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OS FILHOS DO SOL E O IMAGINÁRIO ANDINO
Bethoven Soares Darcie1
[email protected]
Resumo: Por meio desse ensaio, pretendemos analisar a força dos
símbolos e o imaginário acerca do Inca, assim como a representação
desses na sociedade peruana através do tempo. Para tanto,
utilizaremos relatos acerca da origem dos incas, tentando compreender
como eles concebiam sua história, como legitimavam a dominação de
outras culturas e como glorificavam os atos/atitudes de seus
antecessores por meio de mitos, que outorgavam uma sustentação
simbólica do império no imaginário de sua sociedade. Nesse sentido,
examinaremos, também, como o imaginário acerca do Inca –
imperador dos incas – perpassou o período dessa civilização,
influenciando em levantes contra a coroa espanhola, representando
uma crença na volta do período áureo do Tahuantinsuyu.
Palavras chaves: imaginário, simbólico, representação, Inca.
Resumen: En esto artículo hacemos una analise acerca de la fuerza de
los símbolos y lo imaginario de la cultura inca, así como la
representación de esos en la sociedad del Peru en el tiempo. Para eso,
haremos uso de textos acerca de la origem de los incas, intentando
comprender como ellos concebian suya historia, como legitimam la
dominación de otros povos y como glorificam las acciones de suyos
descendientes en médio de los mitos, ortorgando una sustentación
simbólica del imperio en el imaginario de su sociedad. En esto
sentido, examinaremos, también, como el imaginario acerca de lo Inca
– jefe de los incas – perpasó el periodo de esa civilización, tenendo
influenza en levantes contra los españoles, una representación de la
crenza en el retorno de lo periodo de oro de lo Tahuantinsuyu.
Palabras llaves: imaginación, simbólico, representación, Inca.
INTRODUÇÃO
Historiador, graduado pela Universidade Católica de Goiás (UCG), especialista
em História Local, Regional e Nacional pela Universidade Federal de Goiás
(UFG) e mestrando pela UFG.
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Por meio desse ensaio, pretendemos analisar a força dos
símbolos e o imaginário acerca do Inca, assim como a representação
desses na sociedade peruana através do tempo.
Para tanto, utilizaremos relatos acerca da origem dos incas,
tentando compreender como eles concebiam sua história, como
legitimavam a dominação de outras culturas e como glorificavam os
atos/atitudes de seus antecessores por meio de mitos, que outorgavam
uma sustentação simbólica do império no imaginário de sua
sociedade.
Nesse sentido, examinaremos, também, como o imaginário
acerca do Inca – imperador dos incas, que após assumir o império,
passava a ser reconhecido como Intip Churin, Filho do Sol, adquirindo
uma descendência divina – perpassou o período dessa civilização,
influenciando em levantes contra a coroa espanhola, representando
uma crença na volta do período áureo do Tahuantinsuyu – termo como
era denominada a totalidade territorial do império inca, e que pode ser
traduzido do quéchua (língua dos incas) como o território dos quatro
pontos cardeais, ou a localidade dividida em quatro partes.
Como afirma Chartier,
As percepções do social não são de forma alguma discursos
neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares,
políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros,
por elas menosprezados, a legitimar um projecto reformador ou a
justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e
condutas. Por isso esta investigação sobre as representações
supõe-nas como estando sempre colocadas num campo de
concorrências e competições cujos desafios se enunciam em
termos de poder e dominação. As lutas de representações têm
tanta importância como as lutas econômicas para compreender os
mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua
concepção do mundo social, os valores que são seus, e o seu
domínio.i
Existem várias versões de mitos acerca da origem dos Incas,
diferenciando-se cada qual em alguns detalhes. O que não deixa de ser
compreensível, visto terem sido repassados oralmente, por diferentes
representantes dessa civilização, cada qual com sua subjetividade,
participante de um determinado segmento social, e tendo
especificidades, tanto no relacionamento como na maneira de ver sua
própria cultura.
