Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes
PARA ALÉM DO CERCO: UMA (RE)LEITURA DA HISTÓRIA POR JOSÉ SARAMAGO
Marina Couto Ferreira (UFF) 1
O que se deve exigir do escritor antes de tudo é certo sentimento
íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda
quando trate de assuntos remotos no espaço e no tempo. 2
Introdução
R
eler a História tem sido uma marca da historiografia nas últimas décadas. Os
novos historiadores vêm tentando revisitar documentos e a própria historiografia
tradicional na busca de novos sentidos para as ações dos agentes históricos e, até
mesmo novos personagens que irão ampliar os conhecimentos sobre tais ações e/ou irão
ampliar o conhecimento sobre os próprios acontecimentos históricos.
Para escrever a sua História do cerco de Lisboa, José Saramago irá lançar mão dessa
nova historiografia, não só para criticar a tradicional, mas também para demonstrar as relações
entre passado, presente e futuro e suas conseqüências para Portugal.
Para isso, o autor irá apresentar personagens que, dentro de seus tempos históricos,
irão representar os chamados “excluídos da História”, como a personagem Mogueime e o
almuadém muçulmano, no tempo da tomada de Lisboa, e Raimundo Silva, na atualidade.
Raimundo, apesar de ser um simples revisor, a partir de um erro proposital, permitirá que essa
História seja revisitada e reescrita, possibilitando ao autor e aos leitores questionarem-se sobre o
papel do passado para o futuro de Portugal.
Também será a personagem Raimundo Silva que permitirá ao autor levantar uma
questão delicada sobre os limites da História e da Literatura. A partir da sua ótica particular
sobre tais limites, a personagem mostrará tal questão, que vem afligindo não só os estudiosos de
literatura como também os próprios historiadores.
Será também essa releitura que levará o livro de Saramago a dialogar com outros autores
portugueses como Camões, Garrett e Eça, uma vez que estes também irão apresentar suas
visões sobre Portugal e sua gente. Essas visões, porém, nem sempre irão encontrar apenas
pontos de interseção, desviando seus caminhos em certos momentos.
História e literatura: existem limites?
Em uma discussão com o historiador do cerco à cidade de Lisboa, o revisor Raimundo
Silva irá apresentar a seguinte interpretação sobre o que é histórico e o que é literário:
1
E-mail: [email protected]
ASSIS, Machado. Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade. In: COUTINHO, Afrânio (Org.). Obra
completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. p. 804. Cit. em CHALHOUB, Sidney; PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda
(Orgs). A história contada: capítulos de história social da literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 17.
2
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[...] o meu livro, recordo-lho eu é de história, Assim realmente o designariam
segundo a classificação tradicional dos gêneros porém, não sendo propósito meu
apontar outras contradições, em minha discreta opinião, senhor doutor, tudo
quanto não for vida, é literatura, A história também, A história sobretudo, sem
querer ofender [...] (SARAMAGO, 2006, p. 15)
Com essa sua visão sobre o histórico e o literário, a personagem resgata o sentido
original do termo História: narrar. Como Renato Janine Ribeiro ressalta em sua análise sobre o
livro O queijo e os vermes de Carlo Ginzburg: “[Guinzburg] Recuperou, ainda, o sentido original
da palavra história, de algo que é narrado, contado – um gênero literário por assim dizer [...]” 2.
A historiografia, ao relatar os acontecimentos, cria uma narrativa que se aproxima da narrativa
literária no tocante ao fato de apresentar as personagens, suas ações e as conseqüências de seus
atos.
Porém, além de acabar com as barreiras borradas entre os termos, Raimundo Silva irá
apresentar as atividades culturais humanas como literatura e, como a historiografia é uma
atividade essencialmente cultural, esta não poderia deixar de ser literatura, já que narra os
acontecimentos passados sob uma dada ótica, fruto da cultura na qual o agente da análise está
inserido.
