O preconceito de gênero no discurso jurídico:
análise dos implícitos na sentença
proferida no caso Richarlysson
The gender prejudice in a law sentence: analysis of the
implicit information in Richarlysson's case verdict
Jorge Luís Torresan
Professor de Teorias Lingüísticas da UNINOVE-SP
Mestre em Linguística pela PUC-SP
[email protected]
Murilo Jardelino da Costa
Professor de Teorias Lingüísticas da UNINOVE-SP
Mestre em Linguística pela UFPE
[email protected]
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Resumo
Este artigo analisa a sentença expedida no caso do jogador de futebol Richarlysson. A
intenção é mostrar como a rede de informações implícitas nesse documento revela
pontos de vista que nos garantem comprovar linguisticamente alguns posicionamentos
homofóbicos, preconceituosos e negativos. Para analisar a sentença, discorre
teoricamente sobre o discurso jurídico, especificamente aquele produzido por quem tem
a responsabilidade de aplicação das leis e sobre o gênero sentença, uma entre tantas
outras formas de manifestação do discurso jurídico. Como instrumental de análise,
escolhemos as categorias por meio das quais Bakhtin define gênero do discurso, a saber,
forma composicional, estilo e conteúdo temático, além das informações implícitas,
pressupostos e subentendidos, e da escolha lexical, por intermédio das quais foi possível
apreender o preconceito manifestado em sua materialidade linguística.
Palavras-chave: Homofobia. Preconceito. Implícitos.
Abstract
This paper analyses the sentence issued in the case of the football player Richarlysson.
Our aim is to show how the implicit information in this document reveals points of view
which linguistically guarantee, to prove some homophobic statements, prejudicial,
negative, etc. In order to analyze the sentence we theoretically talk about the law
discourse. As an instrument of analysis, we have chosen categories in which Bakhtin
defines genders of discourse, such as, composional kind, style and theme, besides the
implicit information, prejudgments, understated information, lexical choice, through
which we could apprehend the prejudice in its linguistic materialization.
Keywords: Homophobia. Prejudice. Implicit.
246
Introdução
Em junho de 2007, no programa “Debate Bola”, exibido na TV Record,
o diretor administrativo do Palmeiras, José Cyrillo Júnior, ao ser questionado
sobre o fato de ter um jogador homossexual na equipe, respondeu que o jogador
Richarlyson quase teria ido para o Palmeiras. A partir daí, instalou-se a
polêmica, pois Cyrillo “deu a entender” que o jogador era homossexual. Se
tivesse respondido de forma direta à pergunta, em vez de dar um exemplo para
ilustrar a situação, certamente o que se seguiu não teria ocorrido. Três dias
depois do comentário no programa de TV, os advogados do jogador acionaram a
justiça com uma queixa-crime contra as supostas acusações do diretor
administrativo do Palmeiras. O juiz da 9a Vara Criminal de São Paulo,
responsável pelo caso, arquivou o processo por meio de uma sentença que
chamou a atenção da sociedade, resultando em seu afastamento1.
O que nos chama atenção nesse caso, como em tantos outros, são os
posicionamentos cujos efeitos de sentido, muitas vezes negativos, são tratados
como ato falho, algo que não se tinha a intenção de dizer, um equívoco, uma má
compreensão. É evidente que não conseguimos medir as intenções das pessoas
quando se pronunciam em relação a um fato qualquer, mas uma vez que uma
informação é veiculada, somos responsáveis por suas supostas dimensões,
principalmente por aquilo que está implícito, já que o discurso pode ser
concebido como uma rede em que se entrelaçam informações explícitas e
implícitas.
Nossa discussão analisa a sentença expedida pelo juiz no caso desse
jogador de futebol. A intenção é mostrar como a rede de informações implícitas
nesse documento revela pontos de vista que nos garantem comprovar
linguisticamente alguns posicionamentos homofóbicos, preconceituosos e
negativos. Aliás, se bem formulada, essa rede discursiva, entrelaçada por
informações explícitas e implícitas, funciona como estratégia para proteger a
imagem de quem se posiciona diante de um fato.
Antes da análise da sentença, é importante esclarecer alguns pontos
sobre o discurso jurídico (especificamente aquele produzido por quem tem a
responsabilidade de aplicação das leis); o gênero sentença, uma entre tantas
outras formas de manifestação do discurso jurídico; e o conceito de informação
implícita, os quais fundamentarão nossa análise.
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Dados divulgados na Folhaonline em 28 de outubro de 2008.
