UMA PERSPECTIVA DO TEMPO NA LITERATURA DE JORGE LUIS BORGES Nara Letycia Martins Silva (Universidade Federal de Goiás) A concepção de tempo na obra de Jorge Luis Borges pode ser interpretada, inicialmente, como sendo parecida à das sociedades “arcaicas” pela semelhança de seu fundamento básico. Percebe-se nos textos escritos pelo escritor argentino uma reflexão alicerçada na inexorável experiência temporal, onde o indivíduo se vê em meio a uma trama sem um início ou fim específicos. Por essa razão, a eternidade e suas várias realidades possíveis são entendidas como o elemento básico da relação entre o homem e suas ações no tempo. Compreendendo a realidade temporal como infindável e inconclusa, Borges sugere que o tempo humano é composto por ciclos e repetições circulares de ações e mudanças espirituais em uma ordem não necessariamente cronológica. Nesse ponto, seu fundamento é semelhante ao utilizado pelas sociedades antigas, que também compreendiam a vida humana como composta de uma realidade original, onde todo o restante estaria fadado à repetição cíclica em direção a esses acontecimentos primordiais, os quais eram utilizados como referência de orientação na vida comum, prática. É necessário, porém, demonstrar que as idéias de Borges não fazem parte de uma continuidade da concepção antiga do tempo circular. Segundo Ivan Domingues (1996), as sociedades primitivas, por crerem em uma série de eventos “maiores” em um início remoto, não admitiam a idéia de individualidade por focarem-se especificamente no geral, no exemplar. Essa posição coloca o sujeito evadindo-se da história na tentativa de anular o tempo. Isso se dá pela sua noção de eterno retorno ao início, alicerçando-se em arquétipos já pré-estabelecidos pela tradição. Essa concepção é distante, por exemplo, da idéia moderna sobre temporalidade, que é compreendida como linear e progressiva, irrepetível e evolutiva. Borges, apesar de propor ciclos temporais em seus textos (e se assemelhar aos antigos por esse motivo) não pode ser situado nesse mesmo escopo conceitual. No conto que abre o livro O Aleph, intitulado “O Imortal”, Borges nos fala de uma cidade ancestral onde poderia se atingir a imortalidade através do contato direto com a mesma. O herói do conto inicia uma jornada em busca da cidade para confirmar a existência de tais efeitos e não parece possuir qualquer receio no que acontece no decorrer dessa jornada, inclusive com sua comitiva (que acaba se extinguindo de diversas formas no decorrer do trajeto). Ao encontrar a tal cidade, o protagonista encontra uma comunidade de pessoas aparentemente incapazes de atividades primárias, como falar e refletir, caracterizando-os como seres inferiores. No entanto, depois de vagar pelas ruínas da cidade por um tempo que não é estipulado (pode ter sido por um dia ou por vários anos),o personagem do conto se desespera com a inconclusão sobre a imortalidade e seus resultados desorientadores sobre a tentativa de fuga da morte. O argumento final de Borges é encontrado quando percebe-se que um daqueles seres primários e rústicos, que comia cobras e bebia lama, é na verdade Homero. É um trecho bastante interessante que ocorre durante uma chuva , quando é pronunciado um trecho da Odisséia, que é complementada por palavras gregas emitidas pelo homem que não sabia falar e que se dizia Homero. A partir disso, compreende-se que, na realidade final sobre nossa relação com o tempo, todos nós somos Homero, porque um dia já o fomos ou o seremos em uma realidade futura. Pode-se perceber nesse conto de Borges que sua concepção difere da idéia antiga justamente pela vontade de permanecer, mesmo sobre a inevitável corrosão temporal (corrosão essa exemplificada pelo seu fim último, a morte física). É interessante apontar para o fato curioso de que em “O Imortal”, o narrador teria encontrado, séculos depois do primeiro contato com a cidade perdida, um “tal Giambattista” com quem teria conversado sobre poesia grega. O “tal Giambattista” é na verdade o filósofo italiano Giambattista Vico, cujo principal trabalho, Ciência Nova, possui um argumento referente ao tempo semelhante aos antigos e também ao de Borges, já que é proposto por ele que o tempo humano é compreendido por eras que se repetiriam de forma cíclica, começando em um tempo de ignorância até o auge e declínio de uma civilização. Como