Um Não para (re)escrever a História
[...] percebe-se pela maneira como Raimundo Silva neste momento, com uma
expressão que não esperaríamos dele, de pura malignidade, desapareceram-lhe do
rosto todos os traços do Dr. Jekill, é evidente que acabou de tomar uma decisão, e
que má ela foi, com a mão firme segura a esferográfica e acrescenta uma palavra à
página, uma palavra que o historiador não escreveu, que em nome da verdade
histórica não poderia ter escrito nunca, a palavra NÃO, agora o que o livro passou a
dizer é que os cruzados não auxiliarão os portugueses a conquistar Lisboa, assim
está escrito e portanto passou a ser verdade, ainda que diferente, o que chamamos
falso prevaleceu sobre o que chamamos verdadeiro, tomou o seu lugar, alguém
teria de vir contar a história nova e como. (SARAMAGO, 2006, p. 50)
Por meio de um “erro” aparentemente de proporções incalculáveis, um revisor
acrescentar um Não em um livro de História, modificando todos os acontecimentos, Saramago
irá trazer para as páginas de seu livro História do Cerco de Lisboa questões como a importância
do passado para o presente e suas conseqüências para o futuro, o papel da historiografia para o
país e irá dar voz a personagens anteriormente excluídas dos “discursos oficiais”.
Além disso, o <<Não>> de Raimundo Silva irá possibilitar ao autor/revisor ver os
acontecimentos históricos com um olhar “descompromissado” como bem nos lembra a
professora Teresa Cerdeira em seu ensaio intitulado “Na crise do histórico, a aura da História”:
O <<não>> de Raimundo Silva na História do Cerco de Lisboa é um desvio
voluptuoso que transgride os limites e faz subir o sapateiro além da chinela,
permitindo ao revisor tornar-se escritor para ousar inscrever, sob um título que
2
RIBEIRO, Renato. In: GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela
inquisição. São Paulo: Cia das Letras,1987. (comentário sobre a obra)
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aponta para a factualidade histórica, uma ficção da história, a narrativa que não
ocorreu, não por mero exercício lúdico, mas para experimentar um olhar
descompromissado com valores, códigos, leis que se surpreendem não mais
necessárias, mas contingentes: ideologia de cruzadas, supremacia de raças,
hierarquia profissional, superioridade cultural. Por que já dissera que tudo que não
é vida é literatura, Raimundo Silva assume uma escrita nova em que a ficção
desterritorializa as certezas da história oficial, para ler por um viés inesperado os
documentos e as fontes da história. (CERDEIRA, 2000, p. 204)
E será esse olhar supostamente descompromissado que permitirá ao revisor fazer suas
críticas, a partir dessas leituras inovadoras sobre os fatos históricos.
Raimundo Silva irá lançar mão da chamada nova historiografia para apresentar
personagens anteriormente esquecidos pela historiografia oficial, e, a partir dessas personagens,
Saramago irá incluir na sua narrativa o olhar do “outro” e dos “excluídos”. Vejamos as palavras
do historiador Carlo Ginzburg sobre o modo como os historiadores vêm tratando as fontes com
relação aos “excluídos da história”: “No passado, podiam-se acusar os historiadores de querer
conhecer somente as “gestas dos reis”. Hoje, é claro, não é mais assim. Cada vez mais se
interessam pelo que seus predecessores haviam ocultado, deixando de lado ou simplesmente
ignorado [...]” (GINZBURG, 1987, p. 15).
Como os novos historiadores, Raimundo Silva irá apresentar as figuras de um almuadém
muçulmano e de um soldado português como uma forma não só de criticar a historiografia
oficial, como também de apresentar a visão do “outro” e a visão dos próprios soldados
portugueses sobre as ações da “gesta do rei”.
Mogueime, soldado português, que participa tanto da tomada de Santarém, quanto do
cerco à cidade de Lisboa, será a personagem que sintetizará os pensamentos não só dos
soldados portugueses, como do próprio autor sobre as ações portuguesas, manifestando a
crítica a tais ações praticadas tanto pelos que estão diretamente ligados ao rei quanto pelos
próprios soldados. Analisemos sua visão sobre o estupro e posterior morte de mulheres na
tomada de Santarém:
[...] matar sem olhar a quem, porém não é assim, depois de haverem desfrutado
dos seus corpos delas, mais de cristão seria deixá-las ir declaração esta,
humanitária, que os pajens contestaram argumentando que sempre devemos
matar, fodidas ou não, para que não possam mais gerar desses perros mouros e
danados. Pareceu que não saberia Mogueime dar resposta a razão tão radical, mas
de um recesso oculto do entendimento tirou umas poucas palavras que deixaram
os pajens sem fala, Porventura haveis matado dentro delas filhos de cristãos [...]