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O discurso jurídico
A ação dos sujeitos na sociedade, desde os atos mais simples até os
mais complexos, pratica-se na e pela linguagem. Essa afirmação fundamentase na concepção de linguagem como “trabalho” e não apenas como “suporte do
pensamento” ou “instrumento de comunicação”, que apreende, no processo de
produção linguística, um ato exclusivamente individual, sem considerar os
elementos contextuais de uma situação social – o lugar de onde se fala, para
quem se fala, com que finalidade se fala –, excluindo definitivamente o “outro”
e, assim, acentuando o caráter monológico da linguagem.
Essa afirmação nos possibilita considerar, então, que, dependendo de
nossa necessidade de comunicação, inseridos em contextos específicos, ao
produzirmos nossos textos, em uma ação interativa com nossos interlocutores,
podemos garantir espaços no ambiente em que atuamos, permitindo que
nossas vozes sejam ouvidas, controlando ou até mesmo apagando outras e,
dessa forma, instaurando algumas situações, como o controle, o medo, a livre
interação etc., afinal
[...] a linguagem enquanto discurso é interação, é um modo
de produção social; ela não é neutra, inocente (na medida
em que está engajada numa intencionalidade) e nem
natural, por isso o lugar privilegiado da ideologia.
(BRANDÃO, 1996, p. 12).
Estudos sobre a linguagem têm sido alvos de várias áreas do
conhecimento, cada uma delas com suas preocupações e abordagens
específicas. A Linguística, no campo das Ciências Humanas, redirecionou os
estudos sobre a linguagem e o seu funcionamento, principalmente no momento
em que rompeu com os limites teóricos necessários inicialmente estabelecidos
por Saussure, que tomou a língua (langue) como único objeto de estudo em
oposição à fala (parole), por considerá-la individual e momentânea,
subordinada à língua – de caráter coletivo.
Ao tratar da linguagem, concebida para além da dicotomia língua/fala,
como um terceiro elemento, reconhecendo sua dualidade constitutiva, e
romper a tradição de análises puramente estruturalistas, que se restringiam aos
limites da frase, a Linguística amplia seu campo de estudo, abordando a
linguagem e o seu funcionamento por meio de estudos e análises que vão além
das áreas tradicionais como Fonética/Fonologia, Morfologia e Sintaxe, ou seja,
áreas em que investigações sobre os aspectos formais da língua preponderam,
e insere na pesquisa não só o contexto, como também o falante que põe a
língua/linguagem em funcionamento. Essa mudança de paradigma pode ser
248
entendida como “a tentativa de ruptura de duas barreiras: a que impede a
passagem da frase ao discurso e a que separa a língua da fala, ou melhor, dos
fatos sócio-históricos que a envolvem”. (BARROS, 1988, p. 2).
Nesse contexto teórico e, principalmente, com a verificação não só do
fato de que “cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos
relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN, 1997, p. 279), mas
também de que “se não existissem os gêneros de discurso [...], se tivéssemos
que criá-los pela primeira vez no processo da fala, se tivéssemos que construir
cada um de nossos enunciados, a comunicação verbal seria quase impossível”
(BAKHTIN, 1997, p. 302), passemos à definição de alguns conceitos
essenciais para a nossa análise. Pensamos a sentença como um gênero do
domínio discursivo jurídico. Compreende-se domínio discursivo, de acordo com
Marchuschi (2002, p. 23-24), como
esfera ou instância de produção discursiva ou de atividade
humana. Esses domínios não são textos nem discursos,
mas propiciam o surgimento de discursos bastante
específicos. Do ponto de vista dos domínios, falamos em
discurso jurídico, discurso jornalístico, discurso religioso
etc., já que as atividades jurídica, jornalística ou religiosa
não abrangem um gênero em particular, mas dão origem a
vários deles. Constituem práticas discursivas dentro das
quais podemos identificar um conjunto de gêneros textuais
que, às vezes, lhe são próprios (em certos casos exclusivos)
como práticas ou rotinas comunicativas
institucionalizadas.
Assumindo esse ponto de vista de que os discursos estão diretamente
subordinados à utilização da linguagem nas esferas da atividade humana,
sabemos que, então, quanto mais variada for a necessidade de
comunicação/interação das pessoas, mais variado será o leque de discursos à
nossa disposição.
