ENTRE NATUREZA E SOCIEDADE: Reflexões sobre a paisagem
urbana de Maceió a partir das suas relações com o riacho
homônimo
BARROS, CARLINA ROCHA DE ALMEIDA; DOS SANTOS, CAROLINE
GONÇALVES; MAIA, ROBERTA FÉLIX; CARVALHO, SIBÉRIA FREITAS DE.
1
Centro Universitário CESMAC. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
Rua Cônego Machado, nº 918 Farol Maceió-AL
[email protected]; [email protected]; [email protected];
[email protected]
RESUMO
As cidades, meio artificial criado pelas sociedades humanas, vêm crescendo em ritmo acelerado e
incorporando áreas anteriormente rurais ou de domínio da natureza. Esse processo não é tão recente,
e a busca por um controle cada vez maior sobre o meio natural é algo que foi possibilitado pelo
desenvolvimento técnico-científico, especialmente a partir do séc. XVIII, com a Revolução Industrial em
marcha. Esse avanço marcou outras maneiras de interferir e interagir com o território, alterando
paisagens e adaptando-as a novas demandas. Territórios e paisagens diversificadas são manipulados
pelo uso da técnica, considerando o meio físico natural e a forma como a sociedade se relaciona com
ele. As cidades incorporam novas áreas ao seu território, assim como elementos naturais como os
cursos d´água, que muitas vezes foram condição essencial ao surgimento do urbano. Em Maceió,
capital do estado de Alagoas, isso não foi diferente. O processo de modernização da cidade ao longo
do séc. XIX, favorecido pela transferência da Capital para Maceió em 1839, envolvia o domínio de
diversos tipos de cursos d´água em um terreno pantanoso. O riacho Maceió naquele momento
constituía-se como elemento divisor dos dois núcleos da cidade, dificultando a mobilidade e
escoamento de mercadorias para o porto. Diversos planos começam a refletir sobre a cidade ao longo
do séc. XIX, sempre tendo como norteador o controle das águas que se apresentavam em abundância
no sítio, estando o riacho Maceió presente em todos eles. Aos poucos aquele elemento natural que
representava um obstáculo à expansão urbana vai sendo alterado, culminando com a intervenção
realizada em 1947 para sua canalização, retificação e mudança da posição da foz. Naturalmente
móvel, a foz arenosa teve sua condição de mobilidade desconsiderada em prol de ganhos com área
urbanizável e maior mobilidade urbana. Esses impactos serão convertidos em mudanças radicais na
paisagem urbana, mas não apenas de ordem física. Os impactos refletem na apropriação e simbologia
dos elementos afetados, como é o caso do riacho Maceió, objeto de reflexão deste artigo.
Palavras-chave: Território; Meio urbano; Natureza; Planos Urbanísticos; Maceió.
1
Todas as autoras estão vinculadas à mesma Instituição, sendo as duas primeiras, professoras da graduação, e
as duas últimas, alunas vinculadas à pesquisa de iniciação científica realizada entre agosto 2013 a julho 2014.
Metamorfoses da paisagem: sociedade x território
―O meio urbano é cada vez mais um meio artificial, fabricado com restos da
natureza primitiva, crescentemente encobertos pelas obras do homem‖.
(Santos, 2012, p. 46).
As relações entre o Homem e o meio físico natural sempre se deram ao longo da existência
humana, e com o passar do tempo um maior domínio desse território, muitas vezes
imprevisível e perigoso, coloca-se como condição essencial para a ocupação definitiva e
consequente expansão territorial, deixando marcas profundas na natureza e seus elementos.
Aos poucos a presença da natureza vai sendo comprimida em um território artificializado
construído pelo Homem, sendo a cidade a expressão maior desse novo meio manipulado pela
sociedade a partir de interesses políticos, econômicos e socioculturais. Para este fim, a
técnica e seu desenvolvimento, especialmente a partir do séc. XVIII, foram a mola propulsora
na realização desses desejos de mudança e maior controle territorial gerando o que Deleuze e
Guattari (1997) classificaram como estriamento do espaço em alusão à sua subordinação a
interesses específicos a partir dos meios tecnológicos.
