreja. Assim vemos que na música é preciso haver a mesma diversidade e essa multidão de vozes que formam a unidade da harmonia, resultando assim a delicadeza da melodia. Se todas as vozes fossem iguais, todas altas ou todas graves. Como se poderia formar a agradável harmonia que ouvimos?
Acaso não é uma maravilha a variedade que o soberano artífice colocou nas obras
da natureza? Com que jeito não repartiu Ele as propriedades e perfeições a suas criaturas! Embora cada uma tenha alguma vantagem sobre a outra, contudo não há inveja de
uma sobre a outra, porque, se uma delas perde num ponto, recupera a vantagem em outro. O pavão real é bonito de se ver, mas desagradável de se ouvir. O rouxinol é muito
agradável de se ouvir, mas não é bonito de se ver. O cavalo é excelente para a carreira ou
para a guerra, mas não para a mesa. O boi é bom para a mesa e o arado, mas não pode
servir para outra cois. As árvores silvestres servem para a construção, mas não dão frutas. Assim, juntando todas as coisas, se vêem todas coisas separadas e repartidas mas
nunca reunidas numa só com isto se conservam a variedade e a beleza no universo;
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mantém-se as espécies e se relacionam naturalmente pela necessidade que têm um da
outra.
Pois bem, Deus quis que nas obras da graça houvesse a mesma ordem e a mesma
beleza. Por isso, mandou e dispôs que houvesse mil espécies diversas de virtudes na Igreja, para que de todas elas surgisse um agradável acordo, um modo muito perfeito e
um corp muito formoso, composto de vários membros. Daí é que vemos na Igreja alguns
que se dedicam à vida contemplativa, outros à vida ativa, outros às obras de obediência,
outros à penitência, outros à oração, outros ao canto, outros ao estudo me proveito do
demais, outros a servir aos enfermos e visitar os hospitais, outros a socorrer os pobres e
outros a diversas experiências de exercícios e ações virtuosas.
Vê-se também a mesma diversidade nas ordens religiosas embora, em geral, seguem os caminhos de Deus, contudo cada uma segue o seu. Umas tomam o da pobreza,
outros o da penitência, outros se dedicam à vida contemplativa, outros à vida ativa, alguns têm por objetivo o público, outros buscam o segredo e a solidão, outros podem ter
rendas por meio da instituição, outros querem a pobreza, outros se retiram aos desertos,
outros buscam as cidades e tudo isso por caridade. Essa variedade não existe somente nas
ordens e mosteiros, em geral, mas ta,bem entre os particulares das mesmas ordens, porque alguns se ocupam de cantar no coro, outros em trabalhar em seus ofícios, uns em estudar em sua cela, em ouvir confissões nas igrejas, outros em negociar fora de casa. Que
é isso se não como vários membros de um mesmo corpo e várias vozes de uma polifonia
de tal maneira que haja uma proporção e um concerto na Igreja? Por que não se colocam
várias cordas num alaúde ou vários tubos num órgão a não ser para formar uma harmonia agradável mediante essa diversidade se som. Assim era o vestido de várias cores que
Jacó fez para José, e assim foram as cortinas do tabernáculo que Deus ,mandou pintar
com uma infinita variedade cores.
Já que existe essa ordem e que assim tem que ser para conseguir a beleza da Igreja, por que nos esfolamos com examinar nosso comportamento quando julgamos o próximo porque não se parece conosco ou porque não tem as mesmas condições do que nós.
Que seria, se os olhos desprezassem os pés porque não enxergam; se os pés murmurassem dos olhos porque não andam? Os pés deverão trabalhar enquanto os olhos permanecem quietos; os pés se apóiam sobre o chão e os olhos estão no alto, ivres da poeira.
Contudo, embora quietos, os olhos não são menos do que o pé que trabalha, como num
navio, o piloto sentado ao timão, com a bússola, diante dos olhos, não faz menos do que
os que sobem ao topo do mastro ou andam pelo convés ou estendem as velas ou esvaziam os tanques. Pelo contrário: o que parece trabalhar menos desempenha o papel mais
importante, pois não se mede a excelência das coisas pelo trabalho aparente e sim por
seu valor.
Que examinar tudo isto atentamente deixará cada qual no estado a que foi chamado. Deixará o pé e a mão o que lhes corresponde sem pretender que ambos sejam pé e
mão. É isto o que o Apóstolo quis dizer na Carta acima citada. E nos aconselha o mesmo
quando diz : o que não come não despreze a quem come porque quem come tem talvez
necessidade de comer e, por outro lado, tem alguma virtude que nos falta e é mais importante do que as que temos. E assim, por um lado, não é culpado e por outro nos leva
vantagem em algum ponto. Porque, com na música, os pontos e as notas do pentagrama
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não são menos úteis do que o escrito nos espaços, assim nos acordes espirituais da Igreja,
quem come não é menos útil do que o que não come, nem o que parece sumido no ócio
do que o que está ocupado, se estando quieto, procura adquirir o que é necessário para
dar edificação ao próximo.
Com razão, são Bernardo nos recomendou viver com esta circunspeção quando
nos adverte de que, exceto os que têm cargo de julgar e de presidir na Igreja, ninguém
tem que se imiscuir em examinar nem, em julgar a vida dos outros e menos ainda comparar a sua com a dos outros, ou seja que não ocorra o que aconteceu no passado a um
monge que, estava desgostado porque igualavam sua pobreza com as riquezas de são Gegório, ouviu uma voz que lhe dizia que era mais rico com um gato de que gostava muito
do que o outro com todos os seus bens.
Nada falta a acrescentar a essas reflexões tão inteligentes: elas desmascaram as da objeção e tornam patente o desvario. O sistema deste discurso semelhante ao da República de
Platão, é uma formosa quimera que é preciso deixar aos especuladores, aos sonhadores satisfeitos. Sabemos que a Igreja é governada pelo Espírito Santo. Basta isso para que aprovemos
seu modo de agir. Não cabe aos particulares prescrever-lhe sistemas de bom governo. Os inovadores sempre vêm com o mesmo e procuram na conduta da Igreja antiga, pretextos especiosos para criticar a nova ou para oferecer um plano de reforma. Ninguém tem autoridade para
controlar a maneira de agir dos maiores santos da Igreja. Pode-se recear tudo e nada de bom
se pode esperar de uma censura astutamente partidária das ordens mendicantes o dos novos
institutos. O desejo expresso de não ver na Igreja a não ser duas espécies de pessoas consagradas a Deus: os clérigos dedicados à instrução e direção dos fiéis, e os monges separados do
mundo, é um desejo que se costuma atribuir ao senhor abade de Saint Cyran. Não dependerá
de seus discípulos que se realize tal desejo.
RAZÃO I: Respostas particulares às reflexõoes críticas do padre Fleuri
Refutação da primeira razão.
Admite-se que o segundo Concílio de Lattrão e depois o de Lião proibiram fundar novas ordens, mas também é aceito que essa proibição não foi cumprida. Duas razões essenciais
levaa a Igreja a aprovar as ordens Mendicantes. A primeira: a santidade extraordinária de seus
fundadores e de seus primeiros discípulos, sustentada pelos milagres mais assombrosos. A
segunda: o progresso de várias espécies de hereges que faziam alarde de vida pobre e evangélica, para os quais se deveriam opor homens verdadeiramente apostólicos.
Já se sabe: são Francisco e são Domingos foram homens extraordinários em santidade,
enviados do céu para prestar socorro à Igreja. Sua missão foi autorizada pelos Sumos Pontífices e por toda sorte de prodígios.
Depois dos Apóstolos, pode-se encontrar alguém mais conforme a Jesus Cristo do que
são Francisco e são Domingos? Quem praticou melhor as mais heróicas virtudes? Quem recebeu de Deus mais favores variados, favores singulares e patentes? Quem foi mais poderoso
em obras e palavras? Diante da corte romana, são Domingos ressuscitavam os mortos e são
Francisco marcava quase todos os passos com novos e surpreendentes milagres. Seus discípulos, semelhantes a eles, não honravam menos a Igreja. Quantos serviços recebeu deles! quantos pecadores devem a esses grandes santos e a seus filhos sua conversão! Onde quer que se
apresentavam, o cristianismo parecia tomar outro aspecto. A reforma dos costumes, o espírito
de penitência, o fervor dos cristãos pareciam voltar com esses pobres evanglizadores lá onde
eles atuavam. Poderia, por acaso, a Igreja repelir homens que manifestavam um caráter tão
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manifesto do Espírito de Deus? podia recusar sua aprovação a Institutos que não mostravam
mais do que santos em seus inícios? O bispo de Sabina, ao falar de são Francisco, não tinha
acaso razão ao dizer a Inocêncio III: Tenha cuidado de recusar o pedido deste pobre homem,
pois então recusará o Evangelho. Isto quer dizer que o Evangelho aprovava um homem tão
evangélico, um homem que o praticava à letra. Por conseguinte não se lhe podia recusar sem
recusar ao mesmo tempo, de certa maneira, o Evangelho.
Além disso, é claro que alguns hipócritas hábeis para impor respeito diante de um exterior muito pobre e muito “reformado” enganavam a gente e autorizavam seus erros, simulando uma vida muito pobre e muito mortificada. Ao ouvi-los, faziam reviver em suas pessoas
a vida apostólica. Gloriavam-se de serem apostólicos e de seguirem à letra a vida e a doutrina
de Jesus Cristo. Então Deus que assiste sempre a Igreja lhe envia são Francisco e são Domingos para confundir esses hipócritas por sua vida realmente apostólicos e lhes deu a idéia de
fundar ordens de verdadeiros pobres evangélicos, para os opor a esses falsos e combater seus
erros. Em pouco tempo se viu quem é que tinham a missão do céu. Os fasos evangélicos não
fziam milagres, não se submetiam aos pastores, com seus erros semeavam a rebelião, não eram nada do que pareciam ser. São Francisco e são Domingos à frente dos verdadeiros evangélicos fundamentavam sua missão mediante milagres públicos incontestes, eram homens
perfeitamente humildes e submissos, e sua doutrina era tão pura como sua vida. Será que se
deveria recusar a esses enviados do céu? Não traziam eles cartas credenciais da parte de Deus
em sua perfeita submissão aos pastores da Igreja, em sua santidade de vida extraordinária, nos
numerosos milagres que operavam?
Belarmino (L. 2 Dos monges, c. 4) dá uma outra razão da citada proibição. Segundo
ele, santo Antão, são Basílio, santo Agostinho, são Bento e os outros fundadores de ordens
não parecem ter feito aprovar sua ordem pelo Sumo Pontífice, porque isso não era necessário
na época e porque a Igreja não o exigia. Mas o exigiu com razão dos pobres de Lião pelo ano
de 1170. O motivo é o seguinte: esses falsos evangélicos, ao querer constituir-se como ordem
religiosa, tinham misturado não poucos erros e superstições com sua doutrina. Por isso foram
condenados, e sua seita foi reprovada por Lúcio III e Alexandre III. Eles, contudo, sem se
cansar, fizeram todo o possível para se reconciliar com a Igreja e fazer aprovar sua ordem por
Inocêncio III como escreve o abade Wiperg na crônica do ano de 1212. Por esse motivo, o
papa Inocêncio III, para preservar a Igreja de tais ordens, proibiu no Concílio Geral de Latrão
que se fundassem outras novas. Gregório X renovou a proibição no Concílio de Lião, que não
impediu a aprovação das ordens de são Francisco e de são Domingos pelo mesmo Inocêncio
III, porque reconheceu nesses Institutos, o Espírito de Deus, a santidade de vida, a pureza da
doutrina,, a submissão à Igreja e porque os julgou muito próprios para confundir os falsos
evangélicos.
RAZÃO II: A demasiada diversidade de Institutos origina a confusão na Igreja
Resposta: A grande diversidade de institutos nunca trouxe confusão na Igreja. A experiência o demostra. Essa diversidade constitui sua beleza, seu enfeite e sua força. A Igreja,
terrível para o inferno como um exército ordenado para a batalha, está composta de tropas
diferentes e de diferentes legiões. Um só Instituto em que entram a irregularidade, a desunião
e a desordem lhe causam confusão, enquanto outras cem, nas quais reina o fervor não lhe causa mais do que alegria. O que é de temer não é a multidão e sim a irregularidade desses corpos. Mil flores diferentes numa trilha, mil trilhas num jardim, mil alamedas diferentes num
parque contribuem a sua beleza sem originar confusão. Mil regimentos diferentes, bem disciplinados e bem ordenados num exército contribuem a sua força sem causar confusão. A diversidade dos membros do corpo tão diferentes uns dos outros em sua forma, em sua situação e
em suas funções, longe de causar confusão, contribuem tanto a seu adorno que fica deforma-
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do, se lhe falta um só. A diversidade de cidades num reino, de ruas, de praças e de casas numa
cidade; de quartos, de salas e de móveis num palácio, constitui sua beleza e riqueza sem causar confusão. Por conseguinte, não há o que mais contribui à beleza da Igreja que é o Reino de
Jesus Cristo, seu Corpo Místico, seu exército celeste, seu jardim de delícias, seu paraíso sobre
a terra, do que a diversidade de institutos santos e regulares. Essa diversidade se encontra no
céu e na Igreja triunfante, forma seu ornamento, sua beleza e sua glória, porque a Igreja do
céu está composta de três hierarquias e de nove coros diferentes de anjos, de patriarcas, de
doutores, de pontífices, de apóstolos, de mártires, de confessores de sacerdotes, de levitas, de
viúvas, de gente casada, de anacoretas, de cenobitas e de todas as ordens religiosas diferentes
que edificaram a Igreja. É argumente decisivo que essa diversidade constitui sua honra e seu
enfeite. Eu me sentiria menos incomodado, se me dissessem que a demasiada diversidade dos
membros do corpo, das cidades do Reino, dos regulamentos de um exército, das flores de ma
trilha, dos quartos, móveis e das salas de um palácio causam confusão. Segundo esta idéia
peregrina, num jardim não haveria nada mais do que uma rua, uma só espécie de árvores, de
flores, de trilhas; num palácio, só uma sala, num Reino só uma cidade, numa cidade só uma
rua, no corpo humano, só um membro.
RAZÃO III: É difícil encontrar tantos bons superiores.
Resposta: Esta razão vai longe demais e prova porque, se é boa, mostra que não se deveriam multiplicar as comunidades, embota não houvesse na Igreja mais do que um instituto;
porque, no fim das contas, supondo que na Igreja não houvesse mais do que um instituto,
com, por exemplo, no de são Basílio ou no de são Bento, não tivessem permitido multiplicarem-se seus membros em diversos países. Por quê? Porque é difícil encontrar tantos bons superiores para os dirigir. Esta razão provoca, pois, a extinção ou, pelo menos, a supressão, não
só de diversos institutos, mas de grande número de casas do mesmo instituto, como, por exemplo, o de são Bento. Esta razão não impediu, contudo, a multiplicação, nem dos diferentes
institutos, nem das comunidades do mesmo instituto no alto e no baixo Egito, na Síria e na
Palestina, porque diferentes eram os estilos de vida dos discípulos de santo Antão, dos monges de são Pacômio, dos de santo Hilarião, etc., como veremos em seguida.
Se o senhor Fleuri, ao escrever seu oitavo discurso preliminar, tivesse lembrado a enumeração que ele mesmo fez no início de seu quinto tomo da história eclesiástica, dos mosteiros e dos anacoretas do Alto e do Baixo Egito, teria notado que sua reflexão era vazia ou
estava atacando esta multiplicação prodigiosa de mosteiros que aconteceu no Egito, no decorrer do quarto século. Porque ao findar o século 4º, diz ele mesmo, o número de todos os monges, cuja existência consta na história, alcança a mais de setenta e seis mil e setecentos, sem
contar os mosteiros cujo número não consta no citado quinto tomo da História Eclesiástica.
Não digo nada de vários casos particulares ilustres cujas virtudes constam nos Relatórios de
Evagro e de Paládio e as outras coleções de vidas dos Padres. Somente na cidade de Oxirinque havia vinte mil monjas e dez mil monges. Os edifícios públicos e os templos dos ídolos
tinham sido transformados em mosteiros; e existiam alguns em toda a cidade mais do que
casas privadas. Portanto faltavam não poucos superiores. Todos os monges de são Pacômio
se reuniam das vezes por ano e nessas assembléias se elegiam os superiores. São Jerônimo
diz que cerca de cinqüenta mil para celebrar a Páscoa. É o primeiro exemplo que encontramos de vários mosteiros reunidos em Congregação sob a mesma regra. Nomeou superiores
particulares para cada casa e para cada “tribo” e todos juntos somavam vários mil monges.
Um mosteiro compreendia trinta ou quarenta casas das quais três ou quatro formavam uma
“tribo” . Cada casa era formada por cerca de quarenta Irmãos que exerciam o mesmo ofício.
Neste plano, somente o Instituto de são Pacômio tinha mais de mil superiores particulares.
Sendo assim, eu me pergunto, se era difícil encontrar tantos bons superiores para dirigir tantos
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monge e tantas casas. Por que os deixavam multiplicarem-se dessa maneira? Se, pelo contrário, os encontravam na realidade, a reflexão é equivocada. O próprio abade Fleuri conta que,
segundo a regra de são Bento, em cada mosteiro deve haver um Abade. Por conseguinte, segundo essa regra, os superiores se multiplicavam amplamente. Não era, pois, tão difícil como
ele encontrar superiores bons. E, se a dificuldade de encontrar superiores bons deve impedir a
multiplicação dos mosteiros do mesmo instituto, sobretudo paras monjas entre as quais é mito
mais difícil encontrar superiores capazes de governar devidamente.
Além disso: se não deseja a abolição de todas as ordens religiosas, ao desejar vê-las
todas reduzidas a uma; se, ao desejar não ver a não ser j a classe de monges, não pretende
reduzir o seu número a quase nada, então é preciso reconhecer que a diversidade dos institutos, ao impedir que se multiplique um deles de maneira extraordinária, torna mais fácil encontrar bons superiores para cada um deles do que encontrar um número suficiente para um só
que contaria um grande número de membros.
RAZÃO IV: A multiplicação dos diversos institutos é uma causa de divisão…
Resposta: Também esta razão vai longe demais, porque, se lhe dermos toda a sua extensão, provará que é preciso suprimir todas as Comunidades sem exceção, porque nenhuma
delas se livra dessas paixões humanas. Somente no céu reina a caridade perfeita e essa caridade faz reinar uma paz, uma concórdia e uma união inviolável. Por mais santa que seja uma
Comunidade, nunca terá o privilégio de se manter sem divisão, sem inveja, sem murmuração,
sem aversões. Onde há homens também há paixões humanas e onde se oncontram as paixões
humanas, também se encontram as divisões, as invejas, as aversões e as murmurações. Com
efeito, nunca existiu um mosteiro tão santo em que não tenham entrado esses vícios e não
tenham feito grandes estragos, cedo ou tarde. Assim, esta razão combate tanto a multiplicação
das Comunidades de um mesmo instituto, como a multiplicação de diversos institutos. Desde
que o pecado entrou no céu, fazendo tremendos estragos entre os anjos, esses espíritos tão
puros e santos; desde que o pecado entrou no paraíso terrestre, lançando fora dele nossos primeiros pais; desde que se introduziu no colégio dos Apóstolos, fazendo de um dos discípulos
de Jesus Cristo um protótipo de perfídia e de maldade, não se pode crer que exista sobre a
terra um lugar privilegiado inacessível à divisão, á inveja, à aversão e à murmuração.
Com isto vemos que esta quarta razão se parece às demais: é simplesmente especulativa. Não há nada tão santo que não esteja exposto ao abuso, sem excetuar os sacramentos, inclusive o maior de todos eles, a Sagrada Eucaristia. Além disso, se os inconvenientes que podem nascer da diversidade de novos Institutos devem impedir sua multiplicação, não nada no
mundo que não tenha inconvenientes. As divisões, as invejas, as aversões as murmurações
não nascem da diversidade dos Institutos, e sim da perversão do coração.humano; dividem
inclusive os membros de um mesmo instituto, e armam uns contra os outros. E assim, ao querer suprimir umas ou impedir que nasçam numa comunidade, é preciso destruir a todas.
RAZÃO V: A Igreja deve ser ainda mais uma do que a República.
Resposta: Todos reconhecem que a Igreja, como ma República, deve ser uma; pois
bem, a unidade da República não impede que exista diversidade de estados, de ofícios, de
categorias, etc. Por conseguinte, a unidade da Igreja não impede a diversidade de institutos. A
igreja é uma, todos o confessam. Mas como? Como uma casa que tem diversos pavimentos,
diversos quartos, diversas escadas, diversas portas e janelas e toda sorte de móveis, como um
exército que se compõe de diversos batalhões, diversos regimentos, diversas companhias,
diversos oficiais; como um reino se compõe de diversas províncias, de diversas cidades, de
diversos países e de diversas nações; como uma cidade povoada, de diversos ofícios, diversas
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condições, diversas categorias, diversos estados; como um jardim que tem diversas ruas, diversas espécies de legumes, diversas árvores de frutas, de canteiros. Assim a comparação do
senhor Fleuri se volta contra ele.
RAZÃO VI: Poder-se-ia suspeitar que os fundadores cedem a sentimentos de vaidade…
Resposta: 1. Acaso não se poderia suspeitar daquele que levanta contra eles reflexões
mal-intencionadas? Não se poderia dizer que há não pouca vaidade e orgulho e amor próprio
em querer criticar a conduta da Igreja e os grandes santos desde o século quinto? Pensando
bem, o que é que encerram, em geral, os discursos preliminares do sr. Fleuri, se não é uma
censura partidária da conduta da Igreja, a partir dos séculos cinco e seis?
2. Quando ágüem se atém ao preceito de Jesus Cristo, não julgar, não condenar, não
se sente levado a suspeitar vaidade, orgulho, amor próprio de fundadores de novas ordens,
canonizados, a maioria deles.
3. Seria intolerável suspeitar esses vícios num César de Bus, num cardeal de Bérulle,
num padre Ivã, num são Francisco de Sales, num são Carlos Borromeu, numa santa Teresa,
num são João da Cruz, num são Caetano, num santo Inácio, em são Francisco de Paula, em
são Pedro de Alcântara, em são Felipe Néri, em santo Alberto, em aão Domingos, em são
Francisco, em são Bruno, em são Romualdo, em são Gualberto, em são Columbano, e para
não falar de muitos outros, de são Bento. Porque, no fim de contas, a ordem de são Bento, tão
antiga para nós, foi nova em seu século. Começou somente no século sexto, época em que
havia já mosteiros e institutos em toda a parte.
4. Não se poderia, pois, sem excesso de orgulho, de vaidade e de amor próprio suspeitar desses vícios a esses fundadores de novas ordens. Eles foram homens sumamente humildes e de uma santidade extraordinária. Não fundaram essas ordens a não ser por inspiração do
Espírito Santo. A maioria deles fizeram muitos milagres e fundamentavam sua missão mediante prodígios e pela santidade de seus discípulos. A Igreja aprovou suas ordens e se beneficiou de seus inúmeros serviços.
RAZÃO VII: Sem prejuízo de sua santidade, pode-se desconfiar de suas luzes…
Resposta: É claro que sabiam o que convinha que soubessem, porque sabiam perfeitamente a Jesus Cristo e a Jesus Cristo crucificado. Será que faltava saberem outra coisa?
Acaso os Apóstolos sabiam mais? São Paulo acaso não se gloria de saber mais? Não tinha a
Escritura sagrada razão ao nos ensinar que eram homens simples e sem estudos?
Para fundar novos institutos, faltava-lhes conhecer mais alguma coisa do que para
fundar a Igreja ou para estender a fé pelo mundo inteiro u para confundir os prudentes e sábios deste mndo? São Francisco não sabia tanto quanto são Columbano; são Bento, santos
Pacômio, Hilarião,Antão, Macário Sabas, Eutímio, Auxencio, Estevão o jovem, Teodósio,
Alexandre e muitíssimos outros que foram abades no Egito, na Palestina, na Síria, na Armênia, no Oriente e no Ocidente, que idealizaram novos estilos de vida e, por isso, novos institutos?
Será que a esses santos fundadores de Ordem faltava saberem mais do que os sacerdotes e bispos dos primeiros séculos?
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Pois bem: para ser sacerdote e bispo não era necessário –quem o diz é o próprio senhor Pleuri em seu discurso sobre a história dos seis primeiros séculos - saber as ciências
profanas: a gramática, a retórica, a dialética e o demais da filosofia, a geometria e a outras
partes da matemática. Os cristãos chamavam a todos esses estudos “profanos” porque foram
os pagãos que os tinham cultivado e porque eram alheios à religião. Certo é que os Apóstolos
e seus primeiros discípulos não os tinham aprendido. Santo Agostinho não apreciava menos
um bispo vizinho do qual fala, porque não sabia nem gramática, nem dialética, e vemos que,
às vezes, elevavam alo Episcopado bons pais de família, negociantes, artesãos que provavelmente, não tinham estudado tais coisas.visto não eram necessárias nem aos prelados nem aos
bispos, eram-no menos ainda aos fundadores de ordens. O senhor Fleuri, ao escrever seu oitavo discurso , tinha esquecido o que tinha escrito no primeiro. Sinto muito colocá-lo em contradição consigo mesmo.
O senhor Fleuri tinha esquecido o que diz são Paulo em sua primeira carta aos Coríntios: Porque Cristo não me enviou a batizar, mas ara anunciar o Evangelho: e isso sem eloqüência, para que sua eloqüência não perca a cruz do Messias. De fato, a mensagem da cruz
para os que se perdem é uma loucura; ao passo que, para os que se salvam, para nós, é um
portento de Deus, pois diz a Escritura: Anularei o saber dos sábios, e rejeitarei inteligência
dos inteligentes. Onde está o sábio, onde o letrado, onde o estudioso deste mundo? Acaso
Deus não demonstrou que o saber deste mundo é loucura?considerem, quando Deus mostrou
seu saber, o mudo não reconheceu a Deus através do saber, por isso Deus houve por bem salvar os que crêem com essa loucura que pregamos. Pois, enquanto os judeus pedem sinais e os
gregos procuram saber, nós pregamos um Messias crucificado, para os judeus um escândalo,
para os pagãos uma loucura; ao passo que para os chamados, tanto judeus como gregos, um
Messias que é um portento de Deus e saber de Deus, porque a loucura de Deus é mais sábia
do que os homens e a debilidade de Deus é mais poderosa do que os homens. Por isso, irmãos, considerem os que Deus chamou: não há muitos intelectuais, nem muitos poderosos,
nem muitos de boa família; pelo contrário: o néscio do mundo Deus escolheu para humilhar
os sábioss; e o fraco do mundo Deus escolheu para humilhar os fortes; e o plebeu do mundo,
o desprezado, Deus escolheu: o que não existe para anular o que existe, de modo que nenhum
morta possa orgulhar-se diante de Deus.
Por isso, eu, irmãos, quando cheguei a sua cidade, não cheguei anunciando o segredo
de Deus com ostentação de eloqüência ou sabedoria; decidi convosco ignorar tudo exceto a
Jesus, o Messias e a este crucificado.
Nesta altura, são Fra cisco teria sido um grande doutor na opinião do Apóstolo das
Nac]oes, e não teriam suspeitado dele (digo o mesmo de outros fundadores de ordens) de que
não sabia o que convinha que soubesse.
RAZÃO VIII: São Francisco pensava que sua regra não era mais do que simples Evangelho.
Resposta: será que são Francisco estava no erro ao pensar assim? Por acaso a regra
dele não é mais do que a prática do Evangelho? Será que ele se equivocou ao se fixar especialmente nas palavras: “Não possuam outro nem prata, etc. ? Será que ele compreendeu mal
estas palavras de Jesus Cristo. Se as compreendeu mal,
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1º Como é que foi aprovada pela Igreja, por Inocêncio III, por Honório III e por Nicolau IV, como refere João XXIII o extravagante ; pelo concílio geral de Lião, como fefere o
Papa Nicolau IV e pelo de Constanza, sés. 8 (Berlarm. 1, 2,
2º Portanto, o que querem dizer essas palavras de Jesus Cristo: (Lc 9,57) As raposas
têm suas covas, e os pássaros têm seus ninhos. Mas o Filho do Homem não tem onde descansar. As de são Mateus 19, 21: Se quiseres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá-o aos
pobres [...] depois vem e segue-me. As de 4,20:: E eles, na mesma hora largaram as redes e o
seguiram, que se referem a são Pedro e a santo André, e estas que se referem a Tiago e a João:v. 22: E eles, imediatamente, deixaram o barco e seu pai, e o seguiram. Por acaso não era
esta renúncia universal que inspirava a são Pedro a confiança de dizer a Jesus, como o fazem
notar são Jerônimo e são Gregório: Nós deixamos tudo e te seguimos, Mt 19,27.
3º Para saber qual dos dois (são Francisco ou o sr. Fleuri) compreendeu melhor estas
palavras do Evangelho, basta consultar o próprio Jesus Cristo, os Apóstolos e a tradição da
prática e da doutrina.
Não exista melhor intérprete de Jesus Cristo do que o próprio Jesus Cristo, seu estilo
de vida e o dos apóstolos. Pois bem, Jesus Cristo nasceu num estábulo e morreu despojado e
nu de tudo, na cruz. Não possuiu nunca nada neste mundo: vicia de esmolas; por isso está
escrito dele no Salmo 39, 18: Sou pobre e infeliz. Não há melhores intérpretes da passagem
aludida do que os Apóstolos/ são Pedro diz por todos: Olha, nós deixamos tudo; os primeiros
discípulos não possuíam nada em particular e viviam em perfeita pobreza. Ninguém considerava como seus os bens próprios, mas tudo que tinham em comum (At 4,32). Vendiam seu
bens e os traziam aos pés dos apóstolos. E Ananias e Safira, por haverem guardado parte do
preço de sua venda de seus bens foram castigados de morte porque tinham transgredido o voto
de pobreza que tinham feito, como mostra Brelarmino, com base na autoridade dos santos
Padres.
Com efeito, temos uma dupla tradição em favor de são Francisco para rovar que ele
compreendeu muito bem estas palavras: não tenhais nem ouro nem prata. A primeira é a doutrina dos Padres que se pode ver em Belarmino (c. 20, 1,2, Dos monges), em Maldonado e em
Cornélio a Lápide, em seu comentário sobre essas palavras, e em Suárez (t. 3, De statu Religiones 1. 8. De paupertate). A outra tradição é ainda mais forte e convincente porque provém
de uma multidão de santos que, a exemplo de Jesus Cristo e por amor a /Ele, não quiseram ter
nada próprio e se pode dizer com são Pedro: Não tenho nem ouro nem prata. Esta perfeita
obreza iniciou com a igreja. Santo Antão, santo Hilarião, são Pacômio e todos os santos fundadores de Ordens, consideraram como uma virtude de seu estado e se impuseram o dever de
a praticar com rigor, como se pode ver em Belarmino e Suárez.
4º São Francisco compreendeu estas palavras do Evangelho como as compreendeu a
maioria dos santos Padres e dos intérpretes da Sagrada Escritura, o que se pode ver em Maldonado e em Cornélio a Lápide.
5º Eles, como santo Antão e santo Hilarião, tomaram as seguintes: Se quiseres ser perfeito, vai vende tudo o que tens e dá-o aos pobres, depois segue-me; porque foi por causa destas palavras que estes dois santos e muitos outros venderam seus bens para dá-los aos pobres
como refere o próprio sr. Fleuri.
6º Por fim, depois de ter provado invencivelmente que são Fracisco compreendeu muito corretamente as palavras acima citadas do Evangelho, compreendendo-as como as compreenderam muitíssimos santos e no sentido que lhes dão os santos Padres e os intérpretes da
Escritura, acrescento que o senhor Fleuri as compreende muito mal e que não examinou suficientemente a continuação do Evangelho, porque está claro que neste capítulo X Nosso Se-
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nhor dá a seus Apóstolos preceitos particulares e diferentes como mostram Maldonado e Cornélio a Lápide, o de não possuir nem ouro nem prata, é diferente do de fazer milagres grátis.
Os santos Padres o compreenderam exatamente da mesma maneira e se perguntaram
se este preceito imposto aos Apóstolos naquele tempo foi perpétuo ou passageiro. Vários denter eles – que Cornélio a Lápide cita – pretendem que foi perpétuo. Assim, não foram somente
são Francisco e o Bispo de Sabina, e sim, vários santos Padres e os maiores doutores e os
mais célebres intérpretes da Escritura o que basearam a prática da perfeita pobreza sobre estas
palavras.
Assim, é alheio à idéia de que Jesus Cristo quis somente afastar da avareza e do desejo
de tirar proveito do dom de fazer milagres. Está bem claro que, além disso, quis convidá-los a
uma renúncia efetiva a todas riquezas e a todos os bens.
[1º] O senhor Fleuri se enganou torpemente na explicação que deu das palavras do
próprio Nosso Senhor: ele diz: o Salvador acrescenta: o operário recebe de certo para se alimentar como se dissesse: não tenham medo de que lhes falte alguma coisa, ou que aqueles
que foram curados ou ressuscitados fossem deixados morrer de fome. Daí, diz ele, o verdadeiro sentido da passagem do Evangelho. E eu lhes digo que é um sentido falso. O senhor Fleuri
não poderia mostrar esta explicação nem na tradição dos Padres da Igreja nem na conduta dos
santos nem no conjunto dos intérpretes da Sagrada Escritura. Ao contrário, o sentido em que
são Francisco compreendeu estas palavras é o que se lhe deu sempre na Igreja, o qual é tão
certo que, quando o santo ouviu as palavras do Evangelho na igreja de são Damião: Não leveis nem ouro nem prata, etc…para saber o verdadeiro sentido, se fez explicar pelo sacerdote
do lugar. A explicação que ouviu, era perfeitamente conforme à idéia da pobreza que tinha e
exclamou com alegria: É isso que desejo de todo coração. Imediatamente largou o bastão,
jogou fora a bolsa com uma espécie de horror pelo dinheiro, tira os sapatos, toma um cordão
em lugar de cinto de couro. Só pensa em colocar em prática o que acabava de ouvir e conformar-se em tudo à regra apostólica. É uma vocação bastante parecida à de santo Antão de
quem santo Atanásio diz que, tendo ouvido ler no Evangelho estas palavras de Jesus Cristo:
Se queres ser perfeito vai vende tudo o que tens e dá-o aos pobres, foi imediatamente pôr em
prática este conselho para adquirir a perfeição.
O senhor Fleuri deveria lembrar-se do que disse santo Antão com estas palavras: Absorto nestes pensamentos, entrou na igreja no momento em que liam o Evangelho em que
Nosso Senhor diz a um rico: Se queres ser perfeito, vende tudo o que tens, dá-o aos pobres e
vem e segue-me. Antão considerou a lembrança do Evangelho como se fosse dita para ele. Ao
sair da igreja, distribuiu aos pobres tudo exceto uma pequena quantia que reteve para sua irmã. Ao entrar novamente na igreja, ao ouvir ler o Evangelho em que Jesus Cristo dizia: não
vos preocupeis pelo dia de amanhã, não pode esperar mais, e dando também aos pobres o que
ainda lhe restava… etc.
O senhor Fleuri conta também que santo Antão, no caminho em que ia se retirar ao deserto ao encontrar uma grande quantidade de ouro, passou por cima desse ouro como sobre o
fogo e que, para se abster de identificar o lugar, deitou a correr sem se voltar para trás.
Assim, o que fez são Francisco, santo Antão já o tinha feito, e para imitar o exemplo
dos santos.não quiseram possuir nem ouro nem prata; venderam seus bens quando os tinham,
distribuíram depois aos pobres. Assim é que entenderam a doutrina de Jesus Cristo e assim é
que a praticaram.
Ao imitá-los na perfeição da pobreza evangélica, será que são Francisco entendeu mal
o Evangelho? Não o entendeu e praticou como o fizeram antes dele tantos homens inspirados
pelo Espírito Santo? Apegou-se ao exemplo deles e especialmente ao de santo Antão.
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Ao criticar o modo de agir de são Francisco, o senhor Fleuri tinha esquecido também o
que ele mesmo escreveu de santo Hilarião, que, ao regressar a seu aís na idade de 15 anos e ao
ver seus pais falecidos, deu parte de seus bens a seus irmãos e o resto aos pobres, sem reservar
nada para si.
As palavras de são Jerônimo que o senhor Fleuri extraiu da vida de santo Hilarião são
muito mais fortes. Foram as seguintes: Ao encontrar seus pais falecidos, deu parte de seus
bens a seus irmão e o resto aos pobres sem reservar nada para si, temendo o exemplo e o
suplício de Ananias e Safira nos Atos dos Apóstolos, e recordando-se da máxima do Senhor
que diz: “quem não renunciar a tudo o que tem não pode ser meu discípulo”. São Francisco
entendeu, portanto, o Evangelho como o entenderam santo Hilarião e santo Antão.
Além disso, para a prática da perfeita pobreza, são Francisco não se baseava sobre a
única passagem do Evangelho “não tenham nem ouro nem prata, etc…” mas fundamentavase em todas as demais que serviram de norma aos outros santos, como se vê no fato seguinte
referido no cap. 3º da vida do santo, escrita por são Boaventura:
Bernardo, primeiro discípulo do homem seráfico, sentindo-se inspirado a dar todos os seus
bens aos pobres para seguir a Jesus Cristo, e de associar-se a são Francisco, sentiu-se desafiado
nesta santa resolução por três textos do Evangelho que o santo leu ao abrir o livro. O primeiro reza o
seguinte: Se quiseres ser perfeito vai e vende o que tens e dá-o aos pobres. No segundo encontramos:
não levem consigo nada em viagem. No terceiro:Se alguém quiser vir após de mim, renuncie a si
mesmo, tome a cruz e me siga. Então são Francisco, dirigindo-se a Bernardo: “Essa é a vida que devemos levar, a regra que devemos seguir tu e eu, e todos os que quiserem juntar-se a nós. Considera,
pois, se queres ser perfeito e praticar o que acabas de ouvir”. O novo discípulo, muito persuadido de
que seu propósito vinha de Deus, vendeu sem demora o que possuía e o distribuiu aos pobres.
Se isto é entender mal o Evangelho, são Francisco não é o único que se equivocou.
Ele está em boa companhia, a companhia dos Apóstolos, dos primeiros discípulos de Jesus
Cristo e de uma multidão de santos.
[2º] O próprio senhor Fleuri assim o entende, pois diz que está claro que com essas palavras: não levem nem ouro nem prata, etc…Jesus Cristo não quer do que afastar seus Apóstolos da avareza e do desejo de tirar vantagem do dom de fazer milagres; porque, será que não é
evidente, ao ver o exemplo dos Apóstolos, sua vida, a dos primeiros cristãos, o exemlo de
uma multidão de santos, a doutrina dos santos Padres e a explicação dos mais célebres intérpretes da Sagrada Escritura, que, com estas palavras Jesus Cristo pedia algo mais do que afastar-se da avareza e do desejo de tirar vantagem do dom de fazer milagres?
Se somente lhes tivesse pedido isso, não teria pedido nada de novo e perfeito, nada
que o profeta Eliseu teria podido pedir a Giesi que o servia. O que lhes pedia era renunciar a
tudo, desprendendo-se de tudo, uma pobreza perfeita, o que os Apóstolos executaram à letra.
Deixando as redes, o seguiram. Vê que nós deixamos tudo e te seguimos.
[3º] Será que, de fato, os Apóstolos não tinham que temer que os favorecidos pela devolução da saúde ou da vida, os deixarem morrer de fome, e que este é o sentido da passagem
do Evangelho? Se os Apóstolos não deviam temer que aqueles que recebiam esses milagres os
deixariam morrer de fome, mas podiam esperar deles sua subsistência e estavam, pois, seguros do dia de manhã. Sua entrega aos cuidado do Pai celeste deixava então de ser uma virtude
heróica! Em certo sentido, não davam de graça o que tinham recebido de graça. O dom de
milagres se tornava, pois em proveito próprio. Estas são, na minha opinião, as conseqüências
que derivam da explicação que o senhor Fleuri dá do texto do Evangelho. Pois bem, essas
conseqüências são manifestamente contrárias ao Evangelho. Além disso, poderia acaso o senhor mostrar somente um texto do Novo Testamento para provar que os beneficiados dos A-
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póstolos não os deixavam morrer de fome? Quantos dentre eles eram tão pobres como o paralítico do capítulo 3º dos Atos dos Apóstolos que são Pedro fez andar! De certo, este e outros
muitos, tão pobres como os dos Apóstolos não eram capazes de os alimentar. E, como os milagres desses homens de Deus, como os de seu Mestre, costumavam estar em favor dos pobres, nenhum deles teria podido temer que aqueles aos quais devolviam a saúde ou a vida, os
deixassem morrer de fome. Alguém poderia dizer em favor do senhor Fleuri que também havia ricos entre os curados pelos Apóstolos e que eram esses os que não deixavam morrer de
fome; mas não basta dizê-lo; é preciso prová-lo com algum texto do Novo Testamento o que é
impossível. Se os apóstolos não tinham por que temer que os curados ou ressuscitados por
eles os deixassem morrer de fome, por que, então, são Paulo trabalhava para ter quem o substituísse? Confiados na palavra de Jesus Cristo, os apóstolos estavam certos de terem o necessário, mas o recebiam dos fiéis em geral e não especialmente dos favorecidos pelos milagres.
Jesus Cristo fundamente essa segurança não sobre os milagres, e sim sobre a pregação do Evangelho e os demais trabalhos apostólicos, como o explica Cornélio a Lápide depois de são
João Crisóstomo e como parece dizer claramente o próprio são Paulo (1 Cor 9).
O que é que se pode deduzir de tudo isso? Somente que são Francisco e o cardeal de
são Paulo, bispo de Sabina compreenderam muito bem o Evangelho e que o senhor Fleuri
explicou muito mal.
RAZÃO IX: Havia necessidade de alimentar a essas pessoas sem que fizessem milagres?
Resposta: O quê? Acaso são Francisco, são domingos, são Francisco de Paula, são
Francisco Xavier fizeram milagres? (viver de esmola e ir até esmolar como mendigos). Depois dos Apóstolos, quem é que fez mais milagres autênticos e assombrosos? Pode-se pensar
como os pirronistas, ao se tratar de fatos tão certos? Se alguém não acredita nestes, em quem
´q qie se pode acreditar? Ou, se alguém recusa aceitá-los, estará ele disposto a aceitar outros?
Acaso santo Antônio de Pádua, são Bernardino de Sena, são Pedro de Alcântara, são Vicente
Ferrer e muitos mais das ordens mendicantes, não foram grandes autores de milagres?
Ora essa! Acaso essas pessoas não deram muitas provas de missão extraordinária?
Não se faz caso de: 1) Seus contínuos milagres, clamorosos e autênticos. 2) Sua santidade
extraordinária. 3) As reformas dos costumes dos cristãos. Até a própria Igreja deu mostras de
alterar seu semblante com as pregações deles e com as de seus discípulos, conseguindo inúmeras conversões. 4) Sua perfeita submissão à Igreja, ao sumo pontífice e a seus pastores. 5)
A pureza de sua doutrina, tão santa como sua vida.
Acaso existem outros sinais de missão extraordinária? Se existirem, que sejam nomeados. Se não houver, quem se atreveria a questioná-las quando se trata se são Francisco, santo
Domingos, são Francisco de Paula e de todos os outros que foram nomeados. Portanto: o que
este senhor Fleuri anda dizendo é tão falso, quanto injurioso para a memória destes grandes
santos.
RAZÃO X: do senhor Fleuri: Não poderia dizer a gente: chega! Temos bastante com
assumirmos a subsistência de nossos pastores a quem pagamos nossos dízimos?
Resposta: Poderiam dizer também que estavam e muito encarregados ao terem de pagar os dízimos a tantas abadias importantes que eram donas de imensos bens, na Inglaterra,
Alemanha, França, Suécia e em todo o mundo cristão e que os impostos que pagavam não
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servia a não ser para manter a mesa, o séqüito e o luxo dos donos, e para construir palácios em
vez de mosteiros, fazendo de humildes monges, condes, barões, marqueses, etc.… que não
tinham títulos nem bens.
Poderiam dizer que a maioria de seus pastores estavam reduzidos ao valor de sua côngrua e muitas vezes abandonavam o cuidado de seu rebanho, e assim, este necessitava de um
auxílio estranho.
Poderiam dizer que, tendo a obrigação de repartir seus bens com os pobres, era justo
que pensassem nos pobres evangélicos e que, tendo muitos deles distribuído seus bens aos
indigentes, teria sido justo que recebessem do público ao menos o necessário para viver.
RAZÃO XI: Não teria sido mais útil reformar o clero secular sem chamar em socorro
da Igreja essas tropas estranhas?
Resposta: Não ousaria opinar sobre esse assunto particular. Quem pode sondar os juízos de Deus? Quem foi seu conselheiro? Tudo o que sei é que Jesus Cristo cuida de sua Igrejá e que o Espírito Santo a conduz. Pois bem, o Espírito Santo, 1. Enviou tropas em socorro.
2. No momento não enviou reformadores do clero. Na verdade, são Carlos trabalhou nisso,
segundo o desejo do Concílio de Trento, mas isso ocorreu mais tarde, em meados do século
XVI.
Na França, os sacerdotes de Bérule, Bourdoise, Vicente, Olier, Eudes trabalharam depois de são Carlos, fundando seminários; mas essa reforma não acabou. 3. Essa reforma perfeita do clero parece impossível, moralmente falando, em razão dos obstáculos quase insuperáveis que a impedem; pois para a conseguir, seria preciso formar os jovens clérigos nos seminários; faltaria que os formandos ficassem muitos anos nesses lugares; seria preciso que
não recebessem benefícios eclesiásticos exceto os mais dignos; os bons bispos teriam deveriam ser os que os dispensassem; deveriam poder despojar facilmente de seus benefícios os
maus eclesiásticos; seriam necessárias tantas coisas mais, de maneira que se perde a esperança
de uma reforma cabal do clero.
Com todo o seu crédito, com todo seu poder e com toda sua santidade, são Carlos Borromeu não conseguiu levar à perfeição essa magna obra. Fracassou quando pretendeu reformar os cônegos ao procurar restabelecê-los em seu antigo esplendor e fervor.
[4]. Supondo que seja indiscutível, essas tropas estranhas chegaram oportunamente em
socorro da Igreja e o fizeram com muito acerto. Com efeito, quantos serviços recebeu a Igreja
da parte de são Francisco, de são Domingos, de santo Alberto, de são Francisco de Paula, de
são Pedro de Alcântara, de santa Teresa, de são João da Cruz, de são Francisco Xavier, de são
Caetano, de são Felipe Néri, de César de Bus, do cardeal de Bérule, de Bourdoise, Vicente,
Olier, Eudes e de seus discípulos para a extirpação das heresias, para reter o progresso delas,
para defender os dogmas, para confundir e refutar os inovadores, para reformar o cristianismo, para converter os pecadores, para instruir os ignorantes, para publicar a fé e estendê-la
por toda a terra, para conquistar os infiéis a Jesus Cristo e para formar no espírito eclesiástico
os jovens clérigos!
Sem essas tropas estranhas, como poderiam os pastores das grandes paróquias, por exemplo, em Paris, a de são Sulpício, de são Paulo, de ssanto Eustáquia, administrar o sacramento da penitência a seus fregueses? Se a gente não ouvisse a Palavra de Deus, não recebesse instruções, não encontrasse confessores, diretores e homens caridosos e capazes de os assistir na hora da morte a não ser em sua paróquia, não seriam, por acaso, dignos de compai90
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xão? Porque as igrejas de santo Eustáquio, de são Paulo, de são Sulpício e algumas outras em
Paris, por maior que sejam, poderiam apenas receber a décima parte de seus fregueses. acontece o mesmo nas grandes paróquias das cidades das províncias. O clero dessas paróquias, por
mais numeroso que seja, teria de ser cem vezes maior se estivesse apenas encarregado do ministério, da administração dos sacramentos de penitência e da Eucaristia, da Palavra de Deus e
das instruções cristãs. Portanto, é necessário chamar essas tropas estranhas, em socorro do
clero, contanto que este seja tão regular e zeloso como deveria.
RAZÃO XII: Não seria melhor que existissem apenas duas classes de pessoas consagradas a Deus: os clérigos e os monges separados do mundo?
Resposta: Apliquemos este raciocínio a outros temas para descobrir seus pontos fracos
e ridículos. Digamos: não seria melhor que não houvesse mais do que duas portas, duas janelas, dois quartos, dois escritórios numa casa; que num jardim não houvesse mais do que duas
veredas, duas espécies de árvores, duas espécies de frutas, duas espécies de legumes, duas
espécies de flores; num reino ou numa cidade, só duas espécies de esados, duas espécies de
operários; num corpo humano, duas espécios de membros ou de sentidos; no mar, duas espécies de peixes; no ar, duas espécies de pássaros; na terra, duas espécies de animais; no firmamento, só duas espécies de astros; no céu, duas classes de bem-aventurados; na Igreja, duas
espécies de sacramentos; e em seu oficie, duas espécies de horas canônicas! Não! Sem dúvida, não seria melhor, porque a variedade e a multiplicidade dessa sorte de coisas formam a
beleza, a ordem, a harmonia, a utilidade e assegura as vantagens. O mesmo acontece com a
Igreja.
A variedade existe entre os ministros dos altares e no clero, que se compõe de clérigos
tonsurados, de porteiros, de leitores, de exorcistas, de acólitos, de subdiáconos, de diáconos,
de arquidiáconos e de outras dignidades nas catedrais, de bispos, arcebispos, de primazes, de
patriarcas e de Sumo Pontífice, formam sua beleza, seu ornamento, seu esplendor, sua dignidade e sua glória. Essa variedade até é necessária para o bom governo da Igreja e foi introduzida em parte pelos Apóstolos e totalmente nos primeiros séculos da Igreja. Essa variedade
também se encontra nos sacramentos instituídos por Jesus Cristo: um deles para regenerar e
nos fazer filhos de Deus; outro para nos confirmar e nos dar a plenitude do Espírito Santo; a
penitência para curar nossas enfermidades espirituais ou ressuscitar a alma do pecado para a
vida da graça; a Eucaristia para servir de alimento espiritual para nossas almas; o mesmo acontece com os outros sacramentos.
Da mesma forma, a variedade e multiplicação dos Institutos contribui maravilosamente à beleza, à glória e ao serviço da Igreja, como acima vimos, quem o explica muito bem Luís
de Granada e como o demostra o cardeal Belarmino em suas controversas; porque trata essa
matéria contra os hereges e emprega o cap. 3, do L. 4, Dos monges, para defender a diversidade dos Institutos de religiosos, o qual desagradava tanto aos hereges. Com efeito, como o
nota este sábio cardeal no mesmo lugar, salvo os mártires, quase todos os santos cuja memória a Igreja celebra, saíram dos mosteiros e de mosteiros de diferentes Institutos.
Assim, a esta pergunta: “Não seria melhor que não houvesse na Igreja mais do que duas espécies de pessoas consagradas a Deus: os clérigos e os monges separados do mundo”,
respondemos sem duvidar que não; e fundamos esta resposta no testemunho do céu que, como
diz Belarmino, fez tantos prodígios em favor de tantos e diversos institutos; é ele quem mostrou seu autor e seu defensor. A Igreja, conduzida pelo Espírito Santo, os aprovou. Prestaramlhe assinalados serviços em todos os tempos; foram-lhe em socorro contra os hereges e contra
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Vida de João Batista de la Sal
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o relaxamento dos costumes, em épocas em que os próprios ministros pareciam abandoná-la.
Desde o século terceiro, elo zelo desses homens apostólicos, saídos de diferentes mosteiros,
pode levar a fé a todas as partes do mundo.
Mas, qual é o objetivo do desejo de que não hajam existido na, Igreja, mais do que duas classes de pessoas consagradas a Deus: o clero para dirigir os fiéis e os monges separados
do mundo? Ao roubar à Igreja seus maiores adornos depois dos Apóstolos: ao desejar que um
sem número de santos nunca tivesse existido, ao desejar que esses homens de Deus que eles
mesmo ou mediante seus discípulos resistiram aos hereges, detiveram seus progressos, converteram uma multidão de pecadores, santificando todos os lugares por onde passavam, incitando tantíssimos cristãos à penitência e levando à fé de Jesus Cristo a todos os lgares da terra
onde ainda não tinha chegado; a desejar, pois, que tais santos varões nunca tivessem existido?
Mais uma vez, qual é o objetivo deste desejo, a não ser o despovoamento do céu, o arrebatamento a Jesus Cristo grande parte dos que constituem sua glória e sua coroa? Que espécie de
homens eram: são Francisco de Assis, são Domingos, santo Alberto, são Francisco de Paula,
são Pedro de Alcântara, santa Teresa, são João da Cruz, santo Inácio, são Francisco Xavier,
são Felipe Néri, são Francisco de Sales, César de Bus e muitíssimos outros, como seus discípulos? Pode-se, por acaso, levar mais longe do que eles o espírito de oração, de penitência, de
mortificação, de zelo e de caridade e toda a sorte de virtudes cristãs? Não vieram eles em
tempos em que o estado monástico como também o clero tinham perdido completamente seu
antigo esplendor e seu fervor primitivo? Que é que restava a essas antigas abadias decaídas no
relaxamento e muitas vezes no escândalo, a não ser um grupo de homens que viviam comodamente na abundância e tinham introduzido no santuário da pobreza o luxo, o orgulho e os
prazeres frívolos do mundo? Que ignorância então no clero! Que falta de freio na vida dos
eclesiásticos! Se Deus não houvesse enviado esta raça santa, essa semente de bênção, acaso
não nos teríamos reduzido a Sodoma e Gomorra, segundo a expressão do profeta?
Além disso, esta grande variedade de institutos parece necessária na Igreja, co,o demostra Belarmino, caso se tenha em conta os caracteres das pessoas que aspiram à perfeição,
porque os gênios, as inclinações, os temperamentos, os talentos, os gostos dos homens são
muito diferentes; uns gostam da sociedade e são incapazes de viver na soledade; outros se
sentem atraídos pela solidão e estão fartos da sociedade. Esses são de temperamento bilioso,
fogosos e ativos, que precisam de vida ativa dedicada a obras de caridade; aqueles são de maneira tranqüila e moderada e não procuram outra coisa do que descanso e silêncio, e inclinados para a vida contemplativa.
Alguns gostam da oração mental e têm gosto em a praticar durante horas a fio. Há outros que não podem acostumar-se a essa atividade e que sentem mais fervor na oração vocal.
Alguns gostam da leitura e encontram mais devoção na leitura de livros sagrados do que em
meditar por muito tempo. Outros gostam de ler e preferam meditar mais. Alguns gostam do
trabalho manual, outros mais do estudo. Muitos se sentem animados pelo zelo de sua própria
santificação. Há pessoas atraídas pelas austeridades e as grandes penitências e outras se assustam com essa perspectiva e não têm coragem – ou saúde – suficiente para entrar nos institutos
rigorosos. Alguns não se importam da abstinência de carne e de ovos e outros não podem privar-se desses alimentos. Muitos gostam de dedicar-se ao serviço dos enfermos e otros preferem a instrução dos ignorantes, etc. Em resume, já que existe tanta variedade de geios de caracteres, de temperamentos, de aptidões físicas, de gostos e de desejos entre os homens, era
preciso que houvessem na Igreja uma grande variedade de institutos, para satisfazerem as
inclinações dos que aspiram à perfeição. Se assim não fosse, muito poucos teriam optado pela
profissão evangélica. A maioria se teria calado, ficando sem dar o primeiro passo.
Belarmino expõe outro motivo por que existe diversidade de institutos: os maiores
santos, depois de terem prosperado em grande regularidade e piedade, relaxara paulatinamen92
Vida de João Batista de la Sal
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te e por fim, lhes sobrou pouca coisa depois de alguns anos de seu fervor primitivo. E assim. é
preciso que Deus envie novos homens cheios de seu espírito, ou para reformar os antigos institutos ou para os convocar a sua primeira santidade ou para fundar outros novos, dando assim
à Igreja novos santos e ao mundo novos modelos de piedade e novos penitentes. E assim,
quando são Bento apareceu no começo do século VI, a disciplina monásica, muito decaída no
ocidente, recobrou novo aspecto.
Esta mesma ordem santa não permaneceu muito tempo sem experimentar que a fragilidade humana dificilmente pode sustentar-se por muito tempo num estado de eminente perfeição, e quase em cada século trouxe novas reformas que se tornara institutos diferentes mediante mudanças e acréscimos particulares. São Bento de Biscop parece ter sido o primeiro
que trabalhou em dar à Regra de São Bento sua primeira reforma de Cluni, acrescentando à
Regra de são Bento novos regulamentos, do que resultou um novo instituto. A de Cister se
tornou uma nova ordem como também a Camaldulense e várias outras. De maneira que somente a Ordem de são Bento originou numerosos institutos diferentes. Da mesma forma,
quantos institutos diferentes sob a Regra de santo Agostinho! Quantas espécies diferentes de
cônegos regulares em todos os setores da Igreja! De modo que, como tudo envelhece e que
somente Deus permanece sempre o mesmo, não é possível que a humanidade se mantenha
num estado de consistência. O resultado é que se torna ilusório e contrário ao bem da Igreja
desejar que não existam mais do que duas classes de pessoas consagradas a Deus:os clérigos e
os monges.
[7] Finalmente, como o próprio Belarmino mostra, essa variedade de institutos existiu
desde as origens da vida religiosa como se pode ver em são Jerônimo, em santo Agostinho,
em Cassiano. Sempre existiram anacoretas e cenobitas que se entregam à contempação, e outros que se dedicam à vida ativa como se comprova nas 14 conferências de Cassiano, c. 4,
onde consta que, entre os religiosos, alguns se consagravam à contemplação, outros se ocupavam dos hospitais, estes em alimentar os pobres, aqueles em defender a causa deles. Segundo
o mesmo Cassiano, havia os que irmanavam a vida ativa e a contemplativa, dedicando-se à
instrução dos ignorantes, e o próprio santo Agostinho, em seus dois sermões sobre a vida comum dos clérigos, nos mostra que uniu a vida monástica com a clerical.
Pois bem; esses diferentes gêneros de cenobitas tinham diversos estilos de vida e por
isso constituíam institutos diferente, porque segundo santo Epirânio, no fim de seu livro contra as heresias, alguns se abstinham de carne, outros de ovos, estes de peixe, aqueles de pão.