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Não possuímos a pretensão de adentrar na discussão acerca da
temporalização dos relatos, nem quanto ao aspecto de algum deles ser
uma resposta às crenças aceitas como “civilizadas” no período em que
foram escritas. Procuraremos, tão somente, analisar como enxergavam
sua história, como interagiam com os outros, uma forma de
descortinarmos nuances das visões da cultura inca acerca de sua
própria sociedade. De qualquer forma, esses relatos dos cronistas da
época podem e devem ser usados como fontes para tarefa de melhor
conhecer essa importante civilização.
O imaginário da origem inca e suas representações sócio-culturais
Primeiramente, apresentaremos o mito de Wiraccocha – também
conhecido como Viracocha ou Viraquocha –, escrito a partir do relato
de Esteban Ierardo, retirado do livro dos irmãos Fernando e Edgar
Elorrieta Salazarii.
Antes do domínio dos Incas, Wiraccocha criou um mundo
escuro, habitado por seres gigantes, e ordenou a eles que vivessem em
paz. Como não foi obedecido, transformou-os em pedra e inundou sua
criação com um dilúvio, chamado Unu Pachacuti – água que
transformou o mundo.
Posteriormente, Wiraccocha repovoou o mundo, dessa vez com
claridade. Para tanto, dirigiu-se ao lago Titicaca e fez com que o sol, a
lua e as estrelas subissem ao céu para iluminar a terra.
Wiraccochan ou Tunupa, mensageiro de Wiraccocha, foi enviado
à Terra para educar os povos. Seguindo para Tiahuanaco, ele mandou
o povo sair de seus locais de origem – pacarina, em quéchua –,
multiplicar e ocupar a terra. Vários saíram do solo, alguns de lagos,
fontes, árvores, dentre outros lugares. Aos poucos, o enviado foi
nomeando os povos, as árvores, os frutos, ensinando as pessoas a
viver, do que se alimentar, como cultivar.
Após vários feitos, Wiraccochan entrou no mar, caminhando
sobre as águas, e se foi.
Passado algum tempo, um cajado que o representante de
wiraccocha havia deixado, transformou-se em ouro no momento de
nascimento do que foi denominado Manco Capac, o primeiro Inca.
Já no mito dos irmãos Ayar, diz-se que, após um grande dilúvio,
surgiram de sua pacarina quatro homens, cada qual acompanhado de
uma mulher: Ayar Manco (Manco Capac) e Mama Ocllo, Ayar Cachi
e Mama Cora, Ayar Uchu e Mama Rahua, e Ayar Auca e Mama
Huauco.
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Ao verem a pobreza da terra e dos povos, resolveram procurar
um local melhor. Após anos e anos de caminhada, sobraram Manco
Capac, sua irmã e esposa Mama Ocllo e as outras mulheres.
Encontrando um bom local, fundaram Cuzco, capital do
Tahuantinsuyu, em nome dos deuses wiraccocha e Sol.
Em outro relato, de Manco Capac e Mama Ocllo, o Sol, ao ver o
estado penoso dos povos que habitavam a terra, criou esse casal de
irmãos para civilizar o mundo, encarregando-os de fundar um reino e
implantar o culto ao Sol.
Eles saíram das espumas do lago Titicaca e possuíam um cetro de
ouro que, ao chegar ao local para implementar sua sociedade, fundirse-ia com o terreno até desaparecer.
Quando chegaram ao local em que o cetro fundiu-se à terra,
fundaram Cuzco. Manco Capac mandou seus acompanhantes ocupar a
parte alta do vale, denominando-o Hanan Cuzco. Por sua vez, os que
acompanhavam Mama Ocllo, povoaram a parte baixa, chamada Hurin
Cuzco. Capac ensinou os homens a melhorar a terra, cultivando-a e
construindo canais, enquanto sua esposa e irmã repassou para as
mulheres seus conhecimentos sobre costura, cozinha e tear.