Esse meio urbano vai sendo construído a partir de um processo histórico de embates entre
uma natureza anteriormente posta e uma sociedade que demanda espaço. ―Uma paisagem é
uma escrita sobre a outra, é um conjunto de objetos que têm idades diferentes, é uma herança
de muitos diferentes momentos‖ (Santos, 2012, p. 73). A paisagem urbana, resultado dessa
apropriação sociocultural, econômica e política do território, vai se construindo a partir de
diversas camadas de influência e de sobreposições da tecnologia e seus usos segundo as
demandas de cada momento histórico.
Sistemas de objetos e sistemas de ações interagem. De um lado, os sistemas
de objetos condicionam a forma como se dão as ações e, de outro lado, o
sistema de ações leva à criação de objetos novos ou se realiza sobre objetos
preexistentes. É assim que o espaço encontra a sua dinâmica e se
transforma. (Santos, 2006, p.39).
A incorporação de elementos naturais ao meio urbano vai desencadeando uma mudança nas
relações entre a sociedade e a natureza, e esta passa a ser transformada de maneira a ter sua
influência e imprevisibilidade dirimidas. Para além disso, mudam as maneiras de apropriação
3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS
Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro
e consequentemente as simbologias que os elementos naturais passam a ter para a
sociedade, segundo as transformações realizadas ao longo do processo histórico e evolutivo
urbano.
Elementos naturais como os corpos d´água são frequentemente presentes em paisagens
urbanas, e também um dos mais sujeitos a transformações devido a certa imprevisibilidade
resultante de seu complexo sistema de relações com outros elementos naturais, como a
vegetação, as marés marítimas, o regime de chuvas e até mesmo o vento; e também
socioculturais, como a ação do Homem sobre o desmatamento, as ocupações, poluição, entre
outros. Talvez por essas razões, os rios e riachos urbanos tendem a ser elementos dos mais
violados em sua naturalidade a partir do desenvolvimento da técnica, que altera meandros e
canaliza suas águas.
Os conflitos entre processos fluviais e processos de urbanização tem sido de
um modo geral enfrentados através de drásticas alterações na estrutura
ambiental
dos
rios,
onde,
em
situações
extremas,
chega-se
ao
desaparecimento completo dos cursos d’água da paisagem urbana.
(Antunes, 2006, p. 10).
Apesar disso, os rios foram grandes condicionadores da ocupação e desenvolvimento urbano
de inúmeras cidades brasileiras, sendo utilizados para controle territorial, transporte de
mercadorias e de pessoas, subsistência, energia hidráulica, lazer, entre outros (Antunes,
2006). Dessa forma estabeleceram relações não apenas paisagísticas, mas de apropriação e
uso pela sociedade que os incorpora em seu meio urbano.
Em Maceió, capital do estado de Alagoas, o riacho Maceió constituía-se desde tempos
remotos da ocupação territorial em elemento de grande referência espacial, estabelecendo o
limite entre os dois bairros que iniciaram a ocupação urbana. Inicialmente a referência natural
que marcava a entrada da cidade pela frente marítima e se constituía em cartão postal, vai
sendo transformada em sua morfologia e apropriação pela sociedade através do uso da
técnica, alterando completamente seu valor paisagístico e de uso perante o meio urbano e a
sociedade.
Dessa forma, este artigo se propõe a refletir sobre a paisagem urbana de Maceió e suas
relações com o território natural tendo como objeto o riacho Maceió e as metamorfoses
sofridas por ele no primeiro século de ocupação urbana (séc. XIX até primeira metade do séc.
