A vida de José
Carlos Caeiro
A vida de José
Carlos Caeiro
Carlos Caeiro | A vida de José
José, filho e ajuda de Germano. Estou mesmo com frio. Pai, não
vou levar a roupa suja desta semana a casa para a mãe lavar? Não
lhe pergunto. Ainda me grita. Mas que é estranho, lá isso é. Se calhar
esqueceu-se. Mas não pode ser. Ele nunca se esquece. Bom, vou
ver como estão as cabras. Estou a estranhar isto. Já sei. Devem ter
combinado fazer as coisas de outra maneira. Se calhar, é a mãe quem
vem buscar as roupas. Mas, então, o que é que eu visto amanhã?
Amanhã deveria trocar esta roupa que trago no corpo desde o início
da semana. Estas calças estão todas porcas. O melhor é escová-las
logo mais, quando o rebanho estiver a descansar. Não vá dar-se o
caso de a semana que vem ser assim. Sem roupa lavada.
A mãe não veio. A roupa não foi. Ele não falou. Tenho de lhe dizer.
Mas não me apetece ouvi-lo gritar. E se tiver acontecido alguma
coisa que eu não saiba? Tenho saudades da mãe. De a ouvir dizer
“meu zé”. E de ela me apertar a cara contra a dela. Do perfume da
sua pele. Lá vem ele. Parece que está a fazer de conta que anda a
pensar em alguma coisa e não quer que eu lhe diga nada. Pai, então
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a roupa, não tenho de ir levar a roupa suja à mãe? Não lhe digo
nada. Logo mais, ao jantar talvez. Vou mostrar-lhe as minhas calças.
Estão sujas de lama e de esterco. Já não as devia ter vestido hoje.
Olha. Está zangado com o cão. Parece diferente. Nunca se zanga
com o cão. Alguma coisa aconteceu. É melhor não dizer nada. Digo
depois, à noitinha, quando me estiver a deitar. Se a mãe aparecesse
aqui é que era bom. Era mesmo o que eu queria.
Hoje é domingo. Ele vai passar um bocado à taberna. Eu podia ir
a casa. Mesmo sem roupa para levar. Eu queria ir a casa. Digo-lhe
isto. Pai, quero ir a casa ver a mãe. E o mano. Digo-lhe a seguir ao
almoço. Antes de ele sair. E posso levar as roupas sujas. Pode ser
que se tenha esquecido. Mas ele nunca se esquece. Ali vem ele.
Traz a trouxa às costas. São as roupas. Vou a casa. Vou ver a mãe.
Meu zé. Diz sempre isto antes de me apertar contra ela. Já tinha
saudades mãe. Se calhar digo-lhe isto. Nunca lhe digo grande coisa.
Desta vez digo-lhe. Saudades tuas mãe.
Não me pediu para ir com ele. Não estava à espera desta. E agora faço
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o quê? Vou gritar-lhe para lhe perguntar se posso ir com ele. Posso
ir consigo, pai? Ver a mãe? Já fui ver as cabras. Estão sossegadas.
Sai daqui Malhado. Vai com o dono. Vai com ele. Se tu fores, pode
ser que ele me chame também para ir com ele. Se calhar não. Se
tu fores e eu for também, as cabras ficam sozinhas. Se calhar é por
isso. Não me leva para o cão não ir atrás e ficarem as cabras aqui
sozinhas. Será que isto agora vai ser assim? Ele leva a roupa suja e
traz a muda de roupa lavada e eu fico sempre aqui. O que eu devia
fazer era ir atrás dele e apresentar-me à porta de casa quando ele
entrasse com a trouxa. Assim quem vinha abrir a porta era a mãe e
ele já não tinha coragem para gritar comigo. Olha o meu zé. Dá cá
um beijo à tua mãe. E pronto. Depois se quisesse que me gritasse.
E brincava um pouco com o António.
Vou ver as cabras. Anda Malhado. Anda daí. O dono foi levar a roupa.
Pode ser que a mãe venha com ele de volta. Dizem que há uma
guerra. Os aviões da Itália bombardearam um palácio onde vivia um
Rei. O Juventude de Évora ganhou ao Sporting de Beja por dois a
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um e o Lusitano de Évora ganhou aos de Fafe por cinco. Os italianos
bombardeavam a Abissínia com sete aviões. Depois o Rei disparou
com uma metralhadora contra os aviões que lançavam as bombas.
