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A POESIA DE JORGE LUIS BORGES E SUA RELAÇÃO COM OS SONHOS,
A FILOSOFIA E O FILME MATRIX
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Daniel Rodrigues de Castro
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Graduando - UFRJ
O poeta argentino Jorge Luis Borges publica em 1923 seu primeiro livro de
poesias, intitulado Fervor de Buenos Aires, no qual expressa a atmosfera emotiva
do reencontro com seu país após sete anos na Europa (1914 – 1921). Nesta obra
estão latentes temas como a nostalgia da infância, sua solidão e os reflexos da
urbanização na capital portenha.
Dentre estas questões, o ponto central a ser abordado neste trabalho é “a
vida como um sonho”, partindo-se da análise de três fragmentos do poema
“Amanecer”, que se encontra no referido livro. Além disso, abordar-se-á aspectos
da filosofia e da arte cinematográfica, com a finalidade de analisar o tema sob
diversas perspectivas.
A temática das dúvidas e conjecturas presente neste poema se dá através de
um dos mais importantes símbolos que representam a irrealidade: o sonho. Este
tênue limite entre o real e o ilusório caracteriza os aspectos metafísicos que
permearão majoritariamente a fase final de sua poesia, mas que já estão presentes
em sua poética inicial, afastando o poeta argentino no mero colar de imagens
ultraístas.
No primeiro fragmento surge o problema que norteará todo o poema: o
mundo é meramente uma atividade da imaginação, ou seja, um sonho. A relação
opositiva entre o dia e a noite estabelecida pelo poeta será também de vital
importância para compreender sua refutação onírica, como se observa nos versos a
seguir:
[...]
Curioso de la sombra
y acobardado por la amenaza del alba
reviví la tremenda conjetura
de Schopenhauer y de Berkeley
que declara que el mundo
es una actividad de la mente,
un sueño de las almas
sin base ni propósito ni volumen.
A intrigante hipótese do poeta pode ser alicerçada nos estudos do filósofo
alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860), que pensava o mundo e a vida humana
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como ilusão, aparência e sofrimento. A outra referência diz respeito ao
filósofo irlandês George Berkeley (1685-1753), que postulava o mundo como se
fosse uma representação, questionando o conceito de realidade.
Ao estabelecer esta relação da vida como um sonho, apoiada nos estudos
filosóficos de Schopenhauer e Berkeley, Borges começa a traçar suas dúvidas
referentes à realidade a sua volta, tomando por base a relação opositiva entre a
alvorada e o anoitecer. Para o poeta, a sombra e a noite inspiram a curiosidade e o
conhecimento, enquanto o amanhecer lhe acovarda pela ameaça da revelação
inevitável.
Este universo de poesia e filosofia ganha materialização no filme Matrix
(1999), corroborando a conjetura de Borges, Schopenhauer e Berkeley. Na
produção cinematográfica dirigida pelos irmãos Larry e Andy Wachowski, a mente
das pessoas é mantida em uma espécie de sonho percebida como realidade, que se
chama Matrix.
Apesar do enredo futurístico deste filme estar bem distante da década de
vinte, quando Borges publicou esse poema, a realidade de Matrix pode ser
facilmente comparada à Buenos Aires do poeta, como se observa no segundo
fragmento:
[...]
si están ajenas de sustancias las cosas
y si esta numerosa Buenos Aires
no es más que un sueño
que erigen en compartida magia las almas,
hay un instante
en que peligra desaforadamente su ser
y es el instante estremecido del alba.
[...]
¡Hora en que el sueño pertinaz de la vida
Corre peligro de quebranto,
[...]
Berkeley, conhecido por seu imaterialismo, reduz a realidade a um mundo
vivido na mente, no qual a questão a ser tratada não é a indagação shakeasperiana
do “ser ou não ser”, e sim “o quê somos”. A dúvida reside em saber se o mundo
consiste em coisas reais ou se tudo ao redor não passa de sonho. Esta reflexão do
filósofo é semelhante à proposição do poeta, pois a indubitável aparência do que se
apresenta como real tem a possibilidade de pertencer ao universo onírico.
Borges, perplexo, depara-se com a ausência substancial das coisas, em uma
visão insólita e fantasmagórica de Buenos Aires. A terrível constatação de que a
cidade é mais imaginação do que verdade encontra seu paralelo no filme, no qual a
realidade é apenas uma configuração do sonho.
O poeta constata, nesse instante poético, no qual o limiar da alvorada é uma
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ameaça, que esta é a oportunidade em que o encanto da vida como um
sonho pode ser quebrado. Mas, quando o amanhecer ilumina o mundo com seus
raios de sol, o prenúncio se cumpre através do terceiro fragmento, perpetuando-se
o infindável ciclo dos sonhos.
Pero de nuevo el mundo se ha salvado.