XX). O estudo é pautado pelas intervenções pensadas e/ou concretizadas e que envolviam o
3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS
Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro
riacho, através de planos e intenções que se demonstraram ao longo do processo histórico e
de evolução urbana de Maceió como Capital.
...e havia um Maceió no meio do caminho.
[...] entre 1840 e 1869 Maceió se urbanizara numa linda cidade ordenada de
bons prédios particulares e elegantes edifícios públicos, sendo assim uma
capital de província que tinha aumentado e progredido. (Lindoso, 2005, p.
48).
Maceió, toponímia que segundo Duarte (1965) vem do termo tupi ―aquilo que tapa o
alagadiço‖, nomeia uma cidade com grande apelo turístico e conhecida atualmente pela
alcunha ―Paraíso das Águas‖. Ambas as titulações denotam a riqueza de paisagens de águas
doces e salgadas que delimitam o território urbano, desde a lagoa Mundaú até o oceano
Atlântico que banha grande extensão da área urbana.
Hoje uma cidade de porte médio e em processo de expansão, nos inícios da ocupação urbana
o território de Maceió não apresentava facilidades para sua ocupação. Originalmente seu
território inicial era formado por terrenos alagadiços e pantanosos ao longo de uma extensa
planície litorânea e fluvial. Dentro desse contexto, o riacho nomeado como Maceió2 separa
fisicamente as duas principais áreas de ocupação urbana quando, em 1839, a então vila
ganha o título de cidade e capital da Província.
A ocupação das planícies litorânea e lagunar densamente construídas nos dias atuais foi
possibilitada por sucessivas intervenções territoriais com uso da técnica visando facilitar o
escoamento de mercadorias e desenvolver as rotas econômicas da Província no transcorrer
do séc. XIX. O Código de Posturas de 1845 já tratava do aterro de pântanos e áreas
inundáveis, demonstrando preocupações de cunho higienista ainda na primeira metade do
séc. XIX. De acordo com Nolasco Maciel (apud Almeida, 2011, p. 24), Maceió torna-se ―uma
nova cidade que ganha porte na medida em que dois pontos são fortalecidos: as entradas e a
saída, as estradas e o fundeadouro, o modo de ser relacionado à economia agroexportadora‖.
2
O riacho também é conhecido como Salgadinho em seu baixo curso, devido à proximidade com o mar; e como
Reginaldo em toda a sua extensão, em alusão a Reginaldo Correia de Melo, antigo proprietário das terras que
envolviam o riacho.
3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS
Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro
Aos poucos o território ganha área com a drenagem e aterro de grandes extensões
pantanosas. O desenvolvimento da cidade dá-se a partir de dois pontos: o Centro comercial,
também conhecido como Maceió propriamente dita, e a localidade Jaraguá, onde se localiza
até hoje o porto que onde escoava a produção dos engenhos de cana-de-açúcar vinda do
interior da Província de Alagoas. ―A história da Província passa a ser contada a partir dos
interesses de classe dos grandes proprietários rurais e da burguesia mercantil urbana”
(Lindoso, 2005, p. 37).
Ao longo do séc. XIX, o riacho Maceió colocava-se como um elemento cada vez mais
incorporado ao ambiente urbano. O próprio fato de conservar o mesmo nome da cidade revela
muito de sua importância e visibilidade, possivelmente potencializadas por marcar o acesso à
cidade (o Centro) através da frente marítima. Esse acesso dava-se por uma ponte que ao
longo do tempo foi sendo substituída por outras de materiais diversos, sendo inicialmente em
madeira, e posteriormente em ferro e por fim alvenaria. Pela ponte era possível controlar
entrada e saída de mercadorias e cobrar os devidos impostos para fins de receita provincial.
