O desejo do psicanalista e a criança
Leda Mariza Fischer Bernardino
A questão do desejo do psicanalista não é uma questão
simples. Desde que Lacan (1960-61) a propôs, como um
contraponto ao discutível conceito de contratransferência que
prosperou após Freud, vem levantando interrogantes dos mais
diversos.
A questão do desejo do psicanalista na análise de crianças
levanta uma dificuldade adicional: seria legítimo propor esta
especificidade? Afinal de contas, entende-se como desejo do
psicanalista um dispositivo da transferência, elemento central na
direção e no final da análise, no qual não está em jogo a idade do
analisante.
Entretanto, basta ter uma clínica com crianças para perceber
que não discutir este “específico” seria passar ao largo da
constatação de que, com a criