. A ESTRADA
No inverno de 2005, Erika foi visitar o pai, Isak Lövenstad. A viagem estava
demorando mais do que o previsto, e ela sentiu uma vontade imensa de dar meia-volta e
tomar novamente o caminho de Oslo, mas seguiu em frente, mantendo o celular no
banco a seu lado, para poder ligar para ele a qualquer momento e dizer que havia
desistido da visita. Dizer que afinal de contas não iria mais. Teriam de fazer isso em
outra ocasião. Poderia dizer que era por causa do tempo, da forte nevasca. A mudança
de planos teria sido um grande alívio para os dois.
Isak tinha oitenta e quatro anos e vivia sozinho em uma pequena casa branca de calcário
em Hammarsö, uma ilha na costa leste da Suécia. Especialista em ginecologia, havia
adquirido fama como um dos pioneiros do ultrassom. Agora aposentado, gozava de boa
saúde e seus dias transcorriam de forma agradável. Todas as suas necessidades básicas
eram providas por Simona, antiga moradora da ilha. Simona cuidava para que todos os
dias ele tivesse uma refeição quente no almoço e no jantar; limpava a casa de cima a
baixo uma vez por semana; fazia compras, espanava o pó e lavava suas roupas, que não
eram muitas. Também o ajudava com a declaração anual de imposto de renda e com as
contas. Isak ainda tinha todos os dentes na boca, mas no ano anterior havia
desenvolvido uma catarata no olho direito. Segundo ele, era como ver o mundo através
da água.
Isak e Simona raramente se falavam. Ambos preferiam assim.
Depois de uma vida longa e atribulada em Estocolmo e Lund, Isak havia se mudado
definitivamente para Hammarsö.
A casa ficara doze anos vazia, e durante esse tempo ele havia considerado mais de uma
vez a possibilidade de vendê-la. Em vez disso, decidiu vender os apartamentos de
Estocolmo e Lund e passar o resto de seus dias na ilha. Simona, contratada por Isak no
início dos anos 70 para ajudar Rosa a cuidar da casa (apesar de ele saber que Rosa era o
tipo de mulher que, ao contrário de sua ex-mulher e de suas amantes, raramente
precisava de ajuda com o que quer que fosse, sobretudo com a casa, que mantinha
sempre perfeita), insistiu para que ele se entregasse a seus cuidados e a deixasse cortar
seu cabelo regularmente. Ele queria deixar o cabelo crescer. Não havia para quem cortálo, dizia. No entanto, para restaurar o silêncio entre eles, que ambos preferiam,
chegaram a um meio-termo. No verão, o cocuruto de Isak ficava tão pelado, reluzente e
azul quanto o globo com que ele presenteara cada uma de suas três filhas, Erika, Laura e
Molly, quando elas completaram cinquenta anos; no inverno, ele deixava os cabelos
crescerem à vontade, o que lhe dava um aspecto imponente e grisalho, quase branco,
que aliado a seu rosto atraente, enrugado e envelhecido sugeria a pontinha de um rauk,
uma daquelas colunas de pedra de quatrocentos milhões de anos que brotavam do mar,
tão típicas de Hammarsö.
Erika pouco viu o pai depois que ele se mudou para a ilha, mas Simona tinha lhe
mandado duas fotografas. Uma do Isak cabeludo e outra do Isak quase careca. Erika
gostava mais do cabeludo. Alisou a fotografa com o dedo e beijou-a. Imaginou o pai na
praia cheia de pedras de Hammarsö, braços erguidos, cabelos ao vento, com aquela
longa barba postiça que costumara usar ao ensaiar as falas do Velho Sábio para o
Festival de Hammarsö de 1979.
Rosa - segunda mulher de Isak e mãe de Laura - tinha morrido de uma doença
degenerativa dos músculos no início da década de 90. Fora a morte de Rosa que fizera
Isak voltar para Hammarsö. Nos doze anos em que a casa havia permanecido vazia,
houvera apenas visitas ocasionais de Simona. Ela varrera os insetos que davam um jeito
de entrar na casa todo verão e que jaziam mortos no peitoril das janelas todo inverno;
mandara trocar as fechaduras depois de um arrombamento sem importância e passara
um pano no chão depois que os canos estouraram, alagando tudo. Mas não podia fazer
nada contra o estrago causado pela água e toda a deterioração, enquanto Isak não se
dispusesse a pagar alguém para ir fazer o conserto.