Contudo, a ponte oferecia limitações quanto à mobilidade, especialmente diante de enchentes
do riacho Maceió que eventualmente ocorriam. Aliado a isso, com a busca cada vez maior por
espaço para expansão urbana e maior mobilidade entre os núcleos existentes, o riacho
Maceió começa a se colocar como obstáculo ao ganho de território urbanizável na direção sul
(para onde se dirigia a sua foz) e a uma maior mobilidade entre o Centro e o porto. Essa
constatação acarreta em uma série de propostas e intervenções que contribuirão para uma
mudança física e simbólica do riacho Maceió, subtraindo significados e iniciando um processo
degenerativo do riacho e sua natureza.
Planos e enganos sobre o riacho e suas águas
O [...] riacho Maceió é um rio infante com as graves mazelas dos rios velhos.
Nisto, há um culpado: é o Homem que, criminalmente, cortou suas matas [...]
mata de sucupiras da margem esquerda, hoje substituída pelos casebres!.
(Brandão, 2001, p.103).
Com o destaque dado à Maceió e o seu porto no desenvolvimento econômico da Província,
ainda em 1820 surge a primeira proposição de organização física do espaço da até então vila
Maceió, que alcançaria a condição de capital da Província de Alagoas em 1839. Por ordem do
3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS
Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro
Governador da Província de Alagoas, Mello e Póvoas, e com o título Carta Topographica da
Capitania das Alagoas, o plano de traçado simples, segundo Cavalcanti (1998), desconsidera
a geografia existente na proposição de ruas e alargamentos das existentes.
Melo e Póvoas cuidou seriamente da vila. As suas preocupações não ficaram
limitadas às obras de defesa militar que realizou; foram adiante,
estenderam-se à remodelação urbana, traçando o plano de uma cidade,
cortada por grandes avenidas, partindo do mar para a lagoa‖. (Costa, 2001,
p.119).
Em decorrência da elevação de Maceió à Capital, em 1841 novo plano urbano é proposto,
onde segundo Cavalcanti (1998) é possível se perceber a expansão em sentido norte em
decorrência de terrenos pantanosos e cursos d´água como o riacho Maceió e outros em
sentido sul. Percebe-se que ambos apresentavam propostas limitadas pelos elementos
físicos existentes naqueles alagadiços e ainda pouco manipulados, seja pela ausência de
condições técnicas de fazê-lo, seja pelas limitações financeiras existentes.
Com o passar dos anos e uma maior estruturação da Capital, surge em 1865 uma proposta
gráfica de expansão do porto de Maceió. Nela é possível perceber que, apesar de se constituir
como elemento divisor dos dois núcleos de ocupação urbana naquele momento (Centro e
Jaraguá), o riacho ainda apresentava margens vegetadas, o que pode indicar uma vegetação
nativa ou das chácaras existentes na região, e ausência de ocupação em seu entorno
imediato. Apesar disso, já há relatos como no Relatório da Província das Alagoas em abril de
1875, acerca dos problemas em uma das pontes ocasionados pelas ―contínuas cheias‖ do
riacho Maceió, nesse momento já identificado como ―Reginaldo‖ pelo documento.
Em 1868 mais um plano é proposto, e pela primeira vez o riacho Maceió é incorporado
fisicamente em uma intervenção de expansão urbana. No plano é proposta uma malha
ortogonal com expansão da ocupação entre Centro e Jaraguá, sendo interrompida pelo curso
do riacho. Duas vias são propostas serpenteando o curso do riacho em direção ao mar, uma
ligando ao porto e outra ligando ao Centro, o que denota a prioridade às questões não só de
expansão urbana e ordenamento, mas aquelas referentes à mobilidade urbana e uma ligação
mais fluida entre os núcleos (Ilustração 01).
3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS
Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro
Ilustração 01: Montagem de diversos momentos da evolução urbana de Maceió e do riacho
homônimo através de planos e plantas da cidade.
Fonte: Autoras, 2014.
A existência do riacho, especialmente em seu último trecho onde segue paralelo ao mar,
compromete a ocupação de uma extensa área de planície considerando a escala da cidade
naquele momento. É possível observar que o riacho apresenta duas ―bocas‖, diferente do que
apresentava em 1865, variação possível devido à mobilidade da boca arenosa, segundo
Cavalcanti (1998).