Devemos dizer que esses relatos não foram escolhidos a esmo, e
sim por possuírem aspectos representativos de suas relações sócioculturais. No primeiro, podemos notar a presença de Wiraccocha, o
deus criador, a primeira divindade inca, embora o culto ao Deus Sol
tenha sido o mais difundido entre a civilização e obrigatório aos povos
dominados.
Manco Capac – o qual se encontra em todos os mitos – é
considerado o herói civilizador, aquele enviado por Tata Inti – papai
sol –, para levar o conhecimento e a paz aos habitantes de
Tahuantinsuyu. Não podemos deixar de notar esse dever de civilizar
como uma justificativa para a dominação de outras culturas,
legitimando, inclusive, a perda da autonomia de outros povos, ao
serem forçados a se unir em nome da “superioridade” inca.
Assim foi feito, os incas dominaram e subjugaram outras etnias,
o que, cada vez mais, os fortalecia e os levava a outras batalhas de
conquista. Além dessas, houve casos de povos, como os Chinca, que
se associavam aos incas para poderem usufruir dos benefícios do
império, evitando uma possível invasão. Dessa forma, pouco a pouco,
com batalhas e associações, foi sendo implementado o maior império
pré-colombiano.
Ao contrário da civilização Asteca – contemporâneos que
ocupavam o espaço onde é o México na atualidade –, que cultuavam a
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guerra, os incas não exaltavam exarcebadamente as funções militares,
sendo a paz o bem supremo.
Obviamente, essa paz, muitas vezes, era conseqüência de guerras
e batalhas, assim como os atos que celebravam a vitória possuíam uma
certa dose de crueldade aos nossos olhos. Os chefes vencidos eram
lançados ao pé do Inca e, posteriormente, decapitados e seus restos
mortais usados para confecção de utensílios e instrumentos musicais.
Vale ressaltar essa aparente crueldade ser característica da época, não
devendo, por isso, serem considerados como exemplos de povos
cruéis por terem valores diferenciados dos cultuados na atualidade.iii
Não há como deixarmos de ver uma similaridade entre os incas e
os colonizadores europeus, sejam os espanhóis, sejam os portugueses,
visto esses legitimarem a dominação dos hereges, dos selvagens
(como eram denominadas outras culturas), em nome da fé cristã.
Como encarregados de difundir a fé ao Deus único e a moral do
cristianismo, eles possuíam o “dever” de catequizar os pagãos, nem
que fosse por meio da guerra santa.
Voltando para a análise acerca dos incas, em suas crenças,
Wiraccocha e o Sol eram deuses complementares, cada qual tendo,
inclusive, seu local, ao Sol vinculavam-se a parte de cima, o céu, o
fogo, a serra, enquanto Wiraccocha está para a parte de baixo, a terra,
a água, a costa, formando, assim, uma visão global do Tahuantinsuyu
– com a grande diferença inerente a seu território, entre os Andes e a
parte costeira.
Cuzco foi fundada em nome dessas duas divindades. Wiraccocha
era o Deus máximo dos Tiahuanacos, vencidos pelos incas, sendo essa
uma das razões dele não ser o Deus principal, embora fosse o criador
da terra dos descendentes do Filho do Sol. Mesmo assim a ele eram
realizados cultos secretos.
Com a dualidade, tanto divina, quanto territorial, podemos notar,
também, a divisão feita no relato de Manco Capac e Mama Ocllo,
cada qual povoa uma parte de Cuzco, ficando a forte, de cima para ele,
e a fraca, de baixo para ela.
Assim como Eva era (é) o modelo feminino para a sociedade
cristã ocidental, Mama Ocllo pode ser vista como o dos incas, nesse
sentido a questão do gênero entre os incas se faz presente. Ás
mulheres a cozinha, a costura, aos homens cultivar a terra, abrir
canais, guerrear, estudar os astros e dominar outros povos. Desse
modo, constatamos a relação entre os homens e as tarefas que eles
consideravam superiores, os homens em um local mais alto, o chefe, o
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que manda, enquanto à mulher cabe a parte de baixo, relacionada com
a inferioridade, como um ser complementar.