Morreu muita gente cá em baixo. Mas o Rei sobreviveu. Espero que
a guerra não chegue aqui a São Manços. Ainda nos matavam as
cabras todas com as bombas. O pai não tem medo da guerra. Mas
os outros homens pareciam preocupados, quando falaram disso.
Eu bem os ouvi. Malhado, tens medo da guerra? Se uma daquelas
bombas te caísse em cima ficavas sem cor no pêlo. Onde é que fica
essa Abissínia? Tenho de perguntar à mãe.
Malhado, as cabras estão sossegadas. Não há nenhuma guerra.
Vamos para casa. O pai ainda vai demorar. Deve estar a contar à
mãe o trabalho que temos tido. E eu tenho trabalhado bem. Quando
a mãe ouvir isso vai ficar com vontade de me ver. Tenho fome. Espero
que o pai não demore para jantarmos.
Germano, guardador de cabras e pai de José. O rapaz está
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desconfiado mas eu não lhe posso dizer porque senão ainda me
abala a correr para casa da mãe e nunca mais lhe ponho a vista em
cima e fico sem ninguém para me ajudar com as cabras isso é que
era bom e ela fica os três para ela e eu fico entalado ainda por cima
este que já se ajeita bem a tratar das cabras isso que era bom mas
o cabrão do gaiato anda desconfiado.
Tenho de o levar daqui para longe.
Vendo as cabras por um bom preço e vou tratar do rebanho de ovelhas
do doutor Flores lá para os lados da Amareleja. A culpa disto tudo é
dela. Ela é que arruinou isto tudo. A grandessíssima puta. Um homem
mata-se a trabalhar e acaba com um par de chavelhos na testa. Se
esse caixeiro volta a aparecer aqui pela aldeia, desgraço-me mas
rebento-lhe a mona com uma cachaporrada. Isso é limpinho. Aquele
homem lá na Alemanha é que sabe o que faz. Dizem que não lhe
escapa nada. Gatunos, ciganos, judeus e galdérias. Vai limpar a
nação.
Vou ao barbeiro. Ainda me sobra tempo.
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– Ora boa-tarde Germano.
– Boa-tarde mestre João.
– Então, que vai ser? Barba e cabelo?
– O cabelo está bom. Tem pouco mais de quinze dias. Vai o bigode.
– Ó homem, tu queres tirar o bigode?
– Tirar todo não. Deixe-mo assim como o daquele gajo lá da Alemanha.
O das cruzes e do braço esticado.
– Eh pá. Olha que o homem é rijo. Mas tem cuidado. Se te ouvem
falar nele ainda pensam que andas metido na política.
– Eu não ando metido em nada. Faça-me lá o bigode como lhe digo
mestre João.
– Com certeza. É para já. E o rebanho como é que vai Germano?
– As cabras vão bem. Estão a dar bom leite.
– Ouvi dizer que tens uma ajuda contigo.
– Tenho o meu rapaz mais velho, vai ajudar-me com os chibos.
– E o rapaz não sente a falta da mãe, ó Germano?
– Mestre João, faça-me lá o bigode que ainda tenho de ir fazer
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uma coisa.
– É para já amigo Germano. Escuta, eu não tenho nada a ver com isso
Germano. Mas tu sabes que eu tenho estima por ti. És trabalhador e
dos sérios. E olha que isso não é coisa pouca.
– Gatunagem é o que não falta por aí mestre João.
– Pois é, Germano, pois é. Mas olha, escuta aquilo que eu te digo
que sou teu amigo. Já se sabe na aldeia que tu largaste a mulher.
E na minha opinião fizeste o que tinhas a fazer. O caixeiro-viajante
andava por aí a rondar e a aparecer cada vez mais. Mas escuta
aquilo que eu te digo Germano, tu não tires o filho de uma mãe.
Mesmo que também seja teu. E mesmo que precises dele para ajuda
no rebanho.
– O bigode já está mestre João?
– Sim, o bigode já está.
– Mestre João, você não se esqueça de mudar a folha ao calendário?
– O quê?
– Sim, a folha do calendário. Está com dois dias de atraso. Hoje é dia 9.
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– É verdade, tens razão. Muitas vezes esqueço-me de passar a folha.
– Hoje é dia 9 de Fevereiro de 1936, mestre João.