Essa variação é perceptível a partir de uma simulação da mobilidade comparando cartografias
de 1841, 1865 e 1868 sobrepostas a uma planta de 1931 (Ilustração 02). Mesmo
considerando as limitações técnicas da época no que diz respeito à precisão quanto à posição
do curso do riacho e sua boca, certamente a mobilidade acontecia como é possível visualizar
em outros cursos d´água existentes no território de Maceió com características de mobilidade
similares. Assim constata-se a restrição à ocupação desse trecho por onde a foz se
movimenta, repleto de alagadiços.
3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS
Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro
Ilustração 02: Três momentos que mostram a mobilidade da foz do riacho Maceió, através
de sobreposição ao mapa de 1931 (traçado em vermelho): em 1841, 1865 e 1868 (em azul).
Fonte: Autoras, 2014.
Ao longo de todo o século XIX e especialmente no seu último quartel, com a instauração da
República que amplia as finanças públicas (Diegues Junior, 2001), Maceió sofre uma série de
intervenções com fins higienistas e de embelezamento que vão alterando a paisagem a partir
de novas técnicas e segundo os interesses da época. A partir da década de 1870 inicia-se
uma ocupação mais expressiva ao longo da frente marítima nas proximidades do porto,
especialmente após o projeto para sua estruturação finalizado em 1875 e que previa uma
ligação mais direta entre a lagoa Mundaú e o porto de Jaraguá e que deveria interferir na foz
do riacho Maceió. Nesse momento o riacho tinha seus meandros incorporados ao traçado
viário, estando devidamente inserido no meio urbano, apesar de jornais noticiarem sobre
enchentes como a de 1870, resultado das fortes chuvas, conforme Cavalcanti (1998).
Em decorrência de mais uma enchente, em 1871 é inaugurada a ponte de ferro que ficou
conhecida como Ponte dos Fonseca em substituição à antiga ponte em madeira que cruzava
o riacho Maceió, por ordem do presidente da Província José Bento da Cunha Figueiredo
Junior. O nome da ponte foi uma homenagem à família do Marechal Deodoro da Fonseca,
filho de Alagoas, que tinha ido à guerra no Paraguai com mais cinco irmãos e onde três deles
morreram. Provavelmente no mesmo momento de construção da ponte o riacho passa por
3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS
Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro
uma intervenção de embelezamento, sendo canalizado no trecho próximo à ponte dos
Fonseca de forma a valorizar o acesso à cidade pela praça Euclides Maia, atual praça
Visconde de Sinimbú, conforme registrado em antigos cartões postais do período.
Embora tenha sofrido pequenas intervenções nos últimos anos do séc. XIX, até o ano de
1902, quando é realizada uma planta da cidade, a área junto ao riacho Maceió ainda não
apresenta interferências significativas. Uma ocupação já se consolida junto à sua margem
direita, no lado do Jaraguá, enquanto do lado esquerdo junto ao Centro a ocupação mantém
alguma distância em relação ao riacho. Contudo, a vegetação existente na planta de 1865 não
mais é representada. A expansão urbana mais uma vez é buscada, desta feita para além dos
perímetros dos planos anteriores, englobando parte do planalto da cidade, só ocupado no séc.
XX, e também outras direções adjacentes aos núcleos iniciais, que ainda funcionam como
foco do processo expansivo.
Nas primeiras décadas do séc. XX Maceió continua a se desenvolver, ampliando suas frentes
de expansão a partir da ocupação do planalto da Jacutinga. Em abril de 1924 a ponte de ferro
(dos Fonseca) é destruída por uma enchente do riacho Maceió, deixando novamente
incomunicáveis os bairros do Centro e Jaraguá. Contudo, a ponte foi refeita, dessa vez em
alvenaria e sendo abaulada, pois estudos apontavam que o fato de a ponte de ferro ser reta
teria influenciado na sua destruição.