Por outro lado, no relato dos irmãos Ayar, os incas tentam dar
uma origem comum aos diferentes grupos que se reuniram em uma
confederação: Sawasiray, representada por Ayar Cachi; Allkawisa, por
Ayar Uchu; Maras, por Ayar Auca; e os Incas, por Ayar Manco.iv
Devemos dizer que, vários dos aspectos culturais atribuídos aos
incas foram, na realidade, apropriados de outros povos. Isso nos
propicia realizar a leitura do mito dos irmãos Ayar como uma
justificativa, para própria sociedade, de uma origem una para todas
essas culturas e de uma superioridade dos incas, visto o único homem
a fundar o berço do império ser Manco Capac.
É interessante constatarmos por meio desse relato o poder
simbólico do Inca, descendente direto do Deus Sol e quem fazia a
interligação entre o divino e o humano. Criando e reforçando no
imaginário de seu povo um passado glorioso, dando uma imagem de
naturalidade para o império. Afinal, se eles eram os civilizadores,
cabia a eles, também, o comando dessa civilização. Instaurando,
assim, uma característica positiva para as conquistas, as batalhas, a
dominação.
Outro ponto que podemos destacar, é o de o simbolismo ser
criado/forjado, a partir de outro(s) símbolo(s), ou de acontecimentos
passados, reforçando-os, ou contrapondo-os. Ora, esse mito remonta à
chegada dos incas ao Tahunantinsuyu, quando esse já era ocupado por
outras etnias, o que é um fato – pelo menos aceito na atualidade. A
partir daí, eles realizam uma leitura própria, representando uma
pretensa superioridade, uma descendência divina e não uma luta pelo
poder, tornando natural, até mesmo, a ocupação dos mais altos postos
da hierarquia do império.
A importância desses relatos/mitos/lendas, podem ser constatadas
por suas representações e justificativas da origem de seus
descendentes, como os civilizadores de Tahuantinsuyu. Por meio
desses, conseguimos visualizar parte do imaginário inca, a questão do
gênero e a maneira de se relacionarem com o território, uì¥Á1339
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7137œ137137$137erritorial do período pré-colombiano.
Que arco-íris é este negro arco-íris que se levanta?
para o inimigo de Cuzco horrível flecha que amanhece
por toda parte granizada sinistra golpeia
(...)
O sol torna-se amarelo, anoitece, misteriosamente;
amortalha Atahualpa, seu cadáver e seu nome;
a morte do Inca reduz o tempo que dura uma piscada
(...)
As nuvens do céu já estão ficando negras;
a mãe lua, angustiada, com o rosto enfermo, torna-se pequena.
e tudo e todos se escondem, desaparecendo, padecendo.
A terra se nega a sepultar seu Senhor,
como que envergonhada do cadáver de quem a amou,
como se temesse devorar seu guia
(...)
As lágrimas em torrentes, juntas, se recolhem.
que homem não cairá em pranto por quem amou?
Que filho não há de existir para seu pai?
(...)
Acabou-se já em tuas veias o sangue;
apagou-se em teus olhos a luz;
no fundo da mais brilhante estrela caiu teu olhar
(...)
Sob estranho império, acumulamos os martírios, os destruídos;
perplexos, extraviados, negada a memória, sozinhos;
morta a sombra que protege, choramos;
sem Ter a quem ou aonde nos voltar, estamos delirando.
Suportará teu coração, Inca,
nossa errante vida dispersada,
pelo perigo sem conta cercada, em mãos alheias, pisoteada?