João, filho de José e de Antónia. Recordava-se que em tempos
adormecia com a cabeça preenchida com os gritos e as gargalhadas
dos rapazes que ia inventando ao longo do dia e que eram os outros
membros do bando, nas aventuras solitárias das férias do Natal que
passava com eles no monte. Os cantos daquela casa grande cheia
de corredores fundos e escuros parecia terem gravados os nomes
das pessoas que ali tinham vivido em tempos e ali tinham morrido
devagar, numa velhice desejada. Era uma casa grande com um tecto
bastante alto, suportado por grandes barrotes de madeira e uma bela
“madre”, como se chamava ao enorme tronco que percorria o telhado
da casa de forma longitudinal e onde assentavam todos os outros.
Não havia luz eléctrica. Ao fim da tarde ela acendia os candeeiros e
o cheiro a petróleo, que nunca desaparecia completamente, voltava
a inundar a cozinha grande onde passavam a maior parte do tempo
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sempre que estavam em casa. Escurecia e jantavam os três à luz de
três candeeiros, um deles colocado no centro da mesa redonda, quase
sem falaram uns com outros, a não ser quando ela lhe perguntava se
queria mais carne ou, no final do jantar, mais uma fatia de melão ou
uma guloseima, rebuçados com recheios diversos ou chocolates que
tinha sempre escondidos nas prateleiras e gavetas dos armários onde
guardava a loiça. Eram as guloseimas do menino. Chamava-lhe assim
apesar de já ter feito os catorze anos. Mas era o mais novo, porque
a Laura tinha mais dez anos e já estava casada a viver em casa dela
com o marido. Depois do jantar, eles os dois sentavam-se à lareira e
o lume ia morrendo pela noite fora até ficarem só umas brasas frias.
Nessa altura, por volta das onze da noite, já ela se tinha ido deitar.
Ele ficava um pouco mais, sentado na cadeira a dormitar à lareira ou
a pensar em qualquer coisa que o tempo esbatera e a memória não
queria avivar. Em certas noites, o rapaz ouvia-o pronunciar palavras
soltas. Nunca frases completas. Mãe malhado cabras roupa. O que
isso queria significar estava fechado no tempo e apenas assomava
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nesse estado de sonolência onde ele permanecia horas com a cabeça
tombada sobre o peito. Nessa altura, as brasas estavam quase todas
desfeitas em cinza, mantendo ainda as formas dos troncos ardidos.
O rapaz retirava-se para ler no quarto, antes de adormecer. Sentia
lá fora, nas traseiras da casa, as ovelhas a mexerem-se no curral,
apertadas umas contra as outras para se protegeram do frio. Os
restantes rapazes nunca existiram. Ia-os reinventando também no
silêncio dessas noites frias. Às vezes, antes de adormecer, ficava
imóvel, à escuta do ruído das oliveiras com as folhas cheias de vento.
Não se ouvia nenhum tiro. Já não aconteciam desgraças nos montes
alentejanos, daquelas de que sempre ouvira falar. Das mortes no
silêncio e na solidão da noite, por causas como a honra, o desespero
ou o simples absurdo. Na manhã seguinte, o ar da cozinha cheirava
aos odores parados da noite anterior. Levantava-se por volta das
dez da manhã e ia ver o dia. Dava sempre uma volta. Vou lá longe,
dizia à mãe. Quando voltava para comer, trazia o odor do seu próprio
corpo misturado com o cheiro da terra colado à pele. Tinha as pernas
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cheias do pó fino avermelhado dos campos. À noite, o jantar repetia-se
a três. E eles envelheciam um pouco mais, perto do lume, com os
olhos lacrimejantes do fumo. O rapaz escrevia histórias passadas
no oeste longínquo dos cowboys mas com personagens dali. Uma
história que recordava e eles talvez não. Mas não tinha a certeza.
Aquelas cartas continuavam guardadas no fundo da gaveta grande
da cómoda, debaixo da roupa branca, perto das imagens dos santos
e de algumas orações benzidas. Só tinha lido parte de uma delas e
por uma circunstância do acaso.
Na história onde todas as noites acrescentava umas linhas, havia um
rapaz que vestia umas calças de bombazina verde que lhe ficavam
curtas nas pernas, gastas pelas lavagens sucessivas e enérgicas na
pedra, pelas mãos de dona Antónia. Nessa idade tinha as pernas e os
dentes grandes. Felizmente que, com os anos, os lábios cresceram.