No plano de 1932 o riacho é retratado já englobando parte do médio curso, e aos poucos a
ocupação de suas margens vai se consolidando (Ilustração 03), especialmente com a
migração de outras populações em busca de trabalho e habitação. Esse processo se
prolongou ao longo do séc. XX e persiste atualmente, sendo um dos maiores fatores de
deterioração do riacho e suas margens.
3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS
Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro
1924
2013
Ilustração 03: Ocupações ao longo do curso já ocorriam no início do séc. XX e se
expandiram ao longo das décadas, espraiando-se por toda extensão da bacia hidrográfica.
Fonte: Autoras, 2014.
Já no início do séc. XX havia não apenas a degradação das margens do riacho como também
a sua ocupação com moradias simples e muitas vezes improvisadas. Sendo a paisagem
resultado de diferentes momentos históricos, a situação atual do riacho reflete as relações
entre sociedade e natureza acumuladas ao longo do processo de urbanização de Maceió,
assim como as consequências dessas na apropriação do elemento natural.
Segundo relatos encontrados em jornais e periódicos do início do séc. XX, percebe-se que
naquele momento já existe uma mudança de sentido do riacho para a população, quando o
mesmo inicia seu processo de poluição resultado da ausência de saneamento e da expansão
urbana ao longo de suas margens como resultado das influências da sociedade sobre o meio,
transformando-o segundo suas demandas.
A história atribui funções diferentes ao mesmo lugar. O lugar é um conjunto
de objetos que têm autonomia de existência pelas coisas que o formam –
ruas, edifícios, canalização, indústrias... mas que não têm autonomia de
significação, pois todos os dias novas funções substituem as antigas, novas
funções se impõem e se exercem. (Santos, 2012, p. 59).
3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS
Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro
Em fins da década de 1930 o porto passa por grande intervenção que implicou em novas
demandas para a área, como a ampliação da Avenida Duque de Caxias. Passa-se mais de
uma década e o riacho continua seu curso, criando um obstáculo à expansão urbana e
urbanização daquele trecho de costa. Reportagens como a veiculada em 1947 pelo Jornal de
Alagoas trata sobre a importância de uma intervenção de retificação do riacho, enfatizando a
estética da obra e a ―proteção das margens‖.
Assim, entre 1947 e 1948 o riacho Maceió sofre uma drástica intervenção que altera sua foz e
engessa sua condição natural de mobilidade que tanto dificultava a expansão urbana ao sul
devido aos alagadiços. A intervenção acarretou no aterro de boa parte de seu curso final, mais
precisamente todo o trecho que corria paralelamente ao mar, gerando expansão da planície
litorânea no sentido sul. Isso permitiu a ampliação da agora Avenida da Paz, toponímia em
homenagem ao fim da 2ª Grande Guerra, e permitiu a ocupação de todo o trecho que antes
sofria com as flutuações da boca do riacho. Assim aumentou-se a mobilidade entre áreas
urbanas e foram saneadas áreas alagadiças.
Com a alteração da posição da foz e seu engessamento, o local da nova boca atinge
diretamente um antigo balneário visitado pela população. A praia fica comprometida com a
sujeira trazida pelo riacho e torna-se imprópria para o banho até os dias atuais. Isso criou um
afastamento cada vez maior das pessoas em relação ao riacho, que passa a ser visto como
elemento indesejável e tem seu uso cada vez mais restrito, repercutindo até hoje. Percebe-se
a mudança de apropriação e significado de um elemento natural de grande importância
paisagística e que durante um século marcou o acesso à cidade (Ilustração 04).
―Posteriormente foi aquele curso d’água, que passava pela Praça Sinimbu,
desviado para o oitão do Hotel Atlântico, por onde sai toda a poluição de parte
da Cidade infestando a Praia da Avenida e toda a Enseada de Jaraguá [...]‖.