Teus olhos, que como flechas de felicidade feriam, abre-os;
tuas magnânimas mãos estende-as;
e com essa visão fortalecidos, despede-nos.v
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Criado como despedida, após o assassinato de Atahualpa pelos
espanhóis, esse cântico demonstra o significado simbólico do Filho do
Sol para sua cultura e o poder do imaginário acerca do Inca. Foi-se o
protetor de seu povo, foi-se o elo entre homens e deuses. Sem mais
herdeiros de Manco Capac, quem poderia guiar o povo contra a sede
de almas e metais da Espanha? Quem poderia receber o toque divino
para erguer o império contra os invasores? Sem dúvida, com a morte
do Filho do Sol, o domínio de seu povo se tornava mais fácil, como
um representante desse povo nos diz em seu cântico: (...) morta a
sombra que protege, choramos; sem Ter a quem ou aonde nos voltar,
estamos delirando.
Dessa maneira podemos sentir a força simbólica de algo ou
alguém, assim como sua interação com as instituições sociais e com os
membros de uma sociedade. Com o fim do elo entre as divindades e
os incas, as instituições perderam o sentido, a própria sociedade ficou
desamparada. Sem o símbolo (mais que o humano), como continuar a
luta com o mesmo ímpeto? Como crer no futuro, se o passado nos foi
tomado?
Lembremos que todo símbolo surge das ruínas simbólicas
outrora reinantes, sufocando-as ou revigorando-as, tomando sendas
muitas vezes improváveis, ou seguindo os caminhos abertos por seus
precedentes.
Assim, mesmo depois de vencido o império Inca, um grupo se
refugiou em uma área entre os rios Urubamba e Apurímac, sendo
vencidos em 1572. Seu último líder foi Túpac Amaru, mesmo nome
usado por José Gabriel Condorcanki Noguera Túpac Amaru,
descendente de Juana Pilcowaca, última filha do Inca morto naquele
ano.
Túpac Amaru, reconhecido como legítimo descendente do último
Filho do Sol, lidera uma rebelião em 1780, em nome da liberdade de
seu povo. Pelo fato de ser reconhecido como Inca para os andinos sua
luta possuía um simbolismo sagrado, pois o imaginário acerca do Inca
ainda sobrevivia. Nesse sentido, vários se dispunham a lutar e a
morrer a seu lado.
É sintomática a atitude de autoridades da coroa espanhola em
proibir, naquele período, qualquer livro que ensejasse relevância ao
império Inca como um período de ouro a retornar para salvação de seu
povo. Ora, essa era uma maneira de tentar estancar as crenças
sustentadoras nas quais os descendentes dessa civilização se apoiavam
tanto para fundamentar, como para fortalecer os levantes contra os
colonizadores.
Rev. REPPIL@, v.1, n. 1, p. 128-138, 2003.
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Mesmo após sua morte, outros se intitularam (ou foram
intitulados) Inca e encabeçaram levantes, como foi o caso de Pedro
Challco, a quem até milagres eram atribuídos.
Como podemos notar, mesmo passados séculos do
desmantelamento do império Inca, o imaginário apregoado de que um
chefe ligado aos deuses, unindo a sociedade para lutar por um sonho
de liberdade, ainda sobrevivia no seio daquele povo. Acreditavam que,
liderados por um homem nascido com o destino de aglutinar seu povo
e criar uma nova nação, poderiam reverter todo quadro de exploração
sofrido pelos andinos. É a representação do imaginário consolidando
uma luta contra os opressores, legitimando uma causa.
Mesmo na atualidade podemos comprovar a força da tradição dos
incas. Até hoje, no mês de junho, em Cuzco se celebra a Festa do Sol,
embora remodelada com costumes católicos, é uma forma de manter a
cultura de um povo. Da mesma forma grandes personagens que se
transformaram em mitos ainda são lembrados, como o nome de Túpac
Amaru, sobrevivendo como a denominação de um grupo guerrilheiro,
que até pouco tempo tinha uma força significativa. Ou mesmo usado
na disputa eleitoral para Presidente do Peru (2001), quando o povo
peruano acabou elegendo Alejandro Toledo, ou melhor, elegeram um
representante que foi apresentado como um peruano descendente de
“índio” – sendo este o codinome pelo qual era conhecido para se
contrapor ao “chino”, Fujimori, que possuía essa designação por sua
aparência/descendência oriental.