Em uma tentativa, então, de definição do discurso jurídico,
poderíamos falar de uma modalidade discursiva como aquela em que fala a voz
da justiça, da lei, afinal o papel do jurista, do advogado ou de qualquer outro
profissional habilitado para transitar no contexto legal seria apenas o de aplicar
as leis sem qualquer envolvimento pessoal, ou seja, excluindo-se
completamente das decisões: o que nos parece ideal, porém impossível, por
sabermos que cada delito ou crime é ocorrido em contextos diferentes, havendo
certamente a necessidade de adequações ou de interação entre leis, das quais
há possibilidades de encaminhamentos diferenciados para cada caso em
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justiça. Dessa forma, estaríamos também cometendo um equívoco: excluir o
sujeito desse discurso. Portanto, reformulamos a definição de discurso jurídico
para aquele em que se faz falar a voz da justiça, da lei.
Com essa definição, somos obrigados a aceitar a presença marcante do
sujeito que, ao enunciar, põe a língua/linguagem em movimento, a partir de uma
necessidade comunicativa, modalizando seu discurso, ou melhor, deixando
marcas e pistas linguísticas por meio das quais se podem apreender pontos de
vista e ideologias. Em se tratando do juiz que proferiu a sentença sobre o caso do
jogador de futebol, a voz que se manifesta é a da justiça, das leis? Até que ponto
o sujeito desse discurso se envolve e/ou se distancia do objeto que está em
julgamento, assumindo o papel daquele que apenas teria como tarefa cumprir
a(s) lei(s)? Até que ponto os preceitos legais foram empregados sem a
interferência da(s) ideologia(s) que interpelam esse sujeito2?
Esses questionamentos são fundamentais, pois uma das
características do discurso jurídico é justamente a constante necessidade de
certo afastamento das posições do sujeito, uma vez que a lei deve ser cumprida
independentemente da vontade de quem a aplica. Assim, pode-se dizer que o
autoritarismo é, tanto quanto no discurso religioso, característica do discurso
jurídico, no sentido de que a relação dialógica/interativa entre os sujeitos (a
instituição jurídica e a população que a procura) é restrita, cabendo apenas à
população pôr em prática os dispositivos ditados pelas leis, aplicadas por uma
autoridade devidamente habilitada.
O gênero sentença
Como exposto, várias são as formas de manifestação da instituição
jurídica, cujo objetivo principal é orientar, discernir e conduzir pendências de
toda ordem, contando com os ditames das leis3. Entre essas manifestações ou
gêneros, temos a sentença, que é o parecer final do juiz acerca de toda a
movimentação burocrática sobre um problema ou pendência que chega até os
tribunais. Voltando-nos à concepção de gênero, Bakhtin (1997) indica três
unidades básicas que estruturam os gêneros de discurso: tema, estilo e forma
composicional. Verificando a literatura específica jurídica, o Código de
2
Essa reformulação da proposta de redefinição do discurso jurídico foi dirigida pelas considerações de Orlandi
(2007), em As formas do Silêncio: no movimento dos sentidos, quando trata das características do discurso
religioso.
3
Quando falamos nos ditames das leis, estamos nos referindo ao seu caráter autoritário, pois, no momento em
que são sancionadas por alguma autoridade, elas devem ser cumpridas, dificilmente questionadas. O próprio
estilo da redação das leis já nos indica esse autoritarismo: matéria para uma outra discussão.
250
Processo Civil Brasileiro – Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973 –, encontramos
a seguinte consideração sobre a sentença:
Art. 458. São requisitos essenciais da sentença:
I - o relatório, que conterá os nomes das partes, a suma do
pedido e da resposta do réu, bem como o registro das
principais ocorrências havidas no andamento do processo;
II - os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de
fato e de direito;
III - o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões, que
as partes lhe submeterem.
As disposições desse artigo já nos indicam que a forma composicional
de uma sentença judicial, geralmente, é estável. Ela obedece a alguns
procedimentos linguísticos/textuais frequentes. Em relação à forma
composicional desse gênero textual, podemos ainda observar que:
a) há um detalhamento de toda a pendência judicial que provocou o
litígio entre as partes, necessitando de uma instituição devidamente
autorizada para resolvê-lo;
b) a sentença é sempre construída com base em outros documentos
judiciais (outros gêneros discursivos): nas leis, portanto, há
parâmetros rígidos que determinam a decisão judicial e não uma livre
interpretação do juiz sobre o caso;
c) os temas de que tratam as sentenças são genéricos, mas todos eles
decorrentes de uma impossibilidade de interação entre pelos menos
duas pessoas;
d) na falta dessa interação, a sentença, como produto final de um
litígio, por meio da voz das leis, determina o que deve ser feito.