Numa manhã enevoada, o rapaz ia a caminho da escola com a
mala dos livros a balouçar-lhe numa das mãos. Havia algo de muito
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estranho nessa manhã porque ele ia a seu lado e carregava com
uma mala de viagem na outra mão. Vestia um fato com gravata
e calçava uns sapatos pretos envernizados. Ele que trazia quase
sempre calçado um par de botas Tractor. O rapaz caminhava pelo
passeio, com o cotovelo esquerdo a tocar, por vezes, a caliça das
paredes velhas. Tentava acertar o passo com o dele, como naqueles
tempos tinha a mania de fazer sempre que alguém andava ao seu
lado. Ele caminhava entre os carros e o rapaz. Não falava e mantinha
o habitual olhar cerrado, como se tentasse ver ao longe, o que lhe
tornava os olhos ainda mais pequenos. Depois, num cruzamento,
despediram-se e o rapaz continuou em frente na direcção da escola.
Quando olhou para trás viu, o rapaz viu que ele estava parado a
olhá-lo. Adeus, disse-lhe outra vez. Antes, quando se despediram,
ele tinha-o beijado, com a barba espetada a arranhar-lhe a face a
lembrar-lhe os dias em que não tinha de ir à escola e o colocava ao
colo quando chegava a casa. O rapaz pensou que ele devia ter medo
de ir assim sozinho para Lisboa, com aquela mala de viagem na
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mão. Ele que nunca ia a lado nenhum via-se, de repente, obrigado a
ir no comboio para Lisboa, enfiar-se num hospital para ser operado.
Um dia, vários anos depois, o rapaz haveria de pegar numa dessas
cartas que ele escrevera do hospital e que começava por “querida
mulher”. Também a tratava por Antónia nas linhas a seguir.
Dona Antónia, mãe de João e mulher de José. Quando o chão
de cimento pintado de vermelho escuro era lavado por ela com uma
esfregona de cabo alto e demorava, em certas partes, algum tempo
a secar, sentia que a casa estava verdadeiramente acolhedora
e asseada. Mas quando a dona Antónia, de lenço na cabeça, o
começava a tratar a ele por você, com insultos, por não ter sido
homem para emigrar, e não acendia a luz dos candeeiros logo que o
sol desaparecia e começava a escurecer, a casa ficava-se repleta de
medos. O rapaz sentia-se doente e via coisas. Como isso não passava,
a mãe concluiu que eram as bruxas. Por pouco não o levaram para
o outro mundo, costumava mais tarde dizer às vizinhas na mercearia
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do senhor Jacinto. Ó dona Antónia não diga isso, respondiam elas
fingindo-se chocadas mas crentes. Mas ela levou-o à virtuosa, a
famosa tia Rosa. E essa foi também a primeira vez que foi a Évora,
porque na altura ainda viviam em Reguengos. O vinte de abril ainda
não tinha chegado e o pai trabalhava no monte do doutor Fernandes
onde era chaveiro. Recordava dessa viagem, uma rua estreita de
empedrado irregular, onde morava a dita senhora e onde estavam
três gaiatos a jogar com uma colecção de cromos de futebol, ainda
por colar na caderneta, enquanto falavam dos clubes, aos gritos.
Um deles gritou, eu sou do Belenenses. Depois disso ficou bom e
voltou a comer bem. Por vezes, ainda via cães grandes e brancos
onde estes não existiam. Noutras, homens magros e altos, de fato
azul claro. Todos sem rosto. Via também a irmã Laura onde ela não
estava. Por isso o candeeiro pequeno do quarto ficava sempre aceso,
durante a noite, sobre a sua mesinha de cabeceira. O quarto ficava
empestado com o cheiro a petróleo. Mas sempre era preferível o
cheiro, do que abrir os olhos na escuridão e julgar que estava cego.
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Um dos maiores medos que tinha nesses tempos.
João, filho de José e irmão de Laura. É meia-noite do dia 26 de
Dezembro de 2008. Escrevo sobre ti. Apenas algumas notas sobre
lugares e palavras ditas. Pensei que esta seria a melhor forma de
estar contigo. Sei que podes estar a morrer neste preciso instante.