Assim, podemos ver, mais uma vez, o imaginário sendo utilizado
como um meio de conquista. Não queremos, com isso, dizer que os
eleitores do Peru viram Toledo como um descendente direto dos
imperadores Incas, mas, usar a estratégia da descendência dos
aborígines andinos contra o ditador identificado com outra cultura
para governar a população peruana, conquista votos, do mesmo modo
como facilita uma identificação com a continuidade da luta entre os
incas e seus conquistadores. Podemos notar o uso desse sentido em
uma reportagem, assim como nas palavras da Primeira Dama do Peru,
Eliane Karp, em Machu Picchu,
Con sutileza y calidez, Eliane Karp ofreció el triunfo de Toledo a
todos aquellos que resistieron la conquista española manteniendo
su tradición viva, su lengua, su vestimenta y su cultura. "Hemos
traído el tiempo del nuevo Pachacuti a la modernidad para que
vuelva el trabajo y la libertad para todos" concluyó.vi
Rev. REPPIL@, v.1, n. 1, p. 128-138, 2003.
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A batalha travada pela continuidade da cultura Inca, como forma
de legitimar a luta contra seus opressores, assim como dar
continuidade a suas tradições dá novo ânimo ao povo, ou pelo menos
parte dele, fortalecendo o sentimento de alteridade deles para com os
estrangeiros, tornando o sonho de liberdade uma representação,
interagindo com o sentido simbólico do Inca. Desse modo podemos
notar a tentativa do retorno a um tempo épico, correspondendo, na
tradição andina, a um período áureo, de liberdade e prosperidade para
os descendentes daquela civilização.
CONCLUSÃO
Como pudemos ver nesses casos, o simbolismo da cultura que
dominou os Andes antes da chegada dos espanhóis, ainda possui uma
grande força no imaginário de seu povo. Pois quando relembram seus
ritos, invocam seus deuses, denominam grupos guerrilheiros ou
identificam um dos candidatos à presidência com seus antepassados,
estão representando suas aspirações de forma simbólica. Tornando
viva uma cultura por meio de suas crenças e costumes.
Os segmentos sociais, apropriando-se de algo ou alguém,
possuem a necessidade de representar sua visão, usando imagens
simbólicas para uma mais fácil aceitação por parte da sociedade.
Desta forma os Filhos do Sol sobrevivem no imaginário dos andinos.
Seja através de manifestações políticas, sociais e/ou culturais,
interagindo com a sociedade, alterando e, ao mesmo tempo, sendo
alterado por ela, em uma relação de apropriação e representação de
uma cultura que ainda vive, no terceiro milênio, pela tradição dos
andinos.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
Rev. REPPIL@, v.1, n. 1, p. 128-138, 2003.
i
CHARTIER, Roger. A História Cultural – entre práticas e representações, Lisboa: Difel, p. 17.
1990.
IERARDO, Estebam. El mito, el arte, el pensamiento y lo sagrado. Disponível em:
<http://www.temakel.com/mitowiracochan.htm> Acesso em 25 mar. 2003. Apud: ELORRIETA
SALAZAR, Fernando E.; ELORRIETA SALAZAR, Edgar. El valle sagrado de los incas. Mitos y
símbolos. Sociedad Pacaritanpu Hatha: Cuzco, p. 13-16. 1996.
ii
FRAVE, Henri. Civilização Inca. Tradução MARIA Júlia Goldwasser. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, p. 26. 1987
iv
FRAVE, op. cit., p. 15.
iii
Cântico quéchua, anônimo. In: FERREIRA, Luiz Jorge. Incas e Astecas. São Paulo: Ática, p. 57 –
61. 1995.
v
vi
Agência Peru. Disponível em:
<http://www.agenciaperu.com/actualidad/2001/jul/machupicchu.htm> Acesso em 29 jul. 2001.
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os filhos do sol e o imaginário andino