Alguns andavam descalços e outros calçados, uns dormiam no chão e outros tinham uma espécie de cama, etc.
No que se refere aos diferentes estilos de vida dos solitários e dos cenobitas do Oriente
e do Ocidente, onde é que se pode encontrar o menor vestígio na História da Igreja do Sr. padre Fleuri que insiste tanto nisto? Embora todos os solitários e cenobitas tenham sido observadores do jejum, da oração, da pobreza e de outras normas gerais, eram diferentes entre si na
maneira de observar esses pontos e em muitas outras práticas. Tanto é que, se é possível dizer
que no Oriente e no Ocidente havia tantos institutos diferentes como mosteiros, até que a
maioria deles se uniu quer à regra de são Basílio, quer à de são Bento ou à que são Grodegando deu a seus clérigos.
Portanto, leia-e a História da Igreja de Fleuri. Nela consta que os discípulos de santo
Antão no alto Egito, de são Pacômio, no baixo Egito, de santo Hilarião na Palestona; que outros saantos na Síria e na Armênia levavam vida muito diferente e que, por conseguinte, constituíam institutos diferentes. O uso dos cilícios, de correntes de ferro e outros instrumentos de
penitência estava em vigor em alguns lugares enquanto, em outros não usavam deles. Alguns
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Vida de João Batista de la Sal
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comiam todos os dias, outros comiam apenas uma ou duas vezes por semana. Uns usavam de
pão com azeite e outros abstinham-se de ambos esses alimentos. A maneira de rezar e de vestir não era menos diferente. São Basílio impunha um estilo de vida a seus religiosos. Os do
Nazianceno tinham isso muito diferente. Quase todos os grandes bispos ou os grandes santos
desses tempos tinham seus clérigos ou seus monges aos quais faziam praticar uma regra particular. Assim, são Jerônimo, santo Assêncio, são Pasarião, santo Eutímio, são Teodósio, são
Teodoro Sicota, santo Alexandre, fundador dos Ametes, santo Estevão o jovem e outros muitos no Oriente, tinham seus mosteiros em que haviam prescrito certas regras ou um estilo de
vida diferente.
No Ocidente, a diversidade não foi menor: santo Eusébio de Vercelli, na Itália, são
Marino e são germano de Auxerre, na França, santo Agosinho na África, não viviam da mesma maneira com seus clérigos ou monges.
Cassiano estabeleceu em seus mosteiros um modo de vida, em Marselha; santo Honorato estabeleceu outra em Lérins. Fleuri, t. 7, p. 362, conta a história dos mosteiros da Gália,
sem dizer se tinham todos a mesma regra. São Vítor também tinha os seus na Espanha que
tinham outro estilo de vida (t.7, p.315) e tudo isso antes de são Bento, e pouco depois dele,
são Columbano e vários outros santos foram fundadores de diferentes institutos.
De modo que, antes de começarem a existir as ordens mendicantes, pode-se contar
mais instiuos diferentes do que houve depois. Até antes de são Bento, cada mosteiro era quase
um instituto diferente ao ser tão diferente seu estilo de vida. Se a regra de são Bento se estabeleceu pouco a pouco na maioria dos mosteiros, isso não ocorreu a não ser mais tarde e foi com
modificações tão diferentes que apenas dois mosteiros a praticavam de maneira totalmente
uniforme. Essa extensão da regra de são Bento no Ocidente não impediu que se iniciassem
muitíssimos e variados institutos antes de se conhecere os mendicantes. Que prejuízo teria
sido para a Igreja, se as Ordens que povoaram o céu de tanos santos, como a de são Bruno, de
Valombrosa, dos Camaldulenses, de Claraval, de Cister e muitas mais não tivessem existido!
O desejo do padre Fleuri não é, pois, nada piedoso e teria evitado o trabalho de trazer à
luz, as velhas objeções dos protestantes, escondidas em palavras mito piedosas, se tivesse lido
a Belarmino. Além disso, não é de minha incumbência fazer a apologia das Ordens mendicantes que ficam tão mal situadas no oitavo discurso do padre Fleuri. Deixo essa tarefa a tantos
homens competentes que são o adorno e a glória dessas ordens. Não lhes custará muito fazêlo, porque santo Tomás e são Boaventura o fizeram já há mais de quaro séculos e neste último
século Belarmino a empreendeu contra os hereges.
Até é estranho que tantos sábios religiosos de são Francisco não tenham tomado ainda
a pena para se desquitar da perda da honra de seu Pai, tão manchada neste oitavo discurso do
qual estou falando. Vou me contentar com opor ao senhor Fleuri o célebre Luís de Granada,
da ordem de são Domingos.veja-se a imagem de são Francisco no prefácio sobre o seu memorial aludido:
Vimos quase em nosso século que o B. são Francisco se apresentou ao mundo como um perfeito modelo. Ninguém observou com mais perfeição a maneira de viver prescrito no Evangelho. Depois
de renunciar a todos os bens da terra, este santo, dia e noite só pensava em imitar o exercício dos
anjos na contemplação de Deus. Quis o Espírito Santo expressar tão claramente neste santo varão a
vida perfeita que, na verdade, me parece uma explicação viva e animada da que Jesus Cristo nos ensinou. Suas palavras e ações nos falam e instruem muito melhor do que os escritos de todos os que
procuraram comentar o Evangelho. Porque, da mesma maneira que quem viu a cidade de Roma com
seus próprios olhos conhece melhor seu plano, sua situação e suas belezas do que quem as conhece
apenas depois de as ter lido nos livros, assim uma pessoa se torna mais sábio na vida evangélica ven-
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Vida de João Batista de la Sal
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do um santo, que se conforma a ela inteiramente, do que lendo os autores que se contentam com a
escrever.
São as palavras de Luís de Granada.
DÉCISMA OPJEÇÃO:
Esses novos institutos de mestres e mestras de escola são um peso para o público e incômodos para os cidadãos.
O preconceito se baseia no seguinte: 1º As comunidades precisam de um terreno de
grande extensão porque, para ter uma moradia cômoda, precisam de pátios, jardins, grandes
edifícios nos quais caiba um grande número de pessoas e favoreçam a regularidade. Não são
menos necessárias igrejas ou capelas, com suas sacristias com seus componentes. Pois bem;
para tudo isso se precisa de um terreno extenso, que limita uma cidade e o número de seus
habitantes, fazendo subir o aluguel de sorte que resulte difícil encontrar um alojamento. Com
efeito, o espaço que bastaria para que caberem vinte, trinta, cinqüenta famílias não basta para
uma só comunidade. É preciso derrubar muitas casas numa cidade para poder acomodar folgadamente uma só comunidade. E, mesmo então se considera desfavorecida e sente incômodo
quando não tem espaçosos jardins ou todos os pátios necessários.
2º Ao atrair para a cidade novos habitantes, os novos estabelecimentos a povoam, e ao
a povoar, contribuem à carestia das mercadorias e de todas as coisas necessárias para a vida.
Por exemplo, por experiência se vê como o peixe se torna raro e mais caro numa cidade durante o advento, a quaresma e nos dias de vigília em que, por poucas comunidades que compram peixe em detrimento dos pobres que não podem obtê-lo ou somente encontrariam a muito custo. É certo também, que o preço da carne baixaria numa cidade, se não houvesse nela
tantas bocas que as comunidades multiplicam. O que se diz da carne e do peixe deve estenderse a todas as mercadorias e, geralmente, a tudo o que se precisa para o uso e necessidades da
vida. Os habitantes de uma cidade poderiam viver mais folgadamente, se seu número não aumentasse pelos estranhos ou pelas comunidades.
3º Uma de duas: ou esses novos institutos vivem de esmola ou vivem de salários e
rendas. Pois bem, am ambos os casos acarretam um peso para a cidade, que então fica sobrecarregada. Os mais ricos conseguem dificilmente alimentar tantas bocas. Pelo contrário, se
esses institutos podem possuir rendas, o inconveniente de sua chegada a uma cidade não é
menor porque precisam novas aquisições que aumentem os fundos elevando-os a preços mais
altos.
4º Se esses novos institutos são um peso para o público, provocam o mesmo também
para as famílias particulares. Como? É que as despovoam e as empobrecem, pois no fim das
contas, as crianças das cidades deixam a casa de seus pais para irem a esses estabelecimentos.
Pelo menos se consolaria alguém, se os recebessem debalde… mas não; fazem falta dotes
para as meninas e há muitos gastos a fazer antes que os meninos estejam em seguro.
5º Por fim, esses adventícios não compartilham com os habitantes da cidade os cargos
do Estado e os tributos do Príncipe. O resultado é uma agonia para os habitantes e ocorre que,
enquanto os primeiros vivem tranqüilos e cômodos, estes se sente molestados e não sabem
como remediar com seu trabalho e sua indústria as necessidades de sua família e os tributos
que se lhes impõem. E assim, as contribuições e os impostos públicos crescem para os habi-
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tantes da cidade. Desta maneira, têm que aceitar o alojamento das tropas e artesãos e braseiros. Estes muitas vezes têm que deixar sua própria casa e alojar-se m outro lugar com seus
filhos, para alojar hóspedes que sempre inspiram receio e, naturalmente, até repulsa.
Este é, na minha opinião, o resume das queixas que formulam os que não são favoráveis aos novos institutos. Vamos ver, se não se podem encontrar respostas justas e sólidas.
PRIMEIRA RESPOSTA:
Bem examinada, esta objeção não denota grande solidez de religião nos que a fazem.
Ou estes não vêem a importância de suas conseqüências. Com efeito, se as razões que a sustentam são corretas e justas, induzem a crer que não se deveria ter jamais recebido uma comunidade na cidade e que é preciso repelir as antigas pelas mesmas razões que induzem a
excluir as novas. Com efeito, acaso as ordens religiosas mais antigas não são as que ocupam
nas cidades os maiores terrenos, com edifícios soberbos e amplos, com pátios e jardins espaçosos como grandes e magníficas igrejas? Não são elas as que na cidade e no campo, gozam
de mais recursos e que no Reino possuem somente elas mais bens do que todas as demais comunidades que chegaram depois delas? Não são elas as que podem encarecer o peixe e as
demais mercadorias peã facilidade que têm de o comprar a preço mais altos? De certo, uma
cidade não tem por que temer nesse campo da parte dos – das – que têm escolas cristãs e gratuitas. Suas fundações que apenas lhes proporcionam o absolutamente necessário para viver,
os dispensam de apresentar-se no mercado de peixe e de carne de aves. Imediatamente produziria uma redução do preço de todas essas mercadorias, se não houvesse outros para as comprar.
O certo é que todos esses preconceitos são novos e que a antiguidade, mais religiosa,
não os conheceu ou não quis escutar. O Egito e todo o Oriente se encheram de mosteiros até
nas cidades. As maiores, como Alexandria e Antioquia lhes abriram com júbilo as portas.
Constantinopla, êmulo de Roma, sede do império do Oriente, admitiu em seu seio grande número de ordens diferentes. Oxyrique, a grande maravilha da baixa Tebaida estava povoada de
monges dentro da cidade e nos arredores, de sorte que esses eram mais numerosos do que os
demais habitantes. Os edifícios públicos e os templos dos ídolos tinham sido transformados
em mosteiros e estes eram, em toda a parte, mais numerosos do que as casas dos particulares.
Os monges se alojavam até nas fachadas e nas torres. Havia doze igrejas para as assembléias
do povo, sem contar os oratórios dos mosteiros. Esta cidade, que era grande e bem povoada,
não tinha nem hereges, nem pagãos. Todos os habitantes eram cristãos católicos. Contava
vinte mil religiosas e dez mil monges. Em toda a parte, ouvia-se o ressoar dia e noite os louvores de Deus. Por ordem dos magistrados, havia sentinelas nas portas para descobrir os estranhos e os pobres e à porfia, exerciam a hospitalidade. O próprio senhor Fleuri é que fala de
tudo isso.
Portanto, era uma cidade cujas máximas eram absolutamente diferente das desses homens mal intencionados que consideram as comunidades santas como um peso. Ela honrava o
dever de procurar que se multiplicassem os mosteiros no recinto de seus muros, sendo o número de habitantes comuns superado pelo dos monges e o das monjas. Se há lugares em que
as pessoas se queixam de ter monges demais e em que o público, ao não poder desterrar os
antigos institutos do recinto de suas muralhas, quer fechar as portas aos novos, não será, por
acaso, porque diminuiu o espírito de piedade e de religião?
A cidade de Canope, uma das mais famosas do Egito, situada numa ilha a quatro léguas de Alexandria, já teve em 391 tantas igrejas e mosteiros quantos templos de ídolos. O
mais famoso deles era o de Metanea, isto é, o da penitência. Então, e até antes, havia no Oci-
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dente nas maiores cidades, como Milão e Roma, não poucos mosteiros de ambos os sexos,
como afirma santo Agostinho no livro que ele compôs sobre os costumes da Igreja. Santo
Eusébio de Vercelli, já em 354, unia a vida monástica com a vida clerical, vivendo ele mesmo
e procurando que os clérigos da cidade vivessem mais ou menos como os monges dos desertos, em jejuns, oração frequente dia e noite, leitura e o trabalho. Sua comunidade se chamava
também mosteiro. Seguiu o exemplo de Agostinho como consta de seus dois sermões sobre a
vida comum. A esses clérigos ele chamava de cônegos. Pelos meados do século VII, são Grodegango, bispo de Metz, deu-lhes uma regra que depois foi adotada por todos os cônegos,
como a de são Bento o foi por todos os monges. Inútil dizer algo mais sobre o tema. ninguém
ignora que todas as cidades cristãs tinham muita honra em possuir numerosos mosteiros de
ambos os sexos, e que, longe de considerar os que se tinham consagrado a Deus neles, como
um peso para o público, consideravam-nos como anjos tutelares de sua cidade, como almas
que atraíam as bênçãos do céu por sés jejuns, suas orações e suas penitências e eram o bom
odor de Jesus Cristo e exemplo para os fiéis.
Assim é que o espírito cristão nos ensina a considerar as comunidades de pessoas consagradas a Deus. enquanto permanecem fervorosas, nunca há suficientes numa cidade. Mas
uma só relaxada ou que perdeu seu espírito primitivo, é de sobra. Além disso, quer sejam antigas, quer recentes, enquanto conservam sua regularidade, servem de baluartes para as cidades, protetores para os habitantes, guias e modelos de piedade. Suas lágrimas, suas orações,
suas vigílias, suas austeridades, sobrem a Deus em odor de suavidade. São como um precioso
perfume que os anjos apresentam no altar de ouro, aplacando a cólera do Onipotente irritado
contra os pecadores e atraem sobre os cidadãos as graças e as misericórdias de Deus. que seria
de nossas cidades, manchadas por tantas desordens, crimes e abominações, se não encontrassem diante de Deus, esse contrapeso das boas obras, atos de virtude e de santidade nas comunidades fervorosas? Por acaso não seria de temer que a ira de Deus, ao não encontrar mais
justos ou ao encontrar tão poucos, as tratasse como cidades criminosas como Sodoma e Gomora?
SEGUNDA RESPOSTA:
Os motivos que se aduzem para mostrar que as comunidades são um peso para o público e se tornam incômodas nas cidades em que se instalam, provam até mais do que se pretende porque se podem aplicar à concorrência de estranhas às novas fábricas, ao aumento dos
habitantes de uma cidade que encarecem as mercadorias e os aluguéis das casas, fazendo subir
o preço de tudo o que é necessário para a vida. De maneira que, se estes motivos são válidos
para excluir das cidades os novos insttutos, valem utro tanto contra os estranhos que são atraídos pelo comércio, contra as fábricas que nela se estabelecem e contra os novos habitantes
que escolhem ali seu domicílio, fazendo crescer o número de antigos burgueses.
Contudo, a quem ocorreram tais idéias? Como a gente se ri daquele que tomasse a sério e procurasse fixar o número de habitantes de uma cidade, trancasse as portas aos estranhos
e excluísse as fábricas! Pelo contrário, não é que cada cidade deseja tornar-se mais populosa
ao crescer cada dia o número de seus habitantes? Não considera uma honra o número e a fama
de suas fábricas? Não emprega todas as medidas para que floresça nela o comércio e afluam
os estranhos?
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Vida de João Batista de la Sal
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TERCEIRA RESPOSTA:
Todos os motivos sobre os quais se baseia a objeção, bem examinados, a destroem.
Porque pretendo que o aumento tazoável dos preços de fudos, de casas, de mercadorias e as
demais coisas necessárias para a vida contribuem para o bem estar da cidade tornando-a mais
rica e mais florescente. Com efeito, o aumento razoável do preço dessas coisas faz circular o
dinheiro, facilita as obras, faz funcionar o comércio. Daí se segue que lá onde as mercadorias
têm pouca saída, vendem-se com desconto, a baixo preço. O que ocorre então? A gente permanece pobre no meio da abundância. Com grandes excedentes: de vinho nas mercearias, de
trigo nos silos, de animais e outras coisas do gênero, não se tem dinheiro nem meios para os
adquirir e, ao faltar o dinheiro, não se pode adquirir as coisas da vida. Onde não há saída para
as mercadorias, as casas e os fundos estão a baixo preço e, com grandes propriedades, na realidade, se tem pouca coisa. Muitas vezes, se tem recursos pecuniários para consertar as casas e
os silos, para manutenção da família, para ajudar os filhos em sua carreira, para o salário dos
operários, para pagar os empregados, para os subsídios e os impostos ordinários e extraordinários.
Por isso, deseja-se ter um lugar perto das grandes cidades ou nas grandes cidades, porque é mais fácil adquiri-las com vantagem, fazendo-se pagar devidamente. Pelo contrário, lá
onde não há saída para as mercadorias, os fundos perdem seu valor. Torna-se difícil adquirilas nessas condições e ainda mais, conseguir fazer-se pagar. Nesses lugares, ninguém sabe o
que fazer dos novos produtos, nem dos de anos anteriores. Deixa-se perder uma parte. E não
se faz bem a colheita e essa abundância provoca o efeito que Moisés tinha prometido aos judeus: Jogaram fora os produtos velhos para aproveitar os novos.
Daí resulta que, nos países mais produtivos, costuma-se viver com menos folga por
existir menos dinheiro. Se os habitantes não passam mal, dificilmente podem obter seus bens
com que podem prover seu próprio sustento e seus salários.
Acontece então que as mercadorias da baixa Normandia e de outras províncias são de
pouco valor e são transportadas a Paris para poder conseguir dinheiro.
Resulta também que se teme tanto considerar as mercadorias, inclusive o trigo, a preço
demasiado baixo, como caras, contanto que a carestia não seja por demais longa. Por quê?
Porque então tudo baixa no comércio, o dinheiro circula, os bens da terra perdem seu valor. O
agricultor consegue dificilmente pagar os gastos de seus trabalhos e não pode pagar a seus
patrões: estes, sem dinheiro, deixam o operário se consumir em sua oficina, o mercenário se
aborrece na praça, esperando que o chamem para o trabalho e o negociante se encoraja ao mer
decair seu comércio.
Se tudo isso é verdade, - ninguém o duvida – os motivos nos quais se baseia a objeção
mostram que as comunidades têm vantagem para as cidades que as recebe pelas próprias razões aduzidas contra elas.
QUARTA RESPOSTA:
As comunidades, longe de serem um peso para o Estado ou para as cidades, constituem um alívio. A prova disto é o seguinte: os bens das famílias em geral e em particular são
bens do Estado e das cidades. Pois bem, as comunidades são um alívio paa as famílias, é patente. Os e as que entram nas comunidades deixam seu lugar e também seus bens ou, pelo
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menos boa parte deles. Porque, no fim das contas, se os ou as que povoam as comunidades
tivessem permanecido com os pais, teria sido necessário alimentar a todos ou colocá-los no
mundo. Ao entrar nas Congregações, aliviam, portanto, suas famílias e diminuem suas preocupações. Efetivamente, se um certo número de meninas não escolhessem o mosteiro, se outros tantos rapazes não tomassem o caminho da Igreja ou das comunidades, a maioria dos
pais, inclusive os mais ricos, passariam menos apuros e sentiriam a obrigação de ter de repartir seus bens em tantas partes.
Mas – dirão – acaso não se deverá dar seu dote à menina que entra em comunidade?
Será que não custa nada para que os rapazes que se fazem religiosos? Não; ou quase nada.
Absolutamente nada em muitas comunidades e tão pouco nas demais que isso não merece que
se assinale. Se uma garota leva seu dote, quase nunca esse dote equivale ao que lhe pertenceria se permanecesse no mundo. Deixa mais do que leva, quase sempre, e se é costume dar-lhe
o menos possível. Certamente, se ela se casasse, se lhe daria mais. Seu dote seria muito maior
do que, se a Jesus Cristo preferisse um homem mortal.
Porém, depois de tudo, acaso não se devem considerar as comunidades como parte de
sua própria família, o, ao menos, como se consideram os outros habitantes? Se não parece
errado que uma cidade aumente e se povoe de novos cidadãos, por que censurar que as comunidades se multipliquem? Suponhamos, por um momento, que se mande s comunidades saírem, os e as que as compõem para que voltem a suas famílias: nesse caso os pais veriam com
pena a seus filhos no seio da família: os herdeiros se afligiriam ao verem na casa um de seus
irmãos ou irmãs. Esses jovens seriam um peso para a família mesmo quando trouxessem o
dote que se lhes tinha dado. Vê-se, portanto, que resulta um alívio para os pais, se continuam
nas comunidades. É evidente que formam parte das famílias que vivem nas cidades. Se alguns
estrangeiros estiverem com os membros das comunidades, 1º Isto não costuma ocorrer, a não
ser nas comunidades de homens. 2º São em número menor. 3º Ao menos são compatriotas, ou
da mesma diocese, ou do mesmo Reino. Ao menos é preciso considerá-los da mesma forma
como se consideram os outros estrangeiros que são bem recebidos em toda a parte.
QUINTA RESPOSTA:
Mesmo supondo que as comunidades sejam um peso para as cidades em que se encontram, e que o bem público peça que não se multipliquem demasiadamente e que, por conseguinte, não se deve deixar que facilmente entrem outras novas, isto não poderia ser verdade
para os institutos de mestres e mestras de escolas cristãs e gratuitas. Por quê? Eis aqui as três
razoes principais: 1º Esses institutos são meramente para o bem público. 2ª O número de seus
membros não se multiplica a não ser de acordo com as necessidades. 3ª Com suas minguadas
despesas e pouco lugar que ocupam passam despercebidos.
1. Distingamos entre os institutos necessários ao bem público e os que não o são. suponhamos, se quisermos, que se deva pôr obstáculo à ereção de novos mosteiros de religiosos
e religiosas que não estão a serviço do público. Podem-se então encontrar alguns bons motivos para o fazer. Essa multiplicação tem seus inconvenientes: origina talvez invejas, dissensões, aversão entre si. Prejudicam-se mutuamente e contribuem por seu grande número para o
empobrecimento, para a ruína, ao não encontrarem novas vocações ou ao não poderem fazer
um bom discernimento.
Um convento a menos numa cidade não pode causar prejuízo e ninguém sentirá sua
falta. Permanecem ainda muitos, até demais, se não forem regulares.infelizmente, às vezes, se
prefere deixar várias comunidades muito relaxadas em sua propriedade em vez de assentar
outra nova muito fervorosa e de grande exemplo. Seja como for, não se deve colocar na cate-
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
goria de institutos arbitrários, os que se dedicam à instrução dos jovens pobres. São necessários ao público na mesma razão em que é necessário instruir e educar cristãmente as crianças
abandonadas ensinando-lhes os princípios da religião.
2. O número de mestres e mestras depende do número das escolas cristãs e gratuitas e
se multiplica com elas. Quando cresce muito, procura melhor o bem do público, prestando
grandes serviços à Igreja e ao Estado.
3. Os mestres e as mestras que mantêm escolas cristãs e gratuitas vivem de suas fundações e essas fundações não lhes proporcionam mais do que o necessário para subsistir. Nõ
existe então nenhum perigo de que faça, subir os preços das casas e das mercadorias. Não
necessitam grandes terrenos nem amplos edifícios para que se sintam à vontade. Como seu
estado e sua condição não lhes permitirão ter grandes fazendas nem desempenhar funções de
muita importância, nem nada que possa provocar a inveja ou fomentar a ambição, não têm por
que se afastar das cidades. Assim sendo, todas as razoes em que se baseia a objeção, se tornam vazias.
SEXTA RESPOSTA:
Por fim, aqui vem um argumente decisivo: A quem compete ajuizar o que se refere ao
bem público, ao bem do Estado, do Reino e das cidades? Sem dúvida alguma, ao Príncipe que
governa e que está encarregado de procurar o bem de todos.
Pois bem; nossos Príncipes pensaram que o estabelecimento das escolas cristás e gratuitas é um bem necessário à Igreja e ao Estado. Por isso: 1º Publicaram vários decretos em
favor dele. 2º Favoreceram as fundações que nasce . 3º Julgam-nas tão necessárias à Igreja e
ao Estado que autorizam, nas paróquias da cidade e das regiões rurais, coletas para prover a
manutenção dos mestres e das mestras das escolas gratuitas.
DÉCIMA PRIMEIRA OBJEÇÃO:
Esses novos institutos de mestres e mestras das escolas cristãs e gratuitas prejudicam
as pessoas deste ofício, que vivem e mantêm suas famílias graças ao que ganham com seu
trabalho.
RESPOSTA:
Não é evidente que as escolas cristãs prejudicam as pessoas que vivem desse ofício.
Porque, quem é que enche essas escolas? São os jovens pobres e abandonados que não têm os
meios de ir buscar em outro lugar a instrução cristã.
Embora as escolas cristãs se enchessem de crianças cujos pais são ricos, será que o interesse de algumas pessoas particulares deve prevalecer sobre o do público que encontra vantagens enormes na fundação dessas escolas? Porque algumas pessoas particulares encontram
seu interesse em ensinar a gramática, a literatura e a filosofia, será que se deveriam fechar as
pontas de todas as cidades aos jesuítas e oratorianos que, sem dúvida alguma, são mito idôneos para ensinar essas ciências?
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
Será que o bem público não merece que se tire proveito da caridade e de sua competência? Portanto, que se deixe de aproveitar a caridade e a competência daqueles e daquelas
que se dedicam às escolas cristãs e gratuitas.
Finalmente, ninguém pode julgar melhor o bem do Estado do que quem governa. Pois
bem; muito claras são as opiniões do governo acerca das vantagens das escolas gratuitas sobre
a instituição de pessoas dedicadas a dirigir essas escolas, já que as autorizou com declarações
autênticas.
CONCLUSÃO
Uma vez desaparecidas todas as objeções contra os institutos de mestres e mestras das
escolas gratuitas, parece-me que temos o direito de decidir em seu favor, pois a Igreja e o Estado têm interesse favorecê-las, o público lhes deve muito e os pobres têm muita necessidade
deles. Não se pode encontrar obra mais necessária, mais excelente, mais fecunda em frutos e
vantagens. Se alguém se interessa pela glória de Deus, a salvação das almas e o bem da religião, deve mostrar seu zelo pelas Congregações que vêm tão oportunamente para ajudar às
crianças pobres e abandonadas para as instruir cristãmente e prepará-las para que sejam membros úteis ao Estado, edificantes para a Igreja e futuros cidadãos da pátria eclesial.
PROPÓSITO DESTA OBRA
Resta-nos dizer uma palavra sobre a história da vida do padre de La Salle. Como
é que se escreve vida das pessoas que falecem em odor de santidade? Às vezes são confessores os únicos que conheceram a fundo seu interior, os que a escrevem ou oferecem o que delas
se recordam. Ou então utilizam as prestações de conta de sua consciência, descrições simples
de suas disposições mais secretas que ficaram nas mãos de seus diretores espirituais. Outras
vezes, são notas que deixaram escritas, encontradas depois da morte, que revelam suas graças,
as obras do Espírito Santo em suas almas e os caminhos secretos que percorreram para chegarem à perfeição. Por fim, podem utilizar-se os depoimentos de amigos que receberam confidências relativas a sua comunicação com Deus. mas, no caso do Padre de La Salle, nada disso
serviu para escrever sua vida, pois falecidos são os diretores espirituais que melhor o conheceram e nos quais mais confiava, levando consigo à sepultura tudo o que teriam podido revelar
sobre este varão cumulado de graças, caso o tivessem sobrevivido. Nenhum escrito dele nos
informou sobre este particular. Depois de sua morte, não se encontrou nada que pudesse dar a
conhecer sua maneira de meditar nem sua conversa com Deus, nem os dons da graça que dele
recebia. Se apontava alguma coisa, quer para se lembrar de agradecer a Deus, quer para se
explicar melhor diante de seus diretores, cuidou de que nenhuma de suas memórias chegasse
até nós. E assim, ninguém podia dizer nada do que ocorria em seu interior porque, exceto seus
diretores. Foi um jardim fechado aos homens. Ninguém sabe se fez alguma confidência a outros. Tampouco se lhe escapou uma palavra que pudesse fazer conjeturar o que ocorria entre
ele e Deus. O esquecimento de si mesmo em que vivia, seu desdém do que se referia a sua
pessoa, a sincera afeição à vida oculta e sua grande inclinação às humilhações não lhe permitiram dizer, nem sequer indiscretamente, algo que fosse em seu favor. Não falavra nunca de si
mesmo, ou dizia apenas o menos vantajoso para si.
101
Vida de João Batista de la Sal
Salle
Assim, não se conseguir dele nada fora daquilo que ele não podia ocultar, o que todos
podiam ver e ouvia. Suas ações foram o que revelou o que se passava em seu interior, com
muito risco para a humanidade.
A graça constantemente refletida em seu semblante, seu aspecto angelical diante do altar, um zelo apostólico em sua conduta, seu porte de santo falavam de tudo o que pretendia
ocultar ou nele era um inconsciente.
A pobreza de suas roupas, a austeridade de sua vida, a mortificação de seus sentidos, a
modéstia que resplandecia em sua pessoa, a delicadeza e humildade que davam um caráter
peculiar a suas palavras e a todas as suas ações, manifestavam, apesar de suas intenções, que
ainda ao iniciar o século XVIII, havia santos neste mundo.
Como podiam pensar de outro modo os que o conheciam, tratando-se de um homem
que tinha feito tantos sacrifícios por seu Deus, que se tinha condenado a uma vida tão pobre,
tão desprezível, quase diria tão miserável no conceito do mundo? Como iriam pensar de outro
modo seus discípulos de um pai que ilustrava suas lições com extraordinários exemplos de
perfeição, que se manifestava a eles em tudo e para tudo como um modelo perfeito de regularidade, de silêncio, de recolhimento, de paciência, de obediência, de humildade, de desprendimento de tudo, de abandono à Providência, de resignação às ordens de Deus, de desprezo do
mundo, de amor à Cruz e às humilhações?
Esta vida foi escrita com base nas memórias desses fiéis testemunhas. Em geral, não
referiram mais do que o que eles mesmos viram cem vezes. Atrevo-me a colocar em suas bocas as palavras que o discípulo preferido dizia de Jesus Cristo: “Nós vos anunciamos o que
ouvimos, o que nós mesmos vimos, o que olhamos cuidadosamente e o que apalpamos com
nossas próprias mãos”.
Na vida com Padre de La Salle, não podiam deixar de ver um homem que se entregaria à oração como a seu centro, fazendo dela seu elemento; que se ocultava e fugia do mundo
como um Arsênio ou um Antônio; que não aparecia se não quando era presa de dor e de insultos; que não se lembrava de seus inimigos e perseguidores a não ser para rezar por eles e para
os elogiar; que, diante de seus discípulos, se apresentava como o menor, o último e desprezível; numa palavra era viva imagem de Jesus manso e humilde.
Essas testemunhas fiéis referiram o que viram com seus próprios olhos. Se, em seu
testemunho, se pode suspeitar, ninguém mais merece crédito. Se estas biografia do Padre de
La Salle, escrita à base de memórias, recolhidas com sumo cuidado pelo finado Irmão Bartolomeu, após a morte do Santo e depois ordenadas por um de seus Irmãos, se tal história encontrar leitores incrédulos ou receosos diante dos fatos referidos, que historiador terá autoridade bastante para evitar suspeitas relativas a sua boa fé ou a sua exatidão? Além disso, nesta
biografia não há nada de que não seja credível e até fácil de acreditar. Não encerra prodígios,
nem milagres, nem visões, nem revelações, nem êxtases, nem arroubos, nem predições, nem
fatos extraordinários da santidade. É sabido que a santidade pode existir sem esses dons extraordinários que são de temer, mais do que de desejar; é sabido que há santos que não os têm
e há pessoas que as têm sem serem santos.
Assim, o público não terá motivo de se queixar de que lhe estão contado fábulas sob o
nome de visões e se lhe apresente uma realidade de fatos maravilhosos mais próprios para
escrever novelas espirituais do que histórias fidedignas; para deslumbrar o povo simples do
que para se converter os pecadores. Não se oferece a sua admiração nada senão o que pode e
deve imitar: atos de humildade, de bondade; exemplos de obediência, de mortificação e as
outras virtudes.
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
Essas são as ações que formam santos e dão testemunho da santidade. A presente biografia está cheia delas. Muitas delas são heróicas; servirão para confundir os mais virtuosos
animando-os no caminho da perfeição. Também há outros que são comuns, ao alcance de
todos e que muitos têm ocasião de imitar. Quisemos entrar em pormenores, persuadido de que
não há coisa mais comovedora e ao mesmo tempo útil para os cristãos do que o relato siples e
detalhado dos exemplos de virtude. Nada mais adequado para recordar o fervor e inspirar o
desejo de trabalhar na santificação do que a leitura das ações dos santos mais fáceis de imitar.
Opinamos que tudo o que pode edificar e levar à virtude merecia figurar numa biografia como
a presente.
Talvez alguns vão pensar que se trata de relatos que mostram um João Batista de La
Salle fiel às coisas mais insignificantes, e atento a fazer perfeitamente por Deus, as coisas
pequenas como as maiores. Mas, como não é para agradar, mas para edificar que se escrevem
as vidas dos santos, não se pode omitir nada de tudo o que pode ser útil para os leitores. Se há
pessoas delicadas e bisbilhoteiras que se aborrecem com os pormenores das ações de virtude,
mais numerosas são as que são ávidas deles, que os lêem com muito gosto e fruto. E, como é
que se pode contentar a todos? Será que é possível? Os críticos alguma vez encontram algo de
seu agrado, algo que mereça seu gosto, quando eles mesmos não são os autores? Qual é a nova biografia de um santo que pudesse livrar-se desta censura? Já não admitem mais nem milagres, nem nada de maravilhoso. Para eles, as visões e revelações são quimeras; maldizem o
que desconhecem e chamam de desvarios as operações sobrenaturais de Deus nas almas e os
favores especiais. Por mais primorosas e respeitáveis que sejam as mãos que escrevem esses
relatos, criticam os autores e, para eles, o nome deles deveria figurar como autor de tais obras.
Se alguém lhes apresenta uma vida sem milagres, sem visões, sem profecias e sem nada do que manifesta o maravilhoso no campo místico, mas com ações extraordinárias de penitência, de mortificação, de humildade e das demais virtudes, suspeitam de seu autor. Dezem
que exagera, considerando como inacreditável o que querem imitar.
Se o autor é admirado nos pormenores das menores práticas de piedade e dos exemplos diários de virtude que estão ao alcance de todos, para eles tudo isso são minúcias que a
história deve calar e que um historiador, que sabe escrever, se abstém de mencionar. Julgam
desonrar sua pena, se quiserem relatar tais insignificâncias.
Com que elementos se deverá escrever, portanto, a história dos santos, se nela não cabem os milagres, as visões, as revelações, os arroubos, os êxtases e tudo quanto parece paravilhoso na ordem da graça; se é preciso dissecar como inacreditáveis as penitências e as austeridades extraordinárias, a oração contínua noite e dia e tudo o que se parece com as mais heróicas virtudes; se, finalmente, é preciso descartar as miúdas pr´ticas de virtude e os exempos de
fidelidade às coisas mais pequeninas?
Contudo – dirão alguns – não compete a um grande historiador entrar em tantos pormenores, nem insistir em minúcias. A isto eu poderia responder que os grandes historiadores
da antiguidade, como Dionísio Halicarnaso e os recentes, como o padre Catrou, que acaba de
publicar a História de Roma, não omitiram os pormenores quando os encontraram aptos para
satisfazer a curiosidade do leitor ou para aformosear a narração. Mas, nós, que deixamos para
melhores penas e a gênios mais hábeis a honra de saber escrever uma história, e que somente
nos propomos procurar que esta resulte edificante e útil, julgamos que precisávamos unir as
ações virtuosas comuns e cotidianas com exemplos extraordinários da virtude heróica.
Para nosso caso, não podíamos seguir melhores guias do que os Evangelhos que, em
vida de Jesus Cristo, uniram o relato de suas ações ordinárias e tantos exemplos de virtudes
comuns com os milagres e as virtudes mais divinas. Aos se escrever a vida dos santos, podese propor modelos mais perfeitos do que os que emprestaram suas penas ao Espírito Santo
103
Vida de João Batista de la Sal
Salle
para relatar a vida do Santo dos Santos? Se esta história do Padre de La Salle puder inspirar
aos leitores o horror do vício e amor à virtude, o desejo da perfeição e a coragem para se esforçar em consegui-la; se, além disso, conseguir inspirar um grande zelo em multiplicar as
escolas cristãs e em favorecer os institutos que se dedicam a uma obra tão importante, então
chegou à meta que se tinha proposto e deixo de bom grado à crítica dos entendidos o opinar
sobre o estilo, a forma e o plano da obra. Com gosto adiro desde já a sua desestima e sua censura. Satisfeito e não ter tido mais que um talento, e o ter utilizado para a salvação do próximo, peço ao leitor que esqueça a maneira em que a história foi escrita, para somente reter os
exemplos de virtude que oferece para os imitar.
Uma advertência aos próprios Irmãos: não estranhem ao verem algumas coisas que ignoravam. Delas se deram conta delas apenas os que tinham relações mais estreitas com o
Fundador e os que tinham mais confiança ou que colaboraram com ele na gerência de certos
assuntos.
Contam-se até certos fatos que nenhum Irmão conhecia o que somente era conhecido
de maneira confusa. Mas, por ter sido testemunha deles, o autor não julgou dever omiti-los.
Finalmente é preciso assinalar aqui aos leitores que, ao dar muitas vezes nestas biografia o nome de santo varão, de santo sacerdote, de santo fundador ao padre de La Salle, somente o damos no sentido em que lhe dão os Apóstolos em suas cartas ao se dirigirem aos
cristãos, no sentido em que se costuma qualificar as almas eminentes em virtude, inclusive
quando vivem ainda nesta terra, no sentido em que se atribui às pessoas falecidas em odor de
santidade, sem querer nem direta nem indiretamente prevenir o juízo DA Igreja Romana, a
quem incumbe julgar a santidade dos fiéis e declarar santos os que cujas vidas são examinadas, aprovadas e canonizadas. Ninguém mais do que nós, pode julgar-se mais submisso à Santa Sé e mais inviolavelmente apegado à Pedra sobre a qual está edificada a Igreja. Sempre
fizemos profissão disso e temos sumo gosto em aproveitar esta ocasião para o fazer publicamente, assegurando que queremos morrer como temos vivido na perfeita obediência a nosso
Santo Padre, o Papa, à Igreja Romana, centro da unidade, fora da qual não há salvação.
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
VIDA DO PADRE JOÃO
BAISTA DE LA SALLE
Fundador dos Irmãos das Escolas
Cristãs
LIVRO PRIMEIRO
Neste livro se apresenta o Padre de La Salle às crianças e aos jovens
como modelo das virtudes de sua idade; aos clérigos, como espelho
do espírito eclesiástico; aos sacerdotes, como imagem da santidade sacerdotal.
A inocência e pureza de costumes de sua infância e juventude: menino cristão,
aluno piedoso, clérigo fervoroso, sacerdote cheio de zelo; é modelo de virtude
em todas as idades e nos diversos estados de vida.
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
Capítulo I
Seu nascimento, infância e educação
1. Seu nascimento
A cidade de Reims, na província de Champanha, em outros tempos, tão fecunda em
santos e grandes homens, teve, em nossos dias, a glória de dar nascimento ao senhor de La
Salle. Seu pai, de família muito distinta,exercia ali, com inteligência e probidade, o cargo de
Conselheiro do Tribunal de primeira instância. Sua mulher, mãe proveniente da família de
Brouillet, mais recomendável por sua piedade do que por sua nobreza, tinha o cuidado de cultivar, em edificante recolhimento, algumas virtudes que o grande mundo teme e que não estão
nele isentas de perigo. O objeto desta vida foi o maior de sete filhos com os quais seu matrimônio foi abençoado. Deus se reservou a melhor parte, pois dos cinco homens e das duas mulheres que compunham essa piedosa família, quatro se consagraram a seu serviço. Uma das
filhas se encerrou no mosteiro de santo Estevão das Damas; um dos filhos escolheu o Cônegos Regulares de santa Genoveva, e chegou a ser Prior; os outros dois se dedicaram à Igreja
como sacerdotes seculares, e foram cônegos da ilustre igreja metropolitana de Reims. Um
deles foi o senhor de La Salle. Nasceu a 30 de abril de 1651 e no dia mesmo foi regenerado
pelas águas do batismo; seus padrinhos foram seus avós maternos, o senhor João Moët de
Brouillet e a senhora Perette Lespagnol, que lhe puseram o nome de João Batista, nome profético e presságio de que este menino seria um grande modelo de inocência e penitência no século XVII.
2. Suas inclinações. Sua infância
Desde o berço, parecia assinalado pela graça que queria fazer dele uma obra prima.
Não se observava nele nada de pueril. Como criança. Sem temer as inclinações das crianças,
gostava das ocupações sérias, não deixando aparecer em suas ações, gestos infantis. Seus
brinquedos, se os tinha, foram exercícios de virtude e de piedade. Esta, que em nós é fruto
lento e tardio da graça, apareceu nele antes do uso da razão. Devoto sem fazer cara feia, gostava da oração e da leitura de bons livros. Em seus jogos mostrava já sua inclinação pelo estado eclesiástico, porque se divertia com levantar oratórios e adornar altares, e cantar cânticos
religiosos e imitar as cerimônias religiosas.
Os outros passatempos não eram de seu gosto, e ainda que fosse de natureza alegre e
de bom humor, não sentia inclinação às diversões preferidas pelos meninos de sua idade. Para
lhe dar gosto, era preciso apresentar objetos de piedade que tiveram relação com Deus e sua
Igreja. Um dia ele o manifestou quando na casa paterna tudo era alegria e diversão, pois longe
de tomar parte, seu coração estava tão fechado a ponto de se livrar do aborrecimento que sentia, se jogou nos braços de uma pessoa do grupo e lhe pediu que lhe lesse a vida dos santos,
contando-lhe que sentia desgosto nas celebrações que estava assistindo.
Desde essa pouca idade, a Igreja era como seu único centro de interesse. Era preciso
levá-lo ali, para lhe dar gosto. Sua felicidade estava ali, não em outra parte. Seus amigos mais
queridos eram aqueles que, pela mão, o levavam para ali. Quando aprendeu o caminhoooooo
e a idade lhe permitiu fazê-lo, a autorização de ir à igreja era o grande favor que solicitava, e o
único de acordo com suas inclinações que se lhe podia conceder. Para o fazer com mais fre-
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
qüência, escapava da companhia de seus colegas, recusava jogar e se divertir com eles. saindo a sós da companhia dos outros, ia ao templo do Senhor para adorar o Senhor Deus de Israel1.
Cheio de respeito e reverência pelo lugar sagrado, mostrava já esse ar de recolhimento
e de atitude religiosa que o fizeram mais tarde tão venerável e respeitável no altar. Como o
que o atraía à igreja não era nem a leviandade nem a curiosidade, ocupava-se nela somente de
Deus e da oração. Sua modéstia ressaltava pela juventude que dava um novo encanto a sua
beleza natural, atraía sobre si todos os olhares. Parecia aos que o contemplavam nestes momentos, como um pequeno santo. Inspírava devoção aos que não a tinham. Os assistentes, tão
agradavelmente surpresos e edificados ao verem tanta piedade em tão tenra juventude, podiam
dizer-se com admiração: Que será deste menino? Porque, com efeito, a mão do Senhor estava
com ele2.
3 Seu atrativo para o serviço de Deus.
Tudo o que via fazer na igreja o deixava encantado, gravava tudo, tudo impregnava
sua inteligência e seu coração. Não se cansava de ver tudo o que estava acontecendo, queria
aprender tudo. Suas perguntas sobre o que observava eram sensatas e exigia respostas instrutivas. Se alguém recusava responder, ou demorava na resposta, suas maneiras gentis faziam
tão doce violência que era difícil resistir.
Embora tudo o que via na igreja alegrasse seu coração, a celebração da missa o atraía
com mais força e doçura. Essa atração lhe inspirou o desejo de aprender a ajudar a missa. ansioso por adquirir esse sagrado conhecimento, foi preciso apressar-se a lhe dar lições que não
demorou em por em prática, porque não bastava para ele ser espectador na igreja, urgia ser
seu ministro. Suas delícias eram, pois, ajudar a missa e teria sido para ele uma grande mortificação faltar um dia somente. Para satisfazer esse desejo chegou até a solicitar as funções de
ajudante de missa e desempenhou essa missão com jeito e fervor tão singulares, que os assistentes à missa se envergonhavam de ver num menino uma devoção da qual eles careciam.
Este religioso temor que exigiam os santos mistérios, essa graça que é parte do espírito eclesiástico, foi-lhe concedida nessa idade para o preparar a desempenhar-se mais tarde no tremendo ministério ao qual estava destinado com esse fundo religioso e de piedade que inspira a fé
na presença de Deus.
3. Sua modéstia e atitude respeitosa na igreja
Esse respeitoso temor o acompanhou sempre que entrava no lugar sagrado e inspirou
aos outros os mesmos sentimentos. Parecia possuído desse respeitoso temor especialmente no
santuário, em que tinha um ar tão augusto e devoto, que, quando exercia as funções sacerdotais, parecia um Serafim em figura humana. Nunca se familiarizou com o alltar embora desde
sua ordenação sacerdotal subiu a ele todos os dias para celebrar os divinos mistérios. Cada dia
viu crescer sua preparação, sua fé, seu temor, o sentimento de sua indignidade, seu fervor e
seu amor.
Essas santas disposições não foram nele efeitos lentos e insensíveis de leitura dos santos Padres, nem de profundas reflexões sobre a santidade de seu sacerdócio e a sublimidade
dos mistérios que se realizam no altar. Foram o efeito adiantado de uma graça que o enchia de
respeito, temor e de atração por tudo o que se referia ao ministério sagrado, antes de que a
1
2
Tb 1, 5 (Esta citação não se encontra na Bíblia atual. É um referência à Vulgata. N.T.)
Lc 1, 66.
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
razão permitisse ter dele um conhecimento suficiente. Ao ajudar a missa, começou a aparecer
o que foi mais tarde como celebrante, um anjo, um querubim. Seu semblante brilhava com
casta beleza. Parecia ter todos os encantos dos espíritos celestes, porque participava de sua
pureza.
4. Sua aversão aos divertimentos profanos
Como os pais se reproduzem e renascem em seus filhos, geralmente comunicam suas
inclinações com o sangue aos que trazem a este mundo. É tão natural que os filhos mostrem
os mesmos gostos de seus pais, de modo que nos maravilhamos quando acontece o contrário.
Por isso foi surpreendente que o pequeno La Salle não tenha sentido a forte inclinação de seu
pai para a música. Talvez a teria sentido, se a graça não ativesse prevenido, ou se ela não a
tivesse afogado desde seu nascimento, inspirando-lhe outras preferências e infundindo-lhe
aversão ou temor a um prazer, que, por mais inocente que pareça, tem seus perigos e pode
causar feridas na alma enquanto afaga os ouvidos.
O jovem La Salle não tinha a paciência de preencher a memória com tantas canções,
que seria melhor ignorar do que saber, e que se tem mais interesse e mais dificuldade em esquecer do que em aprender. Ele não tinha o caráter para expor sua terna alma às impressões
malignas dessas canções da corte, próprias somente para debilitar os corações dos que as cantam ou as escutam. Preferia os cânticos da Igreja. Já que louvar a Deus, bendizê-lo e amá-lo
devia ser sua eterna e única ocupação no céu, desejava não ter outra na terra. E quanto dele
dependia, efetivamente não teve outra, porque desde essa idade se voltou assíduo ao Ofício
Divino e, antes de ser cônego p o que chegou a ser pouco depois – começou a exercer as funções assim que saiu da infância.
Seu pai que era um cristão convicto, via com gosto as disposições naturais de virtude
de seu filho. Longe de as contrariar, como fazem os pais mundanos, ele as cultivava com cuidado, e para as alimentar e fortificar, levava-o muitas vezes à igreja. Feliz de poder cumprir
seus próprios deveres religiosos, favorecendo as inclinações de seu filho, se comprazia em
assistir ao Ofício Divino com ele. Sua mãe, que tinha uma piedade ainda mais profunda, buscava momentos para lançar, a toda hora, as sementes da virtude nesta jovem alma, e ela as via
germinar para além de suas esperanças. Assim este pai e esta mãe, aplicados a formar sob
seus olhos a este jovem Samuel, tinha o prazer de o ver crescer em graça e em sabedoria diante de Deus e dos homens, se me é permitido usar essas palavras do Evangelho, referente ao
Menino Jesus.
5. Seus primeiros estudos
Da educação paterna passou para a de tutores capacitados para o formar nas letras humanas. Apenas entrou no colégio da universidade de Reims para seus primeiros estudos, se
transformou no exemplo dos alunos e no objeto da complacência de seus professores. Seu
progresso na ciência e na virtude andava sempre a par, pois ele se propôs combinar as duas
disciplinas e não separa seus exercícios de piedade dos do estudo. A aplicação às letras não
alterou nele seus sentimentos de devoção, como acontece às vezes. Nem seu esdpírito de devoção diminuiu nunca sua aplicação ao estudo, como também acontece.
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Vida de João Batista de la Sal
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De modo que Deus e seus professores estavam contentes com ele, e ele permanecia
sempre o mesmo. Devoto sem afetação, alegre sem leviandade nem dissipação, agradava e se
tornava am ável. A sabedoria, docilidade e piedade foram como os três guardiões de sua inocência e as três características de sua juventude. Essas três virtudes preciosas às quais juntava
as maneiras delicadas e gráceis, ao conquistarem o coração dos mestres, conquistaram-lhe a
estima e a veneração de seus colegas, que o consideravam seu modelo. Ele, certamente, foi
um modelo dos alunos. Nós o veremos tornar-se o modelo dos jovens clérigos.
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Capítulo II
Sua entrada no clericato e no ilustre corpo de cônegos da
Igreja metropolitana de Reims
1. Sua atração pelo clericato
O jovem de La Salle, como novo Samuel, parecia ter nascido para o ministério sagrado. Era feito para a Igreja e sua grande ambição foi consagrar-se a seu serviço. Sua vocação se
evidenciava em todas as suas ações: suas inclinações, seus prazeres, suas atrações, tudo nele
proclamava que era destinado ao serviço do altar.até seus brinquedos infantis eram prova disso. Ao adiantar em idade, essa vocação se desenvolvia cada vez mais. Com o tempo se fez tão
forte e viva, que julgo resistir à voz de Deus, se adiasse o pedido da tonsura. Contava com que
a piedade de seus pais não lhe oporiam obstáculo algum, e assim foi efetivamente, pois sua
vocação que lhe estava escrita na fronte, por assim dizer, desde o berço e que era tão óbvia em
sua conduta, não podia contradizer-se nem opor-se à vontade do Céu. Se Deus tivesse permitido a seus pais escolher a vítima para a oferecer a Ele, não cabe dúvida de que esta escolha
teria caído sobre qualquer outro de seus filhos, e que se teriam reservado o mais velho, que.
Ordinariamente, é o mais querido, por ser o primeiro fruto do amor conjugal. Mas não escutaram a voz da natureza. A graça reclamando todos os seus direitos, quis consagrar a Deus aquele que era mais digno. Nada mais justo.
Que alegria sentiu João Batista de La Salle quando se viu livre de seguir suas inclinações que o convidavam, desde que se conhecia, a consagrar-se a Deus inteiramente! Que felicidade sentiu quando se viu que podia entrar num estado que, por profissão, tinha de dedicá-lo
a serviço da Igreja e fazer dele um homem de Deus. somente as almas semelhantes à sua que
Deus conduz desde a juventude como pela mão à mais alta perfeição, podem conceber e explicar seus sentimentos.
2. Recebe a tonsura
A tonsura não foi para ele uma cerimônia vazia nem uma aparência de renúncia ao
mundo e de consagração a Deus, como é o caso em tantos outros. Sua boca pronunciou o que
o coração lhe ditava ao dizer que tomava a Deus por sua herança e que não queria outra. Deus
se fez nele o Deus de seu coração, segundo as palavras do Profeta, o centro e seus afetos e o
objeto único de seus desejos. Bem depressa o veremos executar sua palavra à letra, estabelecendo com o mundo, um divórcio inteiro e solene, despojando-se de seus bens, fazendo-se
pobre, e renunciando até a seu canonicato. Mas não antecipemos os temas. Sigamos o curso
de seus anos, seguido o da graça.
Feito clérigo, João Batista de La Salle parecia outra pessoa. A piedade, a modéstia, a
inocência de costumes apareciam nele com mais brilho, sob a sobrepeliz e ao redor do altar,
do que antes. Em meio dos demais clérigos como em meio dos colegas de estudo, é um grande exemplo. É uma chama que o bispo acaba de acender e que põe sobre o candelabro para
que alumie na Igreja de Reims e bem depressa em toda a França.
O jovem clérigo, ao se ver como um homem de Deus, e obrigado a sê-lo, a fim de não
levar em vão esse título, fez todos os esforços para o merecer. Um zelo ainda mais ardente
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
pelas funções clericais, um atrativo ainda mais perceptível pelo serviço do altar; um amor
mais confiante à oração, uma assiduidade mais edificante ao ofício divino; tudo isso foi uma
prova de que estava despojado do homem velho e revestido do novo, criado na justiça e na
santidade, e que as palavras sagradas que o prelado lhe tinha dirigido ao lhe cortar os cabelos
e revesti-lo da sobrepeliz, haviam sido eficazes e se tinham cumprido em sua pessoa por obra
do Espírito Santo. Seu gosto pelo canto dos louvores de Deus, se aumentava com o tempo, e
Deus lhe proporcionou a oportunidade de satisfazer sua inclinação totalmente e de fazer por
dever o que antes tinha feito por instinto da graça.
3. É nomeado cônego de Reims aos 17 anos de idade
A 9 de julho de 1666 [sic] quando tinha cerca de 17 [sic] anos, foi nomeado
cônego da igreja metropolitana por renúncia do senhor Pe. Dozet, arcediago de Champanha e
chanceler da universidade. Tomou posse no ano seguinte a 17 de janeiro. Seu avô, homem
profundamente piedoso, e que se tinha imposto a obrigação de recitar todos os dias o Ofício
Divino, quis ser seu tutor e experimentou um grande prazer em lhe ensinar a recitá-lo.
O novo cônego está em seu lugar, dono de seus próprios atos numa idade em que ordinariamente os jovens começam a usar sua liberdade em detrimento de suas almas. Nascido
com fundo de orgulho inesgotável, o homem se entrega totalmente à independência. Sacudir
o jugo de seus mestres é o desejo contínuo da juventude, inimiga de toda modéstia e coação.
Ser dono de si mesmos, fazer o que querem, seguir suas idéias, agir por vontade própria, seguir suas inclinações, consentir nas dos outros, tal é o atrativo natural do coração humano.
Mesmo os que têm certa piedade estão muito contentes com a conformar a suas próprias luze e de as modelar, se me é permitido o termo, às inclinações naturais, quando são
inocentes. Gostamos de descobrir nossos próprios caminhos a seguir na estrada para o céu. E
sentimos satisfação em ir somente por onde queremos e da maneira como queremos. A tentação é delicada; é muito fácil para um jovem que inicia a respirar um ar de liberdade, sucumbir
vítima da mesma. Quando se sacode o jugo da autoridade paterna, se sacodem, de ordinário,
as restrições da virtude e o dever. Contra essa rocha, ai! vem a naufragar a piedade nascente
porque não está bem firme.
Quando alguém se torna cônego, pensa estar livre, independente, senhor de si mesmo,
e em condições de não receber leis, a não ser de si mesmo. Precisamente sob essa idéia lisonjeira um jovem clérigo considera a prebenda canônica. Este é o perigoso privilégio da veste
canônica, e muitos acham que tem direito a usufruir dele quando usam esse sinal distintivo. O
jovem se crê então obrigado a nada ou quase. Se assume algumas obrigações, as executa de
forma arbitrária e as elabora segundo seu gosto ou o de seus colegas cônegos. Nesse estado de
vida, quando alguém trabalha para a Igreja, considera esse trabalho como opcional, do qual
está muito satisfeito e tem muito mérito. Quando se faz algum serviço ao próximo ou se dedica à salvação das almas, o faz na proporção do zelo que tem; mas sem considerá-lo um dever
e sem se aplicar o que são Paulo se dizia a si mesmo: Ai de mim se eu não anuncio o Evangelho! Quando não se quer fazer nada, quando se foge em mole indolência, quando crê cumprir
todos os deveres e que nem Deus nem os homens têm nada a lhe repreender enquanto se é
assíduo ao Ofício divino segundo os regulamentos capitulares
Contudo, cada idade e cada estado de vida tem suas virtudes próprias como também
suas tentações particulares. A modéstia, piedade, assiduidade ao Ofício divino, regularidade, o
estudo e o amor ao trabalho, são virtudes que convêm perfeitamente aos jovens cônegos, e
que não seria muito desejar que eles as possuíssem. A imodéstia na igreja, a irreligião, dissi111
Vida de João Batista de la Sal
Salle
pação, ociosidade, indolência, preguiça, são vícios que eles devem temer mais do que os outros clérigos. O temor de cair neles deve mantê-los continuamente atentos a si mesmos e tomar precaução de não seguir os maus exemplos ao seu redor.
Nosso jovem cônego soube proteger-se desses perigos mantendo-se muito atento aos
cônegos que podiam edificá-lo e inspirar-lhe a devoção. Fechou os olhos diante daqueles cuja
dissipação e imodéstia podia alterar a sua. Aproveitou o bom exemplo e ignorou o mau. Recolhido, concentrado em si mesmo, somente pensava naquele a quem tinha vindo louvar e glorificar. Cumprindo a função dos anjos, imitava sua modéstia, reverência e piedade. Por ser cônego estava consagrado Pa oração pública da Igreja. Em consciência, dedicou-se à prática das
virtudes que ela exige: o retiro, a separação do mundo, o recolhimento e a vida interior. Seus
estudos não sofreram nenhuma diminuição com sua entrada neste novo estado de vida. Sabia
que um canonicato, longe de ser uma dispensa do estudo, dava poderosos motivos para estudar mais: motivos que se originam da posição que ocupam o primeiro lugar entre o clero da
diocese, não é justo que também o ocupem em questões de doutrina, e que estejam igualmente
colocados por cima dos demais, em razão da ciência como o estão acima por sua dignidade?
Tal é, sem dúvida, a intenção da Igreja, pois os considera como os principais membros em
cada diocese, como os que com põem seu senado e que devem ser os conselheiros oficiais do
bispo. Pois bem; como é que podem cumprir tão honroso dever sem possuir um conhecimento
não comum?
4. Aplicação ao estudo
Neste espírito, o concílio de Trento quer que, ao menos, os dois terlos dos membros
dos capítulos das igrejas catedrais estejam compostos por cônegos com o grau de doutor. São
Carlos, por exemplo, escolheu somente doutores para cônegos, e os mais ilustres bispos,
quanto possível, seguem essa regra a seu exemplo, porque somente os doutos, são chamados a
ocupar os primeiros lugares numa diocese e a prestar os maiores serviços, a ajudar com suas
luzes e seus conselhos aos prelados, que, muitas vezes, estão sobrecarregados de assuntos
espinhosos e de casos muito difíceis de serem resolvidos.
Nosso jovem cônego seguiu, pois, o espírito e as intenções da Igreja, continuando seus
estudos com novo ardor. Por outra parte, ele necessitava de mais conhecimentos do que outros, já que a divina Providência o destinava a ser o Fundador de uma nova congregação de
homens, destinados à instrução do próximo e à propagação da doutrina cristã.
Terminado seu curso de filosofia, obteve, segundo o costume, o grau de Mestre em
Artes. Este primeiro passo, que conduz ao doutorado, mas que está ainda longe dele, lhe deu a
idéia de ir buscá-lo na fonte das ciências que é a Universidade de Paris. Uma vez tomada a
resolução de ir estudar na Sorbona, de fazer ali a Licenciatura e obter o barrete de doutor, precisava escolher o lugar em que pudesse conseguir seu duplo propósito de ser santo e sábio.
Como é bem conhecido, embora o estudo deve servir para a aquisição da virtude, muitas vezes ele é seu grande inimigo e obstáculo mais perigoso. O amor próprio que sabe usar
tudo para servir a seus interesses, sabe muito bem fazer que a paixão se sirva do estudo para
acabar com o fervor.
Onde encontrar um lugar em que a pessoa não prejudique a outra, em que se saiba unir
uma grande aplicação em adquirir os conhecimentos com um clérigo mais idoso que seja por
sua vez uma escola fecunda em sábios e em santos, uma academia florescente em piedade e
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
doutrina? Esta é a classe de lugar que nosso jovem cônego deseja e que seus pais religiosos
lhe procuram.
5. Entra no Seminário de são Sulpício
Não demorou em encontrá-lo. O Seminário de são Sulpício, tão fa,psp cp, estes traços,
não podia ser desconhecido por causa deles. Foi, pois, enviado para lá. Nunca houve uma casa
de estudos em que se sentiria mais a gosto. Ali encontrou a fonte do espírito eclesiástico, a
escola da mais pura virtude, onde Diretores ilustres e meritórios ensinam a correr pelas sendas
dos caminhos da perfeição, mais ainda com seus exemplos do que com seus discursos. Sentiu
que esse era o lugar em que queria estar.
O finado Pe. Tronson estava então à testa desses santos e sábios eclesiásticos. Este
homem admirável, considerado como um dos oráculos do clero de seu tempo, possuía uma
profunda erudição além de rara e surpreendente sabedoria. A isto, tinha conseguido unir um
fundo de humildade e de simplicidade ainda mais edificantes. À sua maneira exterior de viver
muito comum, soube aliar uma profunda vida interior sumamente recolhida e mortificada.
Sempre desprendido de si mesmo e unido a Deus, não mostrava seus traços meramente humanos a quem o consultava em grande número. Como um anjo – sem paixão, sem impulsos naturais – perfeitamente tranquilo, encontrava, com sabedoria celestial, encontrar as soluções
mais difíceis, e dava respostas tão sábias que podiam atribuir-se ao Espírito Santo.
Muitas pessoas ilustres na França, formados por este digo superior, fizeram seu elogio
com sua conduta e santa vida. Bispos e muitos outros que ocupam primeiras posições na Igrejá, seus discípulos e filhos espirituais, tinham muita honra em o chamar seu pai e seguiam
seus conselhos como oráculos. Tal era o superior do Seminário de são Sulpício quando nosso
jovem cônego de Reims entrou nele. Deus o conduziu por caminhos totalmente desconhecidos
no momento, mas que levavam à execução de seus desígnios eternos por meios eficazes e
suaves. Num mesmo lugar, o fez encontrar os maiores mestres na dupla ciência que vinha
procurando; os maiores auxílios para a adquirir e os exemplos mais convincentes para o animar a trabalhar em sua aquisição com ardor. Ele lhe deu novos arcanjos Rafaeles para que o
conduzissem pela mão à mais sublime perfeição.
O pai espiritual que lhe destinou a Providência foi um santo de primeira ordem, um serafim em corpo mortal, um sacerdote de grande zelo apostólico, um homem que renovava em
sua pessoa as austeridades dos anacoretas, suas longas orações e sua contínua união com
Deus. As pessoas que o conheceram, ao falarem dele, darão testemunho de que não exagero e
reconhecerão neste retrato o falecido Pe. Bouïn, célebre diretor do Seminário de são Sulpício.
Os sinais visíveis de sua eminente virtude levaram a vários prelados, que se encontravam na
casa quando faleceu, a pedir com santa urgência alguns dos instrumentos de penitência com
que tinha martirizado seu corpo, e os conservaram como relíquias.
Muitas foram as almas santas formadas por este homem de Deus. Com quantos sacerdotes santos e fervorosos ministros não enriqueceu a Igreja de Jesus Cristo! Quantos operários
evangélicos como os descreve são Paulo e que a Igreja espera com ânsia obter, não enviou à
vinha do Pai celeste? Dirigido por mestre tão eminente, que progresso não devia fazer na virtude tal discípulo? Prevenido, desde a infância, das bênçãos mais escolhidas, ingressado numa
instituição em que uma chuva de graças inunda a alma de todos os que nela entram com intenção pura e com verdadeiro desejo de se entregar a Deus, vive em companhia de um grupo
de jovens clérigos, a elite da França, cheios de fervor e ávidos como ele, ainda mais da virtude
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Vida de João Batista de la Sal
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do que da ciência. Enfim, na escola em que recebeu ensinamentos dos mais perfeitos eclesiásticos, que passos no caminho da santidade não deu quem tinha vindo buscá-la!
6. Exemplo de juventude no Seminário de são Sulpício
Desde o começo mostrou-se de natureza amável. Longe de atrair censuras e de ofender
a alguém, era muito complacente com todas as pessoas da casa. Deixou de lado, sem demora,
tudo o que, em seus hábitos, e em sua pessoa podia ter maneiras e máximas do mundo. Numa
palavra, foi muito edificante e modelo da casa em que vivia. Seus mestres, contudo, não conheceram bem a virtude de seu discípulo a não ser muitos anos depois, numa estada em seu
seminário, quando o voltaram a ver à testa dos Irmãos das Escolas Cristãs. Os exemplos heróicos de virtude de que foram testemunhas, sobretudo sua paciência em suportar os desprezos, as contradições e as acusações que lhe fizeram diante e seus superiores eclesiásticos, tudo
isso lhe deu a conhecer os progressos admiráveis que seu antigo aluno tinha feito na virtude.
Este é o testemunho que deram dele no Seminário de são Sulpício, em que certamente
não se exageram os louvores e em que somente louvores são distribuídos segundo as regras
mais severas da consciência. Os que conhecem o espírito dessa santa casa sabem bem que
nela se ocupam mais de fazer santos do que os precanonizar. Aliás, se este testemunho é curto, é muito elogioso, e será tomado em consideração especial quando se souber que quem o
proferiu foi o sucessor do Pe. Tronson, o falecido Pe. Echassier, homem de prudência extraordinária, e cuja sabedoria e virtude eminentes receberam , com freqüência, grandes elogios
da boca até de seus grandes inimigos. Este digno superior falava pouco, mas dizia muito e
suas eram sentenças. Tudo o que saía de sua bouca era polido, tinha muito sentido, e estava
cheio do espírito de Deus. o testemunho do Pe. Échassier é conforme aos que deram, mais
tarde, muitos outros eclesiásticos do Reino, dispersos em diferentes províncias, que estiveram
em companhia do Senhor de La Salle no Seminário de são Sulpício.quando se encontravam
com algum dos Irmãos, averguiavam com santa curiosidade as notícias do Pe. De La Salle, de
quem não deixavam de se recordar, e depois de se desfazer em louvores a sua virtude, terminavam seu elogio dizendo que La Salle tinha sido o exemplo de todos os outros do Seminário
de são Sulpício. Quem conheceu o fervor que reinava então entre a juventude sulpiciana, sabe
apreciar o valor deste testemunho. Ser exemplo dos fervorosos em seu próprio lugar renomado pela santidade, é, embora curto, um grande elogio.
Que frutos de virtude não produzirá uma árvore tão boa, plantada em terreno tão excelente e regado pela águas celestiais, se tiver o tempo de afundar bem suas raízes? É de crer
que a mão de Deus que o conduziu ali e o plantou, o deixará por longos anos alimentar-se e
fortificar-se, e que não lhe permitirá deixar o lugar até que, como tantos outros, não tenha
obtido a Licenciatura e o Doutorado e seja douto, perfeito e consumado na ciência eclesiástica.
Tal era, com efeito, o desejo do Senhor de La Salle e de seus virtuosos pais. Mas, ó altitude dos desígnios de Deus! O Altíssimo havia determinado outra coisa. Tinha enviado o
jovem cônego a são Sulpício somente para dar-lhe a conhecer a perfeita virtude, dar-lhe o
gosto dela, lançar as sementes em seu terno coração, reservando-se Ele somente o fazê-la
germinar, formá-lo com sua mão em segredo e conduzi-lo à execução de seus decretos eternos
por caminhos seguros e retos, embora escuros, escondidos e desconhecidos. Isto basta para os
desígnios de Deus que o Senhor de La Salle passe um ano e meio no Seminário de são Sulpício. Depois desse tempo, é preciso que saia para voltar ao tumulto do mundo, que se encontre
encarregado de assumir os assuntos da família, que se torne o tutor e o pai de seus irmãos e
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Vida de João Batista de la Sal
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irmãs, que seus pais comuns vão deixar órfãos e confiados aos seus cuidados. Como são incompreensíveis os desígnios de Deus! É por este sinuoso caminho, por esta vereda estranha e
longínqua na aparência do fim a que a Divina Providência quer conduzi-lo, ela o leva. A morte de seu pai, ao chamá-lo de são Sulpício, o faz deixar o caminho da santidade por uma porta,
mas o vai fazer entrar outra vez por outra, como vamos ver.
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
Capítulo III
Falecimento de seus pais. Saída do Seminário de são Sulpício.
Suas dificuldades de família.
Sua promoção às ordens sagradas. Sua aplicação
a adquirir a perfeição.
1. Falecimento de sua mãe.
Enquanto o senhor de La Salle permaneceu no Seminário de são Sulpício, não pensou
em oura coisa do que em crescer em virtude e em aproveitar os exemplos que via a seu redor
junto com as instruções que recebia para avançar na santificação. Nessa santa instituição estava totalmente ocupado no único necessário. Aplicado ao estudo e à perfeição, fazia servir um
para a outra e não procurava a erudição senão para se tornar mais útil à Igreja.
Livre de eganos, num lugar em que só se entra para entregar-se totalmente a Deus, aprovektou da solidão de seu estado para fazer sérias reflexões sobre seus compromissos e deveres, a santidade de seu estado e a perfeição que ele exige. Depois de deliberar se devia abraçar definitivamente o estado eclesiástico e ligar-se a ele com vínculos indissolúveis, se dispôs
a fazê-lo, quando soube da morte da senhora sua mãe, falecida a 20 de julho de 1671. Este
choque foi tão forte para um coração tão terno como o seu, não interrompeu, contudo, o curso
de seus estudos, mas suspendeu por um tempo sua decisão de abraçar o estado eclesiástico.
Deus o permitiu para lhe dar mais solidez e pureza. La Salle devia andar pelo caminho do
calvário o resto de sua vida. A morte de sua mãe foi o primeiro escalão dessa cadeia de tribulações que se multiplicavam no andar dos dias e que terminaram no mesmo tempo que sua
vida. Quase todos os dias, terá ele sua tribulação especial e estará marcado por uma nova cruz.
Se voltar ao mundo, será para sair dele com glória, para sentir seus espinhos, para conhecer
seu nada, para desprezar sua vaidade, para tomar desgosto do mundo e divorciar-se ele solenemente e para sempre,
2. A morte de seu pai o obriga a deixar o Seminário de são Sulpício.
Ainda não se tinha cicatrizado a ferida que o falecimento de sua mãe tinha aberta em
seu coração, quando a notícia da morte de seu pai voltou a abri-la, tornando-a mais profunda e
dolorosa. Havia somente nove meses de intervalo entre essas duas mortes, pos seu pai faleceu
a 9 de abril de 1672. Fácil é compreender o que passou em sua alma tão nobre e dotada de
natureza tão boa. Que profunda resignação à vontade de Deus não precisava para suportar esta
nova provação! Sem dúvida ele precisava de todos os auxílios da graça, que proporciona o
Seminário de são Sulpício, para se consolar.
Felizmente, estava num lugar em que encontrou nos superiores e nos diretores espirituais uma caridade terna, um coração paternal e um fundo de bondade inesgotável. Não obstante, bem depressa foi preciso voltar a Reims, o que o afligia. Os assuntos domésticos, o cuidado da família, a tutela de seus irmãos menores e órfãos, o chamavam. Isto o obrigou a se
abnegar de si mesmo e ir para junto deles. Quem tem o espírito eclesiástico e ama as fontes de
que se alimenta, pode facilmente entender a pena que sentiu nosso jovem clérigo ao se ver
obrigado a interromper seus estudos, sair de uma casa em que estava feliz, e perder ao mesmo
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
tempo os maiores auxílios e os melhores de perfeição clerical. Todos os seus planos estão
desbaratados, mas não os planos de Deus. a raça o acompanhará por toda parte e o saberá levar à santidade por outros meios. Ele, que tinha entrado no Seminário de são Sulpício com
tanta alegria, a 18 de outubro de 1670, se viu obrigado a deixá-lo com tristeza, a 19 de abril de
1672.
Contudo, La Salle, cheio de espírito eclesiástico, cheio de fervor, e já um homem feito
e correto ou, pelo menos, não deixará de o ser. “Pode-se dizer, em louvor do Seminário de são
Sulpício, declaram os filhos espirituais do Padre de La Salle, - que em tantas ocasiões o ouvem abrir seu coração e o expandir em elogios a esta santa casa, que foi onde adquiriu o espírito de Deus, que foi em seu seio que aprendeu as virtudes que, no futuro de sua vida, brilharam com tanto esplendor. Amava com especial carinho esta sementeira de operários evangélicos, e nunca falava dele a não ser com expressões de grande estima e respeito”. Deu prova
disso, quando, ao estar de volta a Paris para o estabelecimento de sua obra, foi fixar morada
na paróquia de são Sulpício; quis aproximar-se quanto possível, do lugar em que tinha recebido as primícias do espírito eclesiástico, e para ter a facilidade de consultar os padres Tronson,
Bodin e Échassier, cuja direção espiritual procurava ansiosamente, e cujos conselhos considerava como leis.
Com apenas 21 anos de idade, viu-se encarregado da casa paterna, da educação de
seus irmãos menores e do arranjo dos assuntos domésticos. Era uma caga pesada para ele a
esta idade, mas seu caráter não era dos que fazia a carga mais pesada com suas preocupações
e ansiedades inúteis. A vontade de Deus que ele adorava na ação da Providência, lhe servia
muito para torná-la mais leve, pois a vontade divina foi sempre a estrela que dirigiu seus passos na noite escura das dificuldades do mundo. Em meio das tormentas e tempestades que
essas dificuldades ocasionam, tinha seu espírito tranquilo e seu coração em paz.
Aliás, tendo-se tornado o dono de si mesmo nesse tempo, em posse da herança paterna, e ainda com plena liberdade de optar entre o partido do mundo e o do altar, estava feliz de
ter uma nova opção a confirmar a que já tinha feito, e adquirir um novo mérito diante de
Deus.sentiu a alegria de ser livre somente por ter a satisfação de ratificar nessa idade madura,
por meio de votos irrevogáveis, sua consagração a Deus feita ao sair da infância. Como seu
coração tinha feito tal escolha em idade mais nova, como a graça o tinha inspirado, como o
tinha determinado a uma vocação bem definida, nada podia fazê-lo mudar nem fazer vacilar
uma resolução que sua estada em são Sulpício tão fortemente tinha cimentado.
Contudo, não quis seguir exclusivamente sua própria cabeça num assunto tão importante. Tinha bem firme em seu espírito sulpiciano para escutar uma voz diferente da que lhe
ditava a obediência. Ele tinha visto naquela santa casa que a maioria dos jovens eclesiásticos
se apresentava à ordenação tremendo e chorando e que o faziam somente quando tinham recebido a recomendação de seus superiores e diretores. Ele sabia que era do bispo ou de seus
representantes de quem devia ouvir estas palavras: Meu Amigo, suba mais alto!
3. Coloca-se sob a direção do Padre Roland.
Estava inteiramente acostumado à prática sulpiciana de não fazer nada sem autorização e santificar as menores ações, fazendo-as por obediência. Por isso se cuidou de não proceder por iniciativa própria num assunto tão transcendental. Plenamente convencido disso,
não estando mais no seminário de são Sulpício, procurou um homem que pudesse guiá-lo e
acreditou tê-lo encontrado no padre Roland, cônego e teólogo da catedral de Reims. Este zeloso cônego, de piedade sólida e ilustrada, era um homem comprometido em boas obras e não
se limitava a estar presente no coro e a cumprir o mínimo como cônego. Tinha grandes talen-
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tos e sabia usar deles para a glória de Deus e a salvação do próximo. Respeitado durante sua
vida em Reims, depois de sua morte era lembrado com gratidão e veneração singular, sobretudo na comunidade das Irmãs que fundou sob a invocação do Menino Jesus, para manter
escolas gratuitas em favor das meninas, em diferente bairros da cidade e para dar uma educação cristã às jovens órfãs abandonadas.
Tendo escolhido a Roland como seu anjo da guarda visível, entregou-se cegamente a
sua direção. Sem dúvida que ao dirigir-se ao teólogo, ainda não tinha a idéia dos desígnios da
Providência. Eles começavam todavia a despontar, e ela começava por essa decisão a dirigi-lo
para seus desígnios. De fato, o filho em breve se fez o herdeiro do zelo e das obras de seu pai
espiritual. Ainda mais, a obra do padre Roland, por excelente que fosse, não mais do que um
bosquejo da que Deus queria fazer por intermédio do padre de La Salle, porque o zelo deste
não devia limitar-se à cidade de Reims, mas que toda a França devia sentir seus efeitos.
O padre Roland também ignorava tudo isso. Se tivesse sabido que tipo de homem, nos
desígnios de Deus, era esse cônego que o tinha escolhido para dirigir, teria honrado a seu
mestre em seu discípulo e se teria considerado como uma criança ao lado deste grande homem, que caminharia com passos de gigante pelo caminho da perfeição evangélica, e que iria
estabelecer no reino, a pesar de todas as oposições dos homens e todos os esforços do inferno
contra si, as escolas cristãs e gratuitas.
Nada obstante, guiado sem dúvida por um instinto sobrenatural, o padre Roland fixou
seus olhos no padre De La Salle e o escolheu em seu coração para o suceder na obra que tinha
empreendido. O zelo pela doutrina cristã era a principal virtude do diretor, por isso não poupou nada para a inspirar a seu discípulo. Esta matéria era o tema ordinário de suas freqüentes
conversas. Foi, portanto, sob a direção deste excelente guia que La Salle criou gosto pela educação da juventude. Foi do profundo \elo do velho cônego que o jovem tirou os primeiros
ardores do seu, pelas escolas cristãs e gratuitas, que estabeleceu em muitos lugares do reino
com tanto êxito.
Para consegui-lo, transformou sua casa numa casa de retiro, estudo e oração – chegaria
a dizer uma espécie de seminário de são Sulpício – e se determinou a receber da Faculdade de
Teologia de Reims, os graus que a divina Providência não lhe permitiu receber na Sorbona.
Homem de estudo e oração, dividiu seu tempo entre estas duas ocupações, e se lhe sobrava
algum momento, era para o dedicar às boas obras. Sua vida foi a mesma de um fervoroso seminarista de são Sulpício e uma constante preparação ao diaconato que, aconselhado por seu
piedoso diretor, recebeu em Paris, no ano de 1676.
Sem comparar nosso jovem diácono com o primeiro da Igreja, seja-me permitido aplicar-lhe, guardando as devidas proporções, as palavras que o Espírito Santo usou na canonização de santo Estevão: Estava “cheio de graça e de poder”3. A modéstia, calma e graça que o
padre La Salle mostrava a todos os que o freqüentaram, inspirava-lhes este juízo de louvor em
seu favor, e mais de uma vez, quando estava junto do altar, em oração ou em outras orações,
as pessoas criam ver nele, como em outro Estevão, o rosto de um anjo.
3
Literalmente “cheio de graça e do Espírito Sato”. Blain emprega a Vulgata e aqui empregamos a Bíblia de
Jerusalém. (At 6,8).
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Vida de João Batista de la Sal
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Capítulo IV
Sua preparação ao sacerdócio: maneira edificante
de celebrar a santa Missa
Somente lhe faltava receber o sacerdócio. Para se prepara à ordenação, renovou seus
esforços e procurou aumentar seu fervor em proporção da eminente dignidade a que aspirava:
separação mais completa do mundo, regularidade de vida mais estrita, vigilância sobre si
mesmo mais exata, recolhimento mais profundo, aplicação renovada ao estudo, modéstia,
devoção, maior assiduidade ao Ofício canônico, tais foram as virtudes que pensou praticar
durante dois anos, a fim de se dispor ao sacerdócio. Podia fazer coisas demais para se preparar? Uma responsabilidade temida pelos próprios anjos, uma dignidade cujo peso parecia esmagar os espíritos celestes, não merecia acaso toda sorte de preparação? Pode alguém antevêla sem pavor, e apresentar-se a recebê-la sem um santo tremor? Um dos sacerdotes mais santos de nosso século, primeiro fundador e primeiro superior do seminário menor de são Sulpício – o padre Brenier – tinha o costume de dizer a seus discípulos que era preciso estar cego
para se apresentar ao sacerdócio: cego pelas trevas do pecado e das paixões, ou por uma obediência simples e não repensada.
O autor desta frase tinha dado um exemplo patente disso. Depois de ter diferido sua
ordenação sacerdotal durante longos anos, usando todos os pretextos imagináveis, somente a
obediência cega pode fazê-lo consentir; e mesmo assim, não pode reprimir as lágrimas, os
gemidos e os tremores, nem impedi-lo de se apresentar com uma repulsa semelhante à que
sente um homem que é levado ao suplício, se me é permitido descrevê-lo desta maneira.
1. É ordenado sacerdote.
O senhor de La Salle tinha sido educado neste mesmo espírito e estava cheio dos
mesmos sentimentos. Experimentou os mesmos temores, e, se me atrevo a dizê-lo, os mesmos
horrores santos e sagrados a uma ordenação, quem ao elevá-lo acima do pináculo do Templo,
o expunha a todos os assaltos do espírito maligno e, em caso de queda, não lhe mostrava senão os mais horríveis abismos em que cairia. Apesar de tudo isso, ele sabia obedecer e, de
fato obedeceu ao que, ocupando o lugar de Deus, tinha plena autoridade sobre ele. Foi ordenado sacerdote a 9 de abril de 1678, véspera da Páscoa, com a idade de 27 anos, pelas mãos
de seu próprio arcebispo e na igreja metropolitana de Reims, da qual era membro. Não deixou
nenhum intervalo entre sua ordenação e a primeira missa, porque toda sua vida lhe tinha servido de preparação prévia a celebrar este temível sacrifício, e desde dois anos inteiros, se tinha aplicado a se dispor cada dia à ordenação com fervor renovado. Ele sabia que todo pontífice é escolhido entre os homens e estabelecido pelos homens, nas coisas que se referem a
Deus, para lhe oferecer presentes e sacrifícios pelos pecados.
Sendo já sacerdote da nova aliança, o Padre de La Salle se apressou a exercer o ministério e cumprir o dever principal que é sacrificar a divina vítima e oferecer a Deus um Deus
imolado. Toda a vida teve tão grande prazer por esta função divina, tal atrativo e tanto zelo,
que nunca se eximiu de subir ao altar para celebrar, exceto quando não lhe foi possível de o
fazer. Longe de colocar sua crença, seu respeito e sua devoção pelo mais augusto dos misté119
Vida de João Batista de la Sal
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rios, em se afastar dele e não aparecer no altar a não ser nos dias assinalados, La Salle considerou essa função de oferecer o sacrifício como a função principal e essencial de seu sacerdócio, e se comprometeu a celebrar cada dia. Mas ao mesmo tempo, para o fazer com graça e
com fruto, se aplicou a viver de novo de um modo digno de tão augusta função, que o habilitara para o repetir todos os dias. Junto com o compromisso de celebrar a missa diariamente,
fez outro de celebrar com uma devoção cada dia renovada. Com o fito de evitar a rotina numa
ação diária e contrair uma familiaridade perigosa com o altar, teve o cuidado de manter acesa,
no altar de seu coração, a chama da divina caridade e a luz de uma fé viva e ativa por meio do
retiro, a mortificação, a oração e o recolhimento. Vivendo desta maneira, se fez digno de se
aproximar todos os dias do altar.
2. Celebra sua primeira missa na catedral
Um dia depois de sua ordenação, celebrou sua primeira missa na catedral, sem qualquer solenidade, pelo desejo de se manter no recolhimento, em união com Deus, nas impressões recentes da graça da ordenação e na atenção aos movimentos do Espírito Santo. Estas
foram as razões que o obrigaram a dispensar-se das cerimônias estrepitosas que se costumam
nessas ocasiões e são uma distração perigosa que debilita a devoção, e distrai a atenção que
reclama uma ação que transcende todas as demais.
Como se via ele no altar pela primeira vez? Sem dúvida como apareceria um dos sete
espíritos bem-aventurados que estão sempre junto do trono de Deus, se descesse à terra para
subir ao altar em figura de um homem mortal, com uma modéstia, piedade, reverência e devoção que revelariam em seu rosto e em todo seu exterior as impressões que faria, em sua
alma, a grandeza dos mistérios que celebraria. Esta visão seria capaz de inspirar a fé nos hereges mais obstinados.
A primeira vez que subiu ao altar não foi a última em ter esse ar de sanidade. Sempre
o teve. Levava a raiz dentro de um fundo de graça e de virtudes e na presença do Espírito Santo que era seu forte. Esta atitude somente aumentou com a repetição do augusto sacrifício. Se
toda sua vida tinha serviço de preparação à primeira missa, essa missa foi a preparação da
segunda. A segunda da terceira; e sempre a do dia presente servia de preparação da do dia
seguinte. Para sentir a fé na presença real de Jesus Cristo no Santíssimo Sacramento e ver
nascer em seu coração os sentimentos de devoção, era bastante ver o jovem sacerdote oferecer
o sacrifício no altar. Com efeito, as pessoas iam à missa para se edificarem, para se comoverem, para participarem de sua piedade. Estava-se recolhido, enternecido, sentia-se outro quando se era testemunha do recolhimento, do profundo respeito e do ar de majestade que acompanhavam a La Salle em seu ministério sagrado. Era esperado pelas pessoas, ao sair do altar,
para aproveitar as graças que nele tinha recebido
4. A devoção, com que celebra, atrai a gente a sua missa e a buscar seu conselho.
Quando terminava sua açã0 de graças, as pessoas o agarravam, por assim dizê-lo, para
não o deixar escapar, com o fim de o consultar e o obrigar a partilhar suas luzes. Foi como
Moisés que, ao sair do contacto com Deus, hauria um fundo de luzes, que se espraiava sobre
os que dele se aproximavam. Sua juventude não impedia a confiança que sua piedade ispirava, porque, embora jovem sacerdote, já parecia um santo.
Possuía o espírito de Deus. Todos estavam persuadidos disso que desde que se tinham
assistido a sua missa. Por isso era assediado por pessoas que vinham receber de sua boca as
respostas do Espírito Santo. A exemplo do Legislador da antiga Lei, parecia o mais benigno
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
dos homens quando regressava de suas conversações com Deus. Escutava com paciência,
respondia com bondade, amenizava todas as suas palavras com uma graça e unção que saíam
do coração e que lhes davam eficácia. Em tudo o que dizia, semeava sentimentos de piedade.
Tudo quanto fazia levava a marca da caridade. Resolvia as dúvidas, diminuía as dificuldades, dava regras de comportamento. Acomodava-se aos diferentes caracteres, levava
com discrição as diferentes disposições, aceitava os importunos e sabia incluir nos fins da
graça até os defeitos opostos a ela. Tinha a arte de atrair as almas a Deus, de ter a chave dos
corações, e de fazer entrar neles o amor divino. Com isso mostrava que um sacerdote nunca se
expõe guiado pelo espírito de Deus. Deus falava por sua boca, porque falava incessantemente
de Deus, e somente repetia aos homens o que Deus lhe tinha ensinado. Tal sacerdote era totalmente propício para ser o instrumento das maiores obras de Deus e o órgão de seus oráculos. Este é o homem de Deus encarregado dos assuntos dos homens diante de Deus e dos assuntos de Deus diante dos homens. Instruído por Deis mesmo, sabia tudo o que devia dizer
aos homens da parte de Deus. agradava a Deus, era o que se precisava ser para fazer-se escutar de Deus em favor dos homens.
Contudo, sucedia muitas vezes que ao deixar o altar depois de seus colóquios com
Deus, o Padre de La Salle não estava disposto a se entreter imediatamente com os homens;
estava tão ocupado com aquele que acabava de receber, que não podia distrair-se. Que feliz
obstáculo à caridade para com o próximo! Que desejável impedimento à comunicação com as
criaturas! Via-se então como estava tão compenetrado de Jesus Cristo presente nele, tão concentrado e unido a este divino Hóspede presente em seu peito, que escassamente podia fazer
uso de seus sentidos. Durante esse tempo parecia imóvel e todo seu exterior numa santa calma, deixava o interior em liberdade de gozar a presença de seu bem-amado. Muitas pessoas
dignas de crédito foram testemunhas disso. Esta espécie de êxtase se originava no domínio em
que mantinha seus sentidos, no rigor com que tratava seu corpo, e no cuidado que tinha de ver
somente a Deus em todas as coisas. Havia-se acostumado a isso por meio de seu afastamento
do mundo com o qual se proibia toda comunicação enquanto os deveres da cortesia e seus
negócios lho permitiram. Gostava de estar sozinho e fugia das aparições em público. Mas
nunca esteve menos sozinho do que quando estava em solidão, porque estava sempre com
Deus. em todo tempo, centrado sobre si mesmo, recolhido, modesto e unido a seu soberano
bem, sempre conservava sua identidade. Era tão tranquilo, tão sereno em todos os acontecimentos da vida, que se cria que a divina Providência os tivesse regulado todos segundo seus
gostos e desejos.
Esta morte dos sentidos em que vivia, fazia-o quase insensível aos atrativos das criaturas e os objetos sensíveis lhe pareciam invisíveis. Vivia na terra cini se estivesse a sós com
Deus, num gostoso esquecimento de tudo mais. Como essas estátuas sem vida, objetos da
adoração insensata e sacrílega dos idólatras, que o rei Profeta descreveu: Tinha olhos e não
via, ouvidos e não ouvia, língua e não falava, ou não fazia uso dos sentidos a não ser para as
coisas de Deus. esta engenhosa ironia que se burla dos deuses dos pagãos e coloca em relevo
seu ridículo, pinta de maneira realista nosso jovem sacerdote e serve para fazer seu elogio ao
mostrar sua vida interior.
Não quero dizer que o padre de La Salle pode cerrar os olhos e os ouvidos a tudo o
que o rodeava ou que, vivendo como um selvagem, recusava o trato com a sociedade civil.
Ele não apresentava nada de singular. A exemplo de Jesus Cristo, viveu no exterior como os
outros homens e ocupou seu lugar na sociedade. Mas sob esta aparência exterior ordinária,
mostrava uma extraordinária vida interior. Vida sobrenatural, interior e celestial, que o mantinha em tão grande abstração dos sentidos, em tanto desapego das coisas exteriores, em tão
grande elevação sobre si mesmo, que se pode dizer que via sem ver, ouvia sem ouvir, porque
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Vida de João Batista de la Sal
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nada do que via, nada do que ouvia fazia impressão em sua alma nem podia penetrar em seu
coração.
Quando se encontrava no altar, estava ao abrigo dessa multidão de distrações, de que
as pessoas mais virtuosas tê tanta dificuldade para se defender? Tendo domínio de sua imaginação, podia obrigá-la durante os santos mistérios, deixá-lo em paz e não perturbar seu repouso em Deus? com certeza! Nas “Memórias” de sua vida dizia que não experimentava as divagações de um espírito distraído nem as ilusões da imaginação. Este privilégio é grande, insólito e extraordinário. O que é que Deus não faz em favor dos que escolheu para o servir em
obras importantes?
Este santo sacerdote tinha tão alto conceito de seu ministério, que respeitava tudo o
que se relacionava com ele. Queria que tudo que estava a serviço da igreja fosse limpo e frvoroso. Cheio de veneração pela santidade dos sagrados mistérios, pensava que tudo o que estava em conexão com eles, não podia ser rico e magnífico demais. O sofrimento que sentia ao
não poder celebrar a santa missa, se media pelo consolo que sentia ao celebrá-la. A doença ou
a enfermidade devia ser muito grande para o impedir. Muitas vezes encontrava bastantes forças para se arrastar, ou fazer-se conduzir ao altar, para celebrar e se nutrir do pão dos fortes.
5. Seus êxtases freqüentes quando celebrava.
Muitas vezes depois da comunhão, entrava em longos êxtases. Era nessas elevações do
espírito a Deus em que aprendia a ciência do desprezo do mundo e a arte de pisotear os preconceitos dele. Tinha muita necessidade dessa ciência porque a obra a que Deus o destinava e
que lhe mantinha oculta ainda, exigia um homem insensível aos taques da malícia humana.
Como devia ser alvo de contradições, repulsas, desprezos, maldições e calúnias, como estava
destinado a aguentar tudo o que a inveja inventa d mais negro, todo o veneno que a língua
maldosa espalha, tudo o que o coração humano tem de mais fatídico e artificial, ele devia possuir o desprezo do mundo em grau eminente. Ele o precisou até mesmo diante do começo de
seu sacerdócio, porque a idéia da sublimidade de suas funções e da santidade que exige dos
que são honrados com este ministério, o impressionava tão fortemente, que não podendo ver,
sem lhe rasgar o coração, sacerdotes profanar sua eminente dignidade por uma vida secular,
ele lhes fazia censuras que lhe atraíam, às vezes, insultos. Seu zelo em repreendê-los era considerado exagerado na opinião de alguns mundanos, que formam seus juízos em conformidade com suas paixões.
Numa ocasião, o jovem ministro do Senhor mostrou seu zelo censurando a um eclesiástico que dava mau exemplo. Isto desatou a crítica e deu matéria para falar a esta classe de
gente ociosa que exerce o ofício de murmurar, que nunca tem o jeit de decidir em favor da
devoção. O Padre de La Salle, depois de haver procurado todas as maneiras imagináveis de
brandura, para fazer refletir a um homem que tinha estado sempre numa dissipação contínua e
que esquecia que devia ao próximo inclusive a si mesmo, depois de ter visto a inutilidade de
seus caridosos conselhos, armou por fim seu zelo e fez sentir ao culpado os aguilhões da caridade. Isto o fez em segredo e em particular, segundo o mandamento de Jesus Cristo, por receio de o irritar e escandalizar. Como a repreensão foi secreta, mais eficaz do que os conselhos, o piedoso cônego pensou que era preciso torná-la pública com o fim de tirar aos outros a
ocasião de se escandalizar, se ele não podia converter o escandaloso. Se não teve bom êxito
neste segundo propósito, o teve no primeiro, porque tornou a repreender publicamente o incorrigível e com tanta energia, que o obrigou a mudar de cidade, já que não queria mudar de
vida.
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Vida de João Batista de la Sal
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Capítulo V
Seu diretor espiritual lhe sugere permutar se canonicato com determinado
pároco da cidade de Reims; La Salle obedece.
Sua virtude e submissão cega nesse episódio.
Ao notar o progresso que seu discípulo fazia na perfeição e sua grande docilidade em
se deixar guiar, o padre Roland quis aproveitar essas disposições para um plano curioso que
lhe ocorreu, mas que não teve resultado, porque parece que o Espírito Santo não tinha sido
seu autor. A Divina Providência impediu a execução do plano pela oposição de quem dependia seu êxito e que se recusou a lhe dar sua aprovação. Este é o fato que vai bosquejar ao natural a situação da alma do jovem cônego, ordenado sacerdote, e vai mostrar seu desprendimento, sua indiferença a todas as coisas, sua submissão e o espírito de sacrifício em que vivia desde então.
1. Roland lhe sugere permutar seu canonicato por uma paróquia.
Vendo seu discípulo cheio de graça e do Espírito Santo, de talentos próprios para o
governo das almas, de força e coragem para os trabalhos mais penosos, o diretor pensou que
uma paróquia conviria melhor do que o canonicato, e que as funções de pastor o tornariam
mais útil à Igreja do que a de cônego. Pensando assim, parecia desconhecer ou esquecer a
extensão da vocação dos cônegos das igrejas catedrais, os quais conformavam o senado da
igreja, e que sendo os conselheiros natos do bispo, deviam ser seus primeiros ministros, seus
fiéis cooperadores e pessoas sempre disponíveis para trabalhar na presença dele e sob suas
ordens, não em determiado lugar da diocese, não pelo bem de uma só paróquia, como é o caso
dos párocos, não por uma obra particular, e sim pelo bem de toda a diocese, homens sempre
prontos a empreender toda sorte de boas obras4.
O padre Roland se esquecia de seu próprio caso, já que seu estado de cônego em lugar
de lhe colocar limites a seu zelo, o deixava em liberdade para empreender atividades e não o
impediam de utilizar seus talentos para a conversão das almas nem para consagrar-se às boas
obras, nem mesmo de empreender novas, muito úteis à Igreja. Ao propor este plano, talvez o
teólogo tinha algumas intenções de favorecer seu recém fundado instituto. Será que ele pensava que o Padre de La Salle poderia desenvolver-se mais como pároco do que como cônego?
Seja como for, o diretor queria ver a seu discípulo como pastor de são Pedro de Reims. Com
este fim inspirou-lhe a idéia de permutar seu canonicato por aquela paróquia. Era preciso estar
bem certo da virtude do Padre de La Salle para lhe fazer tal proposta, porque ela só poderia
agradar a uma pessoa morta a tudo e disposta a toda classe de sacrifícios.
É bem sabido como se considera o canonicato em Reims e na maioria das cidades da
província. Obter um canonicato é o fim e o desejo dos que se destinam à Igreja e também de
suas famílias. Ordinariamente, sua ambição ali se acaba, sem ir mais longe. Uma prebenda de
cônego enche as expectativas das pessoas de boa condição econômica. Os ricos e as pessoas
de virtude medíocre que não estão dispostos a ocupar um lugar entre o comum dos pastores,
se sentem honrados de encontrar um lugar entre os cônegos das igrejas principais. Segundo o
espírito do mundo, não queira Deus que nós o aprovemos, ao propor ao Padre de La Salle de
passar de cônego para pároco fosse propor-lhe descer um degrau do altar e colocar-se um
pouco mais baixo para ceder a outro o primeiro lugar. Teria podido escutá-lo sem sentir desgosto, se ainda estivesse sensível à questão de honra?
4
Cf. Eipen em sua dissertação canônica De institutio et Officiio canonicorum, v. 3
123
Vida de João Batista de la Sal
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2. Dificuldades deste plano
seja como for, grandes dificuldades se opuseram ao projeto do diretor. Como a paróquia de são Pedro de Reims era muito extensa, exigia uma pessoa de idade madura e de experiência, e o Padre de La Salle não tinha nenhuma das duas. A carga parecia muito pesada para
sua juventude. Além disso, estava encarregado do cuidado de sua família, da educação de seus
irmãos e irmãs órfãos e dos negócios domésticos. Seria preciso abandonar os deveres naturais,
legítimos e essenciais? Seria preciso esquecer os deveres que o tinham obrigado a privar-se de
uma longa estada no seminário de são Sulpício, estabelecimento que tanto estimava e cuja
saída lhe custou tanto? E podia combinar os cuidados do cargo de pastor, com os de uma tutela importuna
Uma de duas: ou o padre Roland não raciocinava sobre tudo isso, ou estava sendo inspirado de maneira muito estranha. Além disso, acontece com freqüência que o Espírito de
Deus é autor de vários projetos piedosos cuja execução nem sempre são o que quer. Davi se
propõe, por inspiração de Deus, construir um templo. Contudo, Deus, pela boca de Nata, detém a execução desse plano, enquanto aprova e abençoa seu autor. São Luís fez o voto de ir
pessoalmente libertar os lugares santos do domínio dos maometanos; contudo viu envergonhado fracassar seus planos que somente o Espírito de Deus tinha podido lhe inspirar. Depois
de tudo, Deus que dentro de pouco tempo devia pedir ao Padre de La Salle o despojamento de
seu canonicato e de todos os outros bens, tinha tal vez, o desígnio de prepará-lo a isso por
meio da proposta do padre Roland. Talvez Deus tinha m o desígnio de dar, na pessoa do jovem cônego, um maravilhoso exemplo de zelo, de desprendimento, de simplicidade cristã, e
de docilidade para se deixar dirigir. Talvez até, nas decisões eternas, o mérito da ação que vai
fazer, devia atrair-lhe a graça que lhe foi concedida de abandonar tudo, a exemplo dos apóstolos para seguir a Jesus Cristo pobre, nu e despojado de tudo.
Em todo caso, a proposta do diretor encontrou um discípulo submisso. Um homem
que somente queria a vontade de Deus, era indiferente a ser um pároco ou cônego. Somente o
atraía a vontade de Deus que ele pensava receber pela boca do padre espiritual, e por isso, se
determina a permutar sua prebenda pela paróquia de são Pedro de Reims. A proposta do padre
Roland foi, pois, aceita por João Batista de La Salle sem exame, sem raciocínios, assim que a
escutou. No intuito de a realizar, partiu para Paris onde se encontrava seu arcebispo, dom
Maurício Letellier. Encontramo-nos diante de um exemplo admirável de desprendimento e
dessa infância espiritual que abre a entrada ao reino dos céus e que Jesus Cristo tanto recomendou a seus discípulos.
Sem dúvida de que tudo o que Deus pedia do jovem cônego era este consentimento.
Nesta preparação do coração ele via uma disposição magnífica para os grandes sacrifícios que
ele devia lhe inspirar, qualquer dia. Depois de ter provado a este novo Abrarão, depois de ter
comprovado sua obediência, fidelidade, desprendimento e amor, está satisfeito e, sem recusar
seu sacrifício, o suspende, ao inspirar a uma autoridade para que se opusesse. E assim aconteceu.
2. O arcebispo de Reims impede a permuta.
Os parentes do Padre de La Salle, interessados pelo que se referia a ele, ao mesmo
tempo em que admiravam a grande virtude, estavam alarmados por sua resolução também
consideravam um dever, impedir sua realização. Ao agir sob a direção do senhor arcebispo,
conseguiram fazer fracassar as medidas que o diretor espiritual e seu discípulo já haviam tomado. Ao ficar sabendo das intenções, dom Letellier não as aprovou e se recusou a autorizar a
permita; de sorte qje as partes que se tinham apresentado para solicitar seu beneplácito, fica-
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Vida de João Batista de la Sal
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ram muito surpreendidos diante da ordem de cada um ficar na vocação em que o Senhor os
tinha colocado. Esta sentença, pronunciada pelo prelado foi recebido por nosso cônego, como
a decisão do próprio Deus, e se submeteu à voz de seu primeiro superior com a mesma docilidade com que tinha assentido à vontade do superior subalterno. Ele tinha querido ser um pároco somente porque pensava que Deus o pedia pela boca do padre Roland, não quis sê-lo
agora, assim que dom Letellier lhe ordenasse a esquecer o assunto. Mais tarde, declarou várias vezes que lhe parecia que uma voz interior se conformava com a voz exterior do arcebispo; ao lhe dizer que não fora chamado a ser um pároco.
O pároco de são Pedro de Reims que desejava muito a permuta, e que não esperava
esas resposta do prelado, foi que pareceu mais decepcionado. Teria ficado menos contrariado,
ou melhor, não se teria contrariado, se seus sentimentos tivessem sido tão puros como os do
Padre de La Salle, e se, como ele, se tivesse desprendido de todo interesse próprio. Além disso, a fé, a simplicidade e a docilidade com que o jovem cônego se dirigia a seu superior, em
quem via somente a Jesus Cristo, atraiu sobre ambos as luzes do céu. A julga\r pelo que seguiu, o senhor arcebispo de Reims esteve bem inspirado nessa ocasião, porque se o prelado
tivesse assinado o pedido que lhe apresentaram, certamente que o Padre de La Salle, carregado com a responsabilidade de uma extensa paróquia, não teria pensado em estender seu zelo
fora de seus limites, nem em fundar seu Instituto.
Ao manter João Batista de La Salle na catedral, o arcebispo não tinha, sem dúvida, outra intenção do que a de conservar um sacerdote de muito mérito e que dava excelente exemplo, um operário laborioso capaz de trabalhar em sua vinha e um cônego apto a prestar serviços importantes a sua diocese. O arcebispo se dava bem conta de que, ao permitir ao Padre de
La Salle vincular-se a uma paróquia, teria amarrado os talentos dele, e que ao limitá-lo ao
recinto de uma paróquia, o teria subtraído ao resto de sua Igreja. Como se pode pensar, a isto
se reduzia o que pensava o senhor arcebispo de Reims, mas os desígnios de Deus iam muito
mais longe. Seu plano era tomar a debaixo da cama luz que devia iluminar a todos lugares do
reino; e colocá-la sobre a montanha,.seu desígnio era pôr em liberdade um zelo que não aceitava limites e que teria permanecido preso na cidade e na diocese de Reims. Ao voltar para
casa, o Padre de La Salle se dedicou de novo a cumprir sua vocação em toda sua extensão,
acrescentando a seu dever de cantar os louvores de Deus, o de ganhar almas para ele.
3. O Padre de La Salle se dedica ao estudo e ao ofício canônico
Persuadido que um cônego sacerdote com talento, saúde e o beneplácito do bispo, deve, segundo as intenções da Igreja, ser um operário apostólico, não se limitou somente ao ofício canônico; quis trabalhar na vinha do Senhor e exercer as funções próprias do caráter sacerdotal. Como cônego, tomava muito a sério ser assíduo ao coro e ir para lá em nome de todos os fiéis da diocese, render à Majestade divina todos os deveres da religião que lhe são
devidos. Como sacerdote, se considerava ministro da Igreja, ajuda e colaboração do bispo.
não pensava que um canonicato podia transformar-se num privilégio para permanecer ocioso
e desocupado na vinha do Senhor.
Na pessoa do padre Roland, seu diretor, encontrou um modelo desse comportamento,
porque o virtuoso cônego teólogo não enterrava o talento que tinha recebido do Senhor, nem
limitava seu zelo a sentar-se numa das poltronas do coro da catedral. Corria para qualquer
lugar em que enxergava uma obra boa a fazer. Prestava-se a toda sorte de boas obras a fazer, e
seu atrativo principal eram as Escolas Cristãs e Gratuitas. Foi essa atração que procurou inspirar antes de falecer a seu querido discípulo, confiando-lhe o cuidado da casa das mestras de
escola que tinha conseguido estabelecer em Reims.
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
Não sei, se ao falar aqui da morte do padre Roland, estou agora colocando em seu
tempo e lugar adequados, porque diversas memórias da vida de João Batista de La Salle, não
estão de acordo sobre este ponto, como tampouco sobre a época de seu projeto de permuta do
que se referiu acima, sobre muitos outros assuntos. Mas, como, ao escrever as vidas da pessoas falecidas em odor de santidade, o mais importante é edificar por meio do relato de sas virtudes, a desordem na apresentação de alguns fatos de que não são conhecidas as datas exatas,
não poderá impedir esse fruto. Uma coisa é certa; é que La Salle, uma vez ordenado sacerdote
e obrigado, por seu arcebispo, a permanecer cõnego, não tardou em perder seu diretor. Essa
morte, nos conselhos da sabedoria eterna, era o caminho que a Providência empregava para
dirigir o \Padre de La Salle a seu fim. O jovem cônego se tornou o sucessor do teólogo em sua
obra apostólica, o herdeiro de todo seu zelo. Começando com um compromisso muito lmitado, continuou às cegas, sem absolutamente sem o prever e sem o querer, conduzido pela mão
da divina Providência à fundação do Instituto dos Irmãos. Vamos segui-lo em sua caminhada,
indo, como Abraão, pelos caminhos que o Senhor lhe assinala, sem saber aonde vai chegar
nem aonde o conduzirão.
4. O padre Roland morre e deixa seu discípulo encarregado de sua obra.
Já ficou dito que o padre Roland, seu diretor, cônego e teólogo da catedral de Reims,
era um grande homem de bem e um excelente operário evangélico. A uma piedade sólida e
ilustrada juntava um zelo ardente, ativo e infatigável. Sua função de teólogo lhe dava ocasião
de satisfazer e de usar em prol das almas, o grande talento da palavra que o céu lhe tinha concedido. Um zelo tão extenso não se limitava às funções de teólogo, que lhe proporcionava,
contudo, vasta matéria. Ia a toda parte em que o chamavam. Sua palavra era tão eficaz como
seu exemplo. Os frutos desta divina semeadura germinavam com abundância em qualquer
lugar em que a espalhava e regava com seu suor. Contudo, embora seja verdade que a glória
de Deus e a salvação das almas sejam o fim de todos os operários evangélicos, não é menos
verdade que quase todos recebem a inspiração de trabalhar de certa maneira e que se sentem
determinados pelo atrativo de certas obras. O atrativo de Roland era a instrução da juventude.
A corrupção, a má educação e a ignorância dos pobres o comoviam até as lágrimas e estimulavam poderosamente seu zelo para procurar um remédio a isso. A inspiração que teve para
fazer nesse ambiente em que se encontrava, foi o estabelecimento das escolas cristãs e gratuitas. O remédio para o mal era excelente, mas não era fácil. Para estabelecer as escolas cristãs
e gratuitas, precisava-se de encontrar fundos, ou recursos para as manter. Isso não era bastante; era preciso encontrar mestres e mestras capazes de instruir bem e de formar na piedade
tanto com seus exemplos como com suas palavras, à juventude pobre de ambos os sexos. Mas
onde encontrá-los? Onde encontrar pessoas desinteressadas, zelosas e piedosas aptas para
levar a bom termo uma obra dessa natureza? Esperar encontrá-los como caídos do céu, bem
formados, e com capacidade de empreender essa tarefa com bem êxito, teria sido fazer-se de
ilusionista. Os próprios apóstolos tiveram necessidade da escola de Jesus Cristo para os instruir antes de irem instruir os outros. Jesus Cristo o tinha retido durante três anos completos
junto de sua sagrada pessoa para os formar pessoalmente antes de os enviar a proclamar sua
doutrina.
Inclusive receberam a ordem de não empreender a obra sem terem antes recebido as
luzes e os dons do Espírito Santo. Com efeito, não se pode ensinar a outros o que não se aprendeu. Já que não nascemos com as virtudes, e somente com o trabalho e muitos esforços é
que podemos adquiri-las, é preciso muito tempo, muitos lugares e mestres apropriados para
nos ajudar a fazer essa aquisição. É preciso ser discípulo antes de ser mestre. É necessário
praticar muito, quando se quer ensinar com fruto. A solução para o problema de Roland era,
pois, estabelecer comunidades que fossem uma espécie de seminários em que os mestres e as
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
mestras de escolas pudessem ser instruídos e formados para serem capazes de educar a juventude na piedade e de lhes ensinar a doutrina cristã.
O zelo do padre Roland o levou a considerar esses grandes projetos, mas a graça para
os executar estava reservada a outra pessoa. O Padre de La Salle era o Salomão que devia
executar os santos projetos de Davi, seu pai espiritual, ao menos em sua parte principal; porque ele nunca se encarregou das escolas gratuitas para as meninas. O padre Barré, religioso
Mínimo cheio de zelo apostólico e do espírito de Deus; poderoso em obras e em palavras, já
tinha recebido a inspiração de o fazer, e tinha conseguido fundar as Irmãs da Providência, que
vão para qualquer lugar em que são chamadas. Se essa instituição deu lugar a grande número
de outras, que se multiplicaram dia por dia nas diferentes dioceses da França, o padre Roland
foi, talvez, o primeiro que soube aproveitar dela, fundando em Reims uma comunidade de
mestras de escola, que teve bom êxito somente depois de sua morte, graças ao Padre de La
Salle. Pois bem; essa obra piedosa que o teólogo pensava ser tão necessária para os pobres,
monopolizou sua preocupação, sés esforços e seus bens. Essa sociedade apenas começava sob
o nome de Irmãs do Menino Jesus quando aprouve a Deus chamá-lo para o seu seio. Sua primeira preocupação no leito de morte, foi pedir a João Batista de La Salle que o substituísse e
se tornasse o pai dessas filhas órfãs, que estavam, por sua vez, destinadas à educação de órfãs
pobres. Parece que o diretor, iluminado pelo alto,entreviu os desígnios de Deus sobre seu discípulo, porque pareceu predizer-lhe que era destinado ao estabelecimento das escolas cristãs,
o que sempre tivera o desejo de fazer, mas que não tinha tido tempo de realizar.
Nestes últimos tempos, o Padre de La Salle estava ansioso de recolher os piedosos
sentimentos de seu padre espiritual e ouvir de seus lábios sua última vontade.como de ordinário, não sentiu aversão nem inclinação por este assunto, se não estava na disposição de um
homem que não quer nada para si, e que quer o que Deus lhe pede. O padre não podia mostrar
bastante seu reconhecimento sua ternura a seu amado pfilho espiritual, nem este podia testemunhar suficientemente sua gratidão a seu pai em Jesus Cristo. Sempre dócil a suas ordens,
como expressão da vontade de Deus, aceitou encarregar-se da execução do testamento do
padre Roland e do cuidado de sua comunidade, que, nesse momento por assim dizer, estava
no berço, sem ver aonde a mão de Deus a conduziria.
6. Dificuldades que o Padre de La Salle encontra para estabelecer
a obra iniciada pelo padre Roland.
Não tardou em sentir o peso da carga que se lançou sobre ele. Em cada passo que dava
para o progresso do novo instituto, encontrou espinhos, dificuldades e inumeráveis obstáculos. Com pesar via tantos novos estorvos se juntarem, no mínimo, em detrimento de seus assuntos domésticos, a dividir seu espírito e devorar uma parte do tempo precioso que tinha
consagrado ao estudo e à oração. Sabia que um jovem sacerdote, que quer ser útil a sua Igreja,
tem a mesma necessidade de ambas essas atividade, e que antes de se dedicar a seu ministério
deve construir para si um sólido fundamento de virtude e de ciência. Sabia que o próprio Jesus
Cristo deu a seus ministros o exemplo desta sabia conduta, passando os primeiros trinta anos
de sua vida no retiro, que são João Batista, inspirado pelo céu, esteve igualmente trinta anos
no deserto para se preparar a exercer seu ofício de Precursor, e que não tinha ousado iniciá-lo
sem uma ordem expressa do céu.
Estes exemplos o impressionavam e detinham seu zelo. Com efeito são surpreendentes, e os eclesiásticos de boa vontade nunca os meditaram bastante. O Santo por excelência
somente deu três anos a sua vida pública e a suas correrias evangélicas, enquanto consagrou
todo o resto de sua vida ao silêncio e ao retiro. Seu Precursor deu o mesmo exemplo. Que
lição para os que têm mais zelo do que prudência! Que advertência de se santificar por muito
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Vida de João Batista de la Sal
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tempo, afastando-se do mundo pela oração e a prática das virtudes, antes de se apresentar em
público para santificar is iytris, antes de respirar o ar contagioso de um mudo igualmente corrupto e corruptor, que não demora em fazer fracassar a virtude que não está bem firme! O
Padre de La Salle sabia também que os apóstolos e discípulos do Senhor eram pessoas de idade madura, e que antes de tentar a conversão do mundo, tinham esperado na oração e no retiro, a descida do Espírito Santo e a efusão de suas luzes, sua virtude, sua força e todos os seus
dons.