(Pedrosa, 1998, p. 26).
3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS
Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro
Ilustração 04: Comparação entre cartão postal (1910-1911) com riacho Maceió em
primeiro plano; e a situação do riacho atualmente, quase 70 anos após a retificação.
Fonte: Autoras, 2014.
A intervenção também promoveu a retificação dos meandros do riacho, o que pode ter
contribuído para uma nova enchente em 1949. A enchente parece ter ocorrido como resposta
à drástica intervenção provocada pelo homem que alterou o riacho retificando seus meandros,
devastando sua mata ciliar e contaminando ainda mais o seu leito. A retificação de parte do
seu percurso tornou mais direto o encontro do riacho com o mar, agora em ângulo
perpendicular. Também contribuiu para potencializar a velocidade das águas, e
consequentemente o poder das enchentes. ―A natureza atua sobre o Homem e,
inversamente, o Homem atua sobre a natureza. Resulta, daí, uma ação recíproca‖ (Brandão,
2001, p. 10). Uma reportagem veiculada em 21 de Maio de 1949 do Jornal de Alagoas revela
o caos que era vivenciado naquele momento em decorrência da enchente, com mortes,
destruição e epidemias como tifo.
Dessa forma o riacho faz uma transição, de elemento parte de um território natural passa a
fazer parte de um meio artificial resultado da ocupação urbana em que inicialmente é aceito,
mas aos poucos é transformado pelo uso da técnica e segundo os interesses de cada
momento histórico. Como afirmava Santos (2006, p. 62):
―[...] o mesmo objeto, ao longo do tempo, varia de significação. Se as suas
proporções internas podem ser as mesmas, as relações externas estão
sempre mudando. Há uma alteração no valor do objeto, ainda que
materialmente seja o mesmo, porque a teia de relações em que está inserido
opera a sua metamorfose, fazendo com que seja substancialmente outro.
Está sempre criando-se uma nova geografia‖.
3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS
Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro
Ou seja, um mesmo ―objeto‖ (neste caso o riacho) adquire diversos significados ao longo de
sua existência, conforme as relações que se dão entre sociedade e território gerando o
espaço habitado.
Considerações finais
A reflexão realizada esclarece elementos fundamentais da evolução histórica da cidade de
Maceió, mostrando que as consequências das ações antrópicas implicam em grandes
transformações no meio urbano, seguida de um distanciamento cada vez mais evidente do
espaço natural, de modo que com o passar dos anos perde-se no imaginário coletivo símbolos
e significados tão importantes no processo histórico de produção urbana de uma cidade.
Esse processo aconteceu com o riacho Maceió, que após as grandes transformações guiadas
pelos princípios higienistas e progressistas o riacho que pode ter dado o nome à cidade e era
significativo elemento na paisagem urbana tornou-se um dos principais meios de escoamento
de esgoto.
O riacho Maceió, assim como outros elementos naturais presentes na geografia primitiva do
território e com significativo papel no processo histórico da produção, foi sofrendo
transformações, artificializando-se através das retificações e mudança do curso, e ao mesmo
tempo distanciando-se do contexto urbano, quando antes existia a sua integração.
Pode-se dizer que o riacho não mais se apresenta como elemento natural de importância
paisagística e simbólica em Maceió, mas como um elemento indesejável que apresenta sérios
problemas decorrentes do despejo de esgotos sem tratamento, agravados pela ocupação ao
longo de toda a sua bacia. que corre paralelamente à ocupação urbana do Planalto da
Jacutinga (Farol). As matas, que vinham em processo de desmatamento já denunciado por
Brandão em 1917 foram extintas, substituídas por um grande adensamento de habitações
precárias que despeja seus dejetos no riacho por ausência de saneamento. A devastação de
suas margens também comprometeu o volume de suas águas, gerando grande escassez nos
dias atuais. A sociedade não o reconhece mais como riacho, e pouco se sabe ou se fala sobre
o que foi um dia o riacho Maceió e sua importância para a história da cidade e de sua
ocupação.