La luz discurre inventando sucios colores
y con algún remordimiento
de mi complicidad en el resurgimiento del día
solicito mi casa,
[...]
A anunciada ameaça da revelação ocorre ao amanhecer, num processo
cíclico no qual a ignorância do mundo perpetua a vida de ilusão como se fosse
realidade. Schopenhauer traça um paralelo desta idéia com a experiência de Sísifo,
que segundo a mitologia grega foi condenado pelos deuses a rolar uma pedra até o
alto de uma montanha, mas sempre quando chegava ao topo ela rolava para baixo.
Igualmente à infindável tarefa de Sísifo, o homem está fadado a persistir
neste turbilhão ilusório; entretanto, ao contrário do que se apresenta no mito, há
uma possibilidade de mudança presente no poema. A oportunidade de se
desvendar a realidade como um sonho surge na reflexão e na propagação da idéia
do poeta no instante poético do amanhecer, cabendo só a ele desmitificar esta
visão ilusória do mundo.
Ao solicitar a sua casa, desistindo e renegando todo o seu ideal, o eu-lírico
se torna cúmplice da vida como um sonho, demonstrando a tendência geral da
humanidade
perante
os
maiores
desafios.
Esta
alienação
é
igualmente
demonstrada no filme, quando Cypher, um dos personagens que havia se libertado
do mundo dos sonhos, trai o seu grupo para voltar a viver na ilusão de Matrix.
Este pensamento remonta às idéias do sociólogo francês Jean Baudrillard
(1929), autor do livro Simulacros e Simulação, também citado no filme. Ele postula
que o comando pessoal funciona como arbitrariedade do mundo, ao invés de ser
em função da interioridade e do desejo próprio. O raciocínio de Schopenhauer parte
desta mesma premissa, acrescentando que o real é ilusório porque a realidade
existe através da exteriorização daquilo que existe no ser humano, ou seja, o que
lhe é introjetado.
Todos estes postulados, permeados de dúvidas e questionamentos, ilustram
claramente a necessidade do homem de conhecer o mundo e a si mesmo. A idéia
de que tudo o que se tem vivido até hoje não passa de um sonho, que nos parece
indubitavelmente real, estremece os pilares do pensamento e mostra a fragilidade
humana ante o desconhecido.
Borges ataca a consistência do universo e do homem que habita neste
universo, mostrando que estas imaginações da vida como um sonho apontam para
duas perspectivas: na primeira, a realidade é paradoxalmente onírica e tudo o que
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se vive é aparência; na segunda, percebe-se esse mundo ilusório, mas o
repúdio à esta verdade leva ao medo, dissolvendo por completo qualquer
possibilidade de mudança.
A efemeridade da certeza de um mundo que se apresenta como um sonho,
aliada à impossibilidade de romper o limite e acordar desta ilusão, fizeram com que
o eu-lírico do poema desistisse de revolucionar os parâmetros aos quais esteve
submetido ao longo de sua vida. Sua inércia deu continuidade ao ilusório ciclo de
que o mundo seria um produto da mente, desprovido de qualquer propósito.
Como foi mostrada anteriormente, a tendência geral da humanidade em
fugir diante dos maiores desafios revela a ausência de uma visão mais crítica do
pensamento humano; um fundamento que somente a inter-relação dos saberes
pode preencher.
Por isso, quando vários saberes são postos em movimento, há uma
discussão mais ampla e significativa sobre as questões inerentes ao pensamento
humano, direcionando caminhos que só o homem pode percorrer. Deve-se realizar
uma busca de elementos que possam integrar as idéias e revelar novas
perspectivas
no
âmago
da
humanidade,
como
foi
proposto
através
da
interdisciplinaridade entre literatura, filosofia e arte cinematográfica.
Referências Bibliográficas
BORGES, Jorge Luis. Obras Completas I. Barcelona: Emecé, 1996.
CHEVALIER, Jean. Diccionario de Los Símbolos. Editorial Herder. Barcelona, 5º
edición, 1995.
GOIC, Cedomil. Historia y crítica de la literatura hispanoamericana. 3ª Época
Contemporánea. Barcelona: Crítica, 1998.
HRYNIEWICZ, Severo. Para filosofar: Introdução e História da Filosofia. 3ª
Edição. Rio de Janeiro: Edição do autor, 1998.
JOZEF, Bella. O espaço reconquistado. Uma releitura. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1993.
MILLERET, Jean de. Entrevistas con Jorge Luis Borges. Venezuela: Monte Ávila
Editores, 1970.
SUCRE, Guillermo. Borges el poeta. 2ª ed. Caracas: Monte Ávila, 1967.
[1] Bolsista PIBIC/CNPq/UFRJ, orientado pela Prof.ª Dr.ª Mariluci da Cunha Guberman.
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