Estes elevados exemplos, imitados através dos séculos por todas as pessoas apostólicas, faziam sobre nosso jovem cônego uma grande impressão. Eles lhe inspiraram um santo
temor e uma prudente timidez, e moderaram o ímpeto de seu zelo. Não que ele quisesse apagar ou sufocar o zelo numa vida de pura contemplação. Instruído por estas palavras de santo
Agostinho: “Somos cristãos para nós e sacerdotes para vós”, não duvidava que se devia ao
cuidado da salvação do próximo e al serviço da Igreja. Mas não esquecia, também, que precisava adotar estas palavras de seu divino Mestre: Eu me santifico a mim mesmo para poder
santificar a vós. Isto era o que provocava seus temores prudentes e suas piedosas perplexidades. Contudo, não tardou em superar tudo isso, quando meditava que a vontade de Deus se lhe
tinha manifestado com bastante clareza, e ainda se mostrou de maneira sensível na maneira
em que a Providência arranjou as coisas e nas piedosas intenções do defunto.
Colocado acima de si mesmo por uma confiança plena em Deus, vencedor de todas as
repugnâncias pelo piedoso esforço de generosidade, animado pelo movimento de um zelo
ilustrado pela ciência, se apressou a dar à memória do teólogo os sinais de gratidão e honra,
tomando todas as medidas necessárias para dar à obra dele pleno cumprimento e completa
perfeição. Isso exigiu grandes sofrimentos e auxílio divino, porque as dificuldades se multiplicaram cada dia, as contradições dos homens eram cada vez mais obstinadas. Os obstáculos
se sucederam: quando se afastavam os antigos, o demônio fazia surgir novos e mais terríveis.
Mas o discípulo de Jesus Cristo crucificado, instruído pela escuta dele, sabia que todas as suas
obras trazem a marca da cruz e que as que não sofrem oposição, que têm bom resultado imediato sem sofrer as perseguições do mundo são obras rejeitadas por Deus, que não causam
muito medo ao demônio, que não se toma cuidado de as combater. Por outro lado, Jesus Cristo queria elevar o Padre de La Salle ao cimo do Calvário. Provando-o com essas primeiras
cruzes, seu desígnio era familiarizá-lo com elas, prepará-lo para outras maiores e ensinar-lhe,
como a outro vaso de eleição, quanto lhe restava a sofrer, quantas dores e perseguições devia
sofrer para glória de seu Nome, através da fundação das escolas cristãs e gratuitas, tarefa
para a qual o tinha escolhido.
Eu me imagino o jovem cônego nessa ocasião como um jovem piloto encarregado de
dirigir por entre mil escolhos uma embarcação, joguete por tormentas e tempestades que ameaçam afundá-la a todo momento.para consolidar esta obra, que desde sua fundação se inclinava para a ruína, precisava crédito, autoridade, favor e ajuda humana; nada disto possuía. Neste
abandono geral das criaturas, no qual ordinariamente se encontram as melhores obras, seu
recurso a Deus foi sua solução, e a oração foi a estrela que fixou e dirigiu seu curso na noite
escura e tempestuosa, cheia de dificuldades e obstáculos que o mundo lhe opunha. À oração
juntou a soledade, a atividade e o trabalho, persuadido de que Deus quer que sejamos ativos
de nosso lado, pois ele o é do lado dele, e que unamos nossos sofrimentos à ajuda que vem de
Deus.
128
Vida de João Batista de la Sal
Salle
6. Vencendo todas as dificuldades, La Salle confirmou com as
Cartas Patentes a fundação das escolas cristãs e gratuitas das meninas.
Para dar solidez à Comunidade das Irmãs, era preciso obter a aprovação pela cidade, o
consentimento do senhor arcebispo e as Cartas Patentes do Rei. Coisa nada fácil. Os magistrados que viam a cidade sobrecarregada pelo número de comunidades, que tinha crescido
desde vários anos, consideravam o estabelecimento de uma nova como um aumento da carga
tributária para a cidade e portanto se opunham a isso. A Corte, prevenida contra a multiplicação dos novos Institutos, não parecia disposta a conceder as Cartas Patentes. Havia motivos
para duvidar de que o senhor arcebispo era favorável. Portanto, era preciso convencer os magistrados, dispor o prelado e comprometê-lo a solicitar as Cartas Patentes. O Padre de La Salle
pôs a mão na obra com pleno êxito.
Suas maneiras humildes e gentis dispuseram o coração de seus concidadãos. De outro
lado, persuadidos da pureza de suas intenções e prevenidos pela estima de sua virtude, seria
possível recusar-lhe uma graça que resultava totalmente em bem da juventude pobre? Com
efeito, não era difícil para o Padre de La Salle fazer compreender às autoridades da cidade que
a nova Comunidade, diferente das outras, seria mais uma descarga do que uma carga, um
alívio do que um incômodo para a cidade, uma vez que seu único fim era o cuidado das pobres órfãs e a instrução das meninas abandonadas a sua ignorância. Esses eram valores que
uma cidade cristã devia buscar por todos os meios e a que não podia renunciar sem grande
prejuízo. Valores tão importantes para a religião, a que ela deve uma parte de seus triunfos
desde os primeiros séculos da Igreja ao zelo dos pastores, que foram mestre ou que multiplicaram as Escolas Cristãs em que os filhos dos fiéis instruídos e educados na piedade eram
confirmados na fé e animados ao martírio, e em que os filhos dos pagãos eram iluminados
sobre a falsidade da religião de seus pais e estimulados a abandoná-los.
O Padre de La Salle também podia apoiar seu pedido sobre a necessidade de separar
desde cedo, os dois sexos nas escolas e sobre os terríveis inconvenientes de os misturar, e
ainda sobre a instrução religiosa. Quando faltam mestras de escola capazes de educar cristãmente e de instruir bem as pessoas de seu sexo, os homens cumprem esta função, mas com
que perigo para ambos os lados! O pudor, a modéstia e a cortesia estão comprometidos, e são
as próprias virtudes que obrigam a estender m véu de silêncio sobre os relatos dos males que
acontecem. Para evitar tais perigos, em todo tempo a Igreja desejou o estabelecimento das
Escolas Cristãs lá onde os meninos e as meninas são educados em separado. A atitude da Igreja ia mais longe em outros tempos, já que no próprio Templo e na presença de Jesus Cristo,
ela separava os homens das mulheres e não lhes permitia misturarem-se no lugar comum da
oração. Nossos príncipes, Luís XV, felizmente reinante, e seu bisavô Luiz XIV, de feliz memória, estiveram tão convencidos dos perigos da instrução de ambos os sexos juntos, que apoiaram a proibição feita em suas dioceses por importantes prelados, e confirmaram por meio
de decretos, como se pode ver no segundo tomo das novas Memórias do clero, sob o título
Escolas.
O Padre de La Salle soube, sem dúvida, fazer valer estes importantes motivos, que o
moviam a ele também, e dar na mente dos outros o peso que tinham na sua. Os títulos de concidadão, de familiar, amigo, herdeiro do zelo e da obra do padre Roland, junto com as súplicas insinuantes e graciosas, foram alavancas de que era difícil defender-se.
Não obstante, seu pedido não teria obtido efeito, se Deus não o tivesse apoiado com
suas inspirações secretas, e não tivesse amadurecido com unção e graça as palavras de seu
servo, cujas maneiras delicadas e urbanas dispunham a receber bem o que dizia. As autoridades se renderam por fim, e aceitaram seu pedido em sua devida forma legal. Uma vez cumprida essa etapa, era preciso uma segunda, mas deve-se confessar que era menos difícil, porque
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
seu êxito dependia da obtenção do consentimento da cidade. Assegurado este, o senhor arcebispo Le Tellier outorgou com gosto o seu, fato que foi chave para obter as Cartas Patentes.
Com efeito, o arcebispo de Reims, encantado de que a cidade tivesse outorgado seu consentimento a uma obra que ele devia desejar, prover como primeiro, e que lhe interessava mais do
que a ninguém outro, não contente com outorgar o seu, quis encarregar-se de obter pessoalmente as Cartas Patentes. O assunto esteve assegurado ao ficar nas mãos do prelado. A consideração de que gozava na Corte era tal que não sentia timidez para pedir uma graça desta natureza. Nesse tempo lhe foram distribuídos grandes favores, e lhos antecipavam, sem que tivesse de esperá-los. Um prelado menos influente teria fracassado nesta ocasião, ou para ter
bom êxito teria passado muito trabalho e teria tido que proceder com muito tino. Mas, o irmão
de um ministro muito poderoso do príncipe, não precisava destas tímidas precauções; bastava
que o irmão do Senhor Louvois desejasse alguma coisa para que lhe fossem adiantadas a sua
requisição.
Nunca o senhor arcebispo de Reims fez uso melhor, do que nesta ocasião, para o bem
de sua diocese, da influência que tinha na Corte e o favor com que o príncipe o honrava. As
Cartas Patentes outorgadas por Luís XIV assim que foram solicitadas, e em seguida registradas no Parlamento à custa de Dom Le Tellier, foram entregues a quem as tinha pedido com
tanto êxito. O senhor arcebispo fez ainda mais. Não somente concedeu a proteção a uma obra
que considerava como sua própria, mas quis ainda contribuir a seu desenvolvimento e prover
com seus bens para o estabelecimento de uma casa, que se pode chamar com plena razão um
Seminário para Mestras de escolas. Graças a sua proteção, a seu favor e a suas larguezas, ela
ficou bem confirmada e alcançou uma situação florescente e muito útil para o público.
Portanto, se esta Comunidade deve sua origem ao padre Roland, deve seu progresso
aos cuidados diligentes de La Salle. Felizes as Irmãs que a compõem, se sempre conservarem
o espírito de seus primeiros pais e se não se desviarem nunca de seu primeiro fervor. Elas têm
a honra de terem sido as primeiras filhas do Padre de La Salle e o primeiro objeto de seu zelo.
Foi assim que Deus provou as forças de seu servo, e o preparou através da experiência do
estabelecimento de uma casa de Mestras de Escolas Cristãs e Gratuitas, a fundar uma nova
Congregação de Irmãos destinados a este santo e nobre emprego.
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
Capítulo VI
O servo de Deus estabelece ordem e regra na casa. O mundo começa a censurá-lo. E ele, a
desprezar as censuras do mundo e a elevar o estandarte da perfeição
1. Ordem e regra da casa
Embora jovem, João Batista de La Salle foi m homem de regra; a regularidade animou
sempre sua conduta; foi sua virtude querida e a que moveu todas as suas ações. Tinha visto
grandes exemplos de sua prática no seminário de são Sulpício, e ele mesmo tinha colhido seus
frutos. Tinha sido testemunha pessoal e por meio de outros, da pureza de costumes, da inocência de vida, da solidez na virtude produzida nessa amável casa por esta fidelidade à regra.
Quando é universal, exata e interior, é a mais agradável e mais acomodada à debilidade humana. Ele se impôs o dever estrito de ser homem regular, tanto como tinha sido dentro do
seminário. Tinha fixado tudo na hora exata: o levantar, a oração, a meditação, as refeições, as
leituras espirituais, os exercícios de piedade e as outras atividades do dia. O ofício canônico
era o primeiro moto e o centro de tudo. Até no refeitório se faziam leituras piedosas, e o admirável foi que o jovem cônego tinha sabido, por meio de seu exemplo e suas maneiras insinuantes, comprometer os outros três irmãos que permanecer com ele, a seguir um regime de vida
que parecia mais de seminário do que de casa de família. Um modo de viver tão regulamentado, retirado e piedoso, não podia agradar à gente do mundo. Somente o aceitaram enquanto
não se deram conta. Quando informaram, seus gritos,zombarias e censuras o deram a conhecer aos que o ignoravam ainda.
Este conhecimento teve vários efeitos. Quais? Exatamente os mesmos que a vida dos
santos e a proclamação do Evangelho causou sempre: edificação em uns e escândalo em outros. Enquanto são Paulo falava no Areópago, a maioria de seu auditório o considerou um
louco, pregador de fábulas e novos deuses. A minoria inspirada acreditou e aproveitou de sua
palavra. Jesus Cristo crucificado era para os judeus motivo de escândalo e para os gentios,
objeto de zombaria; mas para os iluminados pelo Espírito Santo, era o poder e a sabedoria de
Deus. através dos séculos, os santos, semelhantes a seu divino Mestre, foram para o mundo,
objeto de desprezo, mas para as almas bem dispostas, eram lâmpadas ardentes e tochas acesas
que lhes mostravam a trilha da perfeição, animavam-nos poderosamente a caminhar por ela
até o fim. Suas virtudes e exemplos produziam frutos nos que eram testemunhas de suas vidas
e muitas vezes faziam deles novos santos.
Nada de novo debaixo do sol. O que é, será até o fim dos séculos.o que vemos e o que
foi desde o começo. A virtude, perseguida em Abel desde a origem do mundo, foi, sem exceção, em todos os justos que vieram depois dele, e o será em todos os que vierem até o fim.
Quem diria? O mundo também serve para fazer santos, contra sua vontade, porque ao desprestigiar sua virtude, a purifica, fortifica, aperfeiçoa e a torna digna de Deus.
2. O mundo censura sua conduta.
No pensar da gente do mundo, o Padre de La Salle não vive como cônego. Não honra
nem a seu Cabido nem a sua família. Como tutor de seus irmãos e irmãs, parece que ele mesmo deveria ser colocado sob tutela. Tem bens, mas não sabe administrá-los. Desconhece as
pessoas respeitáveis e as pessoas respeitáveis o desconhecem. Sua casa foi aberta aos canalhas
e a todos os miseráveis, mas os familiares e amigos somente encontram a porta trancada para
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Vida de João Batista de la Sal
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eles. Se não quiser ter nada com o mundo, por que permanece nele? Se ele se fez tão selvagem, por que não vai viver na solidão com os animais do mato? É preciso vê-lo fazendo o
papel de beato e de hipócrita enquanto assume a atitude de uma pessoa devota! Prejudica a
devoção e desonra seu caráter sacerdotal. Deixaria de ser bom cônego e bom eclesiástico,
deixando de se comportar de maneira tão estranha? Estes e outros semelhantes eram as conversas da gente do mundo. Temendo que ignorasse o que se falava dele, houve quem lho dissesse na cara. Tudo o que fazia, era crime. E tudo o que se referia a ele, era ridicularizado.
Examinado dos pés à cabeça, não ficava nada sem fiscalizar. Criticavam-lhe a roupa, o chapéu, seu colarinho e mil outras minúcias.
O jovem cônego aproveitou de tudo o que se falava contra ele. É tão certo que, segundo são Paulo, Sabemos que em tudo Deus intervém para o bem dos que o amam. Enquanto o
mundo o examinava, ele mesmo se examinava a si; julgava-se com mais severidade do que o
mundo e ratificava os juízes deste, quando os pensava fundados. O mundo, que é tão sagaz
para enxergar os menores defeitos dos devotos e que nunca lhes perdoa nada, ajudava-lhe a
descobrir em seu interior os defeitos ocultos, e apriveitava de sua severidade para condenálos. As censuras que não tinham base, lhe abriam os olhos para ver outros reais que o mundo
não enxergava.
Dessa forma, o mundo lhe ensinou a se conhecer mais a fundo e a se corrigir. Também
lhe ensinou a aperfeiçoar todas as virtudes e a da a elas todo seu mérito. Depois deste tempo,
fez uma profissão de desprezo do mundo mais declarada e uma separação mais perfeita. Sem
se tornar intratável, tornou-s mais solitário; sem deixar de ser educado e gentil, apareceu mais
recolhido e interior, em vez de querer a companhia dos animais com uma vida tão retirada,
como diziam os mundanos, dispôs-se a entrar em comunicação com os anjos ou a manter relações só com os homens perfeitos na terra, segundo o conselho que o santo autor da Imtação
de Cristo dá aos sacerdotes. L. 4 c. 5
Sua vida foi mais austera, a mortificação dos sentidos mais rigorosa, as orações mais
freqüentes, as vigílias mais prolongadas, sua pessoa mais transfigurada e, por fim, a aplicação
à parte mais nobre de seu ser concentrou todos os seus esforços. Sua dedicação em cultivar o
interior o tornou descuidado dos assuntos externos. Sempre asseado mas sempre pobre, não
usou mais do que roupas grosseiras confeccionadas com pano de má qualidade. Dentro de
pouco será visto com o hábito dos Irmãos. Aos olhos do público, com desgosto de seus amigos e, se me permitem dizê-lo, com a vergonha de seus parentes e de sua família, começou a
usar em público um hábito ignominioso, pois como tal viu a gente, então e durante muito
tempo, o hábito dos Irmãos. Deste modo Deus estava preparando o Padre de La Salle a fundar
a Sociedade de Irmãos. Ele já tinha todas as graças para o fazer, mas ainda não tinha a intenção. Este germe escondido em seu coração, permanecerá oculto a ele próprio até que, com
muito assombro, o viu feito uma árvore enorme, a estender seus ramos por toda parte e carregada de frutos; para os pobres, a quem o mundo presta menos atenção do que a animais, os
colherem.
Enquanto isto vem acontecendo, é preciso que nos familiarizemos, contraiamos aliança com eles e que nos tornemos pobres para os enriquecer. Desde então, começou a visitá-los
e a lhes levar abundantes esmolas. O tempo que lhe restava, depois do estudo, o ofício canônico, e os demais exercícios de piedade, consagrava ele a aliviar e consolar os pobres. Estes
vinham a sua casa ou ele ia até eles. Com eles falava de Deus, instruía-os e os preparava aos
sacramentos e os animava a praticarem a paciência. Ao aliviar as necessidades deles com seus
atos de caridade, preparava-lhes a alma a receber a graça. Ao ir embora, deixava neles alegria,
fervor e sentimentos de piedade.
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Vida de João Batista de la Sal
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Certo dia sua caridade o levou a uma pessoa enferma. Assim que se aproximou, ela
descarregou seu estômago sobre ele, vomitando que dava medo.o incidente teria podido causar vergonha à pobre pessoa, se ela não tivesse visto o Padre de La Salle permanecer tranquilo, alegre e gentil. Não se contentou com não mostrar qualquer sofrimento, quis voltar para
casa com sinais de caridade, sem limpar as imundícias na sobrepeliz.
A pesar de ainda ser muito jovem, começou a encarar o sono como um obstáculo a sua
perfeição. Por isso, tinha dado ordem a seu criado que viesse, todos os dias, despertá-lo em
hora determinada, e a obrigá-lo com importunidades contínuas, a abrir os olhos e a obter sobre
si mesmo a primeira vitória do dia. Este primeiro combate contra o sono não era mais do que
uma preparação a outros. aé a oração era um campo de batalha em que o Padre de La Salle
tinha que combater contra os atrativos mais importunos. Quando o fervoroso cônego fazia os
maiores esforços para se levantar e unir-se a Deus em contemplação pura e tranqüila, sucumbia ao sono e fechava os olhos. Ao despertar, o homem de Deus indignado por sua debilidade,
sentia uma santa cólera contra si mesmo e se impunha toda sorte de censuras que a humildade
inspira às almas fervorosas.
Mas, que remédio se poderia aplicar a este mal suave, mas traiçoeiro, que cativa os
sentidos precisamente nos momentos em que a alma quer desprender-se para se aplicar a
Deus? a solução que encontrou o Padre de La Salle foi colocar sobre o genuflexório uma pedra cortante que o devia despertar quando o sono o vencesse, pelos sofrimentos que lhe causaria. Com esse tipo de mortificação, aprendeu a vencer um inimigo que lhe infligia jma penitência por sua falta, no momento em que a cometia. Mais tarde, se acostumou de tal modo à
vigília, que passava com freqüência noites inteiras em oração ou escrevendo livros ou atendendo assuntos urgentes de seu Instituto.
Às vigílias acrescentava jejuns rigorosos, e ainda mais excessivos, na Semana Santa.
Desde a quinta-feira santa até o dia da Páscoa, não tomava mais do que uma sopa de ervas.
Nascido com constituição delicada, por isso sentia que essa abstinência estava acima de suas
forças porque lhe causavam tal debilidade estomacal que não podia comer nada sem vomitá-lo
imediatamente. Por isso seu Diretor espiritual lhe proibiu essa prática. Obedeceu, mas seu
corpo nada lucrou pois essa mortificação foi substituída por outras que, sem lhe causar prejuízo tão notável a sua saúde, não lhe deixavam mais do que bastante para as fazer mais longas e
fortes. Com isto, basta sobre este tema, por agora, pois na relação de suas virtudes, a mortificação terá grande extensão.
No tempo de que estamos falando, o píedoso cônego não tinha nem a idéia nem a vontade de estabelecer as Escolas Cristãs. Contudo todas as suas gestões eram passos para esse
fim. Através de acontecimentos em cadeia com seus desígnio, a Divina Providência o conduzia a sua execução. Para o seguir até aonde ela o conduz, é preciso recordar a descriç~~ao que
fizemos acima5 das desordens dos últimos séculos e sos auxílios que Deus proporcionou a sua
Igreja nesses tempos trágicos, suscitando várias pessoas ilustres em santidade e sabedoria, e
vários novos institutos consagrados à instrução dos povos. Havia institutos para todos os estados, para a cidade, para o campo, para os eclesiásticos e para os leigos.somente faltava um
que se dedicasse à instrução dos filhos dos pobres, que não têm os meios suficientes para os
educar nos colégios ou nos conventos. A maioria desses meninos permanecerão na funesta
ignorância da doutrina e dos deveres do cristianismo. Contudo, vemos cada dia o mal que
causa a ignorância no povinho: uma das maiores chagas que afligem a Igreja.
O revmo. Padre Barre, Mínimo, cuja santidade se espalhou seu bom odor em Paris e
em todos os lugares em que esteve, sem dúvida, não foi o primeiro a conhecer esse mal e pen5
Discurso sobre a instituição das Escolas Cristãs, capítulo 4, no fim.
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Vida de João Batista de la Sal
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sou que era a fonte de muitos outros, mas parece ser o primeiro, na França, a procurar remédio e a lhe encontrar um: os estabelecimentos das Escolas Cristãs que supunham outros estabelecimentos absolutamente necessários para a formação de mestres e mestras destinados à
instrução e à santificação dos meninos e das meninas pobres. O zeloso padre Barre se entregou a esses objetivos. Para estabelecer escolas de rapazes e moças em separado, concebeu o
duplo projeto de erigir espécie de seminários destinados à formação daqueles e daquelas que
se destinavam à instrução cristã e gratuita dos meninos pobres e sem instrução. O plano era
ambicioso e se o padre Barre não foi o único a executá-lo, ao menos se lhe deve a glória de ter
sido o primeiro em traçar o plano, de ter apresentado os primeiros modelos, e de ter sido o
primeiro em tentar sua execução. Teve bom êxito em parte. Tinha o dom de fazer o plano
completo e de o inspirar a outros, mas não, o de o levar à prática. Nos desígnios de Deus, o
Padre de La Salle era o homem a quem estava reservado este dom. Como é sabido que um
planta, outro rega, mas é Deus quem dá a virtude e o crescimento, e que segundo sua contade, envia aos operários a sua messe para recolher o que outros semearam.
3. O Revmo. Padre Barré empreende a abertura de seminários para a formação de
Mestre e Mestras de Escolas gratuitas. Parte do projeto tem bom êxito, outra,
não.
O Revmo. Padre Barré tinha estabelecido, ao mesmo tempo, seminários para formar
mestres e mestras ce escola. A instituição dos mestres parecia ter bom êxito no começo, mas
esse êxito não durou. Os mestres não adquiriram o espírito de sua vocação e não tardaram em
perdê-lo. Seu fervor pareceu como uma luz débil que alumia por alguns momentos e em seguida se apaga. Os primeiros discípulos do padre Barré, muito diferentes de seu mestre, não
sentiam a inclinação a seguir suas lições sobre o abandona-se à Divina Providência, o contentar-se com o estritamente necessário e o não misturar seus interesses com os de Deus. como
pessoas previdentes, pensaram no futuro e procuraram fazer sua pequena fortuna, colocandose ao abrigo da indigência. Desertaram das escolas que o padre tinha fundado, e estas ruíram
sozinhas. Por este fracasso, não voltou a tentar este projeto. Embora, mais tarde, foram feitos
vários esforços para fazer reviver essas escolas, foram debalde. Era necessário encontrar pessoas prontas a entrar no espírito do Instituto, um espírito de total desprendimento e de abandono à Divina Providência. Tais pessoas não foram encontradas.
O Revmo. Padre Roland, de quem se acaba de falar, cheio do mesmo zelo que o do padre Barré, não perdia a esperança de ter bom êxito em Reims neste projeto abortado. Pelo
menos o teria empreendido, se a morte não o tivesse impedido. Com ele este zeloso Mínimo
perdeu um fiel colaborador. Para consolação sua, a segunda instituição para as escolas das
meninas teve bom êxito. Antes de falecer, teve a alegria de ver as bênçãos do Senhor se derramarem sobre essa obra em Ruão e em Paris, onde estabeleceu duas casas, que foram duas
sementeiras de Mestras piedosas e com zelo para a instrução e santificação das pessoas de seu
sexo. Este exemplo do padre Barré foi fecundo, porque hoje em dia os maiores prelados trabalham em estabelecer em suas dioceses comunidades semelhantes, destinadas ao mesmo fim.
A primeira tentativa do padre Barré para fundar um Instituto para mestres não teve resultado, mas esse primeiro esforço não foi totalmente em vão. Para os homens foi um fracasso, mas para Deus era somente um adiamento. Se não teve êxito, foi porque o homem destinado por Deus para o estabelecer, ainda não tinha aparecido. Tão certo é que um homem
constrói em vão se Deus não lhe coloca o fundamento, como é em vão que as sentinelas guardam uma praça, se Deus não a guarda.
O fundador das Filhas da Providência, o padre Roland, e talvez algumas outras santas
pessoas, se deram conta da importância que tinha o projeto de fazer, em favor dos meninos o
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
que se tinha feito com bom resultado com o das meninas. Deus a´rpvava esse projeto e, contudo, não lhes permitia a execução. Por quê? Porque reservava sua execução para o Padre de
La Salle. Apesar de que este não o tinha pensado, em tinha a vontade de o empreender, através da escolha divina, terá a honra de o criar. Os pioneiros concebem a idéia, querem realizála e não descuida nada para a levar a termo; sua boa vontade tem mérito diante de Deus. mas
todas as suas ações permanecem sem efeito, porque Deus não está agindo. Aqui temos um
desses mistérios da Divina Providência, que se encontram tantas vezes nas obras de Deus. o
desenlace se verá no que segue.
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Vida de João Batista de la Sal
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Capítulo VII
Como a Divina Providência conduz imperceptivelmente o Padre de La Salle a
execução de seus desígnios por meio de um homem que envia a Reims, a Senhora de Maillefer, para abrir escolas gratuitas. Resumo da vida dessa madame depois de sua conversão.
Visto que a senhora de Maillefer é quem deu início aos desígnios da Divina Providência sobre o Padre de La Salle, ela deve ser considerada o primeiro instrumento do qual Deus
quis se servir para suscitar o Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs. Ela erra digna de gerar
uma obra tão santa. Embora, ao enviar o Sr. Niel a Reims para abrir Escolas Gratuitas, ela não
tenha pensado nas conseqüências de sua caridosa iniciativa, sempre é verdade que seu zelo
tinha a intenção de instituir escolas cristãs. Portanto, merece ocupar um lugar na História daquele que foi o fundador desta grande obra e a quem ela proporcionou a primeira oportunidade de se interessar diretamente nela
É assombroso que na cidade de Ruão, que pode gloriar-se de ter um número bastante
grande de homens sábios e inteligentes, ninguém se tenha interessado em honrá-la e edificar o
público apresentando a história de uma Senhora que deu, durante tanto tempo, tão notáveis
exemplos de virtude heróica. Para não deixá-los sepultados no esquecimento, vamos recolher
alguns testemunhos de várias pessoas que foram testemunhas em toda cidade de Ruão, e que
ainda vivem. Se não se conhece mais do que uma pequena parte da vida da /senhora de Maillefer, sabe-se ao menos que ela se converteu, bastante jovem, e antes da morte de seu esposo.
Não esperou que a idade, o aparecimento das rugas em seu rosto, a advertisse de que o mundo
não era para ela, nem ela para o mundo. A graça a chamou num momento em que se levava
uma existência brilhante e que ela agradava ao mundo tanto como este lhe agradava.
1. Primeiros anos da Senhora de Maillefer
Nasce em Reims de uma família rica. Casou com o senhor Maillefer, contador em Ruão aonde ela veio viver até sua morte. Tudo nela foi grande: tanto os vícios como as virtudes.
Pode-se dizer que antes de sua conversão levou os vícios ao excesso e que depois de sua conversão praticou as virtudes à máxima perfeição. Alta, bonita, bem proporcionada, tinha um ar
de nobreza, um porte majestoso, uma aparência que inspirava respeito e atraía os olhares. podia ser tomada como uma princesa, ao vê-la, e ela não descuidava nada para o parecer, tão
excessiva era sua vaidade.
Encantada mais do que ninguém de sua própria pessoa, usava de todos os meios para
atrair os corações. E, se não conseguia fazê-lo sempre, era talvez porque o exagero em realçar
sua beleza e seus atrativos, mantinha reserva de muita gente. Tinha a reputação de ser a Senhora mais mundana da cidade. Adornada sempre como uma ninfa, com vestidos magníficos,
andava com fausto e pompa. Retinha os passantes nos caminhos que fixavam sobre ela os
olhares, principalmente quando, aos dias de festa e aos domingos, ia para a missa a Nossa
Senhor, ao meio dia, mais para se mostrar e expor sua vaidade diante do grande público que
na igreja se encontra, e procurar ali adoradores, que para ela do que adorar ali o verdadeiro
Deus.
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2. Seu espírito mundano
Tinha todas as oportunidades de satisfazer seu orgulho, pois em qualquer lutar em que
aparecia, era adulada com o que se dizia dela. “Olhem! Ali vem a bela senhora de Maillefer”,
estas palavras lhe dava muita delícia ao coração apaixonado pela glória. Seu luxo não tinha
limites. Não havia nada belo demais ou precioso demais ou rico demais para ela. Com afã
procurava tudo o que lhe fazia sua beleza mais viva e mais atrativa. Não poupava esforços
nem gastos para mostrar as últimas modas, as roupas mais caras, os vestidos de melhor gosto
e mais resplendentes, as perucas mais raras e caras.
Embora a natureza tenha sido muito generosa com ela, não lhe foi suficiente para seu
gosto. Mais descontente com os atrativos que lhe que lhe recusaram do que satisfeita dos que
a enriqueceram, procurava o que lhe faltava, em constante busca de adornos e em arte laboriosa e fatigante de aparecer cada dia com encantos e vestidos novos. Nunca mulher alguma Pre
céu mais escrava de seu corpo nem mais idólatra de sua pessoa. Este fato o comprova. O amor
próprio, tão engenhoso para se contentar lhe sugeriu a idéia de se fazer representar com uma
estátua de corpo inteiro. Esta espécie de ídolo de sua grandeza e de sua figura, era o molde de
seu corpo e servia de exercício para sua vaidade, pois sobre ela ensaiava a maneira de se divertir. Adornava, ajustava como queria aparecer em sua pessoa. E na estátua esgotava todos
os jeitos refinados do mundanismo imagináveis, para se fazer luzir em sua própria figura.
Para sua própria desgraça e, sem dúvida, para a de outros, ela o conseguiu facilmente
demais. Naturalmente que não se impunha tantos esforços para permanecer escondida, se não
para brilhar e se mostrar por toda parte , quer no baile, quer no teatro, na ópera, nos passeios
ou nos círculos sociais. Foi assim que a vaidade fazia passear sua escrava em toda parte aonde
aparecia e ela se oferecia em espetáculo a toda a cidade. Fazia todo o possível para aparecer
como a única beldade e para eclipsar a todas as outras mulheres. Não suportava que não se
lhe prestasse homenagem como a uma rainha. Representava tão bem o personagem, que a
senhora Louvet, sua boa amiga, a chamava ordinariamente “minha rainha”, mesmo depois de
sua conversão, para lhe lembrar esse ar de grandeza e majestade que soube tomar e a suntuosidade de seus vestidos que ostentava para o realizar.
Sua preguiça andava a par com sua vaidade. Nunca se levantava antes da onze horas
da manhã, e se orgulhava disso, dizendo como pilhéria, que esse longo tempo de repouso lhe
mantinha as idéias frescas. Tanto no inverno como no verão tomava bebidas geladas. A terra,
o ar, o mar, nada tinham de bom para seu gosto. Em todos os mercados procurava para sua
mesa os produtos mais apetitosos e mais gostosos. Nada era caro demais quando era exótico e
bom; comprava a qualquer preço.
3. Sua dureza com os pobres.
Como era de esperar, sua dureza para com os pobres era proporcional à ternura que
sentia com seu corpo. O seguinte episódio, que se acredita ter sido a ocasião de sua conversão,
é um exemplo triste e comovedor.
Um pobre viandante, mendigo e exausto, em estado mais lastimável do que se poderia
imaginar, apresentou-se em sua casa para encontrar ali um albergue e um pouco de alívio. O
cocheiro, muito piedoso e caridoso, cheio de compaixão pela miséria deste infeliz, foi suplicar
a sua patroa que lhe permitisse recebê-lo. Essa caridade tão necessária e tão apropriada não
era do gosto de uma mulher mundana que somente se amava a si mesma. É por demais sabido
e demonstrado pela experiência que o amor próprio é cruel e o maior inimigo da caridade. Jm
coração presa do orgulho e da desídia é um coração duro e inacessível à piedade pelos pobres.
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
Por isso, com desprezo e indignação , a senhor de Maillefer repeliu o caridoso pedido
de seu doméstico e ordenou bruscamente fechar a porta ao pobre que procurava asilo. O cocheiro não pode resignar-se a obedecer; colocou em sua cavalariça o infeliz que pedia esmola
e o assistiu da melhor maneira que podia. Qual não foi sua surpresa quando no dia seguinte
encontrou o pobre estendido e morto em seu leito de dor! O rumor deste desagradável incidente, chegou imediatamente à Senhora, que depois de ter descarregado sua cólera contra o
empregado caridoso com torrentes de injúrias e censuras, o expulsou ali mesmo de sua casa
com a proibição de voltar nela. Os outros empregados insistiam em que ficassem livres da
presença do horrível cadáver que lhe feria os olhares; então ela lhes enviou um lençol para
que o envolvessem.
Contudo, pela tarde, ela viu esse mesmo lençol sobre sua mesa como se o pobre, ao
qual ela tinha recusado um albergue, também o tivesse recusado esse presente forçado. Ela o
desdobrou e reconheceu. Então, pensando que o pobre Lãzaro morto em sua casa estava ainda
ali, sem ser enterrado, ficou furiosa e em movimentos de ira, que se gelaram com o sangue
quando soube que o morto tinha sido arrumado devidamente e sepultado e que ninguém colocara o lençol dobrado sobre a mesa dela. Foi o momento de Deis, em que, não sua justiça, mas
sua misericórdia, a esperava. Surpresa, espantada, atemorizada, prorrompeu em suspiros, gemidos e soluços. Entrando em sua alma dura, a graça falou, a enterneceu, a fez fundir como
cera que se derreta ao chegar-se ao fogo. Ela tinha sido uma pecadora, agora era uma penitente. Assim foi a Senhora de Maillefer quando levava uma vida mundana. O que segue é o que
foi a Senhora de Maillefer convertida.
4.Sua conversão
três vícios a haviam dominado: a vaidade, a moleza e a dureza com os pobres. As três
virtudes três virtudes contrárias: humildade, mortificação e ternura com os pobres a caracterizarão. O luxo e a pompa dos vestidos, a preocupação com os adornos, o desejo de se expor e
atrair a atenção, foram as paixões que serviram com tanta eficácia a sua vaidade. A graça as
combaterá com um exterior descuidado, sórdido e repugnante, com procura de modos ridículos e sem sentido, e com uma vida pobre e solitária. Seu corpo engordado pela moleza não
abandonava a cama antes do meio-dia, e encontrava nada bastante delicado para contentar sua
sensualidade. Para emendar isto, o Espírito de Deus lhe inspirará práticas de mortificação
quase incríveis.
4. Seu amor à abjeção
Por fim, para expiar sua dureza de coração para com os pobres, ela se condenará a lhes
prestar serviços no resto de seus dias nos empregos mais vis e repugnantes que a caridade
mais heróica pode praticar. A graça que sempre contradiz a natureza, depois de ter começado
a conversão pelo incidente que acaba de se referir, lhe pediu vivamente que fizesse com o
mundo um divórcio imediato e manifesto, e expiasse seu luxo com humilhações públicas.
Como a vaidade tinha sido sua paixão favorita, o amor à abjeção se transformou em seu atrativo principal. Entregou-se a esses piedosos excessos que admiramos na vida dos santos e que
o espírito hymano estaria tentado a censurar, se o Espírito de Deus não parecesse inspirá-los.
Como Maria Madalena, assim que se converteu, quis fazer profissão de desprezar o mundo.
Conhecendo suas vaidades, pensou expiar as da vida passada e reparar os escândalos por meio
de um visível ato de loucura que faria o mundo pensar que, ao deixá-lo, tinha perdido o juízo.
Um dia, se deixou encerrar na igreja, em que passou a noite em oração. Seu marido
mandou busc=a-la inutilmente. Esta procura não serviu mais do que para publicar a aventura e
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Vida de João Batista de la Sal
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persuadir a gente de que a devoção começava a transtornar a mente da senhora de Maillefer.
O mundo, tão inclinado a julgar mal as pessoas devotas, teve material para ela se firmar em
sua opinião, quando soube que sem deixar os vestidos dourados, ela se tinha colocado o último adorno um avental de servente, confeccionado com pano e bastante sujo, e que tinha assistido com esse novo adereço, um domingo, à missa de sua paróquia. Essa ação teve todo o resultado que ela esperava, pois a transformou em palhaço e joguete do público e lhe deu a fama
de devota ridícula e extravagante que representava o personagem de uma santarrona depois de
ter representado o de uma mulher mundana. O senhor de Maillefer não pode ignorar toda essa
falação na cidade, e estava por demais interessado nela para não se opor a esses piedosos excessos de humilhação para os quais via que estava inclinada sua esposa. Usando sua autoridade, proibiu-lhe tais práticas. Sua sede de abjeção era tão forte que tinha necessidade dessa
barreira, porque solicitada continuamente pelo Espírito de Deus a mortificar sua vaidade por
meio de humilhações proporcionadas aos excessos que tinha feito cometer, parecia tão ávida e
desprezo como tinha sido de honras e de gloria.
A caridade cresceu cada dia mais em seu coração e substituiu o amor próprio, pedindo-lhe mais sacrifícios por Deus do que os que havia feito pelo mundo.embora não soubermos
os pormenores de sua depois da conversão e enquanto estava sob a autoridade de seu marido,
ao julgar o começo por aquilo que mais tarde fez, sabemos que, como outra Madalena, deixando de ser pecadora, começou a ser uma grande penitente, e que desde o instante em quue
deixou a vaidade, entrou no caminho da perfeição, em que correu com passos de gigante. Nada a deteve; nem o mundo, nem seu corpo, nem seus amigos. Rompeu com coragem todos
esses laços e o fez de uma vez para sempre. Não pareceu sequer atentar ao que dirão nem ao
respeito humano. Não pensou nunca mais no mundo, a não ser para atrair sobre si o desprezo
em seu corpo, e para o crucificar; nem em suas vaidades, a não ser para as expiar por meio de
sacrifícios sangrentos do amor próprio. Não foi vista mais em círculos sociais, nem nos espetáculos, nem em parte diferente da igreja ou ao pé do crucifixo.
Os alimentos delicados foram desterrados de sua mesa. Cortou todos gastos aloucados
e supérfluos. O dinheiro poupado desta maneira empregou em benefício dos pobres, pelos
quais sentia tanta ternura quanta dureza tinha antes. Suprimiu o luxo e reformou a mesa, arranjou o problema do sono e se obrigou a levantar-se mais cedo. O primeiro fruto foi uma
vida ordenada, uma vida de oração e de retiro, numa palavra, uma vida verdadeiramente cristã.
Primeiramente, ela absteve-se de todas as modas, todos adereços, todos os adornos
magníficos. Depois, dos vestidos simples passou aos feios; dos feios aos chocantes e destes
aos ridículos. De maneira que gradualmente perseguiu o espírito de vaidade até seu último
refúgio e, enquanto viveu, procurou mortificá-lo nas menores manifestações. Nisso parece
que o Espírito de Deus, imitando o espírito do mundo que a animou, se comprazia em a apresentar, por sua vez, como espetáculo diante do público. Quase cada mês, ela se apresentou em
diferentes estados de abjeção, vestida com modas preparadas por ela mesma para lhe atrair
gracejos.
Se ela não pode, em vida de seu marido, contentar como gostaria, essa inclinação inspirada pela graça, a morte dele a pos em liberdade de a seguir em toda sua extensão. Dona, de
sua pessoa, de suas ações e de seus bens, não colocou mais limites a sua obra de caridade,
nem a suas humilhações, nem a suas penitências. Como não se ficou sabendo com precisão
perdeu seu esposo, nem quanto tempo viveu com ele, nada podemos dizer a esse respeito.
Parece que ele foi um homem de bem, porque fundou com ela a escola de Darnétal. Talvez,
ao ela se converter, converteu a ele também, ou possivelmente, de certo, como sempre foi um
bom cristão, não foi tão mundano quanto sua esposa.
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Vida de João Batista de la Sal
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Ela somente teve um filho que se casou em Reims, e que não parece ter sobrevivido a
seu pai por muito tempo. A viúva que deixou, rival (se me posso servir deste termo) da piedade de sua sogra, foi em Reims o que a senhora de Maillefer tinha sido em Ruão, o exemplo da
cidade. Ambas, depois de terem servido de modelo da mais eminente virtude, faleceram em
odor de santidade.
Quando a senhora de |Maillefer se viu livre de todos os obstáculos que podiam reter
sua carreira no caminho da perfeição, entregou-se sem reserva à impetuosidade do espírito
que a levava tão poderosamente às práticas de humilhação, de mortificação e de cartridade.
Apaixonada pela vida pobre, abjeta, desprezada, oculta e desconhecida, todos os dias deu novos exemplos disso, que durante 15 anos lhe mereceram a fama de louca, primeiro e depois de
santa. Depois da morte de seu esposo, o primeiro que fez para se tornar desprezível, foi mandar confeccionar uma fralda de retalhos de diversas cores. Para a conseguir tal como a desejava, mandou vir a sua casa uma costureira conhecida, pessoa muito virtuosa, e ao lhe apresentando-lhe uma cesta cheia de jóias e de velhos retalhos, pediu-lhe que os costurasse e confeccionasse como uma fralda. Com medo de a costureira ser surpreendida em seu trabalho semelhante, a dama fez a costureira aceitar ficar sozinha, encerrada a chave, num quarto. A senhora de Maillefer tomou a chave e depois de ter preparado tudo o que a costureira precisava, foi
passar o dia na igreja e no hospital e somente voltou de noite para libertar sua prisioneira.
Para receber uma roupa que pensava completa com a fralda, se fez confeccionar blusas de
pano tão surrado e áspero que lhe servia de cilício. Consegui uns sapatos de homem sem solado, meias grossas e remendadas, e um cachecol igual ao resto. Nesse tempo usava-se um terciopelo forrado de tafeta. O que ela se inventou foi de fazenda preta forrada a sua maneira.
Quando esta indumentária ficou a gosto do estado de ânimo que a inspirou, usou-a na
igreja de Nossa Senhora para se dar em espetáculo aos olhares do grande mundo que ela tantas vezes tinha vindo buscar faustosa. Essa vasta igreja, que reine cerca do meio-dia dos domingos e dias de festa, os mais indolentes, como também os mais mundanos e as mais mundanas de Ruão, depois de ter sido teatro da vaidade, agora com justiça, se tornaria o de sua
vergonha. Isto é o que ela foi procurar nos mesmos dias e à mesma hora, vestida de uma indumentária própria para o obter. Não se escondia; colocava-se na metade da igreja, nos mesmos lugares profanados com suas pompas e que tinha escolhido como os mais abertos à vista
e os mais próprios para brilhar, ali aparecia de joelhos com seu vestido de vergonha e um
grande bastão de espinhos, com uma das pontas a tocar o solo e a outra em que apoiava seu
ombro.
É fácil imaginar o ridículo que ela apresentou na cidade, com sua conduta tão pouco
recatada e inesperada que lhe proporcionou a satisfação de beber a grandes tragos o cálice das
humilhações do Filho de Deus, e no qual, entretanto, não pode nunca extinguir sua sede de
desprezo.procurava a mofa, o desprezo, a censura, a condenação. E ficou satisfeita. Falava-se
dela somente para rir e se divertir; e se no fim o mundo deixou de a censurar, foi porque a
considerou como uma pessoa que tinha perdido o juízo.
O padre Du Tac, seu diretor espiritual, não aprovava esse grande fervor e lhe deu a ordem de se vestir de maneira mais aceitável. Então obedeceu, mas não sem grande repugnância
e essa obediência só durou o tempo em que permanecia esquecida de sua vaidade passada.
Uma vez que a lembrança do luxo e a magnificência de suas vestes e dos colares de pérolas
de quinhentos escudos, voltavam à sua memória, não podia dirigir seus sentimentos. As censuras de sua consciência lhe causavam uma santa ira consigo mesma e lhe mostravam os crimes que não podia se perdoar. Para pedir perdão a Deus, aparecia com roupa horrorosa.
A senhora de Maillefer levou tão longe o desprezo de sua pessoa, que para mortificar
sua delicadeza, se deixava crescer as unhas, comia sem lavar as mãos mesmo que estivessem
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Vida de João Batista de la Sal
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sujas pelos serviços mais vis que fazia aos pobres. Fazia comover o coração da boa costureira,
de quem se acaba de falar; esta precisava de toda sua virtude para ver, sem rubor, a mulher de
Ruão, mais bonita e mais atraente por natureza, uma vez convertida, tornar-se por escolha e
por arte da graça, a pessoa mais repugnante.
Passeava pelas ruas com a indumentária acima descrita, seu enorme bastão de espinhos em uma das mãos e na outra um velho livro do qual recitava os salmos penitenciais em
voz alta. Fazia suas viagens a Darnétal mantendo sempre o crucifixo na mão. Em toda parte
levava a maneira de penitente, com o coração contrito e humilhado que encontra todo lugar e
todo o tempo apropriado para chorar seus pecados. Sua postura, seus gestos e todo seu exterior descuidado e imundo denotavam que somente estava ocupada com a vergonha de ter ofendido uma Majestade infinita e com zelo de vingar a honra de Deus à própria custa.
Quando precisava de água, ela mesma a ia buscar na fonte, e esperava a sua vez. Com
freqüência trocava seu cachecol preto por um pedaço de tapeçaria que jogava sobre seus ombros. Quando lhe diziam palavras humilhantes e injuriosas, recebia-as sempre bem com o Tr
Deum, ou o canto do Sanctus, Sanctus, com uma alegria que indicava seu triunfo sobre o amor
próprio. Gostava de ir ao mercado paa comprar um quarto de libra de manteiga e carregá-la
envolta numa folha de repolho, numa das mãos estendida de propósito para se fazer notar. Na
outra mão carregava pedaços de lenha chamuscada. Com isso ela procurava passar ridículo ou
parecer pobre e merecer, ao parecer isso, o desprezo que acompanha sempre a pobreza. Contudo, este estratagema para conseguir humilhações nem sempre teve o resultado que esperava,
pois, a pesar dela mesma, ao fazer isto, sua bela figura, seu andar nobre e um ar majestoso a
distinguia e diziam a quem não a conhecia, a classe de pessoa que era verdadeiramente. Então, não colocava limites à sede de humilhações.
A arte perfeita de se humilhar que ela tinha, nunca ficou ociosa; seus dias estavam
cheios de práticas de humilhação contínuas e sucessivas; por meio da prática assídua, conseguiu tl costume que parecia natural com o desprezo. Sempre ocupada em buscar meios de
atrair desprezo sobre si, apresentava ao mundo novos motivos de rir dela. Assim, todos os
dias de sua viuvez estiveram cheios de sinais singulares de humilhação. Sobre este assunto se
contam dela, fatos que pareceriam exagerados aos que ignoram a maneira em que o Espírito
Santo guia as almas e os caminhos sublimes pelos quais ele leva à perfeição as almas que lhe
são dóceis.
Certo dia ela passava pelo mercado, uma vendedora de peixe que a reconheceu, apontou-a com o dedo, disse a sua colega: Olhe! Esta é a que nos fez ganhar tanto dinheiro, quando mandava comprar para sua mesa o peixe mais delicado e caro. Movida de compaixão pela
situação pobre e repugnante que via numa Dama outrora pomposa nos hábitos e em sua equipagem, imediatamente se levantou e foi dar-lhe uma moeda de quatro soles, que a senhora de
Maillefer recebeu com agrado.
Os que não a conheciam, facilmente a desprezavam tomando-a por mendiga que precisava de ajuda e a esperava. Com essa idéia davam-lhe a esmola, que ela aceitava como um
presente para mortificar seu amor próprio. Um dia, ao receber uma moeda de 1/8 em presença
de outros pobres com os quais ela se misturava com o fim de se parecer com eles e de partilhar a vergonha da mendicidade, pagou bem caro o magro presente, porque as mendigas com
que se associava, quer por inveja, quer por pensarem que tinha vindo roubar as esmolas, afiaram sua língua contra ela e as injúrias foram seguida de pancadas. Era o que ela vinha procurar, e o que recebia com gosto. Considerou essa aventura como afortunada.
Isto não foi suficiente para satisfazer o Espírito Santo que se compraz em contradizer
em casda pormenor o atrativo da vaidade que a tinha seduzido, e em a obrigar a lhe fazer reparação por isso mediante humilhações apreciáveis. Dócil a essa inspiração da graça, apareci141
Vida de João Batista de la Sal
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a, com freqüência, de joelhos no pavimento da igreja de são Nicasio, quase imóvel em postura
e atitude do publicano contrito e humilhado, num lugar de passagem pública, onde toda a gente tinha o direito de tropeçar com ela sem conseguir distraí-la. Que foi que ela não uso para se
destruir aos olhos dos homens e perder sua estima!esse desejo tão santo a levava aqui e ali
para mendigar em público o desprezo e os insultos. Sua inclinação para o opróbrio a mantinha
inquieta e somente obtinha a paz quando se via como objeto de chacota e de mofa.
Com esse fim ia pelas ruas solicitando aos que encontrava a boa obra de a desonrar e
menosprezar. Às vezes andava com uma lanterna acesa em pleno dia, com o fim de que a julgassem de louca; outras vezes andava no barro; outras vezes aparecia coberta de imundície e
descuidada; às vezes usava meias, sapatos ou fraldas cheias de sujeira e lodo que ela não permitia renovar/ às vezes se prostrava diante dos calvários na rua, sem se importar se o lugar
estava imundo, para orar durante um tempo considerável.
Que é que a gente pensava? Que podia pensar de uma dama a quem todos tinham visto
tão radiantemente bela, tão suntuosamente vestida, tão ricamente adornada? Dessa mulher
que tinha estudado tanto a arte de ressaltar sua bela estatura e sua imagem usando os últimos
meios e os adornos mais mundanos? Todo o mundo dizia que estava louca, que tinha perdido
o juízo, que a devoção a tinha feito perder a cabeça. As crianças a apitavam e lhe corriam atrás gritando: a devota! A devota! Todos se riam dela porque sua pessoa movia ao opróbrio ou
à piedade. Em tais ocasiões a senhora se encontrava em seu elemento. O mundo lhe concedia
o que ela queria, e estava contente. As pessas piedosas que sempre foram suas amigas e que
não se envergonhavam de o ter sido, lhe censuravam as estranhas combinações e os ridículos
vestidos, e queriam dar-lhe a entender que, em consciência, não deveria proporcionar tantos
motivos de burla ao público e às línguas malignas tanta matéria de maledicência contra a devoção. Mas ela lhes fechava a boca com estas palavras: Nada se deve fazer para agradar ao
mundo. Toda sabedoria dos homens só é loucura diante de Deus, e o que parece loucura aos
homens, é sabedoria diante de Deus!
Seu amor à abjeção a levava a toda parte em que pensava haver uma humilhação, e a
obrigava, não somente a se misturar com os pobres nas portas das igrejas mais freqüentadas,
mas também a pretender ser um deles, aparentando ser um indigente, para ter parte da ignomínia da mendicidade. Consumida pelo desejo de ser humilhada, era vista fazer o papel de
mendiga que cata uma pulga incômoda e procura matá-la para se livrar de sua infestação.
Para fazer isto com urbanidade, tirava de seu vestido algumas tiras de fazenda velha ou algum
forro ensebado que sacudia diante de todos espantar os parasitas, de que ela estava cheia porque não usava roupa interior e porque tinha entrado em tão estreita relação com os pobres que
não tinha mais obsessão do que eles, nem outra ocupação, depois dos exercícios de piedade,
do os servir. Quantos outros fatos heróicos de uma humildade atenta a merecer o desprezo dos
homens, não teria conservado a história de sua vida para edificação do público, se tivesse havido o cuidado de os recolher por escrito depois de sua morte!
Abandonava-se ao amor da abjeção com tão pouca atenção, que seu diretor, o padre
Du Tac, homem com reputação de profunda espiritualidade e que dava dela lições públicas se
sentia envergonhado por ela e por si mesmo. Censurava-a com freqüência, mas a humilde
senhora justificava om habilidade seus atos de humildade pelos ensinamentos desta virtude
que ele estava dando, e acrescentava que, se ele achava que ela exagerava neste assunto, deveria ser menos veemente em sua pregação. Em seguida ela lhe perguntou se o que pregava não
era para praticar, e se estava proibido procurar a abjeção quando ele procurava inspirar o desejo disso. “Se o Espírito Santo me instrui pela boca do senhor, acrescentava ela, sobre os
tesouros escondidos nas humilhações, deve esta mesma boca proibir-me levar à prática as
lições que me dá? Não me diga em suas conversas o que o senhor não quer que eu faça, ou
deixe-me fazer o que está pregando. Se for preciso humilhar-se para adquirir a humildade, se
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Vida de João Batista de la Sal
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a humildade é necessária para a salvação, não me perturbe nos exercícios de uma virtude que
o Espírito Santo me inspira para expiar minhas vaidades passadas e reparar, em público, os
escândalos que dei”.
Finalmente, para terminar o retrato de sua humildade, devemos acrescentar que ela se
tornou tão zelosa da vida oculta e obscura quanto tinha sido a notoriedade e a ostentação. Inimiga inconciliável dos louvores, ela os fugia com horror, e fugia inclusive das pessoas que os
davam. Um dia, a senhorita de Monville lhe manifestou o desejo de viver com ela e que ficaria feliz porque assim aproveitaria de seus exemplos de virtude. A humilde senhora de Maillefer ficou tão chocada por esta graciosa pretensão, que, longe de viver com a senhorita de
Monville, a evitou a todo custo no resto de seus dias.
Porque algumas pessoas piedosas que ela tinha ido visitar, lhe dirigiram um cumprimento semelhante ela as esqueceu inteiramente. “Minha intenção, disse ela, é alugar um quarto na vizinhança delas”. E elas responderam: “É o que desejamos com ardor, porque a senhora
será uma benção para o bairro”. Essas palavras ofenderam de tal maneira a humilde senhora
saiu imediatamente e nunca mais chegou a ver essas pessoas. Para merecer sua amizade era
preciso manifestar desprezo por ela. Na falta de injúrias e maus tratos, o maior serviço que se
lhe podia prestar era ignorá-la e esquecê-la, porque seu desejo era: permanecer tão desconhecida e oculta como os mortos nos sepulcros.esta inclinação tão santa e poderosa pelo desprezo
e o esquecimento não foi nela um atrativo passageiro da graça. Foi este o atrativo habitual e
dominante de seu coração, que foi a característica de sua morte como o tinha sido de sua vida.
Toda a sua aplicação na última enfermidade foi esconder suas graças, ocultar seu interior sob
um exterior simples e fátuo, de um silêncio engenhoso que não permitia penetrar em seu sacrário.
Os que a rodeavam procuravam em vão arrancar dela sinais dessa virtude eminente
que tantas vezes em sua vida, ao traí-la, brilhara no meio de suas loucuras aparentes. Ela se
aferrou a fazer aparecer dela somente o que queria mostrar: pequenez de espírito, defeitos,
falta de virtude, pobreza real, estupidez e obtusidade para as coisas de Deus. Com o fim de
ser, depois de sua morte ainda mais do que durante sua vida, esquecida e confundida na multidão dos pobres, quis ser inumada entre eles, no cemitério de são Nicásio, sua paróquia. Não
obstante, como a virtude como o fogo se fazem sentir, e brilha mais quando se procura fazerlhe sombra, a maneira em que a Senhora de Maillefer faeceu foi a prova de sua eminente santidade, como vamos ver a seguir.
5. Sua penitência e caridade
A humildade não foi a única virtude cara a seu coração: a pobreza, a penitência e a caridade exerciam também ali um grande império. Amiga da pobreza, mais do que o tinha sido
do luxo e da magnificência, despojou-se geralmente de tudo. Tendo chegado a ser mais terna
com os pobres, do que tinha sido dura com eles, não se lembrava de seus bens a não ser quando os repartia com eles. Assim que ficou viúva, não tinha nada de pessoal, nada que não fosse
consagrado às obras de misericórdia.
Em toda parte e em tudo, dava sinais da santa pobreza: casa, móveis, vestidos, alimentação, tudo nela levava o selo desta virtude. Com isso não se diz o suficiente, porque desde
sua viuvez, não teve nem casa, nem móveis, nem alimentação que não causasse náuseas; algumas peças em mau estado he bastavam, com um ou dois ou três pratos de barro; algumas
palhas para se deitar, e um velho trapo para se cobrir. Tudo isso somente causava horror e
estava como paras ser jogado no lixo. Se alguém as tivesse jogado pela janela no lixo, as pessoas mais pobres não se teriam incomodado para as apanhar.
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Os pobres constituíam sua companhia. Sua ambição era encontrar um lugar entre eles,
fazer-se semelhante a eles e chegar a ser uma deles. Isto conseguiu porque tinha o jeito de
parecer pobre por uma engenhosa humildade e de tornar-se pobre por suas piedosas larguezas.
Não era menos sábia em dissimular suas esmolas do que liberal em as fazer. Às vezes, aparentemente para dar uma esmola, ia à casa de algum pobre para cozinhar a carne que tinha comprado e a deixava ali, contentando-se com uma parte do caldo para fazer a sopa numa tigela,
sopa que tomava na porta, em atitude de mendiga, para dar a entender que estava reduzida à
mais vergonhosa mendicidade.