Apenas tive consciência disso hoje à tarde, quando conduzia pela
auto-estrada no regresso a Lisboa. Falei com a Laura ao telefone. Ela
estava contigo nesse momento e disse-me que estavas a articular
frases sem sentido. Para ela, claro. Contada, a minha vida dava
um livro, disseste tu. Eu sei que sim. Um livro com muitas páginas
em branco, muitas páginas desfeitas pelo pó e pela vontade de as
manter fechadas. Também disseste que este era o tempo de levar as
éguas aos cavalos para serem cobertas e ficarem prenhes. Deves
ter guardado essa preocupação, vinda de há muitos anos. Fizeste
muitas coisas na vida e também conduziste as éguas do doutor
Fernandes na época da cobertura, entre o começo da Primavera
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e o fim do Outono. Nunca assisti a isso, acho que ainda não tinha
nascido. Também chamaste pelo Malhado. A Laura perguntou-me se
eu sabia quem era o Malhado. Contaste-me que o teu pai baptizou
um cão com esse nome. Porque era branco, malhado de preto. Eras
muito pequeno, tinhas oito anos e ajudavas o teu pai a guardar um
rebanho de cabras. Foi antes da guerra. O teu pai deixou a tua mãe e
guardou-te para ele para o ajudares com o rebanho. Foi uma vingança
porque a tua mãe o traiu com um caixeiro-viajante que aparecia de
tempos a tempos na aldeia. Naquela fotografia amarelada que ainda
guardas na carteira, ele aparece com um bigode idêntico àquele que
o Hitler usava. Já havia alguma guerra, mas não a grande guerra,
dizias. Foi numa daquelas noites longínquas, à lareira do monte de
São Pedro, depois de jantar, que me contaste isso. A Laura já tinha
saído de casa. Nunca ouviu esta e outras histórias. Não foram muitas
porque o silêncio sempre foi mais alto que as palavras.
Hoje, depois de falar ao telemóvel com a Laura fiquei a pensar
nessas palavras que ela te ouviu murmurar na cama do hospital.
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Carlos Caeiro | A vida de José
Compreendi que estavas a iniciar esse caminho afunilado que tanto
falam aqueles que sobrevivem. Procurei fazer o mesmo, mas deste
lado de cá. A verdade é que os nossos caminhos nunca foram os
mesmos. Apenas guardo pedaços, recortes de um filme sem guião.
São quase sempre episódios passados à noite. Não há nada de
sombrio nisso. Apenas um toque de aventura. Naquela época eu vivia
uma vida de aventuras a partir dos livros de cowboys que o filho mais
novo da família que vivia no outro monte mais acima me emprestava.
Tinha várias caixas de cartão cheias de livros e emprestava-me
todos os que eu lhe pedisse. Talvez possa ter desejado muito viver
contigo as aventuras de Kit Carson nas estradas de terra batida que
ligavam os montes e as herdades desse Alentejo perdido no tempo
das éguas. Não tem importância que não o tenhas percebido na
altura. As coisas são assim. É verdade que nunca nos explicámos
nem nunca nos ouvimos. Sabemos ambos porquê. Mas isso, não o
escolhemos. Nenhum de nós escolheu que as coisas acontecessem
dessa forma. Tu sempre achaste que eu não sou teu filho. Ela fez-te
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A vida de José | Carlos Caeiro
o que a tua mãe fez ao teu pai. Mas acho que és meu pai. Não te
preocupes. És mesmo.
Há cerca de dois anos, na verdade faz hoje mesmo dois anos, senti
que te salvei a vida, quando os médicos no hospital em Lisboa se
preparavam para te deixar morrer não avançando com a cirurgia.
Pressionei-os de tal forma que não tiveram escolha. Afinal, com
setenta e nove anos ainda era possível sobreviver. Só passaram dois
anos, mas valeu a pena. É importante que saibas que, se morreres
hoje durante a noite, amanhã o mundo será diferente. Porque tu
não estarás cá. O sol da esquina, que tu não irás ver, já não será o
mesmo sol. Eu próprio não serei o mesmo. Tenho a certeza. Sempre
soube que seria assim.
João e o mundo sem José. Está a atingir-me de um modo que me
está a surpreender. Já esperava qualquer coisa diferente de todas
aquelas que tinha imaginado. Mas isto é diferente. Contaram-se
muitas histórias ontem à noite. Houve sorrisos. E rebentaram foguetes
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Carlos Caeiro | A vida de José
lá fora. A noite de fim de ano atrasou-se ou tu trocaste-lhe as voltas.
Morrer no último dia do ano é tão organizado como os papéis e as
facturas separadas por datas, temas e gavetas que mantinhas de
forma quase obsessiva.
Pela janela, o céu parece o mesmo que avistava naquele terraço
que hoje recordei quando o pesquisei no Google maps porque
queria recuperar os locais por onde passaste. Assim, visto do céu.
Um azul claro escorrido de cinza velha e translúcida. O número dois
da rua de Mourão não era uma porta normal. Era um portão pesado
de ferro, pintado com a cor do ferro ferrugento. Poderia parecer o
portão do porão de uma nave espacial desenhada pela ingenuidade
de Lucas na sua guerra das estrelas. Não era a porta de uma casa.
Era a entrada de um quintal, como lhe chamávamos, que na verdade
era um parque de armazéns, cavalariças e habitações. Tudo aquilo
pertencia ao doutor Fernandes. Vivíamos na casa do fundo, à qual
chegávamos depois de andar uns cinquenta metros pela rua principal
daquele quintal e virar à direita para andarmos mais uns trinta metros.
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A vida de José | Carlos Caeiro
Esses anos não foram felizes nem infelizes. Era demasiado pequeno
para saber o que isso poderia significar. Hoje, sinto-lhe os cheiros, os
sons e as cores. É assim que os recordo. Na língua e na memória.
O balde de água atirado ao vestido de Laura. Um vestido branco
estampado com flores castanhas de vários tons que acabara de vestir
para a matiné no cineteatro Central. Os brinquedos separados em
dois grupos, os de madeira e os de plástico, as novelas transmitidas
na rádio, a vizinha Rita a quem tinha morrido o filho e que ainda
mantinha a cama feita no seu quarto, a lata da gasolina entornada
pelas minhas mãos desajeitadas, as palavras duras da mãe sobre
o que aquilo tinha custado ao meu pai, a árvore de tília a inundar o
quintal de aromas floridos, os golos do Yazalde no Sporting-Benfica
de 1973, a mesa redonda, o livro de inglês da irmã com desenhos
irresistíveis, a irmã na escola, a mercearia do senhor Jacinto, o
rapaz do outro quintal, os dias de chuva ruidosa a despedaçar-se
no empedrado, o festival da eurovisão, a escola primária, a primeira
data escrita no quadro a despertar-lhe, pela primeira vez na vida,
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Carlos Caeiro | A vida de José
a consciência do tempo e do efémero, as idas ao monte do doutor
Fernandes onde passavas temporadas sem nos veres, os rapazes
do monte para estar contigo, as idas a Évora, os rapazes da cidade a
brincarem na rua com berlindes, eu sou do Belenenses disse um deles,
a virtuosa tia Rosa, as bebidas com sabor a terra, a madrinha que era
bruxa desmascarada pela virtuosa, a Fernanda do pronto-a-vestir, estás
tão alto que qualquer dia chegas ao céu, ai meu querido não queria
dizer deus me perdoe e afinal ela foi para o céu tão nova por causa
da doença do peito, o cheiro do perfume das senhoras da papelaria,
os rumores sobre o que aí vinha, o medo do comunismo, as idas ao
baile, os cabelos compridos dos namorados das irmãs, a Mara na
carteira da frente, o murro da Marília nos dentes da frente, o café
da Clarisse, o Renaul 4 L, o cão da vizinha, as amigas da irmã, as
conspirações, as preocupações, a casa que era do doutor Fernandes
e de onde a irmã nos haveria de expulsar depois da revolução quando
o irmão teve de fugir para o Brasil.
Depois, anos mais tarde, os dias tranquilos em Évora, a casa que
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A vida de José | Carlos Caeiro
tu compraste e de onde ninguém te podia expulsar, os natais com
os dois filhos e os netos, as visitas do teu irmão António que nunca
tinha arrancado da casa da tua mãe, os dois a falarem disso como
se não tivesse tido importância nenhuma. Tu, com os olhos muito
pequenos, pontos húmidos à procura de algo, lá longe, nos anos
antes da guerra. Só achei estranho quando o pai não me pediu que
fosse a casa trocar a roupa, disseste tu numa dessas tarde de visitas
em casa. E o teu irmão a desviar o olhar, culpado, com o coração
cheio de mãe desde aqueles anos em que tu, quase roubado por um
pai ferido na honra com bigode de ditador, iniciavas uma vida que
daria um livro.
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A vida de José
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ILUSTRAÇÃO
ANA SOFIA GONÇALVES | WHO
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