O estudo dos Planos Urbanos propostos para Maceió no séc. XIX até meados do séc. XX,
aliado a informações históricas e documentais, possibilitou uma maior compreensão sobre as
relações estabelecidas entre território natural e construído na ocupação urbana de Maceió. O
3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS
Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro
riacho Maceió, assim como outros elementos naturais presentes na geografia primitiva do
território, foi sofrendo um processo de transformação, artificializando-se e ao mesmo tempo
distanciando-se do contexto urbano, quando antes existia a sua integração e apropriação pela
sociedade. Os planos urbanos, embora representem territorialmente o espaço, não podem
trazer o elemento dinâmico que diferencia e distingue o território do espaço, que é animado
pelos seres sociais, segundo Santos (2006). Apesar disso, podem auxiliar na construção da
evolução urbana, podendo insinuar ou mesmo revelar parte das relações sociais que
compreenderam o espaço em determinado momento histórico, colaborando no entendimento
do presente e orientando possíveis mudanças na qualidade do espaço resultante,
considerando um maior equilíbrio entre sociedade e meio natural.
Referências
ALMEIDA, Luiz Sávio de. (org.). Traços e Troças: literatura e mudança social em Alagoas.
Estudos em homenagem a Pedro Nolasco Maciel. Maceió: EdUFAL, 2011.
ANTUNES, Lúcia M. S (org.). Rios e Paisagens Urbanas em Cidades Brasileiras. Rio de
Janeiro: Editora Viana & Mosley: Editora PROURB, 2006.
BRANDÃO, Octávio. Canais e Lagoas. 3 ed. Maceió: EdUFAL, 2001. v.1.
CAVALCANTI, Veronica Robalinho. ―La production de l’espace à Maceió (1800-1930).‖
Tese de doutorado em Desenvolvimento econômico e social. Université de Paris I,
Panthéon-Sorbonne, 1998.
COSTA, Craveiro. Maceió. Maceió: Editora Catavento, 2001.
DIEGUES JUNIOR, Manuel. ―Evolução urbana e social de Maceió no período
republicano‖. In: COSTA, Craveiro. Maceió. Maceió: Edições Catavento, 2001. pp. 155-177.
DUARTE, Abelardo. ―As Características histórico-geográficas da cidade de Maceió‖. In:
Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas. Maceió: Imprensa Oficial, 1982. pp. 1330.
LINDOSO, Dirceu. Interpretação da Província – Estudo da Cultura Alagoana. 2 ed. Maceió:
EdUFAL, 2005.
3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS
Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro
MACEIÓ. Código de Posturas da Câmara de Maceió. Lei 32 de 03 de dezembro de 1845.
Disponível em:
<http://books.google.com.br/books?id=Z61BAAAAYAAJ&pg=PA505&dq=lei+provincial+1837
+alagoas&hl=pt-BR&sa=X&ei=tluWU9n1Cq_NsQTeuoDgAw&ved=0CCkQ6AEwAA#v=onep
age&q=lei%20provincial%201837%20alagoas&f=false>. Acesso: fev 2014.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia. Tradução de
Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. — São Paulo: Ed. 34, 1997. v.5.
PEDROSA, José Fernando de Maya. Histórias do Velho Jaraguá. Maceió: Editora
Talentos, 1998.
RELATÓRIO da Província das Alagoas de 25 de abril de 1875. Disponível em:
<http://www.crl.edu/brazil/provincial/alagoas>. Acesso em: fev 2014.
SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo:
EdUSP, 2006.
_____________. Metamorfoses do Espaço Habitado: fundamentos teóricos e
metodológicos da geografia. São Paulo: EdUSP, 2012.
3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS
Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro
Download

Baixar artigo completo