Contudo, novamente, o que nos chama a atenção durante todo o
processo até o seu encerramento é justamente “como” o juiz conduziu o caso.
Essa verificação pode ser feita, por exemplo, por meio da sentença – por meio
da forma como o juiz a profere.
As informações implícitas
Quando analisamos um texto – produto de um processo discursivo –, é
possível focalizarmos dois níveis de informação: o que está explícito e o que
está implícito. O explícito é o que está posto, facilmente localizável por meio
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das construções linguísticas empregadas por quem o produz. Essas escolhas e
marcas linguísticas, que a princípio podem não revelar com profundidade a
“intenção” de seus locutores, nos dão margem para chegarmos ao que não foi
dito com clareza, nos conduzem às informações implícitas, ou seja, àquelas
que estão nos entremeios do discurso, as quais podem revelar muito,
auxiliando inclusive na verificação de outros discursos que estão ali envolvidos
em uma relação interdiscursiva.
Dois são os principais tipos de informações implícitas: os pressupostos
e os subentendidos. Os pressupostos são localizáveis por meio da própria
materialidade linguística do discurso, enquanto os subentendidos ficam por
conta da enunciação, como se estivessem sugerindo algo que não podemos
comprovar muito bem. Vejamos abaixo o exemplo:
Do enunciado: Da turma toda, Luís é o mais simpático, podemos
depreender algumas informações abaixo:
1) Existe uma. (turma)
2) Luís faz parte dela. (Luís é)
3) A turma é simpática. (da turma toda)
4) Mas Luís se sobressai na simpatia. (é o mais)
5) A turma parece não ser tão simpática.
6) Pelo contrário, parecem-nos antipática.
As informações 1 a 4 são todas comprovadas por meio do próprio
texto, portanto, são os nossos pressupostos. No entanto, 5 e 6 não podem ser
comprovadas linguisticamente. Precisaríamos evidentemente do contexto
todo, seria necessário resgatar o momento da enunciação desse enunciado – o
que não é possível – temos aí os subentendidos.
A sentença do caso Richarlyson
Após a discussão teórica, passemos à análise da sentença
propriamente dita. Para facilitar a localização dos trechos a que nos referimos,
as linhas do texto da sentença estão numeradas na seção Anexo deste artigo. A
análise do texto parte basicamente de sua estrutura composicional. A partir
dela, levantam-se algumas questões para dar conta de nossa indagação, ou
seja, até que ponto os preceitos legais foram empregados sem a interferência
da(s) ideologia(s) desse sujeito? As respostas para essas perguntas serão dadas
pela verificação da construção da própria sentença.
252
Como todo gênero discursivo, a sentença judicial possui algumas
regras de composição e estilo fixas. Não obedecer a essas regras pode significar
uma subversão do gênero, já devidamente instituído e seguido. Vejamos abaixo
como isso ocorre na sentença.
A forma composicional
a) Elementos do contexto da sentença:
1) Dados de identificação do local exato origem da sentença:
2) Número do processo: Ele indica que antes da redação da sentença
houve todo um encaminhamento específico da queixa registrada por
uma das partes e uma tramitação burocrática dessa queixa (linha 4).
b) Organização do texto da sentença:
1) (linhas 5 a 8): O texto da sentença já se inicia com uma
“conclusão”, que na verdade é a indicação de que a decisão final da
pendência entre as partes já foi tomada. A escrivã serve apenas para
anunciar o que foi decidido.
A partir da linha 9 da sentença analisada, ouve-se o juiz
empregando uma forte carga argumentativa, mas que, por força do
dispositivo legal contido no art. 93, inciso IX da Constituição Federal
(citado pelo próprio juiz), a sua exposição deve ser breve, já indicando
que o gênero sentença não é caracterizado por textos de grande
extensão. Como já vimos, o Código Civil Brasileiro determina que os
requisitos essenciais para a elaboração de uma sentença são: 1) o
relatório, no qual são indicados os nomes das partes do processo, um
resumo do pedido e da resposta do réu durante todo o andamento do
processo e o registro das principais ocorrências que fazem parte do
processo; 2) o fundamento, que dará suporte à decisão do juiz sobre o
caso; e 3) o dispositivo, empregado pelo juiz para resolver a questão
que motivou o processo. Vejamos abaixo como cada uma delas
aparece na sentença analisada e o que elas nos revelam.
2) O relatório (linhas 12 a 24):
- O juiz entende que não houve um ataque ao jogador.