(SARAMAGO, 2006, p. 189)
Partindo dessas palavras, podemos observar que, do ponto de vista de Mogueime, as
ações dos soldados/ clérigos portugueses que foram a Santarém visando tomá-la aos mouros
infiéis não possuem nada de cristãs.
Já a figura do almuadém muçulmano será a porta de entrada para o mundo dos
cercados em Lisboa, sendo o autor Raimundo Silva capaz de apresentar as angústias, as alegrias,
as esperanças e os temores destes sitiados, trazendo para a narrativa o olhar do “outro” sobre o
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cerco. Isto fica claro na passagem em que os cercados vêem a retirada do exército cruzado. 3
Também será esta releitura do passado histórico portugues que permitirá ao autor
mostrar a relação entre este e o futuro. Vejamos com a professora Tereza Cerdeira trata tal
questão:
O discurso da História deixa assim de ser um templo de eternizarão do passado,
para se instruir como dimensão criadora do futuro. O passado, mais propriamente,
não se recupera, não se resgata, mas representa-se – naquele sentido mesmo do
jogo teatral –, isto é, torna-se outra vez presente pelo gozo da re-presentação, e
não pela vida, pelas artimanhas criadoras da linguagem, e não pelo poder de
permanência do feito ou por sua capacidade – certamente contestável – de uma
representação que vislumbrasse uma repetição fora da diferença. (CERDEIRA, 2000,
p. 199)
Na narrativa de José Saramago revisitar o passado será uma forma de compreender o
presente e tentar modificar o futuro, pois a própria ação de Raimundo Silva de aceitar reler o
passado, passando de revisor a autor, irá modificar as pretensões da sua vida, com relação a seu
futuro.
Desnudar o rei e vestir o soldado
Ao lermos uma história em que serão apresentadas as figuras fundadoras de uma nação,
espera-se encontrar a figura de um rei sábio, perspicaz, com uma figura imponente e rodeada
por soldados valentes e conselheiros tão ou mais sábios que ele. Porém, ao lermos a história do
cerco de Lisboa contada pela ótica de José Saramago nos iremos deparar com uma figura real
que será o oposto desta idealização.
Saramago para desconstruir não só a figura real, como também o “peito ilustre lusitano”,
irá utilizar a ironia e o humor como ressalta Maria Kuntz em seu texto intitulado “A metaficção
historiográfica em história do Cerco de Lisboa”: “O humor e a ironia permeiam todo o texto e ao
misturarem-se o sério e o cômico resulta uma total desmistificação do herói fundador da nação
portuguesa, bem como do grandioso episódio histórico” (KUNTZ, 2002, p. 215).
Vejamos agora uma aparição do rei na narrativa: “[...] e o rei é este homem barbado,
cheirando a suor, de armas sujas, os cavalos não passam de azêmolas peludas, sem raça, que à
batalha vão mais para morrer do que volteios de alta escola [...]” (SARAMAGO, 2006, p. 138).
Como podemos observar, a descrição do rei, quando vai se encontrar com os cruzados
contribui para a desmistificação da figura de Afonso Henriques que já havia sido anteriormente
descrito como um homem baixo e de pernas tortas, e que se irá caracterizar como o avesso do
que se espera de uma figura que por muitos séculos foi relacionada ao ser divino.
Porém, o desnudar-se do rei não se limita à sua aparência física. Como bem nos mostra
Maria Kuntz, os termos chulos utilizados pelo rei português faz cair por terra a idéia de
onipotência real. Vejamos como o rei se dirige aos cruzados: “[...] Nós cá, embora vivamos neste
cu do mundo, temos ouvido grandes louvores a vosso respeito, [...] vamos fazendo o possível,
nem sempre sardinha, nem sempre galinha [...]” (SARAMAGO, 2006, p. 139).
3
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Como podemos observar, o rei não sabe escolher as palavras apropriadas para o
momento, mostrando-se uma figura de pouca perspicácia e sabedoria, chegando ao ridículo
extremo.
Na outra extremidade da narrativa, encontra-se o soldado Mogueime, que, apesar de ser
um soldado sem grande importância dentro da estratificação social do exército português, se irá
apresentar como um ser humano mais sábio que os da própria realeza. Vejamos agora alguns de
seus pensamentos:
Quando indagado sobre sua participação no “motim” contra o rei, devido a sua
participação extremamente útil para a tomada de Santarém, ele responde a Mem Ramires: “[...]
a questão não é essa, a questão é que queremos ser pagos como os estrangeiros, e repare o meu
capitão aonde chega a nossa sensatez, que não viemos aqui pedir que se pague aos estrangeiros
como se tem pago a nós [...]” (SARAMAGO, 2006, p. 340).