Quando ia a Darnétal para visitar a escola que tinha fundado, seu zelo a levava de casa
em casa para exortar os pais e as mães de família que mandassem seus filhos ao catecismo.
Entrava nas lojas e exortava os trabalhadores e clientes a receberem os sacramentos. Em seguida ajoelhava e lhes mostrava com uma atitude devota e recolhida, como se devia receber o
sacramento da santa comunhão.
A vida austera, pobre e abjeta, permitia-lhe empregar tudo o ganhava em dinheiro, em
proveito dos pobres. À medida que o dinheiro chegava a suas mãos, passava às mãos dos indigentes. A medida de sua caridade eram as necessidades dessa gente. Conhecendo por experiência os pormenores das misérias, sabia como devia distribuir suas esmolas. Mas como a
distribuição que a caridade lhe inspirava nem sempre favorecia a cobiça dos maus pobres,
acontecia muitas vezes que estes pagavam as esmolas com insultos. Entre outros, uma senhora
descontente porque não lhe tina dado todo o dinheiro que ela pedia para comprar lã, vingou-se
falando dela de maneira satírica e odiosa. Mas isto era fazer de Maillefer um grande favor,
para que não lhe manifestasse gratidão: eu a amo mais do que todas outras, disse ela a essa
insolente, e ao mesmo tempo lhe deu todo o dinheiro que pedia.
Esse tempo, toda primeira quarta-feira do mês, celebrava-se uma missa na capela construída sob o nome de Santa Catarina, em que a devoção atraía muita gente. A
devoção da senhora de Maillefer ia muito mais longe porque ela fazia esta penosa peregrinação todas as quartas-feiras e passava horas inteiras, embora houvesse meu tempo, na porta dessa capela, quando estava fechada. Quando ia para as carmelitas, ouvia
todas as missas que se celebravam, e saía dali muito tarde. Tinha o costume de assistir
as atinas na paróquia, aos domingos e dias de festa. Durante esse tempo, parecia ocupada em se recordar de seus pecados e dôo zelo de fazer reparação a Deus, porque se
ouvia como repetia com freqüência as palavras: Cria em mim, ó Deus, um coração puro, etc. Não desvies de mim o teu rosto, etc. Afasta de teus olhos meus pecados, Etc.
Depois da morte de seu marido, sua vida foi um longo martírio de penitência.
Quase nunca usava sapatos. Sofria o frio, o calor e as outras intempéries das estações,
como se não tivesse corpo, ou como se fosse insensível. No começo, usava tecido mais
ordinário para confeccionar suas roupas; depois deixou de as usar; assim quanto faleceu, quase não se encontrou roupa interior em seu corpo. Caminhava a pés descalços,
sem que se se notasse, porque ela ocultava essa mortificação usando sapatos se solas.
Era uma pessoa robusta e de bom apetite, e tinha necessidade dele para comer
coisas que outra pessoa não podia olhar sem náuseas. Qual era sua alimentação? Sopa
e legumes cosidos para vários dias, dentro dos quais pululavam os vermes. Ela não se
importava, e comia tudo com muito apetite, enquanto as pessoas que foram algumas
vezes testemunhas, sentiam revoltar-se lhes o estômago. A Irmã Maria Ana de Darnétal e sua companheira, ao verem a senhora de Maillefer, de visita num dia de feriado,
meteram-se a arranjar o quarto dela, que permanecia sempre em desordem. Qual não
foi sua surpresa quando viram os vermes a pulular no recipiente em que estava a sopa!
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Sem dúvida que ela não tinha chegado a este ponto de mortificação sem se ter
feito violência. Uma mulher nascida no seio da opulência, educada com delicadeza,
tão sensual como mundana, idólatra de seu corpo, teve, sem dúvida, que travar terríveis combates com a moleza e a sensibilidade. As vitórias que obteve sobre sua delicadeza, devem ter sido vitórias muito freqüentes e sangrentas para um corpo engordado em banquetes. Quantos sacrifícios não terão custado a uma natureza acostumada a
não se negar nada, antes de poder resolver-se, não a desejar como o filho pródigo, as
sobras dos porcos, mas dos vermes mesmos!? Acaso não podia dizer com o santo varão Jó, e cm tanta verdade como ele: Agora minha comida de enfermo é o que antes
me dava asco de pegar
De resto, a senhora de Maillefer tinha mais de um ,motivo para viver como vivia. Todas as outra virtudes cresciam por seu modo de viver. A pobreza, a caridade
com os indigentes, o silêncio, o recolhimento e a oração se acomodavam a uma maneira de viver que não precisava de serventes, nem de mais alojamento do que algum lugarzinho reduzido. Sozinha nesse buraco, na paróquia de são Nicásio, à qual conduzia
uma escada em más condições, não lhe era dava muito trabalho nem tempo para preparar sua alimentação. Sem baú, sem armário, sem móveis, dormia no chão sobre algumas palhas ou sobre velho catre de tesouras. O único móvel legendário de valor,
segundo seus vizinhos, era um armário com livros que lhe proporcionava o material
para leitura e oração durante parte da noite.
Sua moradia ordinária era, ou a igreja catedral de Nossa Senhora, ora o Hospital da Madalena, em que ia expiar sua antiga dureza com os pobres, prestando-lhes os
serviços mais humildes e mortificantes. Este teatro de misérias e enfermidades humanas era sey lugar de delícias, ali permanecia mais tempo do que em sua casa, em que
somente passava a noite e rezava em segredo. Saía de madrugada sem se importar do
tempo que fizesse, para retomar suas atividades caridosas e piedosas.
La gostava principalmente de consolar e exortar os enfermos, sobretudo os agonizantes, o que fazia com encanto particular. Não se podia ouvi-la sem se comover.
Sobretudo os enfermos pobres, que amava ternamente, pareciam arrebatados, e tinham
a impressão de ouvir um anjo, quando ela os exortava. Se algum enfermo lhe manifestava desejar alguma coisa para seu alívio, ela procurava imediatamente satisfazer o pedido indo buscar o que solicitava, mesmo quando era preciso ir até os limites da cidade, o que acontecia com freqüência. Se o numero de enfermos era maior do que de ordinário, passava com eles dias inteiros. E para organizar seu tempo em favor deles,
trazia seu pobre almoço e o tomava na escadaria do Hospital. Nada lhe impedia vir e
prestar seus serviços aos enfermos pobres. A única ajuda que se permitia para sair, de
momento, no inverno rigoroso dos problemas das ruas, que a neve e o gelo tornavam
quase intransitáveis, foi um cabo de vassoura que deu nova ocasião para a gente rir às
expensas dela. Certo é que o público, depois de a ter tratado de louca durante 15 anos,
começou a olhá-la como santa, quando exerceu por longo tempo sua paciência, e viu
em sua perseverança as provas de sua santidade.
No fim de sua vida, tinha-se mudado para perto da igreja de Nossa Senhora a
uma espécie de pensão para beber e comer, com o fim de ter mais tempo de rezar diante da imagem da Santíssima Virgem, que se encontra no altar dos votos, onde passava
várias horas, também com o fim de ser mais assídua aos enfermos e agonizantes. Mas,
de tarde regressava para seu pobre quartinho que estava na paróquia de são Nicásio em
frente das Gravelinas.
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
O ano de 1693, to trista por causa da fome e das enfermidades que desolaram a
França, foi para a Senhora de Maillefer um ano de novo fervor, cujo preço foi o fim de
sua vida. O Hospital da Madalena, que o contágio da purpurina, expandido na cidade
de Ruão e por toda parte, encheu de enfermos e moribundos, proporcionou uma nova
oportunidade aos atos heróicos de caridade que a piedosa Senhora exerceu ali. despreocupada ou indiferente diante do perigo de morte, ao que ela se expunha, estava atenta
aos mortos. Somente a noite limitava o seu zelo. Fatigada, exausta, saía da Madalena
ordinariamente pelas 10 horas da noite, menos para descansar do que para rezar. Por
fim ela encontrou, no exercício da caridade a enfermidade que foi sua recompensa e
devia coroar sua santa vida com uma morte preciosa.
Portanto, foi o exercício da caridade com os moribundos e os mortos que ela
adquiriu seu mal. Sentiu-se tão violentamente atacada, que se deu facilmente conta de
que sua hora estava próxima. Assim, tão enferma como os enfermos que estava assistindo, aos lhes dizer-lhes o último adeus, lhes anunciava que não os veria mais e que
ela não teria mais a consolação de os aliviar nem de enterrar os mortos.com efeito. Faleceu poucos dias depois num êxtase de amor, recolhida em sua pobre casinha, no
chão, sobre algumas palhas segundo dizem alguns, sobre um colchão, dizem outros,
com os braços estendidos e os olhos voltados para o céu. Terminou sua santa vida com
estas últimas palavras:Meu Deus, eu vou para ti.
A superiora do Hospital da Madalena, que viera com sua colega para a assistir,
voltou tão edificada da morte dela como o tinha sido de sua vida. O padre Le Paon
que, mais tarde, foi pároco de são Nicásio, aplicou-lhe os últimos sacramentos e regressou tão encantado e consolado, que somente podia exclamar: “Que bela morte!
Que feliz morte! Bem-aventurados os que morrem dessa maneira!” Etc.
Todas as pessoas se apressaram para obter alguma lembrança dela, porque sua
reputação de santidade, fazia ver como relíquias tudo o que ela tinha usado.mas a piedade pública não encontrou de que se contentar, porque por sua morte a senhora não
deixava nem dinheiro nem móveis, nem vestidos para repartir. Alguns pobres farrapos
cobertos de vermes, bons para serem jogados no lixo, foram os únicos despojos que
deixou. Na falta disto, recorreu-se aos cabelos que foram dispersos por toda parte e
guardados com cuidado.
Este é o retrato da célebre senhora de Maillefer, que deu tanto de falar, em seu
favor e contra ela, na cidade de Ruão. Depois de se escândalo da cidade, foi seu exempo de virtude, pois de famosa mundana, se transformou em ilustre penitente; reparou
publicamente durante longos anos, passados em humilhações diárias, na prática das
mortificações mais repugnantes a natureza, e no exercício contínuo de obras de caridade, as más heróicas. Expiou assim os primeiros anos de sua vida entregues ao luxo
mais extravagante, a vida de moleza e sensualidade, e a todos os excessos de uma vaidade sem limites.
Sua memória está ainda viva em Ruão, onde faleceu não faz ainda 40 anos. Um
grande número de pessoas, que a iram, que a conheceram e que foram testemunhas dos
fatos que contamos, vivem ainda. Fala-se dela com assombro e transportes de admiração. O que escrevemos é devido à virtuosa senhora de Monville, tia do senhor de
Monville, presidente do tribunal de Mortier, de 85 anos de idade, que conheceu muito
bem a senhora de Maillefer por ter o mesmo diretor espiritual; e à Irmã Maria Ana de
Darnétal, estabelecida por ela como mestra neste lugar, em que ainda está; por fim, a
algumas outras pessoas que a viram e conheceram.
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
Como a senhora de Maillefer estava interessada em todas as boas obras, foi
das escolas cristãs. Fundou uma delas para as meninas em Darnétal, bairro populoso às
portas de Ruão, muito comercial e numeroso em razão das manufaturas ali estabelecidas. Foi o bom êxito dessa escola que deu lugar a outras parecidas para as meninas e
ao estabelecimento das escolas para os meninos.
Foi assim que a divina Providência levou a La Salle à execução deste projeto. A senhora de Maillefer recebeu a inspiração de dar à juventude pobre de sua cidade natal o auxílio
que tinha dado à de Darnétal. Com o padre Roland - no qual tinha confiança e a quem estava
ligada por vínculos de piedade – combinou o estabelecimento de escolas para meninos. Não
havia necessidade de pensar em escolas para meninas porque este cônego teólogo, desde o
ano de 1674, tinha formado para a instrução delas a comunidade de que já se falou. O grande
bem que para as meninas realizou com esta nova obra despertou no padre Roland e na senhora
de Maillefer o plano de fundar uma obra igual para os meninos. Ambos tinham tomado medidas em conjunto para assegurar o bom êxito desta empresa desde o ano de 1673, mas se frustraram com o falecimento do cônego. A generosa senhora não se desconcertou em contra toda
esperança, esperou levar a fim com feliz êxito um plano que devia ser o início, sem que ela o
suspeitasse, da fundação do Instituto dos Irmãos.
Ao lhe faltar o padre Roland, ela teve a inspiração de procurar em Reims alguém que o
substituísse. O assunto era delicado e difícil de operar. As dificuldades que a fundação para as
meninas tinha sofrido em Reims, não permitiam dúvidas de que um projeto para os meninos
teria as mesmas oposições. Para ter bom resultado, era necessário, encontrar um homem zeloso e hábil, delicado e persuasivo. A senhora de Maillefer o encontrou na pessoa de Adriano
Niel, natural de Laon, com a idade de 55 anos. Este tinha recebido por natureza os talentos
próprios para essa classe de obras. De caráter vivo e ativo, estava sempre pronto a ser o primeiro em romper o gelo e em tentar uma nova empresa. De outro lado não era novo no campo
para o qual a senhora de Maillefer o julgava preparado, porque tinha feito a tentativa em Ruão, onde tinha começado com bem êxito as escolas gratuitas para os meninos e contribuído
muito para o desenvolvimento delas. Para prover a subsistência dele e a de um rapaz de 14
anos que o acompanhava, a piedosa senhora se tinha comprometido a proporcionar-lhe todos
os anos cem escudos de pensão, e lhes dera um documento escrito para este fim.
Com essa segurança, o senhor Niel partiu para Reims em 1679 com um garoto bem informado sobre as intenções da pessoa que o enviava e encarregado de cartas dirigidas à superiora das Irmãs do Menino Jesus, que estava consciente dos planos que se tinham projetado
em vida do padre Roland. Esta senhora que tinha vivido em Ruão, onde fora superiora da comunidade da Providência e que era conhecida do senhor Niel, se encontrava à testa da nova
comunidade do falecido padre Roland, a quem o padre Barré a tinha enviado.
A divina Providência que sabe arranjar todos os acontecimentos para a execução de
seus planos, teve o cuidado de que o padre de La Salle se encontrasse à porta da Comunidade
das Irmãs do Menino Jesus, quando o senhor Niel e seu jovem companheiro chegaram. O desígnio desta divina Providência era apresentar a este jovem cônego este desconhecido, para
que servisse de instrumento na abertura das escolas cristãs e gratuitas para os meninos. O padre de La Salle contudo não pensava nisso. Ter-se-ia surpreendido muito se tivesse dito que o
desconhecido que estava vendo, era enviado por Deus, para o fazer entrar no caminho de seus
desígnios eternos. Por outro lado, o senhor Niel tinha o plano de estabelecer escolas cristãs e
gratuitas, mas suas intenções não iam mais longe. Não tinha a menor suspeita de que chegaria
a colocar os fundamentos de um grande edifício e preparar o caminho para a formação de uma
nova congregação religiosa. Se tivesse consentido em prestar seu auxílio nessa obra, se lhe
tivessem mostrado o fim, pois para tanto não tinha inclinação nem a graça, não sei sequer se
pudesse suspeitar. Não era a pessoa apropriada uma obra desta índole, como se vai mostrar na
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
sequência desta história. Era, pois, o homem da Providência unicamente para dar início a sua
obra. Quando esta começar, o senhor Niel que nela vai introduzir o padre de La Salle, vai sumir e deixará somente os desígnios de Deus agirem.
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
Capítulo VIII
Abertura das Escolas Cristãs e Gratuitas para
Rapazes, em Reims
1. Chegada do senhor Niel a Reims.
O senhor Niel se encontrou em Reims junto à porta da nova Comunidade de Mestras
de Escola, quando chegou o padre de La Salle. Ambos se entreolham pela primeira vez sem se
falar e com a indiferença da gente que não se conhece nem se imaginam as relações que vão
estabelecer. Ao entrar, depois dos cumprimentos usuais expôs à superiora os motivos da visita
e lhe entrega as cartas da senhora de Maillefer.
La Salle não estava presente. Ao entrar na casa, tinha deixado o desconhecido, cuja
missão e motivo da mesma ignorava, em liberdade para falar com a superiora. Que podia ela
responder? Se o senhor não lhe era desconhecido, seu plano, embora projetado em vida do
padre Roland, lhe parece novo, a empresa ousada, e o bom resultado muito difícil. Mas não
lhe incumbia colocar objeções nem dar sugestões.
A pessoa que devia resolver todas as dificuldades estava na casa. O senhor Niel, sem o
conhecer, o tinha visto entrar. A ele devia se apresentar e falar. A superiora l manda vir e lhe
pede seu conselho. Entre as cartas da senhora de Maillefer que Niel tinha trazido, estava uma
para o padre de La Salle. Ela era sua parente e lhe pedia ajudasse com sua influência o senhor
Niel e trazer seu zelo para dar a Reims uma fundação de escolas gratuitas e cristãs para os
pobres.
Lidas as cartas da senhora de Maillefer e exposto o plano do senhor Niel, o padre de
La Salle se deu conta da importância, necessidade e vantagens do plano. Desejou-lhe bom
êxito, mas previu as dificuldades e problemas que suscitariam.
Os desejos do padre Roland se teriam cumprido com toda sua extensão, se tivesse visto executado esse plano. Mas a morte não lho permitiu. Era, pois, uma espécie de dever para o
padre de La Salle apóie-lo em memória do piedoso defunto, e a bondade de seu coração não
lhe permitia recusá-lo. De outro lado, não se tratava de empreender a tarefa, menos ainda encarregar-se dela; as coisas não tinham chegado a esse ponto. Se o padre de La Salle tivesse
acreditado que chegaria a tanto, teria fugido, não teria movido um dedo, tal era a repugnância
que sentia – não à obra que parecia excelente – mas a se fazer seu promotor e chefe.
O padre de La Salle pensava não comprometer- se em mais alguma coisa, contudo ofereceu-se com uma caridade terna, a prestar ao senhor Niel todos os serviços. Louvo-lhe o zelo, aplaudiu seus projetos, e por uma generosa renúncia às considerações humanas e às luzes
de sua própria inteligência que não lhe permitiam esperar o bom êxito, se ofereceu a ser o
primeiro a entrar na obra e a remover as primeiras dificuldades. A primeira destas que podia
dar ocasião à obra, era encontrar para o senhor Niel um alojamento conveniente e que favorecesse a abertura das escolas. O primeiro passo era escorregadio e não se podiam tomar suficientes precauções para o assegurar e prevenir a queda. O segredo não era menos necessário,
porque um plano publicado rapidamente se desvanece.
Era pois necessário cobrir o plano com o silêncio. A menor suspeita de sua existência
o teria levado ao fracasso, num lugar em que se estava tão fortemente prevenido contra as
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
novas fundações e em que as tempestades suscitadas contra o Instituto das Mestras de Escola
mal acabavam de cessar. Se em Reims se soubesse que o senhor Nie tinha vindo na qualidade
de mestre de escola e com o plano de estabelecer escolas gratuitas, teria encontrado todas as
portas cerradas, ou melhor, as teriam aberto para o mandar embora.
Contudo, a ordem que o senhor Niel tinha recebido da senhora de Maillefer de se alojar na casa do irmão dela, teria divulgado o plano. O padre de La Salle, iluminado por sua
prudência usual, ou pela luz do alto, se deu conta desta possibilidade e se opôs a que o senhor
Niel se alojasse nessa casa.
Em vão – disse ele ao senhor Niel – o senhor teria feito tantas diligências para vir
abrir escolas cristãs e gratuitas em Reims, se a última o conduz à casa do irmão da senhora de Maillefer. Ao entrar nela, o senhor publica seu plano, e ao publicá-lo, o faz fracassar. Sua estada naquela casa não fará suspeitar o motivo de sua vinda? Sua condição
social, seu estado e seu emprego tão diferentes dos de seu caridoso hóspede, que é que o
leva à casa dele? Qual pode ter sido o motivo de sua chegada? Isto é o que se perguntará
o povo, isto levará a adivinhar, e será o objetivo das pesquisas dos curiosos e das informações das pessoas ociosas. À força de pesquisas se chegará a descobrir a verdade, ou ao
menos, a suspeitar alguma coisa. Por mais reservado que o senhor se mostrar, tirarão algumas conclusões e, seguindo-lhe os passos não tardarão para saber aonde quer chegar, e
assim que se souber de tudo, lhe vão barrar todos os caminhos.
O passado fala pelo futuro. Há pouco, um piedoso cônego, pregador famoso, acreditado e reverenciado na cidade, deu início a uma sociedade de Mestras de Escola,
que quase naufragou no berço. Estava tão perto do fracasso, que somente a autoridade de
D. Le Tellier pode evitar sua ruína. Foi necessária toda sua influência, e esta escassamente foi suficiente para inclinar a balança das autoridades da cidade, ou melhor, para conquistá-los e obter seu beneplácito. Será que o concederão a uma segunda fundação para
rapazes? O interesse pelos pobres da cidade o reclamará, mas os interesses de Deus e dos
pobres ocupam um segundo lugar na política. Para fazer ceder a esta em favor dos anteriores, seriam necessários todos os poderes do senhor arcebispo. Mas, será que ele os vai
dar e empregar, para não dizer comprometer-s com ele uma segunda vez, com risco de
fracassar?
2. O padre de La Salle aloja Niel em sua casa
Estes motivos foram muiito sensatos e fizeram ver com clareza a Niel os inconvenientes que teria havido se tivesse se alojado na casa que lhe indicara a senhora de Maillefer. Mas,
ir aonde? Que fazer? Esta foi o problema em que se encontraria. A caridade compassiva do
padre de La Salle não lhe permitia experimentá-lo nem sentir as primeiras dificuldades dessa
perplexidade. Ele lhe ofereceu sua casa, e essa oferta lhe evitava todos os inconvenientes.
Venha – acrescentou com gesto gracioso – venha alojar-se em minha casa: como é um
alojamento em que muitas vezes vem os párocos do campo, e alguns eclesiásticos, meus
amigos, ela é muito apropriada para o seu alojamento e ocultar seu plano ao público. Por
sua aparência exterior, semelhante à dos sacerdotes do campo, a gente pensará que o senhor é um deles. Além disso, tenho direito de alojar em minha casa a que eu quiser, sem
me preocupar do que se possa pensar, e o menor de meus incômodos é saber o que possa
dizer. Pode passar em minha casa oito dias em calma e desconhecido, sem que alguém se
preocupe com o senhor. Este tempo lhe dará material para maiores reflexões, e será suficiente para arranjar seus assuntos, assim como para tomar as medidas para os fazer triun-
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Salle
far. Depois desse tempo, pode partir para Nossa Senhora de Liesse, aonde o chama sua
piedade e quando regressar, pode tentar a abertura das Escolas.
A oferta era amável demais e impossível para ser recusada. O senhor Niel, muito satisfeito com a caridade e a prudência do jovem cônego, aceitou com gratidão a proposta. Nenhum dos dois sabia o que aconteceria: João Batista de La Salle não se dava conta de que iniciava a trabalhar em sua própria obra ao ajudar a obra de Niel, nem que, ao receber em sua
casa a este mestre de escola, a transformava em seminário para aqueles que Deus destinava
lhe enviar.
Agradavelmente surpreso, ao chegar a Reims, de ter encontrado, um lugar honesto,
cômodo e adequado a seus projetos, e um protetor tão zeloso e tão bem disposto a lhe prestar
serviços, Niel não pensou em outra coisa do que em agradecer a Deus e em informar de tudo a
senhora de Maillefer. Um resultado tão feliz de todas as coisas era para ambos um pressagio
favorável do bom êxito de sua tentativa. A senhora respondeu a seu enviado para o animar a
empreender seu projeto e não descuidar nada para lhe dar um bom início. Ao receber o senhor
Niel, o padre de La Salle não apenas pensou em proporcionar alojamento caridoso a um mester de escola; er suficiente para ele. Mas não era suficiente para aquele que o tinha escolhido
para ser o Patriarca de um novo Instituto. Por isso, o pressionou com inspirações secretas, a
to,mar a peito os interesses das escolas cristãs e gratuitas, e a tomar todas as medidas necessárias para assegurar seu feliz êxito.
3. Medidas tomadas pelo padre de La Salle para abrir escolas gratuitas
em favor dos rapazes de Reims
Ocupado com esses pensamentos, o piedoso cônego consultava a Deus e estudava na
presença dele a maneira de resolver um assunto tão delicado. Temeroso de cometer algum
erro e de seguir suas próprias idéias, teve a inspiração de procurar opiniões mais seguras nos
conselhos dos sábios. O primeiro que consultou foi o padre Claude Bretagne, então prior da
abadia de são Remígio de Reims, depois da de são Germano de Paris. Com quem nosso piedoso cônego esta bem relacionado. Contudo, não se contentou com a opinião dele. Afim de
proceder com maior maturidade e de não omitir nenhuma precaução, quis ter os conselhos dos
eclesiásticos mais piedosos da cidade; os mais capazes de prever os inconvenientes que deviam ser evitados e de assinalar os obstáculos que se deviam vencer. Pois bem; para poder deliberar melhor, reuniu a todos com o padre Bretagne e tiveram vários encontros. Foram discutidos os meios de conduzir a um final feliz o plano projetado. Após um maduro exame, concluíram que a proposta do padre de La Salle era a mais segura e a única praticável. “O meio mais
apropriado e talvez o único para começar a estabelecer escolas cristãs e gratuitas para os meninos, – disse ele – é colocá-las ao abrigo das contradições sob a proteção de um pároco bastante zeloso, para se encarregar delas; bastante discreto para não revelar o segredo e bastante
generoso para sustentar a obra. Como o pároco tem o poder de instruir seus fregueses na doutrina cristã, ninguém tem o direito de o impedir”.
O conselho parecia inteligente, e foi aplaudido. A escolha do pároco que empreenderia
este projeto, era uma questão mais difícil de resolver, porque uma decisão errada faria fracassar o projeto. Pois bem; era fácil escolher mal; às vezes se pensa que alguém é sábio, discreto,
bem intencionado, quando na realidade não o é. Pessoas que, com reputação imerecida de
possuir essas qualidades, muitas vezes a perdem quando lhes chega a ocasião de as mostrar.
A questão foi tomada em consideração e a primeira eleição caiu sobre os quatro párocos que tinham mais fama. Mas, surgiu outra dúvida mais penosa: a qual dos quatro vamos
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
preferir? Contudo, a lucidez do padre de La Salle fez inclinar a balança em favor do pároco de
são Maurício e os consultores decidiram dar-lhe seu voto.
O pároco de são Sinforiano – disse o padre de La Salle, referindo-se ao primeiro dos
quatro propostos – seria o homem que procuramos, se estivesse com boas relações com os
superiores. Mas infelizmente, eles não gostam dele; portanto, não devemos pensar nele. O
segundo não tem suficiente bom senso. O terceiro, sobrinho e protegido do senhor oficial diocesano, a quem deve tudo o que é, está muito ligado a ele; e na primeira palavra de seu benfeitor e tio, despedirá os mestres de escola. Pó conseguinte, este não é a pessoa que devemos
escolher. Todavia, o padre Bretagne se inclinava por ele e lhe teria dado seu voto, se tivesse
podido contradizer os motivos do padre de La Salle. A escolha caiu, pois, sobre o senhor Dorigny. Pároco de são Maurício. Era homem de bom senso, e era preciso alguém que pudesse
reter os golpes previstos do inspetor diocesano das escolas, o qual podia opor-se e que se opôs, de fato, a abertura desta escola, mas em vão.
Tendo todos os que foram consultados subscrito este parecer, somente se tratava agora
de saber como revelar este segredo ao pároco de são Maurício. De todos os consultados, somente este estava isento dos inconvenientes que se temiam, e foi julgado apto para a execução
do plano projetado. Além disso, tinha bastante piedade, zelo e firmeza para sustentar o que
empreendesse. Como, antes de mais nada, era necessário tomar com ele as medidas e decidir
os meios para conseguir bom resultado, ao senhor padre de La Salle foi confiado o encargo, e
ele o cumpriu plenamente.
Como se pode ver, a graça especial necessária para esta obra já se fazia sentir nele, e
agia poderosamente sem que ele o percebesse, pois foi ele o primeiro em prever todas as dificuldades em remover os obstáculos, em tomar medidas seguras e em escolher meios eficazes.
A luz divina lhe mostrou a direção que devia dar a este assunto, as pessoas que devia empregar e o pároco melhor qualificado para a começar. Uma só medida mal tomada, uma só precaução omitida, um só passo demasiado precipitado ou diferido, teriam feito abortar o projeto
antes de seu nascimento.
Nosso piedoso cônego, encarregado de conduzir a obra de Deus, não perdeu tempo para a iniciar. Vai entrevistar-se com o senhor Dorigny, informa-o sobre o projeto e sobre a escolha que se fizera dele para o começar. Não podia dirigir-se a um ouvinte melhor. O pároco
de são Maurício era, sem dúvida, o homem que Deus mesmo tinha escolhido, porque ele o
tinha preparado para essa obra inspirando-lhe o projeto de ter em sua paróquia uma escola
gratuita dirigida por um eclesiástico que se tinha comprometido a viver com ele. Portanto,
ficou agradavelmente surpreso com a gentil oferta que o padre de La Salle lhe vinha fazer, de
uma fundação que ele mesmo estava pensando fazer e da qual teria todas as vantagens, sem
custo algum.
“A única condição que lhe colocamos – acrescentou o piedoso cônego – é aparecer
como o fundador dessa escola e lhe emprestar seu nome. Quase todos os seus paroquianos são
pobres, o senhor lhes deve uma instrução que eles não podem conseguir. Poderá dar-lhes isto
através do senhor Niel e de seu companheiro, que lhe apresentamos para funcionar como mestres de escola. Tome-os e se alguém perguntar, explique que os está empregando para a instrução de seus paroquianos”.
Uma proposta tão favorável foi recebida com alegria e complacência. O pároco não tinha necessidade de a examinar, visto que somente oferecia vantagens. Para facilitar sua imediata execução, se ofereceu a alojar os dois mestres de escola. A oferta do senhor Dorigny
pareceu inspirada por Deus, porque era muito apropriada para o bom êxito da empresa que
dependia de todas as precauções imagináveis. Uma vez que os mestres de escola estavam sob
o mesmo teto e comiam na mesma mesa do pároco, era natural que a gente os consideraria
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Vida de João Batista de la Sal
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como seus assistentes e pessoas a seu serviço, sem que pudesse pensar que estivessem a serviço de outra pessoa que pagasse os gastos.
4. Abertura, em Reims, das escolas gratuitas para os meninos, em 1679,
na paróquia de são Maurício.
O padre de La Salle se apressou em aceitar a oferta do pároco de são Maurício e em he
pedir que se contentasse com cem escudos de pensão anual, que a senhora de Maillefer – a
quem não se nomeava – devia pagar aos mestres. O negócio foi fechado com mútuo consenso,
e as escolas cristãs e gratuitas iniciaram em Reims nesse ano de 1679. tudo tinha saído ao
gosto de La Salle. Não tinha mais nada a fazer, pensava ele, do que agradecer a Deus e voltar
a se encerrar no exercício dos deveres de um bom sacerdote e bom cônego. Mas estava enganado; u a vida mais exigente e mais laboriosa lhe coube em sorte.
Com o feliz êxito da abertura das escolas em Reims, de acordo com seus desejos, ele
pensou que Deus não lhe pedia mais nada, e se retirou. Contudo, Niel vinha de vez em quando
visitá-lo, para aproveitar das idéias dele e solicitar-lhe alguns serviços. O caridoso cônego os
prestava, e nada mais. Ambos se viam um ao outro, mas sem fazerem plano para o futuro e
sem saber como Deus os guiaria, para cumprir seus desígnios.
Os dois homens eram de personalidade bem diferente: João Batista de La Salle era
calmo e comedido em todos os seus atos.o senhor Niel era empreendedor e de muita atividade. Assim, este zelo ativo era o qeue se precisava para estimular o do padre de La Salle, mais
sábio e circunspeto. Um devia ser ao outro de estímulo para por em marcha a obra de Deus. a
divina Providência sabe, quando lhe apraz, combinar os diversos caracteres dos homens, de
tal modo que, embora opostos entre si, simpatizem para a execução de seus desígnios. Esta
mão infinitamente hábil sabe colocar em marcha os instrumentos menos apropriados. Os próprios inimigos de Deus contribuem para os objetivos divinos e levar a seu fim os projetos que
fazem contra essas obras. Deus se compraz em trabalhar com o nada e tirar dele as maiores
obras; emprega homens ou mulheres de toda idade e condição: todo homem, enfermo, tarado
mental, abandonado, é o homem preciso para suas admiráveis empresas.
Prova desta verdade temos aqui: a escolha dos apóstolos para fundar a Igreja, o estabelecimento da fé em toda a terra, por meio de homens sem influência, eloqüência nem poder; o
nascimento das ordens religiosas, a pesar de todas as oposições do inferno; o êxito das maiores obras que tiveram um começo humilde. Não é surpresa, se o senhor Niel, sem o pensar,
deu lugar à fundação das Escolas Cristãs, e se João Batista de La Salle, sem querer, se tornou
seu pai. Esta é a ocasião que a divina Providência usou para tanto.
A senhora de Croyeres, viúva, sem filhos, muito rica e muito piedosa tinha tido a inspiração de fundar em sua paróquia de são Tiago uma escola para meninos. O irrequieto senhor
Niel, informado das intenções daquela senhora, tão conformes com as suas, não deixou passar a ocasião de fundar uma nova escola. Foi visitá-la e com insinuante gentileza louvou o
piedoso projeto, comunica-lhe os seus próprios, adquire a confiança dela e a estimula a realizar seu piedoso desígnio por meio de um donativo ou uma fundação formal. Depois conta-lhe
tudo o que tinha feito em Ruão para estabelecer escolas cristãs e gratuitas, e o bom êxito que
tivera. Acrescentou que o mesmo êxito o seguiu em Reims, onde tinha vindo para fundar uma
escola.
Por fim, para merecer da senhora a plena confiança, lhe mencionou que tinha a honra
de conhecer o padre de La Salle e o nomeou como protetor e promotor de sua obra em Reims.
Sugeriu-lhe que se encontrasse com o cônego, e conseguiu inspirar-lhe o desejo de o fazer.
Em seguida se ofereceu a se encarregar desta nova escola, e se ela estivesse de acordo em
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Vida de João Batista de la Sal
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confiar a ele a direção, e lhe recomendou o cônego como o homem mais hábil para executar o
piedoso plano dela. A visita do senhor Niel não foi infrutífera, porque, depois de ter recebido
da piedosa senhora a confirmação de seu plano, ele a fez desejar intensamente falar com o
jovem cônego.
Quando o senhor Niel viu seus primeiros intentos com a senhora com feliz êxito, não
perdeu tempo em se por em contato com o padre de La Salle. Conhecia-o muito bem. pensando que o passado lhe respondia pelo futuro e contando com as disposições de seu benfeitor e
protetor, não duvidou de que a fundação de uma escola gratuita na paróquia de são Tiago,
interessaria a seu zelo assim como havia interessado a fundação da escoa de são Maurício. O
jovem cônego, tão circunspeto como zeloso e atento a procurar em tudo a vontade de Deus,
não quis recusar nem aceitar os desejos do senhor Niel. Cauteloso nesses encontros, temia
comprometer-se, e alguma repugnância se unia ao temor.
Não obstante, como ele era amigo de todas obras boas, se julgou obrigado a se prestar
a esta que tinha sinais evidentes da divina Providência, e não podia obstinadamente opor-se a
ela. Portanto, rendeu-se às instâncias da enferma que aguardava com santa impaciência a sua
visita, que recebeu com grande alegria., Ao lhe abrir o coração e declarar-lhe o projeto que
Deus lhe tinha inspirado de fundar uma escola em sua paróquia, a senhora de Croyere lhe suplicou que se responsabilizasse por ela e a começasse imediatamente. Para tanto, lhe prometeu, na próxima páscoa, um donativo capital a juros no valor de 10.000 libras para produzir
500 libras anuais para os dois mestres, ou, se preferisse, um terreno de igual valor. Ou ainda,
cada ano 500 libras que ela obrigaria seus herdeiros a pagar. Deixou essas três propostas à
escolha.
As promessas da senhora de Croyère se fizeram efetivas. Na páscoa, as 500 libras foram entregues ao padre de La Salle, mas o falecimento da senhora mudou um pouco a execução dos dispositivos dela. O capital de 10.000 libras permaneceu nas mãos do executor testamentário, que não deixou de entregar cada ano as 500 libras ao padre de La Salle, durante
todo o tempo em que permaneceu em Reims, e depois de sua partida, ao superior dos Irmãos.
Assim, os herdeiros a quem a senhora tinha declarado suas vontades, se fizeram um dever de
cumprir.
5. Abertura de outra escola gratuita na paróquia de são Tiago
no mesmo ano de 1679
em consequência, a escola de são Tiago foi aberta sem obstáculo, no mês de setembro
do mesmo ano de 1679. o senhor Niel pessoalmente a iniciou e teve o cuidado, ao mesmo
tempo, de prover, com mestres esta escola com a de são Maurício. Como o número de alunos
aumentava cada dia na escola de são Tiago, foi preciso aumentar também o número de mestres. Estes eram cinco e viviam com o pároco de são Maurício, que não conseguiu alimentação com 50 escudos. Exigiu então 200 libras anuais por cada um deles, fora do alojamento.
João Batista de La Salle aceitou a responsabilidade da quantia suplementar e do alojamento.
Com isto, o cônego se comprometia, de maneira insensível, sem o ter pensado e sem o
querer. Contudo, não se implicava nas escolas estabelecidas além do que a caridade lhe inspirava para toda sorte de boas obras. Contente com o feliz êxito desta obra, não olhava mais
longe. Deixou que Niel se ocupasse de todos os mestres. Mas este homem, embora dotado de
piedade, não a pessoa capaz de ser responsável de uma comunidade. Suas idas e vindas, as
intrigas em que se metia, as visitas que fazia, lançavam-no por demais para fora e não lhe
permitiam guardar a casa nem permanecer nela tranquilo. Assim que abriu uma escola, pensava em abrir outra. Seu desejo ardente era multiplicar os estabelecimentos, sem se preocupar
154
Vida de João Batista de la Sal
Salle
por sua qualidade. Esta espécie de leviandade tinha grandes inconvenientes. Dava lugar a uma
ausência quase contínua da casa, ausência que ocasionava o relaxamento dos mestres e dava
lugar à desordem dos alunos. Outro inconveniente que Niel deveria ter sustado era que cada
mestre ensinava a sua maneira, segundo seu gênio e gosto particular. Pois bem; esta falta de
uniformidade na direção das escolas nascentes, impedia uma parte dos bons resltados que se
deviam esperar.
As luzes do Espírito Santo descobriram já todos esses problemas ao padre de La Salle
e lhe inspiraram o desejo de remediar a eles. Deus lhe deu a graça necessária para a obra à
qual o destinava; esta graça crescia todos os dias nele, e quase a pesar dele, porque não pretendia de maneira alguma, encarregar-se das escoas e muito menos dos mestres. Numa memória autográfica que escreveu para mostrar aos Irmãos por que caminhos a divina Providência
tinha feito nascer o Instituto. Ali ele diz: “Não pensei que a direção que eu tomava das escolas
e dos mestres era somente uma direção exterior, que não me comprometia com eles, a não ser
prover a sua subsistência e a ver que desempenhassem seu emprego com piedade e aplicação”.
6. João Batista de La Salle recebe o título de doutor em Reims.
Sofre um sério acidente.
O cuidado das escolas que o padre de La Salle assumiu como uma ocupação adicional
a seus deveres, lhe deixava todo o tempo necessário para adquirir o alto grau de ciência e de
virtude que seria tão necessário pouco depois, quando as escolas se transformassem em sua
única preocupação. Havia tempo que terminara sua licenciatura. Passou por todos os exames,
sustentou sua tese e fez todas a provas que se usam na Faculdade de Reims, como na de Paris,
mas não tinha recebido o título de doutor. Recebeu-o em 1681, na idade de 30 anos.
Por esse tempo lhe aconteceu um acidente que lhe teria podido custar a vida. Ao voltar
do campo, num mau tempo, de neve abundante que cobria a terra, ocultava todos os sinais da
estrada e um vento impetuoso ocultava todos os indicadores. Perdeu o rumo e caiu num barranco profundo. Teve todo o tempo de implorar o socorro de Deus, porque não podia esperar
o dos homens. Em vão teria pedido socorro, pois o tempo não lhes permitia sair. Tudo estava
deserto, os homens e os animais procuravam abrigo. Depois de ter lutar longo tempo contra
sua má sorte, e feito em vão grandes esforços para sair do barranco, parece que não tinha outro recurso do que encomendar sua alma a Deus e aceitar a morte. Ela estava, de fato, próxima
e parecia inevitável, porque quanto mais força fazia, menos força lhe restavam, e ao terminarem as forças, ficaria sepultado num sepulcro de neve. Seguramente a saída do sol não o teria
encontrado com vida, se tivesse passado ali a noite.
Será que foi socorrido por Deus de maneira sensível? Nunca se poderá sabê-lo, porque
sua humildade não lhe permitiu jamais contá-lo. Ao menos a divina Providência que velava
pela conservação de sua vida, soube, sem milagre visível, tirá-lo desta espécie de abismo,
favorecendo os novos esforços que fez para sair.
Saiu por fim, mas às custas dele, porque uma ruptura causada pelos violentos esforços
que lhe salvaram a vida, serviu para lhe recordar o perigo extremo do qual Deus o tinha libertado e das ações de graça que por isso lhe devia. Com efeito, este acidente lhe deu matéria
para profundas meditações sobre a proteção de Deus para com ele e para ter novos motivos de
o servir com renovado fervor. Ele se sentiu tão comovido por esta consideração, que nunca
falou do incidente a não ser com grandes expressões de gratidão.
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
Capítulo IX
A pesar da extrema repugnância que João Batista de La Salle
sente no fundo de sua alma para viver com gente tão pouco educada
como eram os mestres de escola, de quem tinha algum cuidado,
o amor ao bem que podia fazer o persuade a trazê-los perto de si,
manter supervisão sobre eles e admiti-los a sua mesa.
Uma obra nunca tem um sinal mais visível de ser obra de Deus, do que quando tem a
marca da cruz: quando todo o inferno se levanta para a destruir, quando sacudida por toda
parte e sempre a dois passos de sua ruína, não obstante não cai; ou se cai, quando se levanta
imediatamente e tira novas forças de sua queda; este é p sinal de que a mão do Altíssimo a
apóia e de que é sua obra. Um homem de Deus nunca tem provas mais sensíveis da missão dl
céu do que quando esconde em seu coração, como o profeta Jeremias, uma profunda antipatia
às obras estrepitosas. Do que quando, a exemplo de são João Batista, empreende essas obras
somente sob as ordens de Deus; e quando, para as empreender tem que ir contra suas repugnâncias e fazer o sacrifício de suas comodidades e de sua reputação. Nestes traços encontramos um quadro resumido do padre de La Salle e de seu Instituto. Quando sua obra iniciou,
vieram sobre ela trovões e tempestades. Recebeu, por todos os lados, sacudidas violentas c
contínuas, mas subsistiu. Colocado muitas vezes à beira de sua ruína, não sucumbiu.se parecia
estar sepultada por um momento, imediatamente depois ressuscitava de seu túmulo.
Quando o padre de La Salle põe a mão a esta obra, ignora o que faz, somente pensando que, ao ajudar, se comprometia com ela. Tudo nele se revela contra o projeto que executa
às cegas. Entregou-se a ele somente quando viu a obra de Deus bem marcada, e esta obediência lhe custa o despojo de seus bens, a renúncia às comodidades da vida e, geralmente, a perda
de tudo o que afaga o coração do homem.
Entretanto, o mundo vai dar livre rédea às críticas e às calúnias contra sua obra. Cada
um de seus movimentos era um crime. Foi esquadrinhado, examinado, criticado, nada nele
escapou à língua maligna. O público, depois de ter dado a todas as suas ações um colorido
ridículo, não dará crédito nem a suas intenções. É um ambicioso que quer passar por um nome
no mundo. Quer comprar o título de fundador às expensas de sua prebenda de cônego, de seus
bens patrimoniais, dos interesses de sua família, da honra de seus parentes. É uma grande glória aparecer como santo, e isso é o que persegue. Este é o fantasma por trás do qual corre com
um chapéu enorme, com sapatos baixos e grossos, com sua aparência exterior nova e estranha.
Tudo isso é o que o mundo vai, em breve, dizer dele.
Sem esperar para mais tarde um desmentido a essas falações malignas e para mostrar
com exemplos notáveis de dependência, de humildade e de submissão que deu tantas vezes a
seus filhos espirituais, os Irmãos das Escolas Cristãs, podemos ver quão injustas foram essas
censuras, observando suas disposições presentes e seus sacrifícios que se manifestarão mais
tarde. O que o mundo se chama azar e no cristianismo, Providência, faz com que La Salle se
uma ao senhor Niel e a seus companheiros. Ignora aonde o conduz a mão de Deus quando o
leva às escolas. Está comprometido a cuidar delas, não o percebe e cada vez o quer menos.
Um compromisso o leva a outro, e quando se encontra no caminho a que a divina Providência
o conduz às cegas, os desígnios divinos se lhe declaram por intermédio dos Ananias que consulta e que escuta como a oráculos do Espírito Santo.
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
1. Repugnância que João Batista de La Salle sentia para associar-se aos mestres
de escola, e maneira como Deus o dispôs a fazê-lo.
Por medo de que se pense que lhe atribuímos essas disposições, escutemo-lo a ele
memso:
A Memória citada diz: “Foi por estes fatos, a saber: o encontro com o senhor Niel e a proposta que me fez esta Senhora, que comecei a me ocupar das escolas para os rapazes. Antes, absolutamente não tinha pensado nisso. Não que me tenham proposto esse projeto. Alguns amigos
do padre Roland procuraram me sugeri-lo, mas a proposta não penetrou em meu espírito e nunca
pensei em realizá-lo. Inclusive, se tivesse pensado que o cuidado de pura caridade que eu tomava
dos mestres de escola, me obrigaria a viver com eles, eu teria abandonado o projeto, pois, como
de maneira natural, considerava as pessoas que tinha de empregar nas escolas, sobretudo no começo, como inferiores a meu criado de quarto, o simples pensamento de ter que viver com eles me
teria sido insuportável. Com efeito, sofri muito quando, no começo, os fiz vir à minha casa; isto durou dois anos. aparentemente por este motivo, Deus, que comduz todas as coisas com sabedoria e
suavidade, e que não costuma forçar as inclinações das pessoas, querendo comprometer-me inteiramente no cuidado das escolas, o fez de maneira muito imperceptível e em muito tempo, de modo
que um compromisso me conduzia a outro, sem que eu o tivesse previsto no princípio”.
A gente estava, portanto, muito enganada ao acusá-lo de ambição e ao dizer que, numa
vida abjeta, pobre e austera, procurava meios de se exaltar e conseguir honras.
Todavia, o zelo para o progresso das escolas já estabelecidas crescia no padre de La
Salle, na proporção do cuidado que tomava delas. O carisma de chefe que já tinha, sem o saber, lhe dava muitas luzes sobre a melhor maneira de as conduzir. E o Espírito de Deus, ao lhe
mostrar os grandes defeitos das escolas já fundadas, lhe mostrava o modo de os corrigir. Já
ficou dito que a força d mal provinha do próprio promotor desse bem. O senhor Niel, hábil em
dirigir as escolas não o era em dirigir os mestres. Não era bastante assíduo à casa, nem bastante atento a fazer observar o regulamento nela. Não se preocupou com dar aos outros o exemplo de ordem doméstica espírito de família, maneira de falar e regularidade necessária.
Esta foi a primeira origem do mal. O padre de La Salle não podia remediar a isto, a
menos que os aproximasse mais perto de si ou chegar-se mais perto deles. Era preciso reunilos sob um mesmo teto e mantê-lo sob seu olhar, para os poder dirigir e estabelecer entre eles
um modo de vida uniforme e regular. Esta convicção o levou a arrendar uma casa perto da
sua, para poder vê-los com mais freqüência, fazer preparar em sua casa as refeições com menos gastos e acostumar os mestres a um modo de vida mais regular. Tudo isto foi feito. Os
mestres vieram morar na casa vizinha da do padre de La Salle, no dia de Natal de 1679. O
piedoso cônego fê-los viver com ordem e lhes deu alguns regulamentos.
Embora o senhor Niel ao tivesse jeito para dirigir uma comunidade, era amigo do bem.
Via com alegria sua prática e a apoiava com o exemplo. Portanto com gosto esteve de acordo
com os ovos regulamentos e foi o primeiro em se conformar a eles. Embora seus pontos de
vista sobre os objetivos fossem muito diferentes dos do padre de La Salle, quando se tratava
dos meios para os realizar, se punha de acordo. João Batista de La Salle queria por ordem na
casa dos mestres; o senhor Niel não pensava senão em fundar novas escolas. O primeiro, a
achegar a sua casa dos mestres, aclarava sua conduta e os mantinha mais ao alcance para velar
por eles. O segundo, ao se encontrar meio descarregado de uma vigilância que interferia com
suas atividades, ficava livre de se dedicar a elas. Isso foi o que fez; pois apenas se realizou a
mudaça para a nova casa, comprometeu o padre de La Salle a lhe outorgar a licença de abrir
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
uma terceira escola, que não tardou em estar mais ordenada e ter mais alunos do que as outras
duas.
2. Introduz regulamentos para os mestres.
Estes primeiros intentos de por ordem, serviram somente para que o piedoso cônego
percebesse a grande necessidade que os mestres tinham e de quanto eles estavam longe dessa
ordem. As regras, em alguns aspetos, punham em evidência a desordem em todos os outros. a
hora de levantar e de deitar, da oração, da santa missa, das refeições foi fixada; os mestres
dobraram, mas dispunham livremente do resto do tempo. Donos de suas ações e de suas pessoas, seguiam seu próprio capricho na ausência de Niel. A devoção, ou melhor, o capricho,
decidia quando deviam receber a comunhão. Saíam aos domingos e dias de festa, para onde
lhes dava na cabeça. Tanto dentro como fora da casa, não havia nem obediência, nem silêncio,
nem verdadeira vida de comunidade.
O espírito religioso de Niel que deveria ter feito de todos esses pontos, objetivos principais de seu zelo, estava ocupado em outra parte. Ele se fazia um dever principal de ser assíduo em sua escola, levar, aos domingos, seus alunos à missa paroquial, fazer novas amizades
e cultivar as antigas para as tornar favoráveis a seus projetos de novas fundações. Assim, pelo
fato de nunca estar lá onde deveria estar, para criar com sua presença o espírito de comunidade, que é um espírito de ordem, de silêncio, de regularidade e de obediência; e a pesar dos
cuidados do piedoso cônego, a desordem reinava ainda na casa dos mestres de escola.
La Salle via isso e o deplorava; mas que ia fazer para o remedia? Niel não tinha tanto
jeito para fazer voto de estabilidade num mesmo lugar. Nem sequer sei, se lhe seria possível,
tão irrequieta como era. Se o santo sacerdote tivesse podido tomar o lugar de Niel e substituílo durante sua ausência, tudo teria andado melhor: mas que possibilidade havia de um cônego
deixar de sê-lo, de deixar de exercer suas obrigações, para assumir a de superior de mestres de
escola? Como um homem carregado de tantas obrigações poderia abandoná-las para governar
uma comunidade de seis homens?
Além disso, havia tempo para refletir, porque tendo alugado a casa vizinha à sua pelo
prazo de um ano e meio, tinha o tempo de prever os meios para estabelecer logo mais ordem e
maior regularidade ente os mestres. Contudo, como nem o tempo nem as reflexões lhe indicavam remédio infalível para o mal, continuava na perplexidade. Somente via dois partidos a
tomar: alojar os mestres em sua casa ou continuar pagando e arrendando a casa vizinha. Não
sabia por qual dos dois partidos devia decidir-se, e esta incerteza o lançava numa grande perplexidade.
Não podia suportar que esses mestres vivessem como bem queriam, sem ordem, sem
regras de comportamento, e em consequência, sem uma verdadeira piedade. Seria melhor deixar de se preocupar com eles. Ele mesmo era um homem de regra, e a vivia em todos os lugares em que estivesse. Como não podia viver sem ela, não podia permitir que aqueles de quem
se ocupava, não a tivessem por guia de sua conduta. Chamar esses mestres a sua casa, alojálos consigo sob o mesmo teto, associá-los a sua companhia e começar a viver uma vida comum com eles, era um projeto que tinha muitas dificuldades. A natureza alarmada sentia nele
e pelo projeto grande repugnância e a razão humana, bem como suas inclinações naturais se
sublevavam. Se o empreendia, não duvidava em ver a oposição levantar-se entre seus colegas
de cabido, seus familiares e seus amigos.
Quanto mais refletia, menos podia chegar a uma decisão. Então era necessário procurar a solução de suas dúvidas nos conselhos de alguma pessoa familiarizada com os caminhos
de Deus. dócil, humilde, sempre atento a seu próprio juízo, gostava de agir sob a guia de ou158
Vida de João Batista de la Sal
Salle
tros. Mas, a quem acudir diante de um caso tão delicado? Havia, em Reims, um homem bastante esclarecido e bastante corajoso para lhe aconselhar o mais perfeito, às expensas de sua
própria reputação e com o risco de receber mil censuras da parte de uma família irritada e de
uma cidade inteira em murmurarão?
3. Consulta o padre Barré, Mínimo, sobre a dúvida que tem,
se deve viver com os mestres.
O padre Barré era, entre todos os homens, o que parecia mais apropriado, nesta ocasião, para dar ao padre de La Salle um conselho conforme com os desígnios de Deus. poderoso
em palavras e em obras, sábio nos caminhos interiores, conhecedor, mais do que ninguém, de
assuntos das escolas cristãs, acima de toda consideração e temor humano, somente olhava a
maior glória de Deus. Quem o queria escutar, se sentia inspirado por uma nobre liberdade, a
buscá-lo à custa do amor próprio. Ele foi o homem que o padre de La Salle se sentiu inspirado
a consultar. Como foi o autor e primeiro fundador de escolas cristãs e gratuitas, tinha um conhecimento especial sobre o assunto. Além disso, conhecia a Niel; ninguém estava mais qualificado para responder sobre ele. Persuadido de que, enquanto um homem do tipo do senhor
Niel tivesse a direção dos mestres, não se podia esperar, entre eles, a ordem, a regra e o espírito de comunidade, por isso não duvidou em aconselhar ao padre de La Salle que alojasse os
mestres em sua casa.
O conselho era sábio, necessário e inspirado pelo alto, mas foi mais fácil para dá-lo do
que para La Salle, executá-lo. Para o por em prática, devia sujeitar-se a suportar dificuldades
que teriam sido insolúveis para outra pessoa menos corajosa do que ele. Compreendeu bem as
dificuldades. Este conhecimento se encontrava com sua convicção de quão necessário seria
seguir o conselho que tinha recebido. Essa oposição o levou a suspender a decisão e a adiar a
execução.
4. Decisão difícil.
De um lado, o bem espiritual dos mestres, o fruto das escolas que eles dirigiam, o gosto da ordem e da regularidade, eram motivos ponderáveis que comoviam sua alma e que não
lhe permitiam recusar a obra tão boa. De outro lado, o temor de se associar com gente de ta
baixa categoria, o horror de levar uma vida de comunidade com homens que, na maioria, sem
educação, sem saber conversar, sem urbanidade; sem capacidade de tomar parte numa conversa, não digo agradável, mas razoável; tudo lhe causava no coração uma tontura e o advertia
de não precipitar sua decisão.
Este horror secreto da natureza estava apoiado por motivos humanos capazes de impressionar fortemente a um homem de família distinta, bom irmão e boa família. Tinha consigo a três irmãos, e era sua responsabilidade velar pelo bem deles, sua educação e sua direção.
Ao lançá-los fora de sua casa para colocar os mestres de escola, não se justificaria; mas, colocá-los juntos e fazê-los viver uma vida em comum, a isto se opunha a razão humana. Contudo,
era necessário tomar um deste dois partidos. Mas nenhum dos dois podia agradar a ninguém, e
deveria ser mais tarde uma fonte de sofrimentos e de cruzes da parte de uma família, que chocada e irritada por essa mistura de condições sociais tão inconveniente, não deixaria de ser
considerada como uma desonra e seria recriminada a La Salle como m crime.
O demônio, partidário da natureza, fortalecia seus gritos. Que é isso? – sugeria o demônio – pode decidir o alojamento em sua casa, destes camponeses e viver com esse bando
vil? Que dirá o mundo? Que pensará a família? Como o julgarão os amigos, inclusive os mais
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
piedosos? Consulte-os, ao menos, antes de dar esse asso; tome o conselho deles, com medo de
que, ao agir precipitadamente, tenha motivo de se arrepender! Se não os escutar, escute, ao
menos sua debilidade, tenha piedade de você mesmo, não se imponha um jugo por demais
pesado e doloroso para sua natureza. Esta era a linguagem da natureza que o demônio suscitava com força e que era reforçado pelos protestos da razão humana.
Enfim, antes de tudo, era preciso fazer os três irmãos aceitarem esse projeto, que naturalmente não lhes devia ser agradável. Por conseguinte, para o fazer com sabedoria e precaução, era necessário contemporizar e esperar a ocasião para lhe dar início. Todas estas considerações mantinham a mente do piedoso cônego em suspenso, e o impediam de formar uma
conclusão. Vários mestres passaram também passaram para essa incerteza. O tempo não solucionava o problema e contudo, o mal se acumulava com o tempo nas escolas. Indeciso, irresoluto, La Salle esperava os momentos de Deus, uma de suas aberturas à Providência que, fazendo nascer ou morrer os projetos, tiram a dificuldade e conduzem, sem que se saiba, aonde
deve ir.