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- Não houve indicação de que por ocasião de seu pronunciamento o
cartola do Palmeiras tenha chamado o jogador de homossexual.
- Trabalhando-se com a hipótese de que o jogador tivesse sido
chamado de homossexual, o juiz oferece dois caminhos:
a) Não sendo, bastaria uma declaração do jogador em público,
afirmando que não é homossexual.
b) Sendo, o jogador poderia admitir o fato, omitir ou silenciar-se; que
deixasse o gramado, pois esse fato seria insignificante diante da
grandeza do futebol.
Observam-se no posicionamento do juiz dois pontos mais marcantes:
o primeiro é o de que o principal não foi esclarecer se em seus comentários o
diretor administrativo do Palmeiras chamou o jogador de homossexual (o que
nos parece ser o foco do processo – o que motivou o jogador a procurar a
justiça). O segundo é que a discussão sobre o homossexualismo é secundária,
pois o futebol estaria em uma posição superior.
Esses dois pontos nos sugerem um afastamento da condição de juiz
para a de um apreciador/torcedor de futebol, muito embora inserido em um
contexto em que tal afastamento não deveria ocorrer.
3) Fundamentação da decisão do juiz (linhas 25 a 61):
Para fundamentar a sua decisão, o juiz cita algumas das principais
ocorrências que compuseram o processo. A estratégia foi primeiramente citar o
que foi apresentado pela defesa do jogador:
- “suposta manifestação do *“GRUPO GAY”*”. Notase que, com o adjetivo “suposta” referindo-se à
manifestação, o juiz acaba por caracterizar o
documento como algo hipotético, sem fundamento,
sem muita importância. Observa-se ainda que o uso
das aspas antes e depois da expressão grupo gay
sugere um movimento que talvez não tenha também
importância ou representação na sociedade;
- “suposto pronunciamento publicado na Folha de
S. Paulo, de autoria do colunista Juca Kfouri (folha
7), batendo-se pela abertura, nas canchas, de
254
atletas com opção sexual não de todo aceita”.
Novamente, o adjetivo “suposta” foi empregado
para tratar do pronunciamento de um colunista
esportivo com a finalidade de defender o jogador, ou
seja, novamente percebe-se a intenção de
desqualificar o fato, torná-lo menor.
Após a exposição dos argumentos da defesa – tratando-os como se não
tivessem credibilidade para fundamentar uma defesa em prol do jogador –, o
juiz continua sua fundamentação afirmando que “[...] futebol é jogo viril,
varonil, não homossexual”. Com essa afirmação, fica pressuposto que: a)
pessoas não viris não poderiam jogar futebol; b) jogo de futebol não é lugar de
homossexual, portanto, um homossexual não pode ser considerado viril. A
defesa do futebol feita pelo juiz acentua o fato de que o principal não é resolver a
pendência entre as partes, mas sim superelevar a posição do futebol concebida
pelo juiz. Além disso, fica a impressão de que o juiz aceita a sugestão feita pelo
cartola de que o jogador é realmente homossexual.
Uma vez admitindo, de forma subentendida, o fato de que o jogador é
homossexual, o juiz, na sequência, passa a expor de forma mais contundente
os seus argumentos sobre a questão da homossexualidade. Vejamos abaixo
alguns dos seus principais pressupostos:
O que foi posto pelo juiz
O que está pressuposto na fala do juiz
“Esta situação, incomum, do mundo
moderno, precisa ser rebatida".
- Homossexualismo no futebol não é
comum.
- Homossexualismo (no futebol) é produto
da modernidade.
"Quem se recorda da *"COPA DO MUNDO
DE 1970"* [...] jamais conceberia um ídolo
seu homossexual".
- Ídolos não podem ser homossexuais.
"Quem presenciou grandes orquestras
futebolísticas formadas [...] não poderia
sonhar em vivenciar um homossexual
jogando futebol".
- É impossível a presença de um
homossexual no futebol, principalmente em
grandes partidas.
"Não que um homossexual não possa jogar
bola. Pois que jogue, querendo. Mas forme o
seu time e inicie uma Federação. Agende
jogos com quem prefira pelejar contra si".
- Um homossexual até pode jogar futebol,
mas não com heterossexuais.
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“O que não se pode entender é que a
Associação de Gays da Bahia e alguns
colunistas (se é que realmente se
pronunciaram nesse sentido) teimem em
projetar, para os gramados, atletas
homossexuais".
- A abertura de espaço para homossexuais
em jogos de futebol é incompreensível.