Quando ameaçado pelo rei de ter sua cabeça e seus pés cortados, ele responde: “[...] Se
vossa alteza nos mandar cortar a cabeça e os pés, será todo o vosso exército que ficará sem pés e
nem cabeça [...]” (SARAMAGO, 2006, p. 341).
Quando indagado sobre o fato de ser uma rebelião o que estaria acontecendo,
Mogueime argumenta com o rei que os soldados estão buscando um país que se inicie justo,
pois senão este já se iniciaria de forma errada: “[...] e que este país em princípio de vida só
começará mau se não começar justo, lembrai-vos, senhor, do que já os nossos avós disseram,
que quem torto nasce tarde ou nunca se endireita, não queiras que torto nasça Portugal [...]”
(SARAMAGO, 2006, p. 342).
As palavras do soldado chegam a causar estranhamento até mesmo ao rei: “[...] Onde foi
que te ensinaram a falar assim, que nem clérigo maior, As palavras, senhor, estão por aí, no ar,
qualquer as pode aprender [...]” (SARAMAGO, 2006, p. 342).
Como podemos observar, Saramago, por meio da figura do revisor que se transforma
em autor, irá desnudar a figura do rei e vestir o soldado com a armadura da sapiência,
demostrando como a participação popular foi importante para a tomada de Lisboa e a posterior
construção de uma idéia de “nação portuguesa”.
Raimundo Silva e Maria Sara: Portugal e a modernidade
As personagens Maria Sara e Raimundo Silva se irão apresentar como opostos dentro da
História do cerco de Lisboa, porém o encontro desses opostos irá levar a narrativa a um final
surpreendente, metaforicamente, para Portugal.
Maria Sara será retratada como uma mulher moderna, independente, sintetizando, na
narrativa, a modernidade necessária a Portugal para que este alcance o progresso. Já Raimundo
Silva é retratado como um homem que, apesar de sua idade, tenta esconder-se por trás de uma
tintura de cabelo e que não vê em seu futuro nada além de continuar a ser revisor. Por isso, ele
irá sintetizar a visão do autor sobre Portugal, um país que se esconde atrás de seu passado
glorioso e que não vê para o seu futuro nada além de esperar a volta de D. Sebastião para poder
retornar ao seu passado de glórias.
O encontro dessas duas pessoas tão diferentes ocorrerá devido ao “erro” proposital de
Raimundo, o que o levará a ter seu primeiro contato com Maria Sara, que lhe irá fazer uma
proposta: “[...] A de escrever uma história do cerco de Lisboa em que os cruzados,
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precisamente, não tenham ajudado os portugueses [...]” (SARAMAGO, 2006, p. 109-10).
A partir do momento em que Raimundo Silva aceita a proposta de Maria Sara, ele aceita
rever a História oficial portuguesa, permitindo-se reescrevê-la tendo um olhar mais
contemporâneo sobre ela e permitindo-se também arriscar um novo futuro, ao invés de ficar
sentado esperando o fim de seus dias, revisando a História dos outros.
Como podemos observar, Raimundo Silva, ao aceitar a proposta de sua chefe, irá
permitir a Portugal um contato com a modernidade, com um futuro possível, ou seja, ao invés
de ficar sentado vivendo e revivendo seu passado de glórias, deve passar a agir mais ativamente
para que, mesmo revisitando o passado, seja capaz de alcançar novamente sua tão relembrada
glória.
Ao fim da narrativa, o enlace amoroso dessas duas personagens levará, não só os dois,
mas também Portugal, a aceitar essa nova empreitada, como um início para um novo tempo em
que, mesmo se sua tentativa de buscar um futuro melhor não se concretize em ações tão
gloriosas, será marcado por uma mudança no modo de se enxergar o passado, o presente e o
futuro.
Raimundo Silva: a voz de Saramago
A personagem Raimundo Silva não se apresentará, porém, apenas como uma metáfora
de Portugal. Ele também se irá apresentar como a voz de Saramago dentro da narrativa, pois
será através de sua voz e de sua pena que o autor da História do Cerco de Lisboa irá fazer suas
críticas, dar suas opiniões e suas sugestões, não só em se tratando da vida do revisor, mas
também para próprio Portugal.