A divina Providência, com efeito, se declarou e, ao se declarar, forçou de certa maneira a La Salle a se declarar também, e a se decidir. Foi assim que isto aconteceu: O prefeito e
os conselheiros da cidade de Guise, ao ouvirem falar do grande êxito que, em Reims, tinham
obtido as escolas gratuitas, vieram solicitar ao senhor Niel a fundação, em sua cidade, de uma
delas. Esta proposta, tão de acordo com sua inclinação, era uma espécie de tentação para Niel,
pois revestida, em sua imaginação, das aparências da vontade de Deus, não tardou em arrastar
a dele, de sorte que, sucumbindo piedosamente na tentação, estava convencido de que somente servia as ordens de Deus. todas as circunstâncias de tempo e de lugar deveriam ter-lhe aberto os olhos para ver que, na execução de um plano prematuro, havia mais de natureza do que
de graça, mais de impulso natural do que de desejo real de fazer a vontade de Deus.
Em vão La Salle quis expor-lhe a imprudência de sua ação, mostrando-lhe que la Semana Santa não era o momento adequado para fazr uma viagem a Guise, menos ainda para
tomar medidas para abrir uma escola. Sua ausência deixaria cinco ou seis mestres à vontade e
os expunha à desordem de modo que nem eles nem ele passariam o tempo mais santo do ano
no recolhimento, a piedade e a edificação que exige. De outro lado, a proposta que lhe tinham
feito não tinha ainda nada de sólido, e se não a deixasse amadurecer, a veria fracassar; o que
efetivamente aconteceu. Enfim lhe fez sentir que era inútil construir com uma mão e destruir
com a outra; e que, se quisesse refletir seriamente, se convenceria que ao estabelecer-se em
Guise, destruiria as fundações de Reims, já que não têm ninguém para sustentar.o que estaa
começado.
A própria razão falava pela boca de La Salle, mas Niel não a escutava. O prudente cônego perdia seu tempo com falar a um homem convicto de suas idéias, que via a vontade de
Deus no que ele mesmo queria. Niel partiu e sua partida obrigou La Salle a tomar a resolução
de fazer vir os mestres de escola a tomar as refeições em sua casa.
Dessa maneira Deus sabe fazer convergir tudo o que acontece para a execução de seus
desígnios. La Salle continuava irresoluto e incerto sobre o partido que devia tomar a respeito
dos mestres. A ausência de Niel que os deixou à mercê de seus caprichos e que abandonou
sua obra pela metade, deveria ter indisposto a La Salle contra toda a obra. Ao contrário, foi o
que começou a ligar mais sua pessoa e a se comprometer com ela. O afastamento de Niel,
parecia funesto para as escolas novas, segundo as regras da prudência humana. Mas, segundo
as da Providência, esse afastamento era necessário e salutar porque aproximou e substituiu a
La Salle – o homem destinado a ser o fundador dos Irmãos das Escolas Cristãs – em lugar do
homem que, com respeito a este projeto, era um estranho.
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
Capítulo X
Início da vida em comum entre La Salle e os mestres de escola.
Gritos do mundo. A família murmura e se subleva
contra este novo gênero de vida
Finalmente, La Salle resolveu viver com os mestres de escola. Como é que pode resolver a começar com eles um tipo de vida que o fazia sentir tanta repugnância? Será que teria
pensado isto, há apenas dois anos, que tomaria essa decisão? Além disso, somente deu um
passo na companhia deles, e não pretende ir mais longe; mas, este primeiro passo vai conduzilo a muitos outros que ele ainda ignora. Talvez se lançaria para trás, se previsse até aonde dve
chegar. A Providência divina o conduz pela mão como a um cego. Ficará muito surpreso
quando se encontrar, um dia, no meio de pessoas de quem tem medo, e com quem, contudo,
vai se ligar em sociedade para toda a vida.
1. Resolve viver com os mestres e começa a convidá-los a comer em sua casa
No começo, La Salle não vai transferir os mestres para sua casa; contenta-se com convidá-los para comer a fim de regular suas ações. Depois da oração, iram à santa Missa; ao sair
voltavam para a casa dele, vizinha da deles, e permaneciam ali até a oração da noite. Depois
voltavam para a deles para dormir. Na casa do cônego existia já uma regra fixa. Lia-se no
refeitório, rezava-se em horas previstas. De modo que a estada dós mestres não obrigava a
fazer maiores mudanças. Somente começou-se a comer no refeitório, com porções individuais, e a cada ação foi prescrito um momento preciso. La Salle aproveitou a ausência de Niel,
que durou oit dias, para observar os mestres; e quando o mantinha sob seu olhar, não demorou
em reconhecer entre eles, muitas pequenas desordens ocasionadas pela negligência de seu
superior em os vigiar de perto.
O que pode ver o convenceu de que um homem para quem a casa era estranha e que
permanecia nela menos tempo do que fora dela, tanto em razão de suas visitas freqüentes,
como de suas numerosas saídas, de manhã para ir a sua escola, da qual regressava muito tarde,
tal homem não era capaz de promover ordem em sua casa, nem inspirar estabilidade nos inferiores. Os mestres, de seu lado, se acomodavam com gosto à regra e pareciam cumpri-la de
boa vontade. Alguns mostravam piedade e davam esperança ao novo superior de que fariam
grandes progressos nela. Pareciam homens novos, desde que vivia com ordem e desde que a
obediência, ao controlar suas ações, controlavam sua vontade.
Esses primeiros sinais de mudança confirmaram o cônego no plano de ele mesmo cuidar deles e de os obrigar a continuar vindo a sua casa para levar uma vida regular. Contudo,
como ele era sábio, andava lentamente para assegurar melhor todos os seus passos no caminho tão resvaladouro. Nesta situação, tinha de estudar tanto as disposições dos mestres a respeito de sua nova forma de vida, com as de seus próprios irmãos a respeito dos recém chegados, e as do público e de seus parentes a respeito desta nova sociedade.
Embora não pretendia receber leis da família, estaria muito contente em não a irritar, e
fazia o possível para tratá-la com tino. Embora estivesse acima do falatório do mundo, evitava, quanto possível, dar-lhe tema de cochichos. Embora seus irmãos não fossem donos de si
mesmos, não queria fazê-los pesarosos, e teria gostado vê-los entrar em seus planos. Quanto
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
aos mestres, inutilmente os teria apresado com uma regra e a obediência, se o coração deles
não tivesse consentido. A virtude é obra da graça e da vontade humana; se não se conquista a
esta e não se entrega a Deus, tudo o que é exterior nada mais é do que fingimento e hipocrisia.
Estas eram as considerações que o zeloso cônego devia ter em conta, e que de fato teve em conta. Por isso, ia passo a passo sem precipitar nada. Pensava que devia dirigir cm tino
a todas as pessoas e dispô-las ao que ele queria fazer. Como não tinha encontrado oposição a
suas primeiras tentativas, sem risco de outras, decidiu aguardar, deixando os mestres continuarem, depois da volta de Niel, a forma de vida que tinham começado em sua ausência. Ainda
não tiveram tempo de se manifestar. Um fervor de oito dias é bastante normal; Mas, será que
vai continuar? Somente a experiência o dirá. Para o saber, La Salle tomará seu tempo.
2. Em 1681, La Salle aloja, finalmente, os mestres em sua casa.
Murmurações do mundo e de sua família.
Se os mestres, desgostosos com uma vida tão regulamentada, tivessem mostrado repugnância, La Salle não teria retrocedido dos passos que tinha dado. Teria continuado a pagar
a casa que conseguira alugar, cujo aluguel expiraria; se tivesse alugado outra casa vizinha
vacante, teria entregado os mestres a Niel e os abandonado a sua sorte. Os mestres então, depois da páscoa até a festa de são João Batista, continuaram na casa de La Salle, a regra de vida
que tinham começado.
Durante esse tempo, o cônego os tinha observado de perto: vendo, de um lado, qje os
mestres assumiam com gosto o novo gênero de vida e, de outro, que a instabilidade de Niel,
que não pensava senão em ocasiões de se ausentar, não permitia contar com ele, resolveu finalmente fazê-los morar em sua casa. É o que fez no dia de seu patrono, são João Batista, no
ano de 1681. Niel, amigo de fazer o bem, assim se viu livre para o fazer com gosto, acompanhava-os também.
Foi o passo decisivo. Não se podia dar esse passo sem causar grande ruído e estrépito
ma cidade, nem sem provocar, da parte da família do cônego, murmurações e altos gritos. La
Salle estava preparado para isso. Esperava que o mundo, até então em suspensão, não deixaria
de censurar sua conduta, e que seus parentes, atentos a seus movimentos, e chocados por este
último, não mais ficariam quietos. Com efeito, não ficaram.
O mundo, nessa ocasião, disse o que sabe dizer contra as boas obras e contra quem as
empreende. Cada qual fazia sobre elas e sobre seu autor, suas críticas, burlas e gracejos que a
falsa sabedoria ou seu espírito característico, ou sua natural malvadeza lhe sugere. O cônego
era argüido para responder por sua conduta tanto pelos tribunais como pelos familiares da
cidade. Cada um por sua conta o investigava, erigia-se em juiz. Embora houvesse tantas opiniões quantas pessoas, todas estavam de acordo para o condenar. Uns lhe promoviam processo em razão da classe de pessoas com que se aliava; outros, pelo emprego a que se dedicaria.
Vários diziam que estava enlouquecendo e que a demasiada devoção lhe transtornara a mente.
Entre seus amigos, alguns lhe censuravam a extravagância de sua conduta. Outros lhe manifestavam compaixão e o denunciavam por sentimentos humanos demais. Poucos o aprovavam; os mais moderados se contentavam com admirar seu zelo sem fazer julgamentos.
Quanto a seus parentes, os mais prudentes ou os que lhe tinham maior afeto, não se atreveram a lhe fazer censuras, mas lhe demonstraram seu descontentamento em silêncio. Outros mais mordazes, descarregaram seu pesar por meio de invectivas mordazes. Recriminavam-lhe estar manchando a reputação de sua família, que poluía sua honra ao se associar com
gente sem importância, que desonrava seu próprio sangue e o envilecia ao admitir estranhos
em sua mesa, que passava por ridículo ao fazer nenhuma distinção entre eles e seus próprios
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
irmãos e ao submeter uns e outros a um gênero de vida tão fora do ordinário, que alem disso,
não lhes convinha; em fim, que afastava de sua casa todas as pessoas honestas e que não era
mais uma honra visitá-lo.
Um homem que se tinha preparado para todos esses tragos amargos e que os tinha esperado, fez uso somente do silêncio e da paciência para se defender. Deixava dizer tudo o que
quisessem e não prestava atenção a não ser que continuava com seus planos. Permanecendo
muito tempo indeciso e incerto, tinha aprendido em sérias reflexões o que lhe custaria a resolução que lhe tinham inspirado; por fim quando a adotou, permaneceu inquebrantável . até se
pode dizer que a dificuldade para tomar a resolução foi a maior que teve de sofrer nesta ocasião. A aceitação antecipada de todos os sacrifícios que teria que fazer, obteve-lhe a graça
abundante para sofrer tudo com serenidade e alegria.
Quando a gente viu a La Salle firme como uma rocha em meio das ondas e as tempestades que as línguas malignas suscitam, deixaram-no fazer. Ao abandoná-lo a sua sorte, foi
considerado uma pessoa teimosa e apegada à própria opinião, da qual não se podia esperar
outra coisa senão ações novas de um zelo exagerado; mais escandalosas do que as primeiras.
Somente se pensou em lhe tirar a direção de seus irmãos. Se tivessem podido também a ele
teriam colocado em tutela, em vez de lhe deixar a de seus irmãos.
3. Seus familiares irritados retiram de sua casa dois de seus irmãos.
Estes três jovens que ele criava em sua casa e que formava com solicitude, comiam
com os mestres no mesmo refeitório. O mais velho, muito apegado a La Salle e inclinado à
piedade, seguiu, com gosto e por sua própria conta, as mesmas regras que os mestres enquanto lho permitiam os estudos. Isto era o que a família via com desagrado e despeito; por isso
resolveram retirar da casa a seus três irmãos, mas seus esforços para desapegar de La Salle o
mais velho foram em vão; não conseguiram vencer seu carinho por ele e sua inclinação para a
piedade. O mesmo não aconteceu com o seguinte: escutou o que a paixão de um cuidado lhe
dizia, adotou suas prevenções e concebeu insensivelmente aversão a seu tutor e benfeitor.
Desgostoso, o jovem não demorou em seguir o conselho que lhe davam de sair de casa de seu
irmão, o cônego, para ir à de seu cunhado. A saída deste encaminhou a do irmão menor. primeiro, os familiares solicitaram o consentimento de La Salle. Como ele recusou, reuniram-se
e decidiram mandá-lo a Senlis com os Cônegos Regulares.
Isto fizeram para mortificar nosso cônego lá onde mais lhe doía, visto que parecia fazer tão pouco caso da honra e das admoestações de sua família. Além disso, Deus presidia a
esses acontecimentos e os dirigia a uma completa execução de seus desígnios. Os parentes
não pensaram senão em mortificar a La Salle, ou, na opinião deles, em proporcionar uma educação melhor a seus irmãos. Deus, porém, que esvaziou a casa, pensava em colocar a seu servo em plena liberdade de seguir as santas inspirações e de dar começo ao modo de vida que
devia se estabelecer entre os Irmãos. Nessa ocasião, fazia o que desejava, ao deixar sua própria casa e retirar-se com os mestres a uma casa de aluguel bastante afastada da catedral. Sem
dúvida, Deus a destinava a ser o berço do Instituto, porque ali nasceu, e permaneceu propriedade dos Irmãos por compra que La Salle fez em 1700. Três pessoas caridosas proporcionaram, com sua liberalidade, o dinheiro para a aquisição dessa casa, na qual os Irmãos ainda têm
seu lar em Reims. Foi nesse berço do Instituto que seu pai concebeu a generosa resolução de
se despojar de seu canonicato e o executou em 1683, como vamos ver adiante.
Neste novo local, La Salle se sentiu perfeitamente livre e se aplicou somente a organizar seu pequeno rebanho e a lhe dar forma de comunidade. Ele era seu superior nato, mas não
era ainda seu confessor. Era importante, pois, conseguir um bom confessor, porque sem a
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
ajuda de um bom confessor, capaz de cimentar, no interior, o que o superior constrói no exterior; não se podia esperar nenhum bom êxito. Quando numa comunidade o confessor está em
oposição com as máximas e princípios de um bom superior, destrói o que o outro constrói,
semeia a cizânia na boa terra em que se tinha semeado o bom grão. A multiplicidade de confessores é outro inconveniente que se deve temer na comunidade, porque insinua diversidade
de opiniões e divida as mentes e os corações. Visto que a unidade é a alma da união, um dos
grandes meios de introduzir a união nas sociedades regulares é introduzir nelas a unidade de
confessor, exceto dos confessores extraordinários que a Igreja autoriza algumas vezes por
ano.
4. Compromete os mestres de escola a irem todos a um mesmo confessor e,
por fim, tomam a ele mesmo por confessor.
Baseado sobre este grande princípio, La Salle procurou inspirar aos mestres de escola
que todos fossem a um mesmo confessor. Eles o fizeram, e escolheram o pároco mais próximo. Era um grande homem de bem e capacitado, mas não tinha espírito de comunidade. alguns se desencantaram dele. Um segundo confessor o substituiu, mas era preciso ir longe para
o encontrar e tomar lugar entre as mulheres ao redor do confessionário. Para chegar a sua vz,
era preciso aguardar, às vezes, por tanto tempo que não se podia estar de volta em casa ants
das oito ou nove horas da noite. Estes inconvenientes era grã dês e mereciam atenção, mas
todos teriam desaparecido, se La Salle tivesse aceitado confessar a seus discípulos. Alguns
deles suplicaram e insistiram com a esperança de o convencer. Armados com as razões que se
acabam de aduzir, combatiam a repugnância dele e acrescentaram, para o convencer, grandes
manifestações de estima e de confiança. Efetivamente, cheios de estima e de respeito pelo
virtuoso cônego que os dirigia, não queriam separa nele a qualidade de superior e a de confessor. Contudo, o superior circunspeto e precavido, que tiha outros inconvenientes, experimentava dificuldade para aceder a seus pedidos. Na verdade, ele não os via, mas podiam estar
ocultos e sair à luz, mais tarde. Por esse motivo, preferia retardar a decisão do que precipitála. Com esse princípio, resistiu longo tempo às solicitações mais prementes.
Por fim, a perseverança dos mestres o obrigou a se render. As boas raz]ões que alegaram o impressionaram. Quanto mais se insinuava entre eles o espírito de regularidade, tanto
mais sentiam a necessidade de estar sob a direção de seu pai. La Salle aceitou, pois, os piedosos desejos deles. O exemplo daqueles que, em primeiro lugar, lhe entregaram o cuidado de
suas almas, foi eficaz sobre os outros, e os comprometeu a ter a mesma confiança em seu superior. A partir deste memento, os Irmãos não quiseram ter um confessor diferente de seu
santo fundador. Certamente, teria sido muito difícil contentá-los, se um homem tão brando,
tão humilde, tão caridoso e tão iluminado nos caminhos de Deus, não tivesse sido de seu gosto. Essa direção única fez maravilhas entre eles, porque todos, ao tomar o espírito de seu pai,
tinham as mesmas máximas, a mesma visão e os mesmos sentimentos; numa palavra, todos
tinham um só coração e uma só alma.
Contudo, o humilde cônego, sempre em guarda contra si mesmo, tinha alguma dificuldade em se entregar aos desejos de seus discípulos, que não queriam outro confessor. O receio
dele sobre este assunto o obrigou a consultar algumas pessoas sábias e pedir aos confesores
extraordinários que lhe dissessem se não viam inconveniente em combinar o ofício de superior com os deveres de confessor; mas nenhum deles lhe aconselhou que fossem diferentes. Ao
contrário, todos o exortaram a não separar, em sua pessoa, esses dois ofícios que, por natureza, devem estar unidos.
Por fim, colocado pela mão da divina Providência à cabeça dos mestres de escola e
feito duplamente seu pai como superior e confessor, La Salle se aplicou inteiramente à santifi164
Vida de João Batista de la Sal
Salle
cação deles. Vivia no meio deles como iguale lhes fazia esquecer que era ele, tanto como ele
mesmo o esquecia. Afável, gentil, bom, compassivo, caridoso, ganhava seus corações e se
fazia a chave para abrir as portas deles a Jesus Cristo por uma caridade semelhante à de são
Paulo, fazendo-se tudo para todos, aplicando-se a perder no meio de homens rústicos, esse
porte delicado que a natureza e uma educação nobre lhe haviam dado. Quase diria que, por
caridade, dava sinais de que ser inculto com gente inculta.
Essa acomodação requeria um esforço heróico de virtude, porque nada lhe tinha causado tanta repugnância para se unir a eles, do que esta incultura, própria de um nascimento e
de uma educação plebéias. Era de uma peça em palavras e em ações. Se dava belas lições sobre a virtude, dava ao mesmo tempo os maiores exemplos dela. Visto que a abundância do
coração fala a boca, as primeiras virtudes cujas sementes procurou semear nas almas deles,
foram as mesmas que ele possuía já em alto grau; modéstia, humildade, espírito interior, mortificação, regularidade, docilidade, caridade, perdão das injúrias, pobreza, amor à abjeção e
paciência. Essas virtudes deviam ser o fundamento do edifício espiritual que iria construir, a
alma e o espírito do Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs.s
Como queria fazer de seus companheiros homens de virtude e de piedade sólidas, preocupou-se em levá-los voluntariamente a Deus, uni-los com laços do coração, e torná-los cristãos interiores. Com este propósito tão conforme com sua humildade, não quis introduzir nada
por autoridade. Contentando-se com inspirar-lhes seu espírito, deixava-lhes a satisfação de
crer que eles mesmos eram os autores de sua forma de vida e de suas práticas, e que eles se
faziam suas próprias leis. Para os atrair ao caminho aonde os queria ver andar, não se reservava mais do que o caminho das exortações e dos exemplos. Primeiro começava a fazer o que
ensinava, e a vergonha de não imitá-lo obrigava os menos fervorosos a se conformarem a seu
modelo.
5. Renova a casa. Os primeiros mestres que se retiram por sua conta
são substituídos por outros melhores.
Não obstante, não passou muito tempo para se dar conta de que muitos começaram a
perder o ânimo nos caminhos da virtude e que a perfeição não era para todos. Uma vida tão
regular lhes parecia incômoda aos que tinham vivido mais livres sob a direção de Niel na casa
vizinha. A novidade que tem sempre certa atração, lhes tinha causado certo gosto, durante os
primeiros meses, como já dissemos; mas a continuação lhes pareceu aborrecida e além de suas
forças. O jugo de uma vida de retiro, de silêncio, de obediência, de regra, começou a pesar e
atormentar sob o peso as vontades débeis e pouco firmes no bem. Fazer até a morte o que começaram a fazer com sofrimento, lhes parecia insuportável. Davam-se bem conta de que não
se podia esperar abrandamento da parte de um homem como La Salle, e que pelo contrário,
aumentando cada dia seu fervor, os obrigaria a andar pelas pegadas dele, ou seria uma censura
vergonhosa não o imitar.
Nisso, vários preferiram retirar-se. Não foi uma decisão fácil. Nessas ocasiões a
cvonsciência disputa com o atrativo da liberdade e uma vida mais cômoda; mas no fim das
contas, se retiraram. La Salle se viu obrigado a despedir a outros que tinham piedade, mas
faltava-lhes o jeito para dar aulas e que tinham sido recebidos por necessidade. De sorte que
quase foi preciso começar de novo em menos de seis meses, porque dos antigos somente sobraram um ou dois. Assim o novo Instituto parecia encontrar sua sepultura em seu berço, e
sua ruína em sua origem. Contudo, Aquele que chama do sepulcro e que dá a vida aos mortos,
ressuscitou quase no mesmo momento esta família moribunda, pela adesão de novas pessoas
que tinham jeito para as escolas, um fundo de piedade e muita disposição para ser verdadeiros
discípulos de La Salle.
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
Foi então, isto é, pelo fim de 1681 ou início de 1682, que a casa dos mestres de escola
começou a tomar forma de comunidade. O bom Niel que permaneceu nela até a festa de Natal
de 1681, ficou agradavelmente surpreso das mudanças que se fizeram em sua presença, encantado pela boa ordem que se estabeleceu entre os mestres, edificado pelo novo estilo de
vida tão regular e recolhido. Ele gostava de tudo o que é bom e estava maravilhado de o ver
germinar na obra cujos primeiros fundamentos tinha lançado. Deveria também ele ter-se fixado ali e criado raízes; mas como ave migratória que quer visitar todos os lugares da terra
sem se deter em nenhum, Niel, inimigo da estabilidade, não pode renunciar a sua inclinação
que o chamava em toda parte, e que o teria feito voar com gosto terras para fundar escolas,
como são Paulo percorreu para fundar Igrejas.
Depois que tudo ficou renovado na fundação das escolas: casa, mestres, estilo de vida,
direção, Jesus Cristo podia dizer a respeito de La Salle: eis que faço novas todas as coisas
através de meu servo. O mesmo aconteceu com uma vinha tão bem renovada: não tardou em
produzir flores e a expandir seu bom odor fora dela. Vamos ver o que aconteceu, dentro de
pouco, do desprezo que se tinha dela, passou a ter boa fama a ponto que as cidades vizinhas
vinham correndo para atrair para dentro de seus muros os novos discípulos do piedoso cônego.
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
Capítulo XI
Novas fundações de escolas cristãs e gratuitas em Rethel, Guise e Laon.
Circunstâncias que levou La Salle a considerar a renúncia de seu canonicato e
a se despojar, depois, de seus bens para se entregar inteiro a sua obra.
A cidade de Rethel foi a primeira que pediu ao piedoso cônego seus novos mestres de
escola. Niel, muito contente com semelhante pedido, não teria duvidado em atendê-la; mas La
Salle, mais circunspeto, encontrava inconvenientes em enviar pessoas que ainda não tinham
tido o tempo de se formarem bem. Sabia o que os santos dizem a esse respeito: que os frutos
prematuros são ruins e sem gosto; que os pássaros que se apressam a sair do ninho e a voar
antes de terem as asas bastante fortes, são a presa do gavião ou caem por terra sem poderem
se levantar; que as crianças prematuras raramente sobrevivem.
Convicto de tudo isso, preferia perder uma fundação a expor seus discípulos, sem estarem confirmados na virtude, a um perigo evidente de queda. por ter somente intenções puras,
considerava com indiferença a multiplicação dos estabelecimentos que não estavam fundados
numa virtude provada. Assim a proposta da cidade de Rethel lhe pareceu delicada e digna de
atenção. Não quis precipitar as coisas por temor de que um noviço ou um neófito de sua pequena comunidade encontrasse sua perda no lugar em que deveria trabalhar para a santificação dos outros.
Neste sentido, somente considerava o que tinha começado a fazer para os formar, a
não ser como ensaio da perfeição à qual era preciso levá-los. É certo que os jovens que tinha
então pareciam de boa vontade, mas sabia o longo caminho que tinham de percorrer entre o
desejo e a ação, e que os primeiros esforços para adquirir a virtude ainda estão muito longe do
hábito da virtude. Além disso, o exemplo de Jesus Cristo que passou três anos inteiros na formação de seus discípulos em sua divina escola e que não quis expor ao mundo a virtude vacilante deles sem a ter firmado antes com o envio do Espírito Santo e a efusão de seus dons,
tudo isto lhe ensinou a reter os seus perto de si num longo e fervoroso noviciado, o maior
tempo que podia, e a não enviá-los para ensinar antes de terem feito um progresso suficiente
na santidade.
1. Fundação em Rethel, em 1682. Exemplos de virtude que dá nessa ocasião.
Essas considerações o retinham e o persuadiam de que o melhor que podia fazer era
prometer enviar alguns de seus súditos mais tarde, mas, de momento, retê-los consigo para os
formar. Foi isto que fez; mas mais tarde as coisas não dependeram dele, porque o duque de
Mazarin apoiou tão fortemente o pedido de Rethel, e o zelo do senhor Pároco pressionou tão
vivamente sua execução, que foi preciso aceder. Não podendo recusar com cortesia, La Salle
encarregou desse assunto a Niel, sempre pronto para esta classe de expedientes, e o melhor
homem do mundo para negociar os termos do contrato.
Niel o fez com muito êxito comprometendo à cidade proporcionar a subsistência dos
dois mestres, para o que contribuíram o duque de Mazarin e o pároco, bem como a senhorita
Bouralleti, que deixou imediatamente 50 libras de renda para essa escola. Estes inícios tão
favoráveis levaram, pouco depois, La Salle a comprar uma casa com a intenção de abrir um
seminário de seu Instituto. Assim que Niel chegou à cidade, tudo se arranjou de modo que
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
ainda subsiste hoje. Encontrando na liberalidade da cidade, do senhor duque de Mazarin, do
senhor pároco, tudo o que desejava, La Salle abriu as escolas gratuitas em 1682.
Não podemos omitir aqui dois fatos que se referem a esta fundação, fatos próprios a
descobrir o estado de perfeição que La Salle tinha já conseguido. Este é o primeiro: O duque
de Mazarin que tinha La Salle em grande estima, quis conhecê-lo melhor. Tinha muito prazer
em conversar com ele e o honrou com suas visitas. Mais ainda, alguns anos depois da fundação de que se falou acima, este senhor quis, para honrar a virtude de La Salle, gratificar os
Irmãos com uma renda perpétua de 200 libras de pensão anual, tirada de seus bens pessoais,
com o fim de aumentar sua fundação. Propôs isso a La Salle que aceitou com gratidão. No
mesmo momento foi redigido um contrato, mas não foi assinado. Seria assinado no dia seguinte. Contudo isto não aconteceu devido aos artifícios de alguns espíritos enganadores e
inimigos do bem, que souberam indispor de tal modo o duque de Mazarin, que de um dia para
outro, pareceu ser outra pessoa a respeito de La Salle.
A surpresa de La Salle foi enorme, quando voltou a visitar a esse senhor no dia seguinte, para dar a última mão no contrato. Encontrou-o então seco, glacial, rindo e fazendo gracejos a seu respeito. O humilde cônego, depois de ter suportado as censuras ofensivas e os gracejos humilhantes, sem desrespeitar a pessoa do duque, nem desagradar a honra do caráter
dele, repeliu com firmeza certas condições onerosas que se queriam prescrever e se recjslj,
com generosa modéstia, a pedido pouco convenientes. Enfim, depois de ter sabido com tom
moderado e ar tranquilo as dificuldades que lhe opunham para fazer fracassar contrato inicial,
se retirou satisfeito de não ter somente recebido desprezos de um assunto que tinha começado
com muitos louvores e grandes manifestações de estima por sua pessoa. Ele conhecia as pessoas responsáveis deste mau serviço, mas nunca se permitiu reclamar nem quis jamais sofrer
que se mostrasse a elas o menor ressentimento.
O servo de Deus fazia bem em se acostumar às afrontas e se endurecer contra os gracelos e os insultos, porque a obra que estava empreendendo era uma fonte de tudo isso. Podese dizer que todo o resto de sua vida somente será uma longa lista de perseguições e humilhações de toda sorte. Quase todos os dias de sua vida, viu tormentas acumularem-se sobre sua
cabeça. Com freqüência, uma dava origem a outra e o fim da primeira via o começo da segunda. Assim essas aflições continuavam uma às outras e criaram uma tempestade que durou
toda a sua vida. Os trovões deixaram de roncar sobre ele, somente quando jazia em seu túmulo.
Depois de tudo, o virtuoso cônego considerava todos os acontecimentos em seu princípio; remontava sempre a sua fonte e encontrava que Deus era seu autor nos mais incômodos
como nos mais agradáveis; por isso, beijava com amor e submissão a mão que o feria. Um
homem que somente queria a Deus e nada queria fora de sua vontade, estava persuadido de
que, fora do pecada, nada neste mundo acontece a não ser por vontade de Deus. Portanto,
permanecia indiferente diante de todos os acontecimentos; os mais mortificantes o encontravam calmo e submisso. Nunca um contratempo desagradável pareceu turvar-lhe a paz nem
alterar sua igualdade de humor. Contudo, quantos não soprarão no curso de sua vida para tornar realidade seu Instituto! Quantas contradições sofrerá! Quantas perseguições lhe prepararão o mundo e o demônio! O leitor ficará admirado dessas provas ao ler esta história.
O primeiro estabelecimento em Rethel foi o teatro das primeiras injustiças que puseram seu desinteresse à prova. Duas pessoas da mais ricas da cidade tinham-lhe deixado uma
considerável soma, para ajudar a essa fundação. A doação fora feita legalmente e ele já tinha
recebido os papéis e outros instrumentos legais; contudo, os herdeiros avarentos a questionaram. Embora houvessem recebido uma avultada herança, puseram em demanda a pequena
parte que lhes escapava. Como este legado foi feito para uma obra pia, os herdeiros não esta-
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Salle
vam dispostos a ceder. Mas não tiveram necessidade de se moverem muito para solicitar aos
juízes nem para preparar os papéis do processo, porque La Salle o julgou por sua própria conta em favor deles e lhes concedeu ganho de causa, desistindo de seus direitos. Preferiu ter essa
perda, a expor sua paz em diligências preocupantes de um processo; e a caridade ao perigo de
ser ofendida. Este foi um exemplo de desinteresse tão edificante quanto incomum.
Vamos colocar aqui, como em seu lugar natural, outro fato de que as memórias não
nos trazem a data precisa. La Salle, quer por luzes de sua perspicácia natural, quer pelas que
vem do alto, pensando que o empreendedor Niel, tão rápido em abandonar as escolas começava, como para abrir novas, não deixaria de as abandonar todas a seu cargo quando lhe passasse pela cabeça, pensou dever procurar sua segurança num número suficiente de mestres.
Com efeito, como poderia sustentar os estabelecimentos, se não tinha pessoas preparadas para
substituir a Niel em todas a parte, porque este como um meteoro, desaparecia assim como
reaparecia? Mas este procedimento tinha suas conseqüências que o piedoso cônego temia.
Encarregar-se de proporcionar mestres às escolas vacantes era encarregar-se das escolas e dos
mestres; era tomar conta de uma obra que ele estimava e amava, mas da qual somente queria
ser o diretor livre e voluntariamente, sem compromissos e sem obrigações. Por um lado, temia
a ruína das fundações de Niel; de outro lado, previa que, se não havia mestres preparados para
substituir esse homem que revoava de escola para escola, veria a decadência seguir de perto a
fundação das escolas.
2. Primeiros favores extraordinários de La Salle pelas quais Deus
o dispõe a seus desígnios
Nesta perplexidade, La Salle resolveu fazer um retiro para implorar as luzes de Deus e
descobrir sua santa vontade. Para o fazer com mais recolhimento e silêncio, alugou um pequeno jardim muito solitário, perto dos Agostinianos e vizinho das muralhas da cidade; este
lugar foi a primeira testemunha de seus transportes de fervor e de sua mortificação. Depois de
ter deixado indicações em sua casa, e seus motivos na Comunidade das Mestras de Escola,
das quais Roland o tinha encarregado, retirou-se à solidão, para entregar seu espírito, sem
distrações, à oração, e seu corpo, sem consideração, à penitência. Ah, declara a Memória que
transcrevemos, se os muros do quartinho que lhe serviu de cela pudessem falar, que não diriam das sangrentas disciplinas e de outros piedosos excessos aos quais se entregava como
resultado da embriagues espiritual do vinho novo que começava a degustar! O sangue salpicava este pequeno lugar, servia de testemunha das santas crueldades que exercia sobre sua
carne e dos sacrifícios que fazia a Deus. foi ali que, ao começar uma vida totalmente nova,
formou o primeiro plano da mais sublime perfeição.
3. Fundação em Guise, em 1682.
Durante esse tempo, a fundação das Escolas Gratuitas em Rethel reavivou em Guise o
desejo que tiveram de escolas semelhantes. Já vimos que o assunto fracassou por culpa da
precipitação de Niel que não quis seguir os conselhos de La Salle. Este ano, o pedido se renovou e se concluiu felizmente. Os oficiais da cidade proporcionaram uma casa para os mestres;
e a senhorita de Guise assegurou financiamento das escolas gratuitas que se abriram no mesmo ano de 1682. outras se fundaram em Château Portien, no mês de julho do mesmo ano e no
fim do ano, outras, em Laon.
As circunstâncias das últimas fundações foram da seguinte maneira: O pároco de são
Pedro o Velho, dessa cidade, informado dos grandes benefícios das escolas gratuitas, pensou
que em nenhuma parte podiam ser mais úteis do que em sua paróquia, onde os pobres eram a
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maioria de seus fregueses. O zelo pela instrução deles e o desejo de enriquecer com bens espirituais dos quais estavam desprovidos com os bens da fortuna, colocaram-lhe a pena na mão,
para solicitar, por favor, a La Salle, alguns de seus discípulos. Niel ainda estava tão pronto
para esta nova fundação como o tinha sido para as precedentes, por isso, a divina Providência
proporcionou a oportunidade de libertar a nosso cônego de um homem bom, com certeza, mas
bom à sua maneira, porque não podia entender a La Salle nem se conformar ao modo de viver
deste.
5. Fundação em Laon, em 1683. Tentação subtil de desconfiança
no futuro e de incerteza sobre seu estudo, que perturba
os novos candidatos e o pressiona a sair.
Niel se encontrava em Guise, aonde tinha ido depois de seis meses de estada em Retnel. Assim, de Guise veio a Laon, onde encontrou tudo preparado para a abertura das escolas.
A cidade, por não se contentar com dar a aprovação a sua ereção, proporcionou uma casa para
alojar os mestres e ajudou a sua subsistência com a abadia de são Martinho e o pároco de são
Pedro, que foi depois cônego da catedral, e ainda vive. Esta fundação se fez no ano de 1683.
O Pároco aproveitou esta ocasião para ligar uma estreita amizade com La Salle, como homem
de sua confiança e do qual admirava a eminente virtude. Niel, que tinha começado esta fundação, permaneceu ali por dois anos. Era bastante tempo para um homem de seu caráter inquieto. No final deste período sentiu o desejo de voltar a Ruão. Mas, como? Ele se tinha encarregado das escolas de Rethel, Guise e Laon. Era seu diretor. Para se desvincular com honra, eralhe preciso recolocá-las nas mãos de La Salle. Essa foi a solução que escolheu. Para a executar, veio a Reims, em 1685, para se encontrar com nosso cônego e pedir-lhe com insistência
que aceitasse a demissão sua das escolas. O pároco de são Pedro de Laon, que não o desejava
menos do que Niel, juntou seus pedidos aos dele. Mas La Salle permaneceu firme em sua negativa e somente mudou de opinião quando viu essas escolas abandonadas pelo mesmo que as
tinha fundado, como se verá a seguir.
Enquanto o piedoso cônego se entregava inteiro o cuidado de seu pequeno rebanho,
Satanás estudava os meios de o dispersar pela segunda vez. Sabendo muito bem, por sua profunda malícia e sua longa experiência, que os maiores males e os maiores bens Têm sua origem nos inícios pequeninos, o demônio formou um novo plano para faze abortar em seu nascimento esta obra, que via desenvolver-se em próprio prejuízo e cujo progresso temia.
O meio mais eficaz de o conseguir era tentar os mestres e fazer que saíssem sob pretextos artificiais que o espírito humano vê como razões invencíveis. Já tinha feito a experiência com bom resultado, pois soube perverter e arrebatar quase todos os mestres das mãos de
La /salle por meio de artifícios similares. Se tivesse êxito nesta segunda vez nesta empresa,
pensava poder destruir o Instituto nascente. Com efeito, não se falaria dele hoje e teria encontrado sua ruína numa segunda deserção dos mestres, se a malícia do inimigo tivesse tido efeito. O demônio, portanto, fez novos esforços para crivá-lo, conforme as palavras de Jesus Cristo, como se criva o trigo, por segunda vz, depois de o ter feito muito bem na primeira. Mas
não se serviu do mesma estratagema.
Os primeiros mestres, costumados a um vida livre e cômoda, tinham encontrado um
jugo suave na obediência e na regra, no início, mas, insensivelmente, o demônio tinha conseguido debilitar-lhes a vontade e apagar, pelo aborrecimento e desgosto a primeira centelha de
fervor que se tinha acendido em seus corações. Uma série contínua e uniforme de exercícios
de piedade, que no princípio os tinha comovido, pareceu-lhes fastidiosa mais tarde. Sentindo
sua liberdade por demais restringida e seus sentidos cativos demais, pensaram somente em
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sacudir um jugo que o espírito maligno lhes tinha apresentado como destinado a ser mais pesado cada dia até o tornar insuportável.
Mas, enquanto o demônio agia com tanta força, La Salle, que se tinha dado conta, não
permaneceu inativo. Tinha feito tudo o que podia fazer um homem cheio de Deus e de zelo
em circunstâncias parecidas. ´r fácil imaginar que sentia seu coração em momentos tão desagradáveis. Como superior vigilante e pai amável, tinha dito a estes homens tentados tudo o
que o Espírito de Deus lhe tinha ditado, para descobrir-lhes a tentação e mostrar-lhes como se
vence. Este caridoso médico das almas tinha empregado todos os meios a seu dispor: carícias,
exortações, advertências, predições do futuro, com o fim de curar as chagas que a malícia do
demônio produzia nessas almas simples. Seu espírito, alarmado por esse começo tão desagradável, não lhe permitiam entregar-se ao descanso. Ao ver suas ovelhas dispostas a se dispersarem e se subtraírem à vigilância de seu pastor, sentiu seu coração estraçalhado. Os mestres
tinham tomado sua decisão, e teria sido inútil falar-lhes entre lágrimas de ternura e cesuras
amistosas. Essas pessoas que tinham podido esquecer a Deus, não estavam dispostas a se
lembrar dos favores de La Salle, nem das obrigações que tinham para com ele. Esses homens
determinados a afirmar sua própria vontade e liberdade, não estavam dispostos para crer que
uma pessoa que não lhes propunha mais do que o serviço evangélico, fosse seu verdadeiro
amigo e sábio conselheiro.
Assim La Salle foi obrigado a ser testemunha de sua deserção depois de ter sido testemunha do relaxamento deles. Com que tristeza viu a esses primeiros discípulos, semelhantes
ao filho pródigo, saírem da casa e se desprenderem de seus braços! Com quanto sacrifício
tinha ele visto a barca, cujo timão tinha começado a dirigir, prestes a naufragar! Sua reação
não é difícil de compreender. Estranhado, quase desconcertado por não ver a seu lado mais do
que um ou dois mestres, poderia ter-lhes dirigido estas palavras de Jesus: Vós também quereis
ir embora?
Quando o zeloso cônego se encarregou desta obra pela qual não tinha inclinação natural, somente se propunha a instrução dos pobres e o bem da Igreja. Parece que tinha de esperar
um final mais feliz; mas, oh altura dos juízos de Deus! Ele somente procurava a glória de
Deus na execução de sua vontade e a submissão às ordens da Providência, e nós não devemos
procurá-la em outra parte. Embora Deus inspire a seus servos empresas em sua honra, compraz-se, entretanto com freqüência, em fazê-las passar por dificuldades e fracassos; ou em
levá-las aos limites da ruína, para depois erguê-las com brilho. É assim ele faz morrer e faz
viver; ele conduz à morte e chama à vida. Cem vezes o pequeno rebanho de Jesus Cristo no
momento de sua morte e depois da ressurreição, se viu disperso, dissolvido e a ponto de se
perder. Cem vezes se viu renascer com mais brilho . Se todas as obras de Deus experimentaram provações semelhantes, não é de estranhar que esta a experimente também.
Instruído nos caminhos do Senhor, não tinha perdido coragem nesta ocasião. Reconhecendo os restos preciosos de seu pequeno rebanho, que constituíam toda sua esperança,
não poupou cuidados, nem conselhos, nem exortações, nem serviços para os proteger do mau
exemplo dos que tinham saído. Seus esforços não foram inúteis, e mesmo suas lágrimas estancaram e tivera motivos para louvar a Deus, vendo um número de pessoas com jeito para
dar aulas, força e boa vontade que vinham repovoar a pequena companhia e substituir os desertores. Ao formar uma comunidade nova, mais numerosa, tinha a vantagem de a regular
melhor. Ao trabalhar com pessoas novas não precisava endireitar os maus costumes que uma
educação demasiado livre de Niel tinha feito adquirir pelos outros.
Tudo o que era a fazer era precavê-los contra a inconstância natural cujos tristes efeitos aprendera a temer dos que o tinham deixado. Pois bem; persuadido de que o melhor meio
para os fazer inquebrantáveis em sua vocação, era afirmá-los na virtude, tinha tomado todos
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
os cuidados em fazê-los adquiri-la. Também teve o consolo de ver que tinha semeado em boa
terra e que s frutos correspondiam a seu trabalho, porque os discípulos faziam grandes progressos na piedade, graças a seu exemplo, suas palavras. Da mesma forma, tinha feito progressos imensos por sua fidelidade e docilidade em se deixar conduzir pelo Espírito de Deus.
era dessas almas generosas, que longe de recusarem nada a Deus, lhe e entregam tudo o que
lhes pede e no mesmo momento em que o pede.
Contudo, a pesar de todos os seus cuidados e vigilância, não conseguiu por seus discípulos ao abrigo da tentação mais sutil, mais delicada e deslumbrante que o espírito maligno
podia sugerir-lhes, a não ser fazendo-se ele mesmo vítima da pobreza, buscando no despojamento geral de todos os seus bens, remédio eficaz contra o artifício do sedutor. Não foi o amor pela liberdade, o fastio de uma vida incômoda, o desgosto pelos exercícios de piedade; o
que o demônio pôs em ação para quebrantar pela segunda vez o pequeno rebanho do zeloso
cônego e incitá-lo a uma nova deserção; foi a previsão do futuro e o temor de faltar, algum
dia, o necessário.
Essa debilidade se encontra em todos os homens que não estão cimentados na perfeita
confiança em Deus. Essa inquietação é um verme que rói as vontades mais dispostas e a faz
perder os mais altos ideais, quando a pura caridade ainda não tomou posse delas. Por isso, foi
fácil para o espírito do mal tomar de surpresa, sob este viés, a esses homens ainda noviços na
virtude. E com certeza, ao atacar os corações deles por este lado mais fraco neles, ele se tornaria dono, cedo ou tarde, a pesar das orações e as advertências de La Salle, se o virtuoso cônego não tivesse contraposto ao tentador um exemplo heróico de desprendimento e pobreza voluntária.
O que ocasionou essa decisão foi uma resposta repentina, mas ingênua de alguns mestres fortemente tentados de abandonar seu estado e procurar um outro refúgio contra a pobreza. Reduzidos a viver com o absolutamente necessário, sem entradas fixas, previam um futuro
incerto, e seu inquieto receio não permitia ver recursos para sua velhice a não ser uma vergonhosa mendicidade. O demônio, exagerando os motivos de desconfiança na imaginação deles,
não lhes mostrava no quadro de suas misérias futuras, mais do que um hospital, em caso de
enfermidade, ou caducidade, como recompensa de seus trabalhos e das forças de sua juventude esgotada num emprego ingrato, e estéril que, cedo ou tarde, deveria abandoná-los à mais
horrorosa indigência, sem poder lhes garantir um pedaço de pão na velhice.
Certamente, diziam uns aos outros, nestas agudas inquietações que os assediavam, que
podemos esperar encontrar por remédio seguro contra a miséria na bondade de nosso pai enquanto ele viver. Mas, teremos de assegurada a vida dele? Confiando em sua caridade, encontraremos em seu bom coração e em seus bens um escudo contra a pobreza; mas, ele pode morrer, e uma vez morto, que será das escolas que sustenta? Que será de nós, mestres, que ele
sustenta e a quem ele faz de pai? Aonde ir? Que fazer, se La Salle chegar a faltar? Essas eram
as perguntas qye se faziam uns aos outros e que o demônio tinha cuidado em lhes repetir para
que não as esquecessem. Essas objeções, sempre presentes em seu espírito e que não admitiam nem resposta nem réplica, formavam mil quimeras próprias a desanimá-los, a levá-los ao
desânimo no trabalho e a uma s sombria depressão.
O vigilante superior, que estudava rodos os movimentos de seus corações, e que lia
neles as disposições mais secretas, não tardou em perceber a ferida com que o espírito maligno envenenava cada dia. Para a curar, acrescentava à oração, várias veementes exortações,
com o fim de os animar a ter confiança em Deus e abandonar-se à Providência. Contudo suas
almas, semelhantes a essas casas em ruína que pode ver, e que sustentadas por apoios estranhos, caem em decadência, assim os mestres de escola, apenas recobrados de seu primeiro
abatimento, voltam a ele e se inclinam sempre para o lado da saída.
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
5. La Salle os exorta debalde a confiar na Providência. A resposta
que dão o fazem tomar a resolução de deixar tudo,
a exemplo dos apóstolos.
La Salle sentia que suas exortações sobre a confiança em Deus e ao abandono à Providência não tinham maior efeito, sem saber a causa disso. Mas, esses homens fechados e inimigos a dissimulação fizeram que não a ignorasse por muito tempo. Confessaram com franqueza que sua inquietalçao nascia da incerteza e da pouca segurança de seu estado. Fizeram
que caísse em conta que sua situação não tinha nada de fixo nem estável, que ele mesmo podia ver a ruína de sua obra, e que para eles era triste sacrificar sua juventude ao serviço de um
público que os esqueceria, deixando-os sem a segurança de encontrar, em idade avançada,
um asilo para descansar de seus trabalhos passados e terminar seus dias ao abrigo da indigência.
Ao dizer isso, não diziam tudo: tinham outra réplica secreta para responder a todas as
exortações que seu superior fazia sobre o abandono à Providência, que não se atreviam ainda
a lhe declarar por vergonha e respeito. Embora correto, era incivil, e eles sentiam medo de
ofender a um homem que lhes tinha feito tanto bem e de quem não tinham queixa alguma.
Mas esta gente se disfarce, que não tinham estudado a arte de dissimular, não podia cometer
por muito tempo a réplica que tinham formulado, nem impedir a sua língua de se libertar com
uma réplica tão ingênua como penetrante que, embora descortês, continha um fundo de verdade capaz de ter todo o efeito que Deus esperava dela. Entretanto, guardaram silêncio sobre
esse assunto durante alguns dias.
Durante esse tempo em que suas bocas não revelavam os pensamentos de seu espírito,
o cônego rico não deixava de voltar a seus discursos sobre a confiança em Deus e de os exortar com as palavras do Evangelho, a um inteiro abandono aos cuidados da Providência.
Homens de pouca fé, – dizia-lhes – com sua pouca confiança, vocês põem
limites a uma bondade ilimitada. Certamente, se ela é infinita, universal e contínua como não duvidam, cuidará sempre de vocês e não lhes faltará nunca. Vocês procuram sua segurança; não a têm no Evangelho? A palavra de Jesus Cristo é seu contrato de segurança, não há outro mais sólido, porque ele o assinou
com seu sangue, apôs-lhe seu selo de validade infalível. Por que, pois, entram
em desconfiança? Se as promessas positivas de Deus não podem acamar as inquietações de vocês e seus alarmes sobre o futuro, de que serve procurar investimentos e reservas de renda que produziriam uma entrada equivalente?
Considerem os lírios do campo, é Jesus Cristo mesmo quem nos convida
a olhar para eles, e as flores do campo, e admirem com que opulência Deus as
cumulou de adornos e de beleza. Nada lhes falta, e Salomão, em todo o esplendor de sua glória, não se vestia com tanto luxo. Abram os olhos para ver os passarinhos que voam no ar, ou os pequenos animais que se arrastam pelo chão; a
nenhum deles falta o necessário porque Deus provê a suas necessidades. Sem
celeiro, sem armazém, encontram em toda a parte o alimento que a divina Providência lhes prepara a apresenta. Não semeiam nem colhem, e todavia encontram sua subsistência porque o Pai celeste se encarrega disso. Se a mão benfeitora e liberal dele estende seus cuidados até aos mais vis insetos, que os homens pisoteiam, até o feno que seca e serve de alimento ao fogo, como pode
voc}es pensar, homens de pouca fé, que aquele a quem consagraram sua juventude a ao que dedicaram seus trabalhos, os abandone em sua velhice e os deixe
arrastar na miséria o fim de uma vida empregada em o servir?
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
Portanto, reanimem sua confiança na bondade infinita, e honrem-na entregando-lhe o cuidado de suas pessoas. Sem se perturbar com o presente, sem
inquietar-se com o futuro, reduzam seus cuidados de hoje, em que vivem, e não
carreguem o dia de hoje, com previsões do dia de amanhã. O que lhes faltar de
tardem o dia seguinte lho proporcionará, se souberem esperar em Deus. Deus
fará milagres antes de deixar vocês sofrerem necessidade. Depois das palavras
de Jesus Cristo, dou-lhes como prova a experiência de todos os santos. Os milagres da Providência são diários, e somente cessam para quem desconfia.
Palavras tão verdadeiras teriam podido ter seu efeito, se aquele que as pronunciou com
tanta veemência, tivesse sido tão pobre como virtuoso. Mas era um cônego rico quem as falava. Tendo uma boa prebenda e bens patrimoniais, gozava de recursos assegurados contra a
indigência e não tinha a autoridade para persuadir aos outros para esquecerem qualquer interesse pessoal. Para ele era cômodo falar de abandono total à divina Providência, enquanto não
tinha nada que recear; e ela o tinha cumulado de tanta abundância do necessário e, mesmo do
supérfluo. Antes de poder persuadir com essa linguagem de perfeição, é preciso que se coloque na situação daqueles aos quais se dirige.
Quando estiver despojado de tudo, sem benefício e sem bens patrimoniais, dê o primeiro, o exemplo de abandono à Providência, então sua palavra será escutada, será eficaz,
porque será apoiada pelo exemplo. Pode-se resistir às palavras, pode-se aduzir argumentos
capciosos rebater os verdadeiros, pode-se, inclusive, duvidar dos milagres ou, pelo menos,
questioná-los, mas é preciso ceder diante do exemplo. É um fato que traz consigo sua evidência e não admite escusas.
Os discípulos do piedoso cônego tinham em alta estima e veneração a virtude dele. As
ações de humildade, mortificação, recolhimento e caridade cujos exemplos viam, atraíam-lhe
toda confiança deles. Mas, de toda maneira, ele ainda era rico. Enquanto podia contar com
alto salário, pedia deles a coragem de arriscar uma velhice ou uma saúde abalada, por um futuro incerto. Ele não podia encontrar graça diante deles, nem resolvê-los a este ato heróico ,
do qual ainda não lhes tinha dado o modelo em sua pessoa. Por isso o demônio sabia enervar
no espírito deles a força de suas palavras, mostrando-lhes que quem falava com tanta eloquência do abandono à Providência, era rico e que, se estivesse na mesma condição deles, não
poderia deixar de falar de tão alta perfeição, e poderia ser o primeiro em procurar segurança e
pão para o resto de seus dias.
Os mestres, cansados de pensar nestas coisas, um dia se atreveram a lhe dizer e dar
uma das respostas bruscas e ingênuas, que os sentimentos do coração criam sem deixar lugar
a réplica.
O senhor fala com muita facilidade – disseram – porque nada lhe falta. Tem uma prebenda de canonicato e bens patrimoniais. Está assegurado e ao abrigo contra a indigência. Se
nossa fundação falhar, o senhor não vai cair e a ruína de nosso estado não atingirá o seu. Nós
somos pessoas sem posse, sem salário e sem profissão. Aonde iremos, o que vamos fazer se
as escolas fracassarem ou se elas se cansarem conosco? A pobreza será nossa única porção e
a mendicidade o único meio de a aliviar.
Embora não fosse cortês nem gentil, esta resposta continha um fundo de verdade que
lhe feriu coração reto. La Salle não a esperava. Mas ela foi tanto mais eficaz quanto mais improvisa. Não se deixou enganar pelo amor próprio. Sem atentar ao que esta censura tinha de
odioso, sopesou toda a sua força. Sua probidade o obrigou a aceitar que eles tinham razão ao
lhe falarem assim. o Espírito Santo uniu sua voz à deles para lhe dizer muito mais alto e com
maior veemência no segredo do coração, que não tinha nada que responder e que seu despojamento real seria a única prova de que seu coração tinha falado quando sua boca proferia tão
lindas coisas sobre o abandono à Providência. Devia unir a ação à palavra, se a queria eficaz e
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Salle
poderosa. Quando for pobre como eles, e estiver no mesmo estado deles, teria então autoridade para fazê-los andar sobre suas pegadas nos caminhos do despojamento de todas as coisas e
no esquecimento de todo interesse.
A resposta dos mestres deu muito que pensar a La Salle; mergulhou-o numa grande
perplexidade. De um lado, fazer-se pobre como eles e tornar-se, por escolha própria, o que
eles eram por necessidade. Renunciar a seu canonicato e despojar-se de seus bens patrimoniais, para se entrear ao cuidado de uma obra que acaba de nascer e cuhos riscos tinha de correr
sem esperança certa de grandes frutos, era um partido temerário aos olhos da prudência humana. Até mesmo aos olhos da fé, merecia sérias reflexões. De outro lado, para permanecer
rico e bem abastecido, vivendo com pessoas pobre e sem recursos, teria de fechar a boca e não
falar mais de esquecer o futuro, nem de renúncia às previsões que exige.
Era preciso largar as lições sobre o abandono à Providência e, nesse caso, deixá-los
desarmados e sem defesa contra as seduções do espírito maligno, que os atacava o ponto mais
fraco. Em tais circunstâncias, que seria de seu pequeno rebanho? Sem dúvida, Satanás o dispersaria de novo e conseguiria uma segunda vitória com uma segunda deserção. Se ele lograsse fazer sair a estes últimos mestres, a exemplo dos primeiros, seu triunfo seria completo. Sufocando-a em seu berço veria o fim de uma obra cujas conseqüências começava a temer. Estas
eram as diversas considerações que preocupavam a La Salle e o deixaram muito perplexo.
No próximo capítulo veremos o cônego sair glorioso por uma generosa resolução de
deixar tudo, à imitação dos apóstolos, e despojar-se de seu canonicato e de sua fortuna para
unir-se a Jesus Cristo desnudado na cruz.
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Salle
Capítulo XII
La Salle delibera sobre a renúncia a seu canonicato:
Motivos que o levaram a essa generosa resolução; toma a decisão,
Mas não se atreve a executá-la antes de autorizado pelo diretor espiritual
A resposta viva e ingênua que os mestres de escola deram a seu superior, não foi uma
dessas réplicas que chocam no momento, mas que somente excitam no espírito reações passageiras. Ela impressionou tanto o espírito do jovem cônego, que permaneceu impressa nele. O
primeiro efeito foram reflexões profundas seguidas de sérias consultas. O fruto final foi o
despojamento real.
O primeiro pensamento que o espírito natural do virtuoso cônego lhe sugeriu foi de
firmar as escolas e destinar a essa confirmação, sua fortuna patrimonial. Que uso melhor podia dar-lhe? Seus familiares eram ricos e não precisavam da herança para viver com folga. Se
queres ser perfeito, vai, vende o que tens e dá-lo., disse Jesus /Cristo. Dá-lo a quem? Aos
familiares? Se eles o precisam, a caridade o prescreve; ela gosta da ordem e coloca no primeiro lugar dos pobres, os familiares que têm necessidade. A ordem da caridade começa por eles;
a distribuição dos bens de que se despoja o proprietário, pelo desejo da perfeição. Mas, se são
ricos, deve-se entregar a eles o preço da venda dos bens, que o Evangelho aconselha? Não!
Isso seria dar-lhes algo supérfluo que poderia transformar-se em sua perdição espiritual. Seria
confiar-lhes um depósito que eles deveria passar aos indigentes, que devem recebê-o de primeira mão, segundo Jesus Cristo, que diz expressamente: e dá-lo aos pobres! Que exemplo
para o tempo em que vivemos! O mundo não quer esses exemplos. Que gritos não lança uma
família que se crê despojada de tudo o que se dá aos pobres, à Igreja ou a outras boas obras!
Entretanto, é a fiel prática deste conselho deu nascimento à Igreja primitiva.Se alguém
a quiser condenar, é preciso instaurar processo a um número infinito de santos. Se esses exemplos antigos não são para imitar hoje, é preciso crer que os conselhos evang[elicos estão
sujeitos à prescrição do tempo. Não se pode, pois, negar que a decisão que La Salle tono e
que, de fato realizou, de se despojar de seus bens patrimoniais em favor dos pobres, encontra
sua apologia no Evangelho e no exemplo dos santos.
Se La Salle tivesse destinado seus bens à fundação das Escolas Gratuitas e Cristãs, teria cumprido todos os seus objetivos: 1) Ela se dirigia totalmente em benefício dos pobres. 2)
Ela dava segurança a seus discípulos e os punha ao abrigo daa tentação que os inquietava e
que, como um verme roedor, minava e debilitava sua vocação e boa vontade, 3) Ela lhes cerrava aboca, e, este exemplo heróico de desprendimento, o autorizava a dar lições de perfeição
sobre o amor aos pobres e ao desapego de tudo. Ela o despojava a ele também, e, ao torná-lo
pobre, o fazia semelhante a seus irmãos pobres. Finalmente, ela não fazia sair de seu estado de
vida; podia ainda permanecer como cônego e, ao mesmo tempo, superior da nova comunidade.
De acordo com isto, o primeiro que La Salle pensou foi renunciar a seus bens patrimoniais e não a sua prebenda canonical. Embora a primeira renúncia não podia se fazer sem
atrair grandes mortificações. A segunda, porém, implicava dificuldades e inconvenientes muito maiores. Por isso La Salle não pensou nisso primeiro; mas a divina Providência mudou a
ordem de suas resoluções ao fazê-lo começar seu despojamento por sua prebenda canonical.
1. La Salle consulta o padre Barré, Mínimo, sobre seu plano.
O R. P. Barré foi o primeiro instrumento que o Espírito Santo colocou na obra para
apoiar com seu conselho as inspirações secretas que dava ao cônego. Era natural pedir conse176
Vida de João Batista de la Sal
Salle
lho a um homem que tina uma graça especial para o dar, para ser este santo Mínimo o primeiro Fundador das Escolas Cristãs e Gratuitas. Parecia ainda mais natural que ele aprovasse a
resolução do cônego. Uma resolução tão piedosa e desinteressada merecia, sem dúvida, grandes elogios e exigia que o P. Barré o apoiasse com toda sua autoridade. Mas, esta resolução
tão perfeita em si mesma, não o era bastante para o gosto do santo Mínimo. Um homem que
não queria para as Escolas Cristãs um cimento diferente do da Providência, não podia aceitar
as fundações. Ele pensava que o melhor de todos os cimentos, o mais seguro, ra o abandono
aos cuidados do Pai celestial, e que as Escolas Cristãs se arruinariam se lhes fosse destinado
um fundo. A este propósito ele dizia: As raposas têm as suas tocas, e as aves do céu seus ninhos; mas o Filho do Homem não tem ode reclinar a cabeça. O comentário do P. Barré sobre
as palavras de Jesus Cristo foram: “Quem é que são as raposas mencionadas no texto sagrado?
São os filhos do século, que se apegam aos bens da terra. Quem é que são as aves do céu? São
os religiosos que têm sua cela como asilo. Mas, para os mestres e mestras de escola, cuja vocação é instruir os pobres, a exemplo de Jesus Cristo, não há outra porção sobre a terra do que
a do Filho do Homem. A Providência deve ser o único cimento sobre o qual é preciso estabelecer as Escolas Cristãs. Nenhum outro apoio lhes convém. Este é sólido, e as escolas permanecerão inamovíveis, se não tiverem outro fundamento”.
2. O Mínimo leva a resolução a uma grande perfeição. O conselho definitivo
.
O P. Barré, homem que não dizia meias verdades, acrescentou, dirigindo-se a La Salle,
que o despojamento de seus bens patrimoniais devia continuar ao de sua prebenda canônica, e
ser o modelo de uma renúncia geral e um abandono perfeito. Não atrairia a graça sobre os
seus, a não ser quando lhes tenha dado o exemplo. Embora este conselho não fosse muito agradável, vinha do alto e não podia ser inspirado pela carne nem pelo sangue. Deus, o verdadeiro autor, dispunha interiormente o virtuoso cônego, dizendo-lhe ous ouvidos do coração o
que o Mínimo dizia aos do corpo.
Mas, como La Salle não precipitava as coisas, e não desejava fazer nada sem o conselho de seu diretor espiritual regular, deixou amadurecer esses primeiros projetos de perfeição
evangélica e se contentou com regar com suas lágrimas e alimentar com suas orações essas
preciosas sementes que acabavam de ser semeadas em sua alma. Primeiro, o piedoso cônego
profundamente impressionado com os conselhos que recebeu na consulta ao P. Barré, meditou
sobre o que devia fazer, e levou suas reflexões e considerações aos pés do crucifixo, pedindo
a Deus suas luzes e oferecendo-se ao cumprimento de seus desígnios. Quanto mais consultava
o oráculo divino, tanto mais lhe parecia necessário fazer-se pobre para se tornar como seus
discípulos.
3. Razões que motivaram a La Salle a renunciar a seu canonicato.
As seguintes são as razões que o persuadiram e que se repetia a si mesmo:
1) Estou reduzido ao silêncio. Enquanto não sou pobre, não tenho direito de falar a
linguagem de perfeição sobre a pobreza, como fiz.; nem sobre o abandono à Providência, se tenho recursos assegurados contra a miséria. Nem sobre a confiança
total em Deus, se uma renda substancial me afasta qualquer motivo de inquietação.
2) Se continuo a ser o que sou, e eles o que são, a tentação deles continuará, porque o
que a motiva subsistirá e não poderei trazer-lhe remédio, porque encontrarão sempre em meu salário um pretexto aparente e mesmo razoável sobre o futuro.
3) Cedo ou tarde uma tentação tão justificável, na aparência, não deixará de ter o efeito esperado pelo demônio; os mestres, já em grupo ou um por um, sairão e me
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Vida de João Batista de la Sal
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deixarão uma segunda vez a casa vazia e as escolas sem pessoas preparadas para
as dirigir.
4) Essa deserção que fará barulho na cidade, causará medo aos que podiam ter pensado em serem mestres de escola; sua vocação se congelará e, antes de entrar, serão
presa da mesma tentação dos que saíram.
5) Sem mestres fixos, as escolas fracassarão com suas fundações. Nesse caso, os herdeiros quererão reclamar os bens doados para as estabelecer.
6) Assim, pouco a pouco, as instituições das escolas cristãs e gratuitas se sepultarão
em suas ruínas e não se poderá pensar em as ressuscitar.
7) Ainda que todos esses inconvenientes sejam irreais, devo ou posso ser o superior
destes mestres e, inclusive, sem deixar de ser cônego? Posso combinar a assiduidade à presença em casa para estar à testa nos exercícios de piedade e velar por eles, com a assiduidade ao coro e ao ofício canonical? São compatíveis esses dois
empregos? Se não o são, é preciso renunciar a um deles.
8) O certo é que uma prebenda canônica não é um obstáculo às boas obras, e a aplicação ao coro e a cantar os louvores do Senhor não impede fazer outros serviços à
Igreja e entregar-se à salvação das almas. Pode-se distribuir o tempo entre essas
duas nobres funções d provar que, por ser cônego, não se deve permanecer desocupado fora do coro, nem buscar nesse ofício um pretexto razoável para sair dele
com o fim de entrar num repouso que dura no resto do dia, e engordar numa moleza indolente, sem ter nada a fazer na vinha do Senhor. Mas, posso ser, ao mesmo
tempo, cônego e bom superior de uma comunidade que exige minha presença
constante? Se cj pro dignamente este último emprego, devo abandonar todas as
funções do primeiro, porque, se estiver obrigado a estar sempre na casa, nunca
posso estar no coro. De modo que, se estes empregos não são compatíveis, e preciso que escolha um deles. Cinco ou seis horas de ofício canônico por dia, seria uma
longa ausência da casa que dirijo.
9) Pois bem; na escolha que devo fazer, o que provocará minha decisão? De que lado
se deve inclinar a balança? A maior glória de Deus, o maior serviço à Igreja, minha perfeição e a salvação das almas. Estes são os objetivos que devo me propor e
os fins que devem me dirigir. Mas, se somente tomo conselho deste nobres motivos, devo decidir-me a renunciar ao canonicato, para me entregar ao cuidado das
escolas e à educação dos mestres destinados a dirigi-las.
10) Finalmente, como já não me sinto mais atraído pela vocação de cônego, pareceria
que ela me deixou a mim antes que eu a abandone. Este estado já não é mais para
mim; e ainda que eu entre nele pela porta grande, parece que Deus me a abre hoje
para sair. A mesma voz que me chama a ele, parece chamar-me a outra parte. Sinto
essa voz no fundo da consciência, e a escuto quando a consulto. O certo é que,
quando Deus me colocou no estado em que estou, a mão do mesmo Deus deve me
tirar. Mas, por acaso não me está mostrando hoje outro estado que merece minha
preferência e não me está conduzindo a ele pela mão?
Em garantia da verdade, é preciso dizer que La Salle não considerava a função de cônego como uma das mais insignificantes na Igreja. Dizemo-lo depois dele, e estes são seus
próprios termos com quais ele se expressou em sua Memória. Ele queria ser totalmente sacerdote e exercer todas as suas funções. Acreditava ter enterrado o talento que se lhe tinha confiado na ordenação, e ter deixado ocioso o poder que tinha recebido com o caráter sacerdotal,
caso se confinasse nos limites de um ofício canonical. Com efeito, um cônego sacerdote com
saúde, ciência, talento, conduta edificante, não parece cumprir tudo o que o sacerdócio lhe
impõe, se se limita ao simples dever de assistir à recitação do ofício divino. Deixa de utilizar
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uma parte dos poderes que recebeu com a imposição das mãos para o bem da diocese em que
está incardinado. Acaso deve recusar seus serviços a sua Igreja que o sustenta e ao prelado
que a governa, se é preciso?
Se hoje, o título de cônego dispensa do trabalho, pode-se dizer que nem sempre foi assim. Se remontarmos ao princípio, encontraremos que em outros tempos, todo sacerdote era o
ajudante do bispo, empregado no ministério e consagrado ao cultivo do campo da Igreja sob
suas ordens e vigilância. Ao menos é preciso convir em que somente os que careciam de talentos e do consentimento do bispo estavam dispensados do exercício de seu ministério.
La Salle setia que seu zelo se encontrava muito restrito em seu estado. A santa paixão
que tinha para servir à Igreja, sentia-se demais constrangida. Seu próprio diretor espiritual
contribuía, sem lho propor, a que sentisse desgostoso de um ofício que não se acomodava à
inteira liberdade em que se queria dedicar-se totalmente ao ministério sacerdotal; porque sua
assistência edificante ao coro o forçava a estar, por muito tempo e muitas vezes, ausente de
uma casa em que sua presença era absolutamente necessária. Contudo, o diretor não queria
que seu discípulo, por ser bom cônego, deixasse de ser um vigilante superior de comunidade.
Em pouco o veremos resistir fortemente contra a resolução que La Salle lhe propôs de renunciar a seu canonicato, e negar seu consentimento até que a evidência o obrigou a convir em
que era necessário optar entre dois empregos incompatíveis.
Durante esse tempo, o dócil discípulo, que obedecia cegamente, e que não sabia discutir sobre a direção que se lhe dava, uniu, na melhor forma em que podia, esses dois ofícios e
cumrpiu seus deveres. Assistia ao coro até onde a instrução e a direção de seus discípulos, o
cuidado das escolas e a vigilância sobre a comunidade nascente lho permitiam. Mas sua assistência ao coro não era sem um certo desejo secreto de conseguir a paz e libertar-se de uma
vocação que, por mais santa e angélica que seja, lhe tirava uma parte do tempo que desejava
consagrar a funções ainda mais divinas. Tinha uma atração desde que Roland lhe tinha sugerido permutar seu canonicato por uma paróquia; não se realizou pela revocação que o obrigou
a cumprir a ordem do arcebispo. A decisão de seu superior lhe manifestou a vontade de Deus
e o persuadiu de que não era chamado a ser pároco, nem a continuar a ser cônego. Contudo,
permanecia nesse estado, como dissemos e ele mesmo o disse, em espera da ordem de Deus
para sair dele, sem se atrever a deixar o lugar em que o Senhor o tinha colocado.
Assim, Deus que sabe moldar com arte incompreensível o coração humano, dispunha
o seu para seus desígnios de maneira insensível e como natural. Pela misteriosa ação da graça
fazia entrar os desejos do santo varão na linha com sua divina vontade. Aqui, me imagino a
La Salle como um homem mantido num lugar que lhe apresenta caminhos diferentes. Sem
saber qual deve escolher, delibera consulta, se informa sobre qual deve seguir. A pesar de que
Deus parece mostrar-lhe com bastante clareza, o santo varão, fazendo-se uma espécie de ilusão, não via que somente tinha um caminho que Deus lhe estava abrindo. Persuadido no fundo de sua alma, por um instinto natural e por uma secreta intimação da vontade divina, que ele
não estava chamado a continuar sendo cônego nem a ser pároco, pareceu decidido a entregarse a cultivar o novo campo, no qual a Providência o colocara passo a passo, sem se dar conta,
até lhe confiar completamente seu cuidado.
Finalmente, depois de muitas reflexões na presença de Deus, muitas orações, muitas
consultas, pareceu-lhe evidente perto do fim do ano de 1682 – diz ele mesmo – que Deus o
chamava a tomar a si o encargo das escolas, e que devendo ser o primeiro em todos os exercícios da comunidade, não podia assistir ao Ofício divino com a assiduidade que seu diretor
exigia. Convencido, por fim, que todas razões que citamos, tomou a resolução de renunciar a
seu canonicato. Mas não encontrou seu pai espiritual disposto a lhe dar seu consentimento.
Uma resolução de tal natureza não encontra facilmente quem a aprove. Era muito insólita e extraordinária para que seu diretor espiritual se apressasse ou apoiasse com seu voto.
Era prudente examinar durante muito tempo o princípio e o verdadeiro motivo e comprovar se
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
era o resultado de um movimento precipitado, de um fervor passageiro, ou o fruto maduro da
graça e a ação do Espírito Santo.
É preciso verificar os espíritos e examinar de onde vem e aonde vão. Não se pode crer
em todos, e, se não se quer tomar como guia a presunção, a perturbação e o espírito maligno.
Nem todas as resoluções que parecem perfeitas, o são realmente. O espírito próprio é, mujitas
vezes, o autor de resoluções que se atribuem ao Espírito de Deus. pode—se cair na ilusão
quando não examinam, com sábia lentidão, as inspirações extraordinárias. A resolução em
questão, que começou o sacrifício pela renúncia de um canonicato, e que devia terminar pelo
despojamento dos bens patrimoniais, à primeira vista, parecia temerária. Aos olhos da razão
humana, era exagerada.
Um diretor espiritual sábio, que não procura suas respostas em inspirações extraordinárias, e que não tomo por princípio de sua conduta mais do que a prudência esclarecida pela
fé, não podia dar-lhe sozinho o selo de aprovação. Embora tenha sido tão iluminado sobre este
assuto como seu penitente, a sabedoria lhe teria ditado não se render à primeira proposta, e
procurar numa dilação o esclarecimento da vontade de Deus. Com efeito, a resolução de se
condenar à maior pobreza para abrir uma obra, cujo rendimento era tão incerto e cujo plano
parecia tão quimérico aos olhos da carne, era uma resolução muito estranha e ousada. Para
falar verdade, era heróica, se o Espírito de Deus era seu autor; mas era vã e temerária, se tinha
outro princípio. Efetivamente,não seria tentar a Deus, deixar uma vocação santa e segura para
assumir outra incerta e ainda informe e exposta a mil contradições, uma só das quais bastaria
para o arruiná-lo? Neste caso, que seria de um antigo cônego? Que papel desempenharia no
mundo depois de ter querido desempenhar, para vergonha, o de fundador?
Se a sua virtude fosse exposta a tão rude provação, não correria perigo de sucumbir?
Não seria sua queda proporcional à altura alcançada? Não seria tão funesta quanto sua elevação vazia? Quantas vezes o amor próprio e o orgulho procuram esconder-se sob os véus de
perfeição! Quantas vezes não aconteceu, que uma hipocrisia secreta e desatinada se ocultasse
sob uma virtude chamativa e exterior! Se o seu projeto falhasse, a que ele se reduziria? À
mais espantosa miséria; porque, qual de seus familiares teria estado disposto a socorrer em
suas necessidades um homem feito pobre por querer e que, em favor dos pobres privou sua
família de seus bens patrimoniais? Se tal graça lhe acontecesse, a de cônego que se torna mestre de escola, não lhe restaria outro partido a não ser o de ganhar a vida, vendendo seu trabalho, como o fazem os outros, e colocando a preço seus ensinamentos, que tinha procurado, em
vão, dar gratuitamente e cristãs.
Além de tudo, não podia La Salle salvar-se no estado em que a divina Providência o
tinha colocado? Se parecia tão ávido de perfeição, que obstáculo a ela encontrava ele num
canonicato? A vida edificante que levara até então, não servia de garantia da que devia viver
no futuro? Julgando o futuro pelo passado, não podia tomar a resolução de santificar-se com
segurança, sem correr o risco de cair na ilusão e de estar enganado pela idéia de uma perfeição deslumbrante, mas falsa? Se estava tão apaixonado pelo ministério e o serviço da Igreja,
não teria matéria para satisfazer seu zelo a exemplo de Roland, no tribunal da penitência, no
púlpito, na atenção de comunidades cuja direção já tinha, no púlpito, anunciando a palavra de
Deus, ou distribuindo esse pão celeste aos pequenos por meio de instruções simples?
Estas e muitas outras tarefas, La Salle tinha sabido combinar com o canonicato. Já que
a vocação não era equívoca e que tinha entrado no estado eclesiástico e nas filas dos cônegos
da catedral por caminhos tão legítimos, já que cumpria suas obrigações com tanta exatidão,
que podia temer? Por que não permanecer com segurança, sendo o que era por estado e por
vocação de Deus: um bom cônego e bom sacerdote?
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
4. Encontra oposição a sua resolução da parte do diretor espiritual, que por fim
consente.
Todas estas reflexões eram ponderadas e merecem que o diretor espiritual tenha suspendido a resolução de seu penitente. O diretor sentiu, pois, todas as dificuldades de uma resolução tão fora do comum, e tinha suas conseqüências. Um passo desta natureza não podia
ser dado sem violento alvoroço e sem excitar grandes tormentas, que não deixam de cair, inclusive, sobre a cabeça dos diretores. Porque participam sempre de boa parte da censura que
se fazem aos que estão sob sua direção. O mundo se imagina que os penitentes não escutam
mais do que a voz de seu confessor e que agem somente por ordem deles, o que na prática, é
muito raro e não acontece senão nas almas muito dóceis cujo número é muito reduzido; nesta
suposição, lançam a culpa de tudo sobre os diretores e não deixam de os tornar responsáveis
de todos os passos, quer santos quer irregulares dos dirigidos.. as tempestades de línguas
murmuradoras que La Salle tinha suscitado, quando levou os mestres de escola a sua casa,
para levar com eles vida comum, essas tempestades estavam ainda recentes e pressagiavam
outras, mais furiosas, quando deixar de ser cônego para se tornar um deles.
Além disso, em favor de quem renunciará La Salle a seu canonicato? Esta foi outra dificuldade que trouxe consigo numerosos inconvenientes. O piedoso cônego tinha um irmão
eclesiástico; e este foi o último da família que permaneceu apegado a ele e, a pesar da família,
ficou com ele na sociedade de vida com os mestres de escola. Se o irmão mais velho não deixasse ao menos a este mais novo a prebenda canônica, que não se diria? Quanta gritaria não
se escutaria na cidade! A que, uma família descontente não acudiria ? mas um homem que
começava a caminhar com tanta coragem pela estrada dos santos, era por acaso o homem que
escutaia a voz da carne e do sangue, e que autorizaria com seu exemplo o costume pernicioso
de fazer passar por herança os bens do santuário? Não era preciso estar bem iluminado para
ver todas essas dificuldades. Assim,ainda mais uma vez, não pareceu sábio ao diretor dobrarse diante das primeiras propostas de seu penitente sobre a renúncia a seu canonicato.
Dócil, humilde e obediente, La Salle vê viu, pois, obrigado a suspender seu projeto antes de tomar uma resolução de tanta importância quanto a seus fins e quanto às circunstâncias.
Contudo, o virtuoso cônego, que se sentia urgido pela graça, mas que estava impedido pela
obediência a segui-la, para não ter nada a censurar em si mesmo, quis tomar todos os meios
imagináveis de conhecer a vontade de Deus. de um lado, tinha medo de resistir ao Espírito
Santo e sufocar-lhe a voz, ao escutar a da razão humana. De outro lado, sempre atento consigo
mesmo, temia enganar-se ao tomar por inspiração de Deus um produto de seu próprio espírito,
ou um conselho artificioso do maligno que sabe simular tão bem as ações divinas.
Para sai desta nova perplexidade, não encontrou melhor meio do que consultar as pessoas mais sábias e esclarecidas do reino. Com este fim, viajou a Paris; mas, longe de ali se
solverem as dificuldades, elas aumentaram em razão da diversidade de opiiões das pessoas
consultadas: uns o autorizavam, outros se opuseram a sua resolução de renuncias ao canonicato.
O relatório fiel que fez a seu diretor espiritual aumentou sua resolução, pois vendo-se
apoiado pela opinião de muitas pessoas esclarecidas que La Selle consultara, o diretor se firmou em suas convicções e não permitiu a seu penitente pensar na execução de seu piedoso
desígnio. Contudo este conselho estava acima da capacidade do virtuoso cônego porque este
pensamento o seguia a toda a parte. O Espírito Santo, que o inspirava, lho recordava constantemente e o urgia a realizá-lo. Sob essa pressão interna, retornava sem cessar ao problema e
solicitava com piedosa insistência a seu diretor que consentisse em seus desejos.
Durante os nove ou dez meses que durou esta espécie de controvérsia, cada dia parecia
dar ao piedoso cônego um motivo novo para se despojar de sua prebenda, ou a mesma razão o
impressionava mais cada dia. Ao comunicar seus motivos a seu confessor, procurava imprimi-
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
los na mente dele, com toda a força que exerciam em sua própria. Finalmente, para obter seu
juízo favorável, uniu a seu pedido, a opinião de outro eclesiástico que com ele vivia, o qual
apresentou com tanta clareza ao diretor do piedoso cônego, a impossibilidade de conciliar os
dois empregos que o mantinham dividido, de modo que conseguiu, após longo tempo e minucioso exame, o confessor permitir a execução dos desejos de La Salle.
Eu estava me esquecendo de dizer que, entre todos os que La Salle consultou, esteve o
Pe. Barré que o apoiou com mais força em sua decisão de renunciar à prebenda canônica e na
de se despojar de seus bens patrimoniais, para se abandonar somente à Providência divina,
assim como o estava pedindo aos que recebiam tão perfeito exemplo. Este santo religioso era
um desses homens que não se instalam na mediocridade e que sempre incitam aos que o consultam a apontar ao mais perfeito, ao menos quando encontra almas nobres e magnânimas
como a deste piedoso cônego. Não podemos admirar bastante a docilidade admirável desta
alma insigne, sempre disposta aos maiores sacrifícios. Sem razões, sem réplicas, sem opor
dificuldades, escutou o oráculo que o Espírito Santo lhe pronunciava pela boca do santo religioso e se submeteu respeitosamente.
Chamado como os Apóstolos a deixar tudo para seguir a Jesus Cristo, seu coração deu
seu consentimento assim que escutou a proposta. Desde aquele momento, se apressou a executá-la na medida em que a obediência a seu diretor lho permitia. Que generosidade, que fidelidade à graça! que dedicação à perfeição evangélica! A nosso cônego não lhe importa nada:
nada o detém: bens, comodidades, vida folgada; despoja-se de tudo com a mesma prontidão
com que alguém se desfaz de um móvel inútil, ou com que alguém se despoja de uma carga
pesada. Isto me faz lembrar o publicano Mateus que à primeira palavra de Jesus Cristo o segue, sem se lembrar de que é rico, satisfeito e feliz, para fazer a Deus o sacrifício de tudo o
que tem e o que é, para trocar generosamente seus bens pela pobreza de Jesus Cristo.
Podia ele, por acaso, atribuir um passo tão repugnante para a natureza, à ambição e ao
desejo de se tornar famoso no mudo? Esta é a censura que lhe lançam os injustos e indignados. Se tivessem querido consultar seu próprio coração e estudar suas inclinações, ele lhes
teria podido responder que tais decisões só podem vir do alto, e que chamar de ambição tal
decisão é atribuir a Beelzebu, Príncipe dos demônios, os milagres da graça e os prodífios que
o Espírito Santo opera nas almas.
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Capítulo XIII
Medidas La Salle que toma para renunciar ao canonicato
depois de receber a a provação de seu diretor.
Oposição que encontra e que vence
Nosso piedoso cônego, convencido de que o segredo é a chave do bom êxito no que se
empreende, pôs em prática todas as precauções que a sabedoria sugere para manter secreta sua
decisão. Mas foram em vão,porque o rumor se espalhou na cidade e levou a notícia de casa
em casa. Um passo dessa natureza não podia se dar sem notoriedade. Como era necessário
revelar o fato a certas pessoas, foi impossível contar com a discrição de todas. Sempre acontece que uma língua indiscreta traia o segredo que sua alma não pode guardar para si.
1. As pessoas do mundo discutem sua decisão.
Uma vez conhecida a decisão de La Salle ficou conhecida, é fácil imagina como ela
foi recebida pelo público; que críticas provocou entre seus companheiros cônegos e entre seus
amigos, e a que descontentamento deu lugar na família de João Batista de La Salle. Um sinal
de contradição a exemplo de seu divino Mestre, nessa ocasião, teve de experimentar desprezos, censuras e chacotas de toda classe de gente. Aos olhos da gente do mundo,, ele tinha perdido o juízo. Tinha desgastado o cérebro com seu modo de viver retirado demais, mortificado
e sonhador. Pensaram que sua mente estava debilitada e queria elevar-se alto demais e empreender seu vôo por cima da região comum dos perfeitos para se colocar entre os Fundadores
de Ordens.
Na opinião dos sábios e políticos que pretendem ver mais ale das coisas e que estudam os caracteres dos homens para se pronunciar, como mestres sobres suas ações, ao renunciar a seu estado, nosso cônego seguia um temperamento que levava tudo ao extremo. segundo os brincalhões que sabem cobrir tudo com o ridículo e que gostam de rir à custa dos devotos, La Salle, que era sanguíneo e impetuoso, estava cansado de permanecer tranquilo e em
estado de felicidade, e de não exercer seu zelo mais do que cantando os louvores de Deus em
lugar em que muitos repousam , inclusive, dormem algumas vezes à sombra do Santuário.
Os indiferentes diziam que era uma decisão irrefletida; que se deixava deslumbrar pelo
resplendor de um plano de vida extraordinário. Ele se equivocou com o desejo de melhor perfeição. Não ouve conselho a não ser de si mesmo. Como é que pode haver diretores tão complacentes com um juízo tão limitado para aprovar semelhante extravagância? Assim falava o
mundo, e o piedoso cônego o deixava falar.
Seus colegas cônegos e seus amigos tinham outra linguagem, mas perseguiam o mesmo fim. Fazendo-lhe amigáveis censuras porque queria sair de sua companhia, renunciar a sua
amizade e dar-lhes um adeus; eles lhe faziam longas dissertações sobre sua vocação que pensava abandonar e sobre o que pensava abraçar. Cada um fez alarde de sua retórica para lhe
dizer todo o mal de um, e do outro, todo o bem que puderam imaginar. Que pe qe não diziam
para pintar diante de seus olhos com as cores mais negras os pormenores dos problemas, os
sofrimentos e misérias que recolheria no estado vil, pobre e abjeto ao qual manifestava tanta
atração! Sua sorte era para deplorar. Tinham compaixão e não podiam suportar, diziam-lhe
afetuosamente que tinha ido confinar-se com os homens mais rústicos, e se condenava a uma
existência miserável igual à deles e pelo resto de sua vida. O que foi que te deu? - acrescentavam outros amigos parecidos aos de Jó – por acaso desonraste teu caráter com algum crime?
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
Será que em expiação para que queres excluir-te da companhia da gente decente? Se quiseres
fazer penitência, é necessário fazê-la num estado de sujeira e miséria? Pode você preferir isto
a seu estado presente sem desonrá-lo nem fazer recair sobre seus colegas e sobre um dos mais
ilustres Cabidos do mundo, a indignidade de sua vergonhosa preferência? Todos, em tom profético, quiseram predizer-lhe que não tardaria a arrepender-se, e que veria sua falta assim que
a cometesse, mas talvez, quando já seja tarde para a remediar.
Como cada qual racionasse à sua maneira e quisesse manifestar sua opinião, as pessoas de bem e mesmo as pessoas devotas entraram no debate e trouxeram suas queixas ao veredicto que o público pronunciava contra o virtuoso cônego. Que é que acontece – diziam estes
– por acaso os gritos do público não chegam aos ouvidos deles? Ele ignora tudo o que dele se
diz na cidade? Se ele não o sabe, por que não o obriga a gente a se calar desistindo de seu
estranho projeto? Sua piedade não o deve obrigar a apaziguar sua família indignada, e reconciliar-se com amigos e familiares descontentes? Por que faz falar tanto de si? Por que dar aos
libertinos tantos assuntos de chacota às custas dos devotos e desprestigiar a devoção? Será
que refletiu bastante – diziam aqueles – sobre a importância do passo que vai dar? Se alguns
dias depois de o ter feito, não estiver contente e arrependido, se colocar junto do público para
o condenar de vez, que vergonha para ele, que mancha em sua piedade! E se permanecer firme em sua resolução, o que poderá oferecer ao mundo quando de cônego passar a ser mestre
de escola, colocando-se à testa de um bando de mendigos e fazendo-se de vagabundo como
eles! Na realidade não está ele tentando a Deus? Será que se está dando conta? Por que não se
pensa em que desista do que pretende? É possível – diziam outros – que somente ele não enxerga o que todo o mundo está vendo e que, cegado sobre o futuro, não preveja as misérias
que se prepara, a triste situação em que se vai precipitar? A história de sua vida ensinar[a, à
custa dele, à posteridade a ser sábio com sobriedade e a medir os projetos com suas forças.
Que será que nosso compatriota pretende? , diziam outros. uma profissão quimérica?
Eu não pensava que era insensato. Deixa-se levar pelas piedosas fantasias? Como se vai surpreender e confundir quando vir seus projetos se desvanecerem! Pode-se esperar outro resultado? Suponhamos que tenha um início feliz, será que terá suficiente influência e autoridade
para aparar todos os golpes e levá-lo a completo desenvolvimento?
2. La Salle deixa que o mundo fale, e guarda silêncio
Eu não terminaria, se quisesse dar conta de tudo o que se dizia. Toda pessoa sabe muito bem o que o mundo pode dizer em tais ocasiões. Em uma só palavra, o piedoso cônego
tinha a todos contra si. Se tivesse querido defender-se, não teria podido apresentar bastantes
respostas ao sem número de acusações que se levantavam contra seu projeto. Sua defesa era o
silêncio, porque de ordinário, é a única arma que os santos brandem em tais circunstâncias e
que é autorizada por exemplo de Jesus Cristo. Jesus ficou calado quando o acusaram e quando todo o mundo dava seu voto para o condenar. Nessas conjunturas delicadas, o silêncio é a
mais eloquente eloquente apologia. Cedo ou tarde ele faz o público voltar atrás sobre seu voto
e retratar-se de seu primeiro juízo precipitado demais. Este silêncio heróico é o testemunho da
inocência e o sinal mais autêntico da presença do Espírito Santo numa alma. Quanto mais
difícil e estranha é a prática deste silêncio, tanto maior é o mérito. Este silêncio tão glorioso
foi, portanto, a única defesa de nosso piedoso acusado. Não se sentiu mortificado com tudo o
que se dizia dele; ao menos, não o demonstrava. Sem dúvida, que foi sensível ao descontentamento e à aflição que sua decisão causava a sua família, porque ainda que a virtude contradiz a natureza, não a sufoca todos os seus sentimentos. Para ser santo, não se deixa de ser homem; pode-se inclusive dizer que os santos são mais homens do que os outros, no sentido
que, tendo um natural melhor, menos amor próprio e mais caridade para com o próximo, têm
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Vida de João Batista de la Sal
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com freqüência um coração mais terno e sensível, ternura e sensibilidade que servem para dar
a seus sacrifícios um valor novo e maior mérito.
Todos os parentes de La Salle desconcertados e alarmados por sua resolução, recolhiam os gritos do público e lhes acrescentavam os seus para o fazer ceder e obrigá-lo a não lhes
esse novo motivo de descontentamento. Tudo foi em vão, pois sua decisão estava tomada.
Não o tinham inspirado nem a carne nem o sangue; seu Autor, o animava a executá-la. Se me
atrevo a aplicar-lhe este elogio do Protomártir. O virtuoso cônego, cheio de graça e de força,
resistia a todos os ataques contra a ele. O Espírito Santo estava nele e sem o tornar insensível
exteriormente aos golpes, tornava-0 vitorioso sobre eles. Não se deve crer que, por parecer
imutável exteriormente, este generoso atleta, não fosse às vezes fortemente agitado em seu
interior quando os demônios se uniam aos homens para fazer desesperados esforços com o
fim de vencê-lo. Ele mesmo confessou,mais do que uma vez, a seus discípulos que, quando o
inferno mais desencadeado do que o mundo, lhe fazia tão furiosos ataques, não os teria podido
sustentar, se o braço do Onipotente não o tivesse defendido.
O demônio infinitamente mais hábil do que os homens para traçar e pintar com artifício impostor as imagens mais vivas e sedutoras, se esforçava em terminar na imaginação do
cônego os quadros aterradores, que seus amigos apenas tinham esboçado, das misérias em que
se afundaria. As cores mais vivas, usadas por uma mão tão sábia e maligna, lhe apresentavam
pinturas tão medonhas da situação que abraçaria, que parecia que ao entrar nela, atrairia todos
os sofrimentos dos infelizes, e arrastar até o túmulo todas as conseqüências da indigência mais
terrível.
Parece que o cônego, já pronto a se despojar de tudo, cria, ver-se mendigo e miserável,
chefe de um bando de gente como ele, que excesso de complacência leva a imitar. Vendo-se
já o mais velho de um grupo de Irmãos que não têm outro recurso em todas as necessidades
da vida do que a Providência e a caridade do público, crê-se exposto com eles a formar parte
de uma espécie de hospital de caridade ou a procurar o pão numa vergonhosa mendicidade.a
fome, a sede, o calor, o frio, a desnutrição, as repulsas, os insultos, os achaques, as enfermidades, e todo o imenso cortejo de misérias e sofrimentos que assediam a pobreza, são sua herança, depois de ter renunciado à herança de seus pais e ao salário eclesiásticos.
Além do mais, se somente ele permanecesse pobre e miserável, uma só pessoa o sofreria; mas o terá de sofrer cada vez que for alimentar os Irmãos, pois como seus filhos espirituais lhe causarão a mesma pena de coração que sente uma mãe amorosa ao ver-se sem pão e
sem comida, rodeada por seus filhos famintos.
Numa palavra, o demônio lhe abre o seio da pobreza e lhe mostra a fundo um abismo
de misérias, em que sua resolução indiscreta o precipitará, sem que possa jamais sair dali e
sem que alguém tenha dó dele. Depois de tudo, acrescenta da mentira, você será o único a se
prejudicar, porque a vocação a que vai se adaptar, é uma vocação dos que você quer imitar.pobres de nascimento, eles o serão de vocação. Permanecendo pobres nessa profissão, continuarão a ser aquilo para o que nasceram. Endurecidos desde o berço na indigência, criados
na pobreza, familiarizados com as necessidades da vida, eles não sentem a pena a não ser
quando a necessidade for extrema.
Mas você, criado com cidadãos de classe, alimentado com tanta delicadeza, que viveu
no meio da abundância, a quem nunca faltou nada, que encontrou na entrada de uma rica prebenda e num rico patrimônio todas as doçuras da vida, a que agonia se encontrará reduzido
quando, despojado de tudo, se vir na indigência faltar-lhe tudo, sem ousar sequer recorrer a
seus antigos amigos, nem a seus familiares, que todos descontentes, se alegrarão malignamente ao vê-lo beber a longos tragos o cálice da miséria e da desgraça, que eles não puderam impedir-lhe de procurar nesta nova vocação que tem tantos atrativos para você.
Que é que fará nosso cônego agora agitado, perturbado, amedrontado? Retrocederá?
Não se atreverá a avançar na direção de uma vocação que só lhe promete misérias? Será que o
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Vida de João Batista de la Sal
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demônio vai conseguir que a imaginação passe para a alma o pavor de uma pobreza iminente
e desesperadora? Não queira Deus que levante sobre os despojos de sua confiança em Deus,
um troféu à razão humana e à prudência da carne! O generoso cônego vai sair vitorioso deste
combate, decidindo-se a fazer ao amor próprio outra ferida mais sangrenta do que as anteriores, e selando sua primeira resolução com uma segunda muito mais heróica.
A vocação que tenta abraçar o afunda no meio da miséria, mas não lhe tira os meios
ordinários para a aliviar. A caridade pública é o remédio que Deus lhe prepara, e a mendicidade é a voz que a solicita. Decide-se, portanto, a aguentar a vergonha da mendicidade, se for
o caso!
Muito bem – responde o demônio , falando para si – no pior dos casos, terá de pedir
esmola. Se tiver de fazê-lo, o faremos. Que resolução para o jovem cônego, para um homem
de família, para um ministro do altar tão bem aquinhoado de bens da Igreja e do patrimônio!
Uma resolução tão heróica, tão pouco favorável ao amor próprio e ao orgulho natural, foi o
triunfo da caridade. Depois de uma tentação vencida com tanta coragem e de uma vitória tão
completa, nosso cônego não pode medir mais do que aumento de amor e de graças.
3. Viaja a Paris com o fim de solicitar ao senhor Arcebispo de Reims que aprove
sua decisão.
Finalmente, decidido a se despojar de tudo para caminhar sobre as pegadas de Jesus
desnudo e pobre, foi a Paris em julho de 1683 para se encontrar com o arcebispo e solicitarlhe que lhe concedesse a autorização da renúncia que desejava fazer ao canonicato, mas não
pode falar com ele, e o prelado partiu para Reims alguns dias mais tarde.
Durante sua breve estada em Paris, nosso virtuoso cônego viu o padre de la
Barmondière, na época pároco de são Sulpício, sem dúvida para conversar com esse santo
varão sobre sua resolução, e receber de seus lábios novas ordens para executá-las. Os santos
se procuram, e sua maior consolação é ver seus projetos, que a gente do mundo obstaculizam
e condenam, apoiados e autorizados pelos amigos de Deus. la Salle que consignou o fato por
escrito, não nos diz nada sobre o que se falou entre eles concernente ao novo Instituto, porque
sua humildade não lhe permitiu revelar nada que pudesse redundar em seu louvor. Contudo,
não arriscaremos nada, se presumimos que o santo pároco deu sua total aprovação a uma resolução tão condenada pelo mundo e que encheu de louvores, uma obra que prometia a Deus
tanta honra e aos pobres tantos benefícios, mas os que o conheceram, sabem que não era pródigo em louvores.
Podemos julgar isso pelas conclusões dessa conversa. O padre de la Barmondière, encantado com os grandes frutos que as escolas nascentes produziriam em Reims, se apressou a
fazer entrar em sua vasta paróquia tão grande bem, obtendo de La Salle a promessa de que ele
mesmo viria com dois Irmãos abrir uma escola ali. Contudo este acerto com a satisfação de
ambas as partes, La Salle deixou em garantia sua palavra, com a esperança de vir o mais breve
possível a cumpri-la. Mas o cumprimento deste plano não foi tão rápido do que se esperaca,
para decepção do padre de la Barmondière. Somente seis anos mais tarde, pode La Salle cumprir sua promessa. Assim Deus preparava às novas escolas, sob os auspícios do santo pároco,
uma entrada na capital do Reino, que é como a chave para poder entrar em todas as outras
cidades da França.
O virtuoso cônego, obrigado a voltar para encontrar em Reims a quem tinha procurado em Paria, não demorou em se apresentar no arcebispado; mas as ´portas estavam-lhe fechadas. O prelado, bem informado acerca da decisão da pessoa de quem conhecia já o zelo e o
desinteresse, não procuravam senão diferir a autorização para dar-lhe tempo de refletir mais e
o obrigar a esquecer sua resolução. Esperava que uma demora poderia insensivelmente diminuir seu fervor e trazer mudanças em suas disposições, e que suas próprias admoestações uni-
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das às de seus amigos e parentes, o fariam renunciar a uma decisão que suscitou obstáculos
em toda a parte.
Dom Tellier tinha uma profunda estima pelo cônego do qual já conhecia o mérito e a
virtude por provas efetivas. Pensava e com razão que a perda que a catedral sofreria fosse
seguida pela da diocese. Assim que, para conservar para ambas uma pessoa tão valiosa, usou
toda sorte de meios.
4. O arcebispo de Reims faz todo o possível para fazer La Salle mudar de resolução; mas, não podendo consegui-lo, aceita sua renúncia.
Primeiro, o prelado teve todas as portas fechadas para ele e procurou fatigá-lo com reiteradas recusas, por medo de ouvir de sua boca a resolução que ele queria mudar. Em seguida,
obrigado a atendê-lo, lhe deu a entender que ele estava do lado do público sobre a resolução
que lhe acabava de propor, com o fim de lhe inspirar desgosto e o fazer mudar de idéia. Não
podendo consegui-lo, cedeu aos desígnios do virtuoso cônego, com pesar e desgosto, não obstante sem o demonstrar, quer porque o considerava inútil ou porque não queria contrariá-lo.
Mas, quando La Salle se tiha retirado, o prelado abriu seu coração em presença de várias pessoas, para manifestar-lhes quanto sentia a perda de tal ministro evangélico, que não tinha igual em toda a diocese de Reims.
Mostrou a mesma atitude alguns anos mais tarde, quando o santo varão quis deixar
Reims para se estabelecer em Paris, porque La Salle encontrou toda sorte de obstáculos da
parte do arcebispo. O prelado então colocou tudo para impedir a saída. A generosidade de
Dom Letellier chegou mesmo a prometer a La Salle legar os fundos para sua comunidade, se
aceitasse manter seus estabelecimentos dentro dos limites de sua diocese. A promessa era
atraente, mas o homem de Deus não pode aceitá-la porque teria posto cadeias a seu zelo e
restringido a obra de Deus, que estava inspirada a estender por toda a França. Então La Salle,
depois dos testemunhos mais respeitosos de agradecimento, se recusou generosamente a uma
proposição que parecia tão vantajosa. Um homem movido unicamente pelos interesses de
Deus, parecia insensível aos interesses humanos. Isto é o que pensamos dever informar neste
momento, adiantando o tempo da história, para justificar a atitude de Dom Lê Tellier com La
Salle. Se tivesse podido ser tentado a acusá-lo de ter sido um pouco duro no começo, se tivesse deixado na ignorância o princípio que o movia a agir.
O arcebispo se recusava a ver p virtuoso cônego somente pela estima para com ele e
por um piedoso temor de o perder. Queria obrigá-lo a abandonar sua decisão não permitindo
que a expusesse. Teria podido conseguir isso, se a resolução do cônego não tivesse sido inspirada por Deus, porque, com o tempo e depois de uma série de obstáculos, certos projetos do
espírito do homem caem de suas mãos. Mas os desígnios de Deus se afirmam com o tempo e
as dilações não afetam sej crescimento. Contudo, com sja conduta, cujo motivo La Salle ignorava, o prelado o comprometeu a fazer novas consultas, a submeter de novo a exame uma
resolução tão atacada, e inclusive a levá-la ao tribunal de pessoas que sua excelência não podia suspeitar de parcialidade.
O assunto foi levado a novos juízes cujo presidente, por assim dizer, era o padre Philibert, homem de confiança de dom Lê Tellier, e que gozava de grande influência sobre o arcebispado; cônego e professor de Teologia no Seminário e depois cônego na catedral. Que maravilha! Quando La Salle foi ouvido e se consideraram seus argumentos, todos aprovaram seu
plano, e além disso, lhe aconselharam que fosse morar em Paris, quer para se colocar a salvo
de todas as censuras que teria de suportar em sua região, de sua família e de sua terra natal,
quer para poder multiplicar o número de seu pessoal na cidade que é o centro do /Reino e enviar mestres a todo o país.
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Como é certo que as obras de Deus se fortalecem com a oposição, e que os desígnios
do Altíssimo não podem ser destruídos pelos homens, como dizia Gamaliel aos judeus! quando Deus age, tudo cede a sua força, tudo concorre para sua ação. Conduz os planos e a vontade dos homens, faz falar a quem lhe apraz sua linguagem, e toda língua, quando Ele quer, dá
testemunho de Suas inspirações. Um exemplo é o falso profeta Balaão que conquistado para
pronunciar maldições sobre o Povo de Deus, encontra em sua boca palavras que não saem de
seu espírito, e se vê dando bênçãos que seu coração desmente e repele.
Esta nova consulta teve muito peso no arcebispado e na cidade, e teve muita autoridade no humilde cônego, porque acabava com todas as suspeitas que as contradições dos homens podiam fazer nascer em seu espírito sobre a fonte de sua resolução, e ela não lhe permitia mais dúvidas de que o Espírito Santo era seu autor, pois a fez confirmar por aqueles mesmo que deveriam naturalmente atacá-la. Reanimado a prosseguir na obtenção da aprovação de
sua demissão pelo arcebispo, se apresentou de novo à porta dele, na véspera do dia em que
aquele devia retornar a Paris.
Como o cônego encontrou a porta ainda fechada, dirigiu-se à Catedral para visitar a
um Senhor maior, onde não encontrou barreiras, nem portas, nem guardas, que lhe impedissem aproximar-se. Ali, aos pés do altar, com liberdade de expandir seu coração, fez uma oração de várias horas. Durante essa longa oração, entregando-se aos transportes de seu fervor,
passou o tempo em se oferecer aos desígnios de Deus, em se abandonar a sua vontade, e em
lhe suplicar que a cumprisse nele, sem ter em conta suas inclinações ou suas repugnâncias.
Permaneceu muito tempo nessa elevação de espírito, imóvel e como morto, para não ser notado pelos olhos críticos. Um de seus amigos, um desses falsos sábios de que está cheio o mundo, ao ter uma compaixão maliciosa do estado lastimoso do homem de Deus, disse a outra
pessoa presente: Reze pelo padre De La Salle porque está perdendo o espírito. O outro, mais
sábio do que ele, replicou: Você está certo! Ele de fato está perdendo o espírito do mundo,
para se encher com o de Deus.
Aparentemente, nesta longa oração, Deus disse outra vez ao ouvido e ao coração de
nosso cônego, o que tinha inspirado a seus ministros lho aconselhar, e ele se comprometeu a
voltar ao arcebispado para solicitar de novo a aprovação do Prelado. Com efeito, voltou e encontrou as portas abertas. O Prelado o escutou com bondade. O humilde cônego, que somente
olhava a pessoa de Jesus Cristo na de seu bispo, e que, indiferente a todas as suas ordens, não
esperava mais que a declaração para as executar, lhe abriu seu coração com candor e simplicidade.
Depois de se ter dado conta exata de tudo o que tinha feito, lhe expôs os dois planos
que tinha: o de colocar nas suas mãos a renúncia ao canonicato e o de ir a Paris, como o lugar
mais apropriado para o bom êxito de sua obra. Dom Le Tellier, já quase conquistado, se limitou a perguntar-lhe, se tinha tomado o conselho num assunto de tanta importância. Ant a resposta do padre De La Salle, de que sim havia consultado, e que sua intenção tinha sido recebido a aprovação do padre Philibert. Este cônego, que se encontrava então no coro, foi convocado. Este antigo superior do semin
ário de Reims, não deixou de sentir-se surpreso com a pergunta que lhe fez seu ordinário, o senhor arcebispo Le Tellier. Perguntado se tiha apoiado a demissão que seu colega de
canonicato queria fazer, ele não respondeu nem sim nem não, e com uma hábil mudança de
assunto disse que João Batista de La Salle tinha um irmão ao qual podia deixar a prebenda.
O Prelado replicou: Pode deixá-la a quem quiser e eu admitirei sua demissão.
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Vida de João Batista de la Sal
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5. Surpresa de Dom Lê Tellier ao ver a renúncia do Padre de La Salle
feita em favor de um sacerdote pobre, em prejuízo de seu próprio irmão.
Assim que esta resposta tão desejada foi pronunciada, o padre De La Salle a tomou, e
temeroso de que a demora trouxesse algumas mudanças, na hora redigiu a Ata de renúncia,
que seu diretor espiritual autorizou com sua assinatura, e suplicou ao senhor arcebispo incluísse o nome do padre Faubert. Este eclesiástico tinha grande reputação em Reims e o talento
de pregador, que exercia com êxito, junto a uma grande regularidade de vida, lhe deram-lhe
muito prestígio. Numa palavra, o piedoso cônego não conhecia a um homem de mérito mais
distinto, e mais digno de sua escolha. Mas, por ser pobre e de classe humilde, por isso não
agradava aos que olham os homens com os olhos da carne.
Se o padre De La Salle tivesse tomado conselho de seu próprio coração e dos sentimentos da natureza, seu canonicato não teria saído de sja família, porque teria um irmão eclesiástico em condições de ser cônego. Mas este homem, digno dos tempos apostólicos, que a
exemplo de são Paulo, não escutava nunca a carne nem o sangue, tomou resolução de não
dialogar com estes conselheiros pérfidos. Temendo enganar-se num assunto tão delicado, no
qual, com o fim de não ser equivocado por seu amor próprio, e para se por num estado de fazer a escolha do mais digno, pareceu-lhe o mais seguro preferir um estranho de reconhecido
mérito a um parente de menos mérito, ou de mérito duvidoso.
Mas, quantas dificuldades sofreria por tal decisão na prática! Para ´referir a um irmão,
ou a outro rico e nobre cidadão, um estranho, um homem pobre, um homem de baixa condição, um homem sem ascendente, era preciso colocar-se acima dos preconceitos comuns, acima do costume funesto autorizado por tantos exemplos, acima de todo respeito humano, acima dos interesses de família, acima dos rumores populares. Era preciso, além disso, ser presa
das línguas difamantes, da censura pública, das censuras de seus colegas cônegos, dos insultos
de um bando de descontentes. Foi precisamente o que fez o padre De La Salle. Nada pode
quebrantar um coração já totalmente possuído pela graça.
Esta decisão, como consequência lógica, em todas essas circunstâncias, era heróica e
digna dele; porque era de esperar que não seria bem recebida nem no arcebispado, nem em
seu Cabido, nem na cidade; e que lançaria sobre sua família a amargura e a aflição.se tivesse
querido dar gosto aos homens, a única opção que tinha era escolher como superior a seu irmão, ou escolher a algum de seus compatriotas mais ricos e mais qualificados. Uma escolha
desta natureza menos teria reparado um pouco sua honra diante do mundo, tornando sua renúncia menos odiosa; mas estas considerações que teria podido comover um coração menos
dócil à graça do que o dele, essas motivações que são onipotentes num homem que age como
homem, não encontraram acesso num sacerdote que não escutava mais do que o Espírito de
Deus.
A surpresa que o Prelado mostrou quando escutou o piedoso cônego declinar o nome
de seu sucessor, um homem que não tinha mais distinção do que seu mérito pessoal, preferindo-o a seu próprio irmão e a tantos outros familiares, ou filhos de família que, em Reims como em outras partes, fazes votos desde o berço por uma prebenda da Catedral, não o desconcertaram nem mudaram em nada sua primeira decisão.
6. Dom Le Tellier procura em vão que La Salle revoque a renúncia feita em favor
do padre Faubert, e a faça em favor de seu irmão.
Quando o senhor arcebispo viu que a surpresa mostrada não parecia ter feito impressão o cônego de La Salle, falou diretamente em favor de seu irmão, e sem querer, contudo
alterar a decisão, procurou fazê-la recair sobre ele em lugar de um estranho. O pedido era forte, sobretudo para um homem que não olhava os superiores a não ser com os olhos da fé. Mas
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Vida de João Batista de la Sal
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que sabia distinguir quando estes falavam como homens, e quando falavam como órgãos do
Espírito Santo. Sem entrar em longos discursos, cortou o pedido com esta curta resposta: não
me o aconselharam. Esta resposta deteve a dom Lê Tellier, que deixou o cônego em sua piedosa liberdade. Seu irmão não perdeu nada, porque, ao La Salle lhe negar seu canonicato, lhe
mereceu que o Prelado lhe concedesse, por conta própria, essa dignidade e sem que fizesse
pedido, como que para o ressarcir do pretendido prejuízo que tinha recebido pela renúncia
feita em favor do padre Faubert. Dessa maneira, o bispo mesmo o explicou quando concedeu
a prebenda canônica ao irmão de La Salle, alguns anos mais tarde, quando disse gracejando,
que fazia este presente para reparar a loucura do padre De La Salle que tinha entregado seu
benefício a outro em lugar de seu irmão.
De certo a decisão de João B. de La Salle não foi feliz no seu sucessor, porque este
não era mais do que um pobre e simples sacerdote muito zeloso e trabalhador; ao ser fazer
cônego rico e querendo gozar como os outros as comodidades da vida e a doçura do repouso,
perdeu seu zelo e seu amor ao trabalho. Mas La Salle não lia o futuro do qual Deus se reserva
o conhecimento. Não foi sobre o que o padre Faubert se tornaria depois, e sim sobre o que era
naquele momento, que La Salle fundou sua escolha. Esse jovem eclesiástico da diocese de
Reims,quando La Salle o nomeou seu sucessor, era o homem da diocese que parecia fazer o
maior bem, que prometia para o futuro fazer ainda mais bem e mais abundante. Se no futuro
ele se desmentiu, se deixou de caminhar nesse modo de vida tão regular e edificante em que
tinha começado, não lhe aconteceu nada mais do que o que acontece todos os dias, o que aconteceu em todos os tempos a muitos outros, que terminam mal depois de ter começado
bem.
Durante algum tempo, porém, esse sacerdote deu a seu benfeitor consolo e alegria por
tê-lo escolhido, porque, caminhando no princípio sobre seus passos, se uniu a ele, e começou
uma espécie de seminário menor de jovens eclesiásticos, no mesmo tempo e na mesma casa
em que o padre de La Salle começou o de seus Irmãos.
7. O padre Faubert abandona seu primeiro fervor, o que causa
grande sofrimento ao Padre de La Salle.
É muito provável que enquanto o homem de Deus permaneceu em Reims, Faubert aproveitou de sua presença, e que não começou a relaxar somente quando perdeu a ajuda de
suas instruções e de seus exemplos. A vida mole e tranqüila que fez suceder uma vida dura e
penosa, o tinha desvinculado de seus primeiros trabalhos e o tinham feito corpulento, prova de
que tinha uma rica prebenda. Tendo-o arruinado no seio do repouso, ficou tão robusto e pesado que, quando faleceu, oito ou dez homens, com dificuldade, puderam levá-lo ao enterro.
Faleceu vários anos antes de La Salle, que teve o sofrimento de ver seu sucessor no Cabido de
Reims, terminar no relaxamento de uma carreira iniciada no fervor. Se o santo varão o tivesse
previsto, (é o que se ouviu dizer), não o teria ido buscar a Faubert na última classe dos sacerdotes, em que fazia maravilhas, vivendo como um verdadeiro discípulo de |Jesus Cristo e um
fervoroso ministro de segunda ordem, para o fazer tomar seu lugar entre os cônegos.
O que parece surpreendente é que a mudança de estado tão diferente nos dois, parece
ter enfermado a um e abreviado seus dias por uma vida fácil e mole, e que as estranhas austeridades e trabalhos do outro, parecem ter fortificado sua débil natureza. La Salle, nascido na
comodidade e crescido numa extrema delicadeza, talvez teria podido viver menos tempo, se
tivesse sido menos penitente e menos austero. E Faubert, que tinha nascido na pobreza, posteriormente teria tido mais longa vida, se seu corpo acostumado ao trabalho e a uma vida dura,
não se tivesse engordado no repouso e na indolência.
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Este relato, que contém muitos ensinamentos encontrou lugar aqui, porque distribuído
em diferentes lugares, como a ordem cronológica exigia, teria perdido interesse e utilidade.
Retomemos então a continuação da renúncia que La Salle fez de seu canonicato.
Lê Tellier, como testemunha com os próprios olhos das virtudes heróicas que o despojamento de La Salle, começou a admirá-lo, depois de o ter tratado com certo desprezo. O prelado não estava disposto a apoiar planos de perfeição extraordinários, e menos ainda a autorizar projetos baseados na pobreza real e em total abandono à divina Providência. Se ao lhe dar
conta de suas fundações, o virtuoso cônego lhe tivesse dito que destinava seus bens patrimoniais para sustentá-las e o valor de seu canonicato para o funcionamento delas, esta linguagem
– que todo o mundo entende, não teria sido incompreensível para o arcebispo.
Estas proposta mito santas em si mesmas, mas que não conseguiam a sublimidade da
perfeição evangélica, o teriam assustado menos e teriam podido receber seu apoio. Mas, de
rico, querer tornar-se pobre, e por própria escolha dar um passo heróico , das comodidades de
vida à privação do necessário, era um projeto que parecia a este Senhor tão rico e opulento,
uma piedosa ilusão e uma de suas fantasias românticas de devoção, mais própria para provocar o riso do que para levá-las à prática. De fato, riu-s dele quando o cônego lhe fez a apresentação. Talvez, inclusive, queria desconcertar e curar com seus chistes, a imaginação que julgava estar enferma por excesso de devoção.
Mas, quando viu na execução dessa resolução evangélica começar a esquecer os sentimentos mais vivos da natureza, por preferir um sacerdote pobre a seu próprio irmão, se deu
conta, no fim, que existe ainda na Igreja esta classe de homens novos que o Espírito Santo
formou no dia de pentecostes, para formar a Igreja nascente, que buscam tesouros na pobreza,
e que La Salle era um deles. Não pode evitar de mostrar sua admiração, e abandonar seu solicitante ao Espírito de Deus, com plena liberdade de seguir suas moções. Era tudo o que desejava o piedoso cônego. Por fim sentiu-se feliz quando se viu em liberdade de se tornar pobre e
abjeto e morto para o mundo, deixando sua condição de cônego.