- Há uma movimentação insistente no
sentido de lutar pelo espaço do
homossexual também no futebol.
"Ora, bolas, se a moda pega, logo teremos o
*"SISTEMA DE COTAS"* forçando o acesso
de tantos por agremiação [...]".
- O homossexualismo no futebol é uma moda.
- Há sistemas de cotas para excluídos.
- O acesso dos excluídos é algo forçado.
"E não se diga que essa abertura será de
idêntica proporção ao que se deu quando os
negros passaram a compor as equipes.
Nada menos exato. Também o negro, se
homossexual, deve evitar fazer parte de
equipes futebolísticas de héteros".
- Os negros também foram excluídos dos
gramados e depois aceitos.
- Negros homossexuais não podem ser
aceitos no futebol.
- Negros homossexuais não podem se
misturar com heterossexuais.
"Mas o negro desvelou-se (e em várias
atividades) importantíssimo para a história
do Brasil: o mais completo atacante, jamais
visto, chama-se *EDSON ARANTES DO
NASCIMENTO* e é negro".
- O negro, até certo momento, não era
desenvolvido.
"O que não se mostra razoável é a aceitação
de homossexuais no futebol brasileiro,
porque prejudicariam a uniformidade de
pensamento da equipe, o entrosamento, o
equilíbrio, o ideal [...]".
- Homossexuais são causadores de
desequilíbrios.
"Para não se falar no desconforto do
torcedor, que pretende ir ao estádio, por
vezes, com seu filho, avistar o time do
coração se projetando na competição, ao
invés de perder-se em análises do
comportamento deste ou daquele atleta,
com evidente problema de personalidade ou
existencial; desconforto também dos
colegas de equipe, do treinador, da
comissão técnica e da direção do clube".
- O torcedor brasileiro se sente
desconfortável diante de homossexuais nos
campos.
- Homossexualidade é resultado de
problemas de personalidade ou
existenciais.
- Homossexuais são antissociais e
causadores de problemas.
"Precisa, a propósito, estrofe popular, que
consagra:
*CADA UM NA SUA ÁREA,
CADA MACACO EM SEU GALHO,
CADA GALO EM SEU TERREIRO,
CADA REI EM SEU BARALHO"*.
- Homossexuais têm um lugar específico na
sociedade.
Percebe-se que, em toda sua fundamentação, o juiz não emprega
dispositivos legais (leis, decretos e outros documentos) para sustentar sua
posição sobre o papel do homossexual no futebol. Encontramos apenas
argumentos pessoais e preconceituosos.
c) O estilo da sentença:
Além do estilo próprio que cada sujeito emprega em suas produções
orais e/ou escritas, contamos também com um estilo mais generalizado e
constante nos gêneros de discurso. Esse estilo pode ser verificado pela:
1) Seleção lexical:
Como todo documento oficial da área jurídica, a sentença possui, por
exemplo, uma seleção lexical muito própria, caracterizada por palavras e
expressões pouco empregadas em outras áreas, que também utilizam uma
linguagem formal e jargões específicos, como os exemplos vistos na sentença
analisada: “subscrevi”, “é vedado”, “na esteira do artigo”,
“querelado/querelente”, “imputação”, “aquilatar”, “arrimo documental”,
“colocado como lastro”.
2) Presença da intertextualidade:
A sentença apresenta-se sob a forma de citações de dispositivos legais
(leis, decretos) a fim de sustentar a posição/decisão judicial, afinal, como vimos,
no discurso jurídico a lei se faz ouvir. Na sentença analisada, há a citação apenas
do art. 93, inciso IX da Constituição Federal, fato que nos chama a atenção, pois
o juiz faz uma considerável argumentação. Porém, como a defesa do juiz é
pessoal em prol do futebol e não da questão que deu origem ao processo,
evidentemente não haveria dispositivos legais a serem mencionados.
3) Uso da primeira pessoa do singular:
A decisão final sobre um problema apontado em um processo, depois
de toda a sua tramitação e estudo por parte do juiz mediante tudo o que é
apresentado pelas partes, é dada em primeira pessoa, mas sempre apoiada em
dispositivos legais. Na sentença analisada, essa primeira pessoa aparece, o
importante é como esse “eu” se manifesta no texto:
- “Não vejo nenhum ataque do querelado ao querelante” (linha 12).
- “É assim que eu penso [...] e porque penso assim, na condição de
magistrado, digo!” (linha 62).
- “Rejeito a presente queixa-crime” (linha 62).