Fazendo sua personagem acrescentar um <<Não>> à História de seu país Saramago
irá fazer uma crítica à História oficial portuguesa que, influenciada pelas historiografias francesa
e alemã, dera ao passado português uma visão gloriosa e excluíra desta o povo que teve grande
importância, como já dito anteriormente, para a criação do Estado português.
[...] Pegou no livro, a ilustração da capa era realmente imitada duma miniatura
antiga, francesa ou alemã, e nesse instante, apagando tudo, penetrou-o uma
sensação de plenitude, de força, tinha nas mãos algo que era exclusivamente seu, é
certo que desenhado pelos outros, mas por esta razão mesma, Quem sabe ainda
mais estimado, afinal este livro não tem mais quem o queira e este homem não
tem, para querer mais que este livro. (SARAMAGO, 2006, p. 114)
Tendo em suas mãos a História de seu país e tendo a possibilidade de (re)contá-la, o
autor irá buscar quebrar uma tradição intelectual que esteve intimamente relacionada com a
historiografia oficial de seu país.
Para que esta tradição intelectual possa ser quebrada, ao rescrever a história de seu país
Saramago/ Raimundo Silva irá apresentar tais personagens excluídos e desmitificará a figura de
Afonso Henriques.
Será a partir da pena do autor/revisor que Saramago irá apresentar sua visão sobre a
sociedade portuguesa. Ao escrever que os soldados,
[...] com o passar do tempo, era meados de setembro, e sem que soubesse como e
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onde tinha nascido a inaudita idéia começaram os soldados a dizer uns para os
outros, sendo tanto ou tão pouco homens como os cruzados, também por igual
merecedores deveriam ser, e que, estando sujeitos a mesma morte, lhes deveriam
ser reconhecidos direitos em tudo iguais aos deles, quando chegasse a hora do
pagamento [...] (SARAMAGO, 2006, p. 338),
o autor demostrará a desigualdade presente na sociedade lusitana e irá propor, pelas palavras
do soldado Mogueime, uma sociedade mais justa em que “soldados” e “cruzados” possuam os
mesmos direitos.
Também será a partir da figura de Raimundo Silva que o autor apresentará sua ótica
sobre como o povo português enxerga o passado ilustre de seu país e criticará esta visão que
limita a trajetória de Portugal na atualidade como a mania de esperar a ação divina para que algo
aconteça: “[...] não aos anjos da sexta hierarquia, para que se produzisse o salutar sucesso,
graças ao qual, sabe-se lá, Portugal deva talvez sua independência [...]” (SARAMAGO, 2006, p.
20).
Camões, Garrett e Eça na História do Cerco de Lisboa
Em sua narrativa, Saramago irá dialogar com outros autores da literatura portuguesa.
Entre eles se incluem Luís de Camões, Almeida Garrett e Eça de Queirós. O autor irá retomar
temas já anteriormente tratados por estes autores, em alguns momentos se aproximando das
visões destes e em outros traçando caminhos opostos.
Em se tratando da literatura camoniana, Saramago irá retomar a idéia do “peito ilustre
lusitano” porém, ao contrário de Camões, o autor desta nova história sobre o cerco de Lisboa irá
demonstrar que este não é tão ilustre quanto o cantado por Camões.
Além desse tema, o autor irá retomar a idéia de apresentar o olhar do outro sobre os
portugueses como apresenta o autor dos Luziadas no canto primeiro, versos 50-56 da referida
obra, vejamos o verso 50:
Comendo alegremente, perguntavam,
Pela arábica língua, donde vinham,
Quem eram, de que terra, que buscavam,
Ou que partes do mar corrido tinham?
Os fortes lusitanos lhe tornavam
As discretas respostas que convinham:
– Os portugueses somos do Ocidente,
Imos buscando as terras do Ocidente
(CAMÕES,1999, p. 23)
Assim como Camões em sua narrativa, o encontro entre portugueses e mouros causa
estranhamento no outro, no caso aos mouros, Saramago também irá na sua narrativa apresentar
o olhar do outro sobre o povo lusitano.
Para os sitiados em Lisboa, a presença portuguesa se apresenta como a presença do invasor que
deseja tomar as terras de quem elas são por direito.