Saiu do arcebispado mais feliz do que quando entrou. Na sua volta à casa, reuniu todos
os seus discípulos para lhes comunicar essa boa notícia. Como tinha desejado, chegou ao fim,
ao ponto mais alto da fortuna do calvário, sua felicidade foi tão grande que, em ação de graças pelo favor que o Céu lhe tinha concedido, cantou com sua pequena comunidade o Te
Deum.
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Capítulo XIV
La Salle mantém firme sua renúncia ao canonicato, em favor de Faubert,
a pesar das novas súplicas que seus familiares, seus colegas de canonicato e seus amigos
lhe faziam para o dissuadir.
1. Murmurações que a renúncia em favor de Faubert levanta na cidade de Reims.
Tentativa para obrigar La Salle a revogar sua escolha.
A alegria espiritual que o humilde cônego, livre agora de se tornar pobre e de descer
de sua condição, tinha experimentado ao sair do arcebispado, imediatamente foi perturbada, e
não pode desfrutar de sua dolura. Novas tempestades lhe prepararam novas preocupações sobre um projeto acerca do fracasso quando ele o julgava concluído.
A notícia da Ata de renúncia que acabava de assinar e fazer aprovar por seu arcebispo,
levada de casa em casa e de boca em boca, com a rapidez que dão a esta classe de notícias as
diversas paixões dos que nelas se interessam, suscitou grande tumulto na cidade e grande descontentamento nos corações; não se ouviam por toda parte mais do que murmurações, queixas
e invectivas contra o piedoso culpado.
La Salle teve necessidade nessa ocasião desta força do Espírito Santo, de que estiveram cheios os primeiros mártires da nova Lei, para aguentar o ato heróico que acabava de
fazer. Ainda era tempo para retroceder, recobrar seu canonicato, ou favorecer, com sua prebenda, a outra pessoa diferente de Faubert, mais aceito pelo Cabido, mais perto do arcebispado, melhor visto pelo público e pela família.
Que não se fez para comprometê-lo a fazer isto! Orações, súplicas, adulações, censuras, ameaças, invectivas; tudo se empregou. Cada um de seus amigos, de seus familiares, de
seus colegas, representava seu papel particular para o obrigar. Todos se interessavam pelo
irmão do piedoso cônego, ou na sua falta, por outro da família, ou em caso de recusa de um
ou de outro, por um amigo distinto que pudesse fazer honra ao Cabido, e unir ao título de cônego de uma ilustre metrópole, o de filho da cidade e de bom lar. Se nem todos estavam de
acordo sobre o candidato que sugeriam a La Salle, todos o estavam em excluir a Faubert. Os
membros do Cabido não o julgariam digno de sentar-se entre eles e chegar a ser membro de
sua nobre corporação. A família consideraria como uma espécie de injustiça o despojamento
de uma prebenda canônica, para entregá-la a um estranho. Que este estranho tenha méritos ou
não, não é o que o mundo preza. Aos olhos da gente, nos sentimentos de sua família, ele não
era digno do canonicato porque não tinha nem bens nem nobreza de nascimento.
Sobr este ponto, todos tomaram partido na cidade, contra sua renúncia e para obrigar
seu autor a se retratar, lhe asseguraram que não podia causar maior gosto a seu bispo que o
estimava, e que não havia consentido a seus desejos a não ser com pesar e com ranger de dentes; que seus colegas de canonicato esperavam dele essa demonstração de deferência por um
Cabido que o tinha em alta estima e um apego especial, como a um homem que era sua glória
e expandia o bom odor de Jesus Cristo. Lembrara-lhe que seus melhores amigos lhe pediiam
esta graça em nome de todos os concidadãos; que essa reunião dos votos de toda uma cidade
bastava para lhe manifestar a vontade de Deus; e que , se duvidava disso, era fácil convencêlo ao fazer a todos assinarem um requerimento que lhe apresentaram. Por fim, que não devia
fazer esta afronta a sua família que sempre o tinha amado, e que não tinha merecido que ele
parecia esquecê-la e desprezá-la ao ponto de ter procurado um sucessor fora dela. Que era
bastante numerosa e religiosa para poder procurar pessoas dignas e que seria vergonhoso para
ela e para ele, que um Faubert preferido a seu irmão e a qualquer outro de seus parentes, ocupasse, em alguma das corporações mais ilustres do clero da França, o lugar que ele deixava.
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Que depois de tudo, ele podia acabar com esses inconvenientes permanecendo ali; que esta
decisão era a melhor e universalmente do agrado de todos, e que ele a tomaria, se não quisesse
obstinar-se e demonstrar em sua pessoa que os mais devotos são os mais teimosos.
No meio de todos estes ataques, La Salle árecia inabalável em sua resolução que já lhe
tinha custado grandes sacrifícios, e que o Espírito Santo mesmo tinha fundamentado e cimentado sobre a ruína do amor próprio e às custas das repugnâncias da natureza. Tranquilo no
meio das murmurações, acusações e queixas, recebia friamente as sugestões e seus amigos
como contrárias às do céu. Sorria em seu interior ao ver atribuir ao amor próprio, a uma ambição secreta, a um refinado orgulho, ao espírito de inflexibilidade, uma gestão que a natureza
nele tinha disputado tanto à graça, e cuja execução começava com sacrifícios impressionantes,
lhe reservava para cada dia de sua vida novos, e muito mais cruentos, de que somente Deus
seria testemunha e somente ele a vítima. Uma decisão tomada segundo a vontade de Deus e à
custa da carne e do sangue, não admitia nem remorsos nem variação. Uma resolução tão obviamente assinalada pela mão de Deus, inspirada por tantos convites interiores e movimentos do
Espírito Santo, tomada depois de tantas deliberações e consultas, e, finalmente, autorizada
pelo mais alto superior, não devia, certamente, ser chamada a juízo; menos ainda, se devia
pensar em a debilitar ou modificar. Quando seus amigos viram que seus convites eram inúteis
e que La Salle não lhes prestava a menor atenção, deixaram-no fazer e terminar seus assaltos.
2. Descontente pela designação de Faubert a cônego da catedral de Reims, o Cabido escreve ao senhor arcebispo para a sustar.
Os últimos intentos vieram do Cabido. Esta ilustre corporação, incomodada ela perda
de Lã Salle, mais do que por ver a Faubert em lugar dele, fez todo o possível para reter aquele
e excluir a este. Para o conseguir, escreveu ao senhor arcebispo e lhe fizeram saber o pouco
que lhes tinha gostado a nomeação do padre Faubert e quanto estavam chocados. Em seguida
deu a entender a sua Excelência o quanto desejava ver o irmão suceder ao irmão para toda a
companhia. O expediente que se sugeria ao prelado para obter seu objetivo era curo e fácil.
Como as decisões não tinham sido ainda enviadas, era fácil para o senhor arcebispo reter as
decisões e não as publicar, e em seguida, empregar de novo sua autoridade com um homem
que que a respeitava infinitamente, com o fim de comprometê0lo quer a reter seu canonicato,
quer a favorecer com ele a alguém do gosto do Cabido, da família e da cidade. Isso foi o que
se lhe pedia ao prelado. Dom Lê Tellier, que pensava como o Cabido, topou a opinião e, unindo seus pedidos aos dos colegas cônegos de La Salle, tentou de novo retê-lo em sua catedral ou o obrigar a colocar seu irmão para subsituto.
O padre Callou, vigário geral e, no momento, superior do seminário de Reims, foi o
homem que pareceu ao arcebispo mais apropriado para negociar este assunto e tirar de um
coração fechado a todos os motivos humanos, a complacência cristã que parecia ter aos desejos de seu biso. A tentação era fascinante, porque nem o interesse nem a paixão pareciam ser
seu princípio. Os amigos e a família não pareciam mais influir nela. Revestida de aparências
de autoridade muito respeitável, ela impunha e parecia dever provocar um escrúpulo de consciência ao servo de Deus, não render-se às recomendações de seu primeiro superior, o arcebispo, trazidas pelo homem mais importante da diocese, e que gozava da mais alta reputação
de virtude e de doutrina.
3. vãos esforços de Calou para levar La Salle a revogar a renúncia.
Que não fez o vigário geral para cumprir sua empresa com satisfação do arcebispo, do
Cabido e de toda a cidade! Não deixou de lado nada para fazer ao servo de Deus, poder que
lhe dava a eloqüência que possuía em grau eminente, como se diz. Depois de lhe recordar
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Vida de João Batista de la Sal
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longamente tudo o que poderia dobrá-lo, e de ter apresentado novos aspetos e dado nova força
aos argumentos, que tantas outras bocas procuravam fazer valer, para os canonizar, em certa
maneira, e consagrá-los acudindo à maior autoridade, lhe disse que vinha da parte do senhor
arcebispo para lhe solicitar os aceitasse. Assegurou-lhe que o desejo de sua Excelência era
que voltasse à catedral, ou na sua falta, que desse o canonicato a seu irmão. Disse-lhe que não
podia, sem fazer a sua família uma especial injúria, revestir com uma dignidade a outro diferente daquele que tinha nascido como seu próximo parente e seu herdeiro. Finalmente, que
sendo seu próprio irmão competente e virtuoso, o desonrava ao lhe preferir um estranho.
O padre Callou se esforçou inutilmente em fazer falar o Espírito Santo por sua boca.
Era o homem que falava bem alto nele. Mas o Espírito Santo se calou, ou melhor, falou em
segredo ao coração de La Salle para o confirmar em sua resolução. Sua resposta, curta e precisa mostrou de novo seu desprendimento da carne e do sangue, e mostrou que tinha os ouvidos fechados às motivações humanas. “Se meu irmão – replicou – não fosse meu irmão, eu
não teria nenhuma dificuldade para o colocar entre minhas opções e preferi-lo acima do que
nomeei, para satisfazer os desejos do senhor arcebispo. Mas, posso e devo prestar- e à voz da
natureza e às paixões dos que a apóiam?”
Uma resposta de tal natureza fechou a boca do superior do seminário de Reims, e secou a fonte de sua eloqüência. Impressionado, edificado, persuadido, ele mesmo mudou sua
linguagem e aprovou o projeto que tinha vindo combater. Depois de ter feito falar em si o
homem, fez falar o Espírito de Deus, aplaudindo a resolução heróica que não pode quebrantar:
Deus não permita – acrescentou – que eu lhe aconselhe a fazer o que tanta gente quer do senhor. Realize o que o Espírito de Deus lhe inspira. Este conselho, contrário ao que eu lhe
trazia, é o dEle e o único que é preciso escutar. Terminou animando-o a executá-lo. Outra
prova de que o Espírito Santo põe sua palavra na boca de quem lhe apraz, e sabe declarar seus
desígnios pela mesma linguagem dos que se prepararam para os contradizer.
4. O padre Faubert toma posse do canonicato de La Salle.
O padre Callou, mais satisfeito de visto o servo de Deus irredutível em suas disposições heróicas do que se tivesse sabido acomodá-las ao gosto do publicou, felicitou-o e prestou
contas ao arcebispo do fracasso de seu empreendimento. La Salle também lhe escreveu e
ressaltou com generosidade em sua carta, a resposta que tinha dado e a aprovação que esta
tinha recebido dos lábios do mesmo superior de seu seminário, que tinha vindo a lhe pedir a
mudança de opinião.
O prelado, tendo perdido toda esperança de o ganhar e vendo que o tempo não solucionava nada, enviou a nomeação de Fabert, o qual tomou posse de seu canonicato a 16 de
agosto de 1683. o único que se alegrou foi La Salle. Saiu com glória do grande combate que
Deus lhe tinha preparado a vencer para o ver ganhar uma ilustre vitória, viu-se descarregado
na idade de 33 anos de um rico e horoso cargo. Ele sentiu mais satisfação em sua renúncia do
que outros em seu exercício deóis de o ter desejado durante muito tempo e solicitado avidamente. Se ainda lhe sobram alguns bens patrimoniais, não demorará em se despojar deles,
para se fazer perfeitamente conforme aquele que, sendo infinitamente rico, se fez pobre por
nós. E para ser semelhante a seus Irmãos, exposto como eles, à necessidade e às exigências da
vida, sem outro recurso do que a divina Providência.
Podemos admirar aqui a força que o Espírito de Deus concede às almas que conquistou e que possui perfeitamente. O que o mundo aborrece, o que a natureza não teme menos,
vem a ser o objeto de seus desejos, e de sua santa avidez. O desnudamento de todas as coisas,
a falta do necessário até, um estado de sofrimentos, de trabalhos e de a jeção, constituem o
objeto de sua ambição. Eles crêem que fizeram fortuna quando são pobres e desprezados.
Têm tudo o que desejam neste mundo, quando despojados de seus bens e de seus prazeres,
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Vida de João Batista de la Sal
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seus males e suas penas são sua herança. Essa herança é a herança da cruz. Eles não querem
outra.
Graças ao céu que nos dá ainda hoje esta classe de homens generosos, que caminham
com alegria sobre as pisadas dos Apóstolos em seguimento do Homem das dores. Sem necessidade de voltar aos séculos mais anigos, encontramos em nossos tempos discípulos do Salvador que têm os sinais de seu espírito e são objetp de seus desejos o que causa horror à carne e
ao mundo. Em nossos dias, La Salle nos oferece, em sua pessoa, um retrato desses homens
novos apaixonados pelos sofrimentos, e que só demonstram atração pela abjeção, a pobreza e
a crucificação da carne. Como é evidente que, quando Deus fala a um coração, usa uma linguagem diferente da dos homens!
O mais admirável em La Salle é que, ao mesmo tempo em que fazia tão grandes coisas
por Deus, era o único em não se dar conta. Despojado de seu benefício, resolvido a se despojar de seu patrimônio, bem depressa mais pobre do que aqueles com quem se associava, sem
outro recurso do que o Pai do Céu, exposto ainda a carecer do necessário, o que de fato lhe vai
suceder muitas vezes. Comprometido a passar o resto de seus dias em estado de humilhação e
de sofrimento, se persuade de que ainda não fez nada por Deus, e que não começou a obra de
sua perfeição. Por isso, vamos vê-lo trabalhando nela com um fervor incrível.
O homem de Deus desceu de sua posição a um estado tão baixo que sua humildade
permitia desejar, se encontrou tão livre como os passarinhos do céu para poder voar aonde a
glória de Deus o exigia. Seu desapego de todas as coisas do mundo, e sua completa dedicação
ao serviço de Deus eram como duas asas que o elevavam da terra e o erguiam para o céu; davam-lhe a agilidade e a prontidão dos espíritos puros para se transportar aonde aprouvesse a
Deus.
5. La Salle pretende ir a Paria: motivos para isso.
O primeiro pensamento que lhe veio depois da demissão de seu canonicato, foi ir a Paria. É o que lhe tinha aconselhado o padre Philbert, o que de certa forma, La Salle tinha prometido ao padre de la Barmondière, e o que o padre Barré desejava com ardor. Estas três virtuosas pessoas cujo ascendente sobre La Salle era grande, tinha cada uma sua própria opinião
para o comprometer a estabelecer-se em Paris.
O padre Philbert cria necessária esta mudança de lugar: 1. Para acalmar as emoções, as
murmurações e o descontentamento que os exemplos de tão grande virtude tinham excitado
em Reims. 2. Para apaziguar uma família irritada pelo proceder de um parente tão pouco atento a contentar e a manter a honra e seus interesses. 3. Para permitir ao Cabido recuperar-se de
seu desgosto com ele, e de sua indisposição com o novo cônego. Finalmente, para tranqüilizar
a quase toda a cidade chocada e, em certa maneira, escandalizada pelos atos de perfeição que
não podia aprovar, e contra os quais cada um estava revelado segundo os diversos interesses
que tinha, ou segundo os diversos movimentos da paixão que o dominava.
O padre de la Barmondière não desejava mais do que o bem de sua paróquia, para a
qual ansiava um tesouro qe a cidade de Reims possuía sem se dar conta.
O padre Barré ttinha vistas mais amplas, e desejava ver em Paris o homem de Deus
para retirar de Reims a tocha que permanecia oculta sob a cinzas, e colocá-la na cidade capital
como sobre uma alta montanha, de onde pudesse expandir sua luz por todas partes do Reino, e
enviar seus discípulos para a levar.
Todos esses motivos eram poderosos e fizeram em La Salle a falta que mereciam. Era
tempo de ele se afastar da vista de seus concidadãos que, chocados uns, descontentes outros,
sustentavam uma chaga que sja ausência curaria insensivelmente, dispondo-os a lhe perdoar
uma falta que para Deus era um grande mérito. Além do mais, como na multidão de descontentes sempre há os que recapacitam seus preconceitos e, sabendo reconhecer seus erros e
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Vida de João Batista de la Sal
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confessar sua pouca fé e sua pouca virtude, aprendem a reconhecê-la naqueles que de tempos
em tempos dão exemplo perfeito dela. Mais tarde, La Salle temia mais seus aplausos e elogios
do que suas acusações e censuras. Era, pois, mais prudente evitar por uma sensata fugga esse
perigo, mais perigoso para a virtude do que as mais violentas perseguições. Como na maioria
dos cristãos débeis, sempre há alguns que têm interesse pela perfeição, e a praticam, e outros
que a conhecem e a estima. La Salle, acusado e condenado pela multidão, não deixava de ter
admiradores e panegiristas, que reconheciam em seus sacrifícios o preço e o louvor que mereciam. Isto foi um escolho perigoso para uma pessoa virtuosa; o humilde cônego temia essas
atitudes. Por isso, desejava ir esconder-se em Paris e colocar-se a coberto de uma tentação tão
delicada.
Além disso, por ser homem de palavra, queria cumprir a promessa que tinha feito ao
santo pároco de são Sulpício, de ir com alguns de seus filhos para abrir escolas de seu novo
estilo em sua paróquia, que era quase uma diocese. Finalmente, desejava tanto satisfazer o
zelo do padre Barré como a sua, indo ao lugar propício para propagar os frutos de sua obra
por todo o Reino. Sentia que como seu canonicato tinha sido uma amarra que o tinha mantinha atado, Reims era uma prisão em que ainda permanecia encarcerado, e que era preciso
ssair da cidade, depois de ter saído do Cabido, para ser verdadeiramente livre. Quantos motivos o chamam a Paris! Quantas razões o obrigam! Será que as vai seguir? Irá ele tão depressa
quanto o deseja seu zelo? Não! Como filho da obediência, não ir[a senão quando ela lho solicitar. Todas essas razões eram de peso; todas as pessoas que o apoiavam, gozavam de grande
autoridade sobre sua mente, mas a obediência exercia mais peso sobre seu coração. Ele vai
quando ela lhe disser: “Vai”, e vem quando lhe disser: “Vem”. Age quando ela ordena: Faze
isto. Eu digo a um:”vai”e ele vai; “vem” e ele vem; “faze isto” e ele o faz. Se seu diretor
espiritual não acrescenta nada a essas razoes. Elas não farão impacto em sua mente.
La Salle olhava para o padre Philbert como a um conselheiro prudente, e seus argumentos lhe pareciam sólidos e decisivos. Aos padres Barré e de la Barmondière, como pessoas santas e dois dos maiores servos de Deus que puderam encontrar-se em Paris. Mas com os
olhos da fé, olhava seu diretor como Jesus Cristo, como o órgão e oráculo de seus desígnios.
Nessa disposição, aderia a suas opiniões e lhe obedecia com a docilidade de um filho. consultava com freqüência a pessoas esclarecidas e eminentes em virtude; mas, seus conselhos não
se faziam decisões, a não ser quando o diretor espiritual as autorizava. Em tudo se atinha sempre aos conselhos dele preferindo-os não só a suas próprias opiniões, senão às das pessoas de
santidade bem conhecida, por que estava persuadido de que, na diversidade de ditames, era
preciso aderir aos de seu anjo visível. Quando este tinha falado, La Salle esquecia tudo o que
os outros tinham dito. Este era o único meio de permanecer em paz, e ter segurança.de seguir
a vontade de Deus.
Se não se tem plena confiança num diretor espiritual, é necessário abandoná-lo. Mas,
quando, depois de uma escolha judiciosa, precedida pela oração, e desprendida dos instintos
da natureza, de preconceitos do mundo e dos sentimentos de seu próprio coração, se encontrou um, em quem uma fé viva e pura somente vê e escuta a Jesus Cristo, de seus lábios é
preciso esperar os oráculos divinos; deve-se tomar seus conselhos como leis. La Salle vai nos
dar um maravilhoso exemplo disso. Sua inclinação o leva a Paris e o retira de Reims; o conselho do padre Philibert o autoriza,; sua promessa ao padre de la Barmondière o dirige; os desejos do padre Barré o atraem. Ele o transmite ao diretor espiritual com a simplicidade e o candor de um noviço e, depois de uma abertura total do coração, lhe pede seu conselho. Fazer o
que, se seu conselho se opõe ao dos grandes servos de Deus e a sua própria opinião? Deve
obedecer ao que ocupa o lugar de Jesus Cristo. É a ele deve sacrificar suas preferências e os
sábios conselhos que lhe dão. É o que La Salle fez.
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
6. Seu diretor espiritual o dissuade.
Apesar de a opinião de seu diretor espiritual ser oposta à da do padre Philibert, de la
Barmondière e do padre Barré, seguiu somente a ele e com razão, porque, pensando os motivos de seu diretor e comparando-as com as que foram aduzidas, é preciso convir em que estas
mereciam preferência:
Seu novo Instituto, disse a La Salle, ainda não está formado; apenas concebido; está em perigo de abortar; se for levado à capital para que nasça ali. A ordem da natureza reclama que cresça
no seio que o concebeu, antes de vir à luz. É preciso deixar a uma planta o tempo de se alimentar,
fortificar, e ter boas raízes antes de a transplantar, e lhe dar um solo melhor. Se for feito antes do
tempo, ela perece. A nova Comunidade é esse germe tenro que acaba de nascer num terreno da
cidade de Reims, antes de a levar a Paris, deixe-lhe o tempo para se formar, se alimentar e fortificar no lugar em que acaba de nascer. Se quiser outra comparação, aqui vai ela: quando se quer
levantar um edifício, é preciso cavar seus fundamentos, e à medida que emerge do solo precisa de
uma mão hábil que o conduza. Sua nova Comunidade é esse edifício espiritual que pede sua presença. O senhor é quem o funda, quem o levanta. Se o for recomeçar em Paris, irá preparar sua
ruína em Reims. Seria necessário um milagre para impedir sua derrocada.
O senhor pode, com razão,, chamar sua Companhia de pequeno rebanho, pois cerca de quinze pessoas a compõem; além disso, estão repartidas aqui, em Laon, Guise e Rethel. Se for a Paris, levará alguns, debilitará ao dividi-los e abandonará aos artifícios do lobo infernal aqueles dos
quais se afastar. Ao dividi-los, é óbvio que uma parte não estará com o senhor, pois não pode multiplicar-se para estar ao mesmo tempo em Reims e em Paris. Assim ao acompanhar a uns, abandonará a outros. tanto bem fará sua presença onde se encontrar, como prejuízo causará seu afastamento onde estiver ausente. Os discípulos, que apenas estão nos umbrais da virtude, têm uma
absoluta necessidade de um mestre que os ensine. Os viajantes que entram nos caminhos da espiritualidade, necessitam de um guia que os conduza. Aqueles que o senhor deixar, abandonados a
si mesmos, e que o tiverem perdido, não tardarão em se desviar do caminho, e a se perderem na
rota em que é tão fácil mudar de estrada.
Desta maneira, o diretor espiritual, depois de ter-lhe feito sentir quão necessária era
sua presença em Reims, depois de lhe ter mostrado o prejuízo que sua retirada a Paris causaria
a uma pequena Comunidade ainda em formação, ao fazer-lhe lembbrar os sofrimentos e inquietações que teve de sofrer para a conduzir ao ponto em que se encontrava, o diretor o obrigou a aceitar a necessidade absoluta que tinha ainda de seus cuidados e dedicação. Quanto ao
compromisso que tinha com o senhor pároco de são Sulpício, de abrir em sua paróquia um
estabelecimento, o diretor felicitou a seu dirigido pela pressa que tinha em cumprir sua palavra, “mas essa promessa – disse ele – o obriga apenas na medida em que for razoável, possível e vantajosa para seu instituto. Faltando estas condições, se livra sua promessa. Ao querer
cumpri-la, deve temer que estabelecendo-o em Paris, o destrua em Reims”. Essas razões eram
muito convincentes para não as aceitar. Contudo não foram elas, e sim a obediência que decidiu a La Salle de permanecer em Reims. Somente ela era seu oráculo, somente sobre ela fundava ele sua conduta, e sobre ela somente queria fundar seu Instituto.
Em consequência desta resposta, que foi uma decisão que La Salle não se permitiu
questionar com suas reflexões e raciocínios, se escusou junto do padre de la Barmondière,
pela impossibilidade em que se encontrava de cumprir sua promessa, e lhe pediu esperasse o
momento favorável da Providência, que sabe conduz tudo a seus fins como lhe apraz escreveu também ao senhor l!Espagnol que se ocupava das escolas de são Sulpício, para lhe dizer
que fora aconselhado a permanecer em Reims e, portanto, não podia ir a Paris.
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
Quando o padre Barré soube desta decisão, ficou muito triste, porque ninguém desejava com mais ardor do que ele, ver o padre de La Salle criar um estabelecimento de Mestres de
escola em Paris, de onde não deixaria de se espalhar às diversas partes do Reino. Este era o
fim exclusivo que preocupava a este santo Mínimo; e em que exercia seu zelo. Como primeiro
autor das Escolas Cristãs e gratuitas, tinha pensado primeiro estabelecê-las em favor de ambos
os sexos, mas não vendo seu zelo coroado de êxito no estabelecimento das escolas para os
meninos, tinha-se dedicado inteiramente a multiplicar as das meninas. Ele se havia aplicado
com tanto mais gosto com as freiras, mestras de escola, nascidas de suas pequenas famílias,
era sumamente importante que se desse a elas a instrução necessária e uma santa educação,
para as preparar a instruir e educar seus filhos de modo cristão.
Sem dúvida que este cuidado compete também aos pais, mas eles, o deixam de lado,
porque ordinariamente são menos religioosos e menos dados à piedade; alem do mais, estando
mais dissipados e menos assíduos à casa, chegam a ela fatigados, ou permanecem nela apenas
para o descanso de um trabalho que só deixam para repousar. O zeloso padre Barré, contudo,
não tinha abandonado o projeto de escolas para meninos. Somente o tinha postergado, esperando o momento favorável da divina Providência, para tentar de novo seu plano. Ele contava
ainda com que o êxito que tivera com o estabelecimento para as mulheres, finalmente o teria
também com os homens, quando chegasse a hora assinalada por Deus. Mas por ser de idade
avançada, com razão temia que a morte pusesse limites a seus piedosos desejos.
Quando viu, pois, a La Salle dedicar-se com ardor ao mesmo projeto, e entregar-se a
ele como homem apostólico por um despojamento completo, e por Deus para essa obra, fez o
possível para o atrair a Paris, porque, segundo o piedoso Mínimo, Reims não podia servir de
berço para um Instituto destinado a ser universal. Paris era o único lugar apropriado , e o único em que podia esperar grandes progressos. Quando perdeu a esperança de o ver ali, estava
inconsolável, e manifestou sua dor a todos os que esperavam essa grande bênção. É claro que
a impressão que fazia sobre a mente e o coração do santo fundador a autoridade do padre Barré, a força de suas razões, o esplendor de sua santidade, a extensão de sua clarividência sobre
uma obra, para a qual tinha recebido a primeira inspiração do espírito e a graça, o teriam decidido a se estabelecer em Paris, se a obediência a seu diretor espiritual não o tivesse retido em
Reims.
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
Capítulo XV
João Batista de La Salle vende e distribui aos pobres
seus bens patrimoniais com aprovação de seu diretor espiritual
1. Motivos que levam a La Salle a se despojar de tudo.
Ao seguir o conselho de seu diretor, La Salle permaneceu em as cidade natal, e não
pensou mais do que em se dedicar a sua obra da qual, finalmente, se viu encarregado. Certo é
que seu bom êxito, seu progresso e sua perfeição estavam nas mãos de Deus, e que ele não
devia ser mais do que seu mero instrumento. Mas Deus quer usar instrumentos apropriados,
pessoas que, mortas a si mesmas e despojadas de seu espírito próprio, somente agem de acordo com o dele, não tendo outro movimento do que o que ele quiser dar-lhes. Este estado de
morte foi que La Salle procurou. Todo seu cuidado foi chegar a ele, com o fim de se transformar no homem de Deus, e capaz de servir para sua obra. Sua santificação e a de seus discípulos foi o objeto que mereceu toda sua aplicação, e concentrou todos os seus desejos.
Para caminhar a grandes passos pelo caminho da perfeição é preciso não se apegar a
nada, estar desprendido de tudo, e armar-se de coragem para seguir a Jesus Cristo. Era o que
faltava ao santo sacerdote a terminar, e que vai fazer com uma generosidade heróica. Suas
amarras estavam rotas, seu canonicato não o dividia mais entre os deveres do coro e os da
Comunidade, a demissão que tinha feito, tinham terminado por tirá-lo do mundo odioso. contudo, não se sentia em plena liberdade: se jjá não tinha benefício eclesiástico algum, tinha
ainda o de seu patrimônio, e ele sentia que o que possuía era demais, e que tinha chegado o
momento de se desfazer dele. Já vimos que, a este respeito, já tinha tomado uma resolução
como sobre o outro, algum tempo atrás. Os motivos que a tinham inspirado foram mencionados acima. O conselho de Jesus Cristo que diz em termos formais: Se queres ser perfeito, vai,
vende tudo quanto tens, dá-o aos pobres, e depois, vem e segue-me era o primeiro motivo e o
mais forte. Queria ser perfeito, e este desejo o obrigava a se fazer um pobre.
Com efeito, o despojamento é o primeiro passo que conduz à perfeição. É preciso correr, se se quiser seguir a Jesus Cristo. E para correr, é preciso estar livre, sem estorvos, sem
carga. O menor peso retarde e detém. O das riquezas é rude e pesado; por isso, é preciso desfazer-se dele para chegar até Jesus Cristo. Ele mesmo anda desnudo e despojado, e somente o
seguem os pobres com os quais um homem rico não poderia construir uma sociedade. O vínculo entre a pobreza e a perfeição é tão essencial, que Jesus Cristo fazia depender de uma da
outra. Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá-o aos pobres, e depois vem e segue-me. Por conseguinte, é necessário que essa venda e essa distribuição precedam a ação de
vem e segue a Jesus Cristo..
A pobreza vountária, que dá asas para correr após de Jesus Cristo, tinha para La Salle
grande atração. Arrebatado por sua beleza, ele a queria por esposa, convencido de que os tesouros da graça e os bens espirituais são o rico dote que ela traz consigo àqueles qje a abraçam pelo amor de Deus. este motivo tinha que ver com sua própria perfeição. O segundo se
referia à dos Irmãos. Este desejo de perfeição não podia criar raízes em seus corações, enquanto houvesse neles inquietação sobre o futuro e preocupações pelo presente. Esta tentação
os desestabilizava a todos, e lhes abria a porta de uma casa que não tinha segurança. Ára ir
buscá-la em outra parte inutilmente, com freqüência, e quase sempre arriscando sua salva199
Vida de João Batista de la Sal
Salle
ção.sua fé não era bastante viva para lhe ensinar que o abandono à divina Providência é um
fundo lucrativo, e que não existe nem contrato nem títulos, nem reserva antiga que seja segura. Sua caridade ainda não era bastante perfeita para lhes fazer sentir, por uma experiência
diária, que a confiança em Deus é a chave que abre todos os tesouros do céu. Se as lições que
seu pai lhes tinha dado sobre este assunto não tiveram efeito, era porque não as tinha confirmado ainda com seu exemplo. Era preciso, pois, que ele lhes desse exemplo, com sua pessoa,
para firmá-los em sua vocação, e inspirar-lhes o desejo da perfeição.
Enfim, sua obra era a obra da Providência. O padre Barré que quis fundar a sua exclusivamente sobre este fundamento infinitamente sólido para as almas de fé pura, que nem sequer quis dar-lhe outro nome, inspirava o mesmo sentimento a La Salle, e lhe pedia não buscasse para seus discípulos nem para si mesmo outro apoio do que o braço do Pai celeste. A
graça fazia sentir ao santo sacerdote que, quando seus discípulos o vissem ser, por escolha, o
que eles eram, por necessidade, não sentiriam mais dificuldade em se entregar depois dele no
seio da Providência. Numa palavra, La Salle ao querer ser semelhante a seus Irmãos, a exemplo de Jesus Cristo, quis fazer-se pobre com os pobres, com o fim de os fazer amar seu estado
de pobreza.
2. Consulta seu diretor espiritual sobre este plano disposto
a aceitar o que ele decidir.
Esses três motivos o incitavam, portanto, a se despojar de seus bens patrimoniais; mas,
como nada fazia sem o conselho de seu diretor, manifestou a ele seu projeto e, depois de o ter
exposto com sua motivação, pediu dar-lhe o mérito da obediência quando o executar. Este foi
outro problema para o diretor, outro passo do qual o tornariam culpado, e do qual o mudo não
deixaria de o criticar. Contudo, La Salle já tinha feito tantas coisas estranhas qye a gebte bçai
devi a estranhar o que viria. Qualquer ato se esperava de um homem de seu caráter, e o mundo até estava preparado para não encontrar o que dizer de tudo o que fizesse aquele a quem
estava cansados de censurar.
Talvez, o diretor espiritual reconheceu que seu filho espiritual era um homem de graça
e que não agia a não ser movido pelo Espírito de Deus, de maneira que resistir a seus projetos
era contradizer os desígnios de Deus. talvez, considerava a seu discípulo como um homem
inspirado pelo céu, cuja direção não se deveria medir de acordo com os princípios da gente de
bem comum e corrente. Talvez, foi inspirado em segredo a dar seu consentimento a um desejo
totalmente sobrenatural. Talvez, finalmente, persuadido pelos motivos que faziam agir a seu
dirigido, acreditou que era necessário que unisse o exemplo à palavra, fazendo-se semelhante
a eles pela renúncia a todos os bens terrestres para fazer os primeiros mestres de escola homens perfeitos.
Sejam quais foram os motivos que persuadiram o diretor, para consentir na solicitação
de La Salle, o importante é que o fez. E ainda que esta última ação de João Batista de La Salle
fosse mais extraordinária, mais heróica e mais capaz de atrair críticas sobre seus conselhos do
que os da demissão do canonicato, pareceu ao diretor mais fácil consentir a esta do que à primeira.
Com efeito, esta última decisão apresentou muito mais dificuldades do que a primeira.
Essas coisas não se acostumavam mais, ou ao menos, não eram fáceis de fazer porque as oposições da parentela não deixavam de impedir sua execução. Por que o mundo, que está tão
disposto a protestar contra tudo o que é extraordinário em matéria de devoção, e que nunca dá
sua aprovação às obras de perfeição, pareceu fazer menos rido na alienação feita por La Salle
de seus bens, e na distribuição aos pobres, sob os olhares de sua família e de toda a cidade, do
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
que a que fez na demissão de seu canonicato? Por que a mesma família se viu tranqüilamente
despojada de um bem que esperava herdar, sem se opor nem atar as mãos de que, em seu prejuízo, dava todo seu patrimônio aos pobres? Tudo isto me surpreende, e me parece que há
motivo de se estranhar, porque, no fim das contas, o bem do Santuário não é um bem de herança, e não deve passar em sucessão . por que fazer ruído porque La Salle tinha nomeado
para o suceder, ao que ele julgava mais digno, a pesar de ser um estranho? E por que não reclamar na venda de seu patrimônio, em favor dos pobres, com prejuízo de seus parentes?
É preciso dizer, portanto, que as reclamações do mundo são tão injustos quão estranhos os juízes. Talvez. Neste segundo gesto La Salle reclamou como no primeiro, e nós não
sabemos nada, porque as memórias não falam dos pobres, no tempo de uma extrema calamidade, assim pareceu um exemplo de caridade tão espetacular, tão edificante, e tão necessário,
que os censores mais desconsiderados de sua conduta, se viram com a boca cerrada. E seus
familiares tão tímidos nesta ocasião, guardaram o mesmo silêncio, por medo de parecerem
demasiado interessados, num tempo em que a miséria pública lhes tenha feito sentir vergonha,
e talvez, se tenham querido julgar as liberalidades de um homem que vinha tão oportunamente
alimentar os famélicos, e conservar aos pobres o pouco de vida que a carestia ameaçava arrebatar-lhes.
O certo é que, não tinha resolvido a se despojar de seus bens patrimoniais, não tinha
resolvido ainda o uso que deles faria. De todo modo, tinha diante de si duas opções: a primeira era distribuí-lod todos a toda sorte de pobres. A segunda, destiá-los precisamente aos de
quem estava encarregado. Estas duas opções se equilibravam em sua mente com peso quase
igual de motivos, e não via claramente por qual delas se decidir.
De um lado, seus mestres de escola eram pobres, os primeiros pobres que a divina
Providência lhe tinha enviado, e os que mereciam a preferência, visto que se tinham dedicado
à educação dos pobres. Não parecia natural assegura-lhes seu estado e sua subsistência? Não
pertencia à ordem da caridade, prover a todas as necessidades temporais daqueles que eram
tão necessários para o bem espiritual de todos os pobres? A natureza inspira aos pais e quase
em toda parte, a lei civil obriga deixar seus bens nas mãos de seus filhos; não era natural que
La Salle, convertido em pai, passasse aos filhos que Deus lhe dava, a fortuna de que pensava
se desfazer?
2. Delibera sobre o uso que deve fazer dos bens de que vai se despojar.
Além do mais, sua obra necessitava uma sustentação. E nas necessidades urgentes de
auxílios extraordinários, onde obtê-los se surgisse uma calamidade pública? O mundo, sublevado contra ele e indignado contra sua família, não estava disposto a lhe ajudar. La Salle também não podia esperar encontrar na casa de seus familiares, o que faltasse na sua. Ele tinha
feito demais, pelo que parece, para enorme vergonha deles e, em certo sentido, em seu prejuízo, para esperar agora atrair seus olhares. Menos ainda, mover seus corações pelas misérias
do estado em que se colocava a pesar deles. O remédio para esses inconvenientes estava em
suas mãos: não tinha outra coisa a fazer, a não ser destinar à fundação de sua obra os bens de
que se desfazia por desejo de perfeição.
Nada podia ser mais apropriado. A obra teria aparecido muito bem estabelecida desde
seu nascimento. Os mestres de escola que quiseram segurança. A teriam encontrado nesta
doação em seu favor, suas inquietações se teriam acalmado e sua vocação se teria firmado. A
situação deles trocada com a de La Salle, que se teria despojado de seus bens em proveito
deles, teria aberto os ouvidos dos mestres aos ensinamentos de perfeição que lhes dava, e teriam encontrado, por fim, na pessoa dele um exemplo notório de desprendimento perfeito e de
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
abandono à divina Providência. Esta opção era apoiada pela opinião de diversas pessoas eminentes de piedade e pelo exemplo de Roland.
Já que está disposto a uma renúncia geral de seu patrimônio – lhe disse ele – faça-o em
favor de sua Comunidade. A isto parece obrigá-lo a piedade e uma espécie de equidade.
Ninguém pode encontrar motivo de censura. É sua obra, ela está apenas esboçada, não tem
menos necessidade de seus bens do que suas mãos para se poder sustentar. Como pai, o senhor deve se prover da subsistência de seus filhos, com preferência aos estranhos. Quem o
diz é a sabedoria; e seu bom coração deve aprová-la. A prudência do mundo que estaria
tentada a vituperar o despojamento de seus bens, fará justiça à sábia destomação que fizer
deles em favor de seus estabelecimentos.
O exemplo de Roland, do qual o senhor tomou conselho enquanto ele estava vivo,, e
cuja memória depois de sua morte você respeita, deve servir-lhe de modelo. Ele deixou um
dote para as escolas das meninas. Por que não dazer o mesmo com suas escolas para os rapazes?
Aparentemente prevalecia esta opinião; ao segui-la La Salle deixava em repouso a
preocupação de seus mestres e preservava seu pequeno rebanho contra a desconfiança acerca
do futuro.
De outro lado, as idéias sobre o abandono à Providência permaneciam impressas em
sua mente, e temia fazer alguma coisa que contradissesse os sentimentos de seu coração neste
assunto. Parecia-lhe mais perfeito lançar todas as inquietações de seus filhos, bem como as
suas próprias, no coração.do Pai celeste, e jogar-se com eles no abismo de sua Providência,
que somente abandona os que não a honram com uma perfeita confiança. Este era o ponto de
vista do santo Mínimo que repetia a máxima: dotar de fundos as escolas fará que pereçam, e
acrescentava que, não havendo no mundo fundamento mais seguro do que a Providência, nãos
e podia fazer nada melhor do que estabelecê-las e fundá-las sobre ela. Máxima muito superior
e por isso, pouco comum! Sua singularidade, por conseguinte, podia levar a suspeitar, na prática, porque o que é mais perfeito em teoria, em ideal, muitas vezes está exposto a ruidosos
fracassos e a perigosas ilusões, e nem sempre é o mais seguro de seguir.
3. Consulta a Deus. A carestia de fome de 1684 o decide a dar
todos os seus bens aos pobres.
João Batista de La Salle, tão circunspeto que era, receava ficar iludido ao tomar um
caminho pouco freqüentado, sob pretexto de perfeição. Todas essas considerações agitavam
sua mente, sem saber quais deveria seguir. Neste estado de incerteza, foi procurar aos pés de
Jesus Cristo a resolução de suas dúvidas. Pensou que para dar entrada à luz divina em sua
alma, devia ter a disposição de se despojar de toda sorte de inclinações, e de se colocar numa
gostosa atitude de indiferença a tudo que tão bem prepara o coração ao conhecimento e à execução da vontade de Deus. quando se encontrou nessa situação, começou a se oferecer à livre
vontade de Deus, e a se abandonar totalmente a ele sem reserva. Em seguida se permitiu explicar-se diante da divina Majestade nos seguintes termos:
Meu Deus, não sei se devo dotar as escolas de fundos ou não. Não me cabe estabelecer Comunidades, nem saber como se deve estabelecê-las. Tu és quem o deve saber, e
fazer de maneira que te seja agradável. Não me atrevo a fundar, porque não conheço a
tua vontade. Não contribuirei com nada para dotar com fundos nossas casas: se tu as
dotares de fundos, elas estarão bem fundadas. Se não as fundares, elas permanecerão
sem fundos. Eu te suplico, faze-me conhecer tua santa vontade.
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Vida de João Batista de la Sal
Salle
Se não parece que uma oração tão pura tenha sido seguida de luzes extraordinárias,
nem que tenha iluminado a quem a fez, sobre o que devia fazer, manifestando-lhe a vontade
de Deus que a tinha precedido. Firma e como cravado no seio da Providência, o servo de Deus
permaneceu tranquilo e sem cuidado pelo resto de seus dias, ainda que muito vezes, tenha
sido submetido aos sofrimentos mais martirizadores e aos riscos de estar em falta de tudo.
Depois de tudo, Deus cuja vontade seu servo estudava, suscitou a ocasião favorável de
fazer, aos olhos da família e de toda a cidade, a alienação de seus bens, sem que ninguém de
seus censores aparecesse para deter-lhe a mão, e sem que ninguém ousasse encontrar o que
condenar. Já dissemos acima, ele obtivera a autorização de seu diretor, que surpreso, de começo, por um projeto tão heróico, lhe tinha feito dificuldades e querido detê-lo, contudo, o
tinha aprovado com bastante facilidade, ao ver a humilde disposição em que seu discípulo se
lhe tinha apresentado, e a grande docilidade com que lhe submetia sua resolução. Com efeito,
ela era fascinante, e era bastante para persuadir o guia visível de La Salle, a quem outro mais
hábil do que quem o dirigia em segredo, e que o Espírito Santo mesmo dirigia a conduta. Embora seus planos tivessem certos sinais de inspiração divina, somente ele pensava executá-las
quando a obediência lho permitisse. O fato a seguir prova sua atitude.
Depois de apresentar a seu diretor o projeto que tinha de se despojar de seus bens e de
ter-lhe pedido a aprovação, acrescentou com humildade e submissão: Não me vou desfazer de
meus bens, se o senhor não quiser; eu me desfarei deles na medida em que o senhor quiser;
se me diz que conserve alguma coisa, ainda que não fosse mais do que cinco soles, eu os conservarei. Que linguagem de um homem de tanto mérito, de um homem cujos atos heróicos
começavam já a ilustrar o seu nome! Uma criança bem nascida falaria a seu pai com mais
submissão? Esta linguagem é verdadeiramente a dos bem-aventurados a quem pertence o reino dos céus, e a quem é preciso imitar, se nele se quer entrar. Esta é a linguagem da fé, da
humildade e da obediência. Flui da fonte quando sai da boca de uma alma que não vê pelos
olhos da fé mais do que a Jesus Cristo em seu diretor; que por um fundo íntimo de desconfiança em si mesmo, não procura nele mais do que a declaração da vontade de Deus, e que levando a seus pés um coração indiferente e submisso a suas ordens, recebe todas com alegria e
lhes obedece cegamente.
Essas almas piedosas, de ordinário, ao consultarem a seu diretor com tão santas disposições, trazem-lhe também por sua vez, mas luzes. O Espírito Santo, que nelas mora, comunica-se com elas e lhes ditam o que deve responder-lhes. E muitas vezes, acontece que quando
elas se aproximam dele, muda de sentimento e de opinião sem saber por que nem como..além
disso, há sinais inequívocos que provam que o Espírito de Deus fala nessas almas santas: a
docilidade perfeita, a humildade profunda, a completa submissão de coração e de espírito que
trazem aos pés de seu confessor e que acompanham os pedidos que lhe fazem, garantem que
essas são movidas pelo Espírito e servem de credenciais para essas inspirações celestes.
O que digo se encontra verificado no exemplo que trago. O diretor espiritual de La
Salle não estava disposto a dar seu voto favorável ao desejo que vinha expor-lhe. O pedido de
vender seus bens e distribuí-los aos pobres numa cidade em que os primeiros magistrados e os
cidadãos principais eram parentes seus, era menos aceitável do que a de renunciar a seu canonicato. Contudo, o diretor do piedoso Cônego, que não tinha podido dar a esta autorização a
não ser depois muito tempo e de longos pedidos, consentiu nesta com bastante facilidade.
Como aconteceu isso? Sem dúvida que o Espírito Santo inspirou ao diretor, enquanto movia a
língua de La Salle, e lhe dava por prova da verdade de sua inspiração, a humildade, a docilidade e a submissa de quem a proferia.
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Vida de João Batista de la Sal
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4. Seu diretor dá-lhe seu consentimento.
Efetivamente apenas La Salle havia terminado de pronunciar suas palavras, seu diretor
sentiu-s transformado. Para acalmar sua própria consciência, permitiu a João Batista de La
Salle vender e distribuir seus bens aos pobres, correndo os riscos de tudo o que pudesse acontecer e de tudo o que se poderia dizer. Felizmente para ambos, as circunstâncias favoreceram
essa decisão heróica, e permitiram à opinião pública que a admirasse.
O ano de 1684 trouxe consigo muitas desgraças, e fez a Champanha sentir toda a miséria que um longa esterilidade causava em toda parte do Reino. Os pobres agricultores vieram até a capital para encontrar ajuda, reuniram-se aos da cidade e fizeram de Reims um
grande hospital. A maioria de seus habitantes se tornou mendigos fracos pela supressão dos
trabalhos e das indústrias que a carestia e o rigor do inverno não permitiam continuar; e humilhados procuraram junto dos ricos um pão por esmola que os pobres de profissão pediam sem
sentir vergonha. A fome foi tão grande e tão cruel que muitos ricos não puderam suportá-la e
se encontraram na condição de miseráveis, sem pão e sem se atrever a pedi-lo. Os que tinham
algum bem, viam-se em poucos dias, presa da fome e da miséria. Comunidades religiosas
inteiras, ainda ricas e com bons rendimentos, seguiram na sorte comum, estavam na necessidade de se arruinar em razão das alienações e os empréstimos para cobrirem suas necessidades.
5. Organiza a distribuição de seus bens aos pobres,
seus exemplos de virtude nessa ocasião.
Um ano de tanto sofrimento foi um ano de méritos extraordinários e de virtudes notórias para La Salle, porque lhe proporcionou a ocasião de exercer as maiores obras de misericórdia corporais e espirituais numa cidade em que tinha sido tão maltratado. Então teve o prazer delicioso para um santo, de alimentar a vários de seus inimigos, e de corresponder às longas murmurações, com ações heróicas de caridade. Soube o valor de seus bens quando se vuy
em liberdade de os distribuir aos pobres, e não se sabe que foi para ele mais grato tornar-se
pobre ou ser para poder auxiliar aos pobres. Teve este duplo mérito ao mesmo tempo, o de os
aliviar e de se fazer semelhante a eles. Contudo, não fez a distribuição de seus bens à toa nem
com precipitação.como homem que fazia tudo de forma regulamentar, soube usar uma grande
ordem em sua caridade. Fez durar o tempo de sua caridade, o que durou o da carestia, e a exerceu sobre os mais necessitados. Para não se enganar e guardar uma espécie de justiça também na prática da caridade, dividiu os pobres que queria auxiliar, em três categorias.
Os primeiros, se encontravam nas escolas, de onde os rapazes, depois dos exercícios
ordinários, saíam com uma porção de pão que vieram buscar com mais avidez do que a instrução.
Os da segunda categoria eram os pobres envergonhados. Para saber quais eram, era
preciso procurar com muita diligência, pois estes, escondidos e concentrados no fundo de sua
miséria, muitas vezes, por certo orgulho criminoso, preferiam morrer de fome a mostrá-la. O
caridoso sacerdote fez todo o possível para os conhecer e não ser conhecido; para lhes ajudar
e ocultar-lhes a mão dadivosa, que os aliviava e que lhes saciava a fome, respeitando-lhes os
sentimentos. Se não a podia ocultar-lhes, nem ocultá-los a si mesmo, o que não fazia ele e que
não dizia para acalmar os envergonhados, por meio de manifestações de compaixão e ternura
seguidas de sua generosidade!
A terceira categoria de pobres que ele alimentava se reunia na casa todas as manhãs,
ali em geral, ele ou na sua falta, alguns dos piedosos eclesiásticos que viviam com ele, davam
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Vida de João Batista de la Sal
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catequese familiar ao povo que tinham ais necessidade de alimento da alma do que o do corpo, e que não se tornam mais ávidos daquele na esperança do que segue.
Ali, o caridoso sacerdote, vendo reuir-se diante de seus olhs tantos indigentes de toda
sorte, estudava suas necessidades espirituais para lhes dar conselhos especiais, e por meio de
observações, corretivos prudentes e sinais da mais terna compaixão, procurava antes de aliviar
sua miséria, de curar em suas almas os male que eles não sentiam porque não os conheciam.
Essa distribuição de pão em sua casa se fazia todas as manhãs. Depois da missa, La
Salle vinha ajudar ou a fazer ele mesmo, com sentimentos de fé e devoção tão vivos e sensíveis, que comunicava aos que o contemplavam.. Jesus Cristo se lhe fazia visível em seus
membros; ele se colocava a seus pés, e era visto a repartir a esmola de joelhos e com os
mesmo sinais de respeito e alegria qcom que teria visto e alimentado a Jesus Cristo em pessoa. Fazia mais ainda, feito pobre ele mesmo ao ajudar aos pobres, pegava como pobre a porção
de pão que lhes distribuía, e o comia de joelhos diante dos olhos, com gosto e alegria que
mostrava ao prazer que experimentava no seio da caridade e da pobreza reunidas,
Levou as coisas ainda mais longe. Ávido do mérito da pobreza mais humilhante, queria saborear a vergonha da mendicidade e comer um pão de confusão pedido de porta em porta. Por fim, a humildade e a necessidade o obrigaram a ele mesmo porque, despojado de tudo
e feito no mais pobre do que os pobres que tinha alimentado, ele, por sua vez, foi à custa de
seu amor próprio, a esmolar de casa em casa algumas migalhas de pão. Depois de muitas negativas, recebeu de uma boa senhora, um pedaço de pão muito queimado, que comeu por respeito de joelhos e com uma satisfação incrível.
Depois de ter comido esse pão de esmola, partiu a pé para Rethel com o fim de tratar
com o Duque de Mazarin, do estabelecimento que projetara, de um seminário de mestres de
escola para as aldeias de sua jurisdição. Foi nesta ocasião que vieram juntos a Reims para
informar ao senhor arcebispo e lhe pedir sua aprovação. Dom Le Tellier premiou a caridade
de um e satisfez a humildade do outro respondendo-lhes que eram dois loucos.perdoe-me,
Excelência, - respondeu o humilde sacerdote – somente um é louco. Queria dizer que este título pertencia somente a si mesmo e que o Duque não o merecia.
João Batista de La Salle teve todo o tempo para esgotar seu patrimônio, que se aproximava de uma quantia de 40.000 libras, durante uma carestia de dois anos completos. Era um
homem rico quando ela começou, pobre quando terminou. Encontrou-se na situação que seu
coração desejava. Contente com temer a Deus, e nada mais do que a Deus, podia dizer com o
grande amante da pobreza, são Francisco de Assis, Meu Deus e meu tudo! Se perdi tudo por
Ele, nele encontro tudo, só ele me basta. Efetivamente, encontrou tudo naquele que é a fonte
de todo bem: a Divina Providência, à qual tinha abandonado seus interesses e os de seu pequeno rebanho, lembra-se sempre dele e dos seus. Não lhes faltou o necessário, enquanto uma
infinidade de infelizes, os próprios ricos tinham dificuldade em se proteger dos golpes da
fome.
Os que presenciaram as piedosas prodigalidades do caridoso sacerdote estavam admirados e mal podiam acreditar o que viam seus olhos: que ainda existia um homem que dava
tudo, sem se reservar nada para o amanhã; que confiava em Deus; ao fazer isso num tempo
em que o dia de hoje dava aos esmagados pela fome, intensos alarmes para o dia seguinte.
7. Recebe censuras de seus próprios discípulos sobre sua generosidade. Ele aproveita a ocasião para lhes inculcar de novo a confiança na divina Providência
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Vida de João Batista de la Sal
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Um homem que se esquecia de si mesmo em circunstâncias em que cada um pensava
somente em si mesmo e se esquecia de todos outros, e que não tinha outras preocupações do
que a de alimentar e aliviar os pobres, e se tornar pobre em circunstâncias em que não havia
mais do que um passo entre a morte e a pobreza, este era um homem que seus compatriotas
não podiam louvar demais e admirar, depois de o terem coberto de tantas acusações e insídias.
Seus próprios discípulos que o viam mais de perto e eram testemunhas de seus excessos de
caridade, não puderam evitar a lhe manifestar sua surpresa. Embora tivessem chegado ao fim
dos dois anos de fome, em que tudo faltou a uma infinidade de gente, eles o tinham tido graças às mãos do Pai celeste, mas ainda não estavam livres da preocupação a respeito do futuro.
A situação de pobreza e de abandono à Providência que seu pai acabava de abraçar e ao qual
eles mesmos o tinham levado de certa maneira por sua réplica às pregações sobre este assunto, se mudou, ao que parece, em outro tema de inquietação para eles. Não podiam mais procurar, em caso de necessidade, num homem despojado de tudo, os recursos que tinham encontrado em seu canonicato e em seu patrimônio. Era ali que o homem de Deus os esperava. Este
momento era favorável para lhes abrir os olhos sobre o cuidado da divina Providência, e de
retomar as lições sobre a confiança e o abandono em Deus, que eles lhe tinham obrigado a
interromper, até que el ficou mais pobre do que eles.
La Salle aproveitou, pois, a ocasião que se apresentava tão naturalmente para os sensibilizar às atenções de Deus sobre suas pessoas e suas necessidades, e para lhes garantir o futuro pelo passado, que nada lhes faltaria jamais, enquanto tivessem a preocupação de servir a
Deus e lhe agradar.
Meus caríssimos Irmãos, acrescentou ele, voltem aos dias tristes que acabamos de passar. Sob os olhos de vocês, a fome acaba de expor todos os males que ela sabe fazer aos
pobres, e todas as feridas que sabe trazer à fortuna dos ricos. Esta cidade se tinha transformado numa Secretaria dos pobres, em que vinham se reunir côo todas as suas misérias,
e arrastar um resto de vida lânguida que a fome terminaria em pouco tempo. Durante esse
tempo em que os mais ricos não estavam seguros de encontrar, a preço de dinheiro, um
pão tão raro quanto precioso, o que lhes faltou? Graças a Deus, ainda que não tenhamos
renda nem fundos, vimos passar esses anos difíceis, sem que tivesse faltado o necessário.
Não devemos nada a ninguém, quando muitas comunidades opulentas se arruinado por
empréstimos e alienações desvantajosos que precisaram fazer para poderem subsistir.
Fazendo-lhes assim palpáveis os milagres da divina Providência em seu favor, ensinou-lhes finalmente, a se abandonar a seus cuidados. Desde esse momento o demônio não
teve mais acesso à casa deles, para semear ali inquietações e suspeitas injuriosas à bondade de
Deus, que ao dar a vida às criaturas, se comprometeu a provê-las em todas as suas necessidades.
Sobre este fundamento inalienável La Salle começou a construir sua casa. Persuadido
mais do que nunca de que uma pobreza voluntária é um título de segurança para todas as necessidades da vida, não quis outro contrato a não ser o que Jesus Cristo assinou no Evangelho.
Levou tão alto a perfeição sobre esse artigo, que recusou somas consideráveis que várias pessoas caridosas lhe ofereciam para fundar casas de Irmãos. Nosso Irmãos –dizia ele – somente
subsistirão enquanto forem pobres. Perderão o espírito de sua vocação, assim que tentarem
procurar para si as coisas necessárias para a vida.
O que acabamos de indicar da vida de João Batista de La Salle, encerra sua infância,
sua educação, sua entrada na Igreja e seu ministério sacerdotal. Ao segui-lo por todas as etapas de sua idade, vimos como exemplo de inocência para os meninos, de docilidade para com
os alunos, de piedade para com os jovens clérigos, de regularidade e de fervor para o cônegos,
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de zelo e espírito de religião para os sacerdotes. No segundo volume vamos vê-lo como modelo de grandíssima perfeição na formação de seu Instituto.
Fim do primeiro Livro.
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