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Em virtude da ausência de citações de alguns preceitos legais, como já
apontamos, juntamente com o emprego da primeira pessoa e principalmente de
verbos que indicam claramente uma apreciação muito pessoal, como “penso”,
somos levados a afirmar que a presença de um autoritarismo marcante no
sentido de que não existiram outras vozes no texto da sentença com as quais o
juiz pudesse ponderar a condução da sua argumentação e conclusão.
Especificamente no item 2 acima, temos o clímax desse autoritarismo: ele pensa
dessa forma e na condição de magistrado faz valer o seu ponto de vista.
Em virtude da ausência de citações de alguns preceitos legais, como já
apontamos, juntamente com o emprego da primeira pessoa e principalmente
de verbos que indicam claramente uma apreciação muito pessoal, como
“penso”, somos levados a afirmar que a presença de um autoritarismo
marcante no sentido de que não existiram outras vozes no texto da sentença
com as quais o juiz pudesse ponderar a condução da sua argumentação e
conclusão. Especificamente no item 2 acima, temos o clímax desse
autoritarismo: ele pensa dessa forma e na condição de magistrado faz valer o
seu ponto de vista.
Considerações finais
Como todo produto cultural, a sentença proferida por um juiz de direito
também poderia ser abordada sob diversos pontos de vista, como o jurídico, o
da psicologia etc. Nosso objetivo foi, por outro lado, analisá-la do ponto de vista
de sua materialidade linguística. Assim, apresentamos algumas considerações
sobre a natureza da linguagem e, de acordo com teorias linguísticas
contemporâneas, identificamos por meio de marcas e pistas linguísticas como
se manifesta e reproduz o preconceito em relação à identidade sexual de um
indivíduo. Para alcançar nosso objetivo, teceram-se considerações sobre os
conceitos de esfera discursiva e gêneros do discurso e, em específico, da esfera
jurídica e da sentença.
A partir dessas considerações, propusemos a reformulação na definição
de discurso jurídico para aquele em que se faz falar a voz da justiça, uma vez que
nosso intuito era verificar a presença de subjetividade na sentença proferida. Ao
delimitar a subjetividade na linguagem como objeto de nossa investigação,
estabelecemos como instrumental de análise as categorias por meio das quais
Bakhtin define gênero do discurso, a saber, forma composicional, estilo e
conteúdo temático, além das informações implícitas, pressupostos e
subentendidos, e da escolha lexical, por intermédio das quais foi possível
apreender o preconceito manifestado em sua materialidade linguística.
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Referências
BRANDÃO, H. Introdução à análise do discurso. 5. ed. Campinas: Editora da
Unicamp, 1996.
BARROS, D. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São Paulo: Atual, 1988.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Maria E. Galvão G. Pereira. 2.
ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
MARCHUSCHI, L. A. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONISIO, A.;
MACHADO, A.; BEZERRA, M. (Org.). Gêneros textuais e ensino. 2. ed. Rio de
Janeiro: Lucerna, 2002. p. 19-36.
ORLANDI, E. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas: Editora
da UNICAMP, 1997.
ANEXO – A sentença expedida pelo juiz responsável pelo caso do jogador,
amplamente divulgada na internet4.
(linha 01) PODER JUDICIÁRIO
São Paulo
Comarca da Capital
*Processo nº 936-07*
(linha 05) Conclusão
Em 5 de julho de 2007. Faço estes autos conclusos ao Dr. Manoel Maximiano
Junqueira Filho, MM. Juiz de Direito Titular da Nona Vara Criminal da Comarca da
Capital.
Eu, Ana Maria R. Goto, Escrevente, digitei e subscrevi.
A presente Queixa-Crime não reúne condições de prosseguir. Vou evitar um exame
perfunctório,
(linha 10) mesmo porque, é vedado constitucionalmente, na esteira do artigo 93, inciso
IX, da Carta Magna.
Não vejo nenhum ataque do querelado ao querelante.
Em nenhum momento o querelado apontou o querelante como homossexual.