[...] pois não vos bastou o primeiro crime, porém desenganai-vos que nunca foi
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nossa intenção entregá-los Lisboa pacificamente ou submetê-la ao vosso domínio,
deixando-nos ficar nela, concordai que seria grande a nossa ingenuidade se
trocássemos o certo pelo incerto, o seguro pelo duvidoso, fiados apenas dessa
palavra que tão pouco vale, a vossa. [...] Esta cidade foi outrora dos vossos, agora
porém é nossa e no futuro talvez que vossa volte a ser, mas isso pertence a Deus
que no-la deu quando quis, que no-la tirará se quiser [...] (SARAMAGO, 2006, p.
204)
Como Garrett e Eça, Saramago irá voltar seus olhos para a terra de Portugal ao invés de
voltar sua visão para o mar lusitano de Camões, fazendo sua crítica a essa terra esquecida, sem
perspectiva e sem um futuro glorioso.
Também como Garrett e Eça, Saramago irá apresentar uma personagem deslocada do
meio no qual está inserido.
A personagem/ narrador das Viagens na minha terra não se reconhece na Portugal em
que está viajando chegando a enfadar-se de Santarém/Portugal e querer sair deste lugar o mais
rápido possível.“Malditas as mãos que te profanaram, Santarém... que te desonraram,
Portugal...que te envileceram e degradaram, nação que tudo perdeste, até o padrão de sua
história” (GARRET, 1973, p. 216).
Já a personagem Gonçalo Ramires, também fatigado de Portugal e de não conseguir ser
grande como seus antepassados, que faziam parte dos tempos gloriosos de sua terra, parte para
a África em busca de seu reconhecimento como um membro do “peito ilustre
lusitano”.“Gonçalo Mendes Ramires, silenciosamente, quase misteriosamente, arranjara a
concessão dum vasto prazo de Macheque, na Zambézia, hipotecara sua quinta histórica de
Treixedo, e embarcava em começos de junho no paquete Portugal, com Bento, para a África.”
(QUEIRÓS, p. 354)
A personagem Raimundo Silva de José Saramago se apresentará como um ser que
também não se enquadra neste Portugal, porém ele irá abrir-se para um mundo novo, o da
escrita, possibilitando-se rever e reescrever a história não só de Portugal como a da sua própria
vida.
Um outro ponto de contato entre os textos de Garrett, Eça e Saramago é a presença de
narrativas que nascem a partir da narrativa principal, e será através deste “intercruzar-se” de
história que iremos encontrar as visões dos autores sobre Portugal, sua gente, seu passado e seu
futuro.
Conclusão
Como podemos observar pela leitura da História do Cerco de Lisboa, Saramago irá
propor uma revisão do passado histórico de Portugal, tendo como ponto de partida o fato de
essa releitura ser uma porta para que se possa não só compreender o passado histórico, mas
também olhar para ele como uma forma de modificar o futuro da Nação.
Para isso ele se utilizará da nova historiografia que trará para as páginas de seu texto
personagens antes esquecidos da História e fará criticas não só à historiografia até então
majoritariamente influente na história de Portugal, como também às ações do povo português, e
à supervalorização do passado heróico de seu país.
Mas vale a pena ressaltar que, apesar de trazer à tona tais questões, o autor não fecha o
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ciclo desta (re)escritura da História com a simples resposta à pergunta: vale a pena fazer tudo
isso? Para ele, o mais importante é ter esta questão em mente, para assim ser possível rever,
revisitar, refazer e rescrever não só o passado de seu país, mas também o presente e o futuro de
uma nação que não deveria ser grandiosa apenas por seu passado.
REFERÊNCIAS
CAMÕES, Luís de. Os lusíadas. São Paulo: Editora Klick, 1999.
CERDEIRA, Cristina. Na crise do histórico, a aura da História. In: ___. O avesso do bordado: ensaios de literatura.
Lisboa: Caminho, 2000.
GARRETT, Almeida: Viagens à minha terra. São Paulo: Editora Três, 1973.
GINSBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São
Paulo: Cia. das Letras, 1987.
KUNTZ, Maria. A metaficção historiográfica em História do Cerco de Lisboa. Revista do Centro de Estudos
Portugueses (Fale/UFMG), Belo Horizonte, v. 22, n. 30, jan./jun. 2002.
QUEIRÓS, Eça de. A ilustre casa de Ramires. São Paulo: Editora Klick, s/d.
SARAMAGO, José. História do Cerco de Lisboa. São Paulo: Cia. das Letras, 2006.
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Para além do cerco: Uma (re)leitura da História por José Saramago