- Por mais que eu me esforce, a casa vai se estragar - disse ela em uma de suas breves
conversas telefônicas. - Você vai ter que vender, reformar ou vir morar nela outra vez.
- Ainda não. Não vou tomar nenhuma decisão ainda - respondeu Isak.
Mas então o corpo de Rosa a deixou na mão, e embora seu coração fosse forte e não
quisesse parar de bater, Isak e um colega haviam decidido no fim que Rosa deveria ser
poupada. Depois do funeral, Isak deixou bem claro para Erika, Laura e Molly que
pretendia cometer suicídio. Os remédios haviam sido providenciados, o ato
cuidadosamente planejado. Apesar disso, mudou-se de volta para a casa.
Molly nasceu, contra a vontade de Isak, no verão de 1974.
Quando a mãe de Molly, que se chamava Ruth, estava dando à luz em um hospital de
Oslo, Rosa ameaçou deixar Isak. Fez duas malas, chamou um táxi do continente,
segurou a filha Laura pela mão e disse:
- Enquanto você continuar levando qualquer rabo-de-saia para a cama e o resultado
disso for um bebê, não há lugar para mim na sua vida. Nem nesta casa.
Tudo isso aconteceu um pouco antes do Festival de Hammarsö daquele ano, o
espetáculo anual de teatro amador escrito e produzido por Palle Quist. O Festival de
Hammarsö era uma tradição na ilha; tanto turistas quanto moradores contribuíam de
diversas maneiras, e o evento já havia sido coberto várias vezes pelo jornal da região,
nem sempre com um viés favorável.
Quando Rosa teve seu acesso de fúria, o único até onde Erika conseguia se lembrar,
Laura chorou e disse que não queria ir embora. Erika também chorou, vendo se estender
à sua frente longas férias de verão na companhia apenas do pai, grande demais para ela
conseguir sozinha preparar sua comida ou reconfortá-lo.
Ruth ligou duas vezes. Na primeira, para dizer que as contrações estavam se sucedendo
a intervalos de cinco minutos. Trinta e duas horas depois, ligou para dizer que tinha
dado à luz uma filha. Soube no mesmo instante que a menina iria se chamar Molly.
Pensou que Isak pelo menos fosse gostar de saber. (Não? Ah, é? Então ele que fosse
para o inferno.)
Ambas as ligações foram feitas de um telefone público no corredor do hospital.
Isak passou essas trinta e duas horas acalmando Rosa e convencendo-a a não ir embora.
O táxi que esperava em frente à casa foi despachado, depois chamado outra vez horas
mais tarde, apenas para ser novamente dispensado.
Isak disse que não conseguia viver sem Rosa. Aquela história com Ruth não passava de
um grande mal-entendido.
Isak mandou Erika e Laura saírem da cozinha várias vezes, mas as meninas
continuavam a inventar novas desculpas para ir incomodá-los: estavam com sede,
estavam com fome, estavam procurando a bola de futebol. No final das contas, Isak
soltou um rugido e disse que se elas não deixassem ele e Rosa conversarem em paz
arrancaria o nariz delas, então as irmãs se esconderam atrás da porta e ficaram
escutando. Nessa noite, quando Isak e Rosa achavam que as meninas estivessem na
cama, elas voltaram para seu posto atrás da porta da cozinha, enroladas em suas
cobertas.
Durante a noite, Isak quase conseguiu convencer Rosa a aceitar a palavra mal-entendido
sem ser preciso explicar exatamente quem havia entendido mal quem - se Rosa, Ruth ou
o próprio Isak - nem como aquela situação desagradável havia surgido.
Sim, Isak tinha ido a uma conferência em Oslo nove meses antes. Isso era fato.