Se o tivesse rotulado de homossexual, o querelante poderia optar pelos seguintes
caminhos:
(linha 15) A – Não sendo homossexual, a imputação não o atingiria e bastaria que,
também ele, o querelante, comparecesse no mesmo programa televisivo e declarasse
ser heterossexual e ponto final;
B – se fosse homossexual, poderia admiti-lo, ou até omitir, ou silenciar a respeito. Nesta
hipótese, porém, melhor seria que abandonasse os gramados...Quem é, ou foi
4
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/esporte/20070803-caso_richarlysson.pdf
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*BOLEIRO*, sabe muito bem que estas infelizes colocações exigem réplica imediata,
instantânea, mas diretamente entre o ofensor e o
(linha 20) ofendido, num *TÈTE-À TÈTE"*. Trazer o episódio à Justiça, outra coisa não é
senão dar dimensão exagerada a um fato insignificante, se comparado à grandeza do
futebol brasileiro. Em Juízo haveria audiência de retratação, exceção da verdade,
interrogatório, prova oral, para se saber se o querelado disse mesmo... e para se
aquilatar se o querelante é, ou não...
O querelante trouxe, em arrimo documental, suposta manifestação do *"GRUPO GAY"*,
da Bahia
(linha 25) (folha 10) em conforto à posição do jogador. E também suposto
pronunciamento publicado na Folha de São Paulo, de autoria do colunista Juca Kfouri
(folha 7), batendo-se pela abertura, nas canchas, de atletas com opção sexual não de
todo aceita.
Já que foi colocado, como lastro, este Juízo responde: futebol é jogo viril, varonil, não
homossexual. Há hinos que consagram esta condição: *"OLHOS ONDE SURGE O
AMANHÃ, RADIOSO DE
(linha 30) LUZ, VARONIL, SEGUE SUA SENDA DE VITÓRIAS...".*
Esta situação, incomum, do mundo moderno, precisa ser rebatida...
Quem se recorda da *"COPA DO MUNDO DE 1970"*, quem viu o escrete de ouro
jogando *(FÉLIX, CARLOS ALBERTO, BRITO, EVERALDO E PIAZA; CLODOALDO E
GÉRSON;
JAIRZINHO, PELÉ, TOSTÃO E RIVELINO)*, jamais conceberia um ídolo seu
homossexual. Quem
(linha 35) presenciou grandes orquestras futebolísticas formadas: SEJAS,
CLODOALDO, PELÉ E EDU, no Peixe: MANGA, FIGUEROA, FALCÃO E CAÇAPAVA, no
Colorado; CARLOS, OSCAR, VANDERLEI, MARCO AURELIO E DICÁ, na Macaca, dentre
inúmeros craques, não poderia sonhar em vivenciar um homossexual jogando futebol.
Não que um homossexual não possa jogar bola. Pois que jogue, querendo. Mas, forme o
seu time e
(linha 40) inicie uma Federação. Agende jogos com quem prefira pelejar contra si.
O que não se pode entender é que a Associação de Gays da Bahia e alguns colunistas (se
é que realmente se pronunciaram neste sentido) teimem em projetar para os gramados,
atletas homossexuais.
Ora, bolas, se a moda pega, logo teremos o *"SISTEMA DE COTAS"*, forçando o acesso
de tantos por agremiação...
(linha 45) E não se diga que essa abertura será de idêntica proporção ao que se deu
quando os negros passaram a compor as equipes. Nada menos exato. Também o negro,
se homossexual, deve evitar fazer parte de equipes futebolísticas de héteros.
Mas o negro desvelou-se (e em várias atividades) importantíssimo para a história do
Brasil: o mais completo atacante, jamais visto, chama-se *EDSON ARANTES DO
NASCIMENTO* e é negro.
(linha 50) O que não se mostra razoável é a aceitação de homossexuais no futebol
brasileiro, porque prejudicariam a uniformidade de pensamento da equipe, o
entrosamento, o equilíbrio, o ideal...
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Para não se falar no desconforto do torcedor, que pretende ir ao estádio , por vezes com
seu filho, avistar o time do coração se projetando na competição, ao invés de perder-se
em análises do comportamento deste, ou daquele atleta, com evidente problema de
personalidade, ou existencial;
(linha 55) desconforto também dos colegas de equipe, do treinador, da comissão
técnica e da direção do clube.
Precisa, a propósito, estrofe popular, que consagra:
*"CADA UM NA SUA ÁREA,
CADA MACACO EM SEU GALHO,
(linha 60) CADA GALO EM SEU TERREIRO,
CADA REI EM SEU BARALHO".*
É assim que eu penso... e porque penso assim, na condição de Magistrado, digo! Rejeito
a presente Queixa-Crime. Arquivem-se os autos. Na hipótese de eventual recurso em
sentido estrito, dê-se ciência ao Ministério Público e intime-se o querelado, para contrarazões.
(linha 65) São Paulo, 5 de julho de 2007
MANOEL MAXIMIANO JUNQUEIRA FILHO
JUIZ DE DIREITO TITULAR
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