já mencionado , o homem antigo buscava a fuga da história pela tentativa de anulação do tempo. Em Borges, porém, há uma concepção particular, de infinitude da existência humana. Essa idéia fixa o acompanha em toda sua obra, vemos isso em seus contos sobre livros com páginas infinitas (O Livro de Areia), bibliotecas com aposentos sem fim (A Biblioteca de Babel), encontros de uma pessoa consigo mesma em realidades temporais distintas (O Outro). O tempo infinito proposto nesses textos sugere que a história, ao invés de ser uma indagação da realidade, na verdade é sua própria origem. Esse ponto é de especial importância porque especifica a relação entre temporalidade e referência. A literatura de Borges é caracterizada pela manipulação da realidade e a confusão advinda desse “jogo de espelhos” pela desconcertante dúvida acerca da veracidade do que está sendo narrado. Essa tenuidade entre o real e o possível (ou impossível, se tratamos dos elementos fantásticos de seus escritos) perpassa pela idéia de uma realidade passível de ser apreendida a partir de um referencial que não é necessariamente objetivo (no sentido moderno do termo) ou verdadeiro. O tempo humano, por ser eterno portanto infinito, não comporta uma concepção de unidades temporais específicas como presente, futuro ou passado. Admitir isso a partir dessa perspectiva seria uma incoerência. A riqueza sobre esse tema na literatura de Jorge Luis Borges está justamente na percepção de que existem várias realidades possíveis, onde toda a tradição acumulada da humanidade está presente em cada indivíduo. No conto “Pierre Menard, Autor do Quixote”, inserido no livro Ficções, Borges resume sua idéia de referência a partir da contraposição da idéia de que a história é um depositário das ações humanas e cuja filha é a verdade. Seguindo a proposta da possibilidade de realidades diversas a partir do tempo infinito, Borges escreve o seguinte: A história, mãe da verdade; a idéia é espantosa. Menard, contemporâneo de William James, não define a história como indagação da realidade, mas como sua origem. A verdade histórica, para ele, não é o que sucedeu; é o que pensamos que sucedeu. As cláusulas finais __ exemplo e aviso do presente, advertência do futuro __ são descaradamente pragmáticas. (BORGES, 1972 ,pág. 56 , grifos do autor). A passagem destacada ilustra uma perspectiva contrária à concepção de ciência histórica que possuímos. O fundamento da história como a compreendemos hoje é baseada em uma idéia de tempo composto do princípio de causalidade. Essa idéia, alicerçada no ápice da modernidade, nos séculos XVIII e XIX, se sustenta na linearidade progressiva do tempo das ações humanas. Entretanto, Borges recusa essa abordagem por considerá-la apenas uma forma de organização prática (ou pragmática) no intuito de ordenar a realidade temporal , de dar sentido a ela. Esse pragmatismo é desnecessário para Borges. Se estamos em um círculo infinito sem princípio ou fim, é irrelevante se ater a especificações como exemplos a serem seguidos e sentidos a serem encontrados em regiões espaço-temporais determinadas por uma linha reta. A história é um tema de importância na literatura borgeana. Os efeitos e as causas são analisados com pertinência pelo escritor na tentativa irônica de dar sentido à sua própria condição. É inegável a interferência da filosofia oriental em seus textos (principalmente da filosofia árabe), assim como do cristianismo e da Cabala. Talvez essas influências tenham contribuído para a construção tão particular de uma percepção temporal da realidade. Uma realidade das possibilidades. Encerremos, então, o presente esboço com um poema de Borges, presente no livro A Cifra, que poderia facilmente ser utilizado para explicar o que vem a ser a história: A Trama Nesse segundo pátio a torneira periódica goteja, fatal como a morte de César. As duas são peças de uma trama que envolve o círculo sem princípio nem fim, a âncora do fenício, o lobo e o cordeiro primigênios, a data de minha morte e o teorema perdido de Fermat. Essa trama de ferro os estóicos conceberam de um fogo que morre e que renasce feito Fênix. É a grande árvore das causas e dos ramificados efeitos; em suas folhas estão Roma e Caldéia e o que divisam as faces de Jano. O universo é um de seus nomes. Ninguém jamais o viu E homem algum pode ver outra coisa.