Sim, ele conhecia Ruth (na época apenas uma bela parteira de cabelos louros que
admirava Isak). Isso também era fato.
Sim, ele tivera um contato esporádico com ela tanto antes quanto depois da conferência.
Não negava isso.
Mas Isak não conseguia fornecer nenhuma explicação adequada para o fato de Ruth
estar naquele momento em um hospital de Oslo, em pleno trabalho de parto de seu
primeiro filho, afirmando que o pai era ele.
Era aí, segundo Isak, que devia ter ocorrido algum mal-entendido terrível.
Depois de muitas horas de discussão, pontuada por muitas portas batidas e murmúrios
ressentidos, Rosa preparou um chá para ela e Isak. As duas malas azuis que tinha feito
para si e para Laura continuavam no meio da cozinha. A última coisa que Laura viu de
seu esconderijo atrás da porta foi seu pai e Rosa sentados um de cada lado da mesa da
cozinha debaixo da grande luminária pendente - também azul -, cada qual segurando
uma xícara de chá. Ambos olhavam pela janela. Ainda estava escuro lá fora.
E quando Ruth ligou na manhã seguinte bem cedo para informar Isak que ele tinha uma
filha linda e saudável de três quilos e quatrocentos gramas e quarenta e nove
centímetros de comprimento, e que de modo geral o parto havia corrido bem, ele jogou
o telefone no chão e gritou MALDIÇÃO. Rosa, que estava em pé logo atrás dele, de
camisola de bolinhas, com os cabelos compridos soltos e desgrenhados, pegou o
telefone do chão, levou-o à orelha e ouviu o que estava sendo dito do outro lado.
Assentiu, disse alguma coisa em resposta, tornou a assentir.
Erika e Laura, que tinham sido acordadas pelo toque do telefone e pelo grito
MALDIÇÃO do pai, saíram da cama de fininho e voltaram para seu esconderijo atrás da
porta. Não conseguiam ouvir o que Rosa dizia. Ela falava baixinho. O telefone era
vermelho e tinha o formato de um periscópio, com o disco na base e um fio comprido
que permitia levá-lo por toda a casa. Quando Rosa encerrou a conversa, puxou o fio
para recolhê-lo e tornou a pôr o telefone em seu lugar, na mesa do hall. Voltou para a
cozinha e abraçou Isak, que estava em pé no meio do cômodo, ao lado das malas.
Sussurrou alguma coisa em seu ouvido. Ele recostou a cabeça em seu ombro. Passaram
muito tempo assim.
Erika ouviu-o dizer:
- Ela nunca deveria ter tido esse maldito bebê.
Nos dias seguintes, Erika e Laura conversaram sobre o possível significado disso: ela
nunca deveria ter tido esse maldito bebê. Perceberam que a confusão se devia a uma
norueguesa chamada Ruth, a mãe. Segundo Laura, o pai, que sabia mais sobre ter bebês
do que a maioria das pessoas, estava zangado porque a norueguesa não havia esperado
ele chegar para ajudar.
- Ajudar a fazer o quê? - perguntou Erika.
- A tirar o bebê - respondeu Laura.
Erika disse que não acreditava nisso. O pai tinha dito com voz alta e clara que não
queria o bebê, então por que ele iria ajudar?
Laura disse que talvez ele pudesse ter ajudado a enfiar o bebê de volta na mãe.
Erika disse que não se podia fazer isso.
Laura disse é claro que sabia que não, ela só estava brincando.
Agora, passados mais de trinta anos, Isak muitas vezes dizia ao telefone que todas as
noites acendia velas para as filhas. Uma vela para Erika, outra para Laura, outra para
Molly, dizia. Sempre que podia, fazia questão de mencionar para Erika esse seu ritual.
Erika achava que o pai fazia isso porque queria que ela comentasse o fato com Molly,
que, apesar de ter perdido a mãe, Ruth, a parteira de cabelos louros, em um acidente de
carro aos sete anos de idade e de ter ido morar com a avó e não com o pai, nunca havia
deixado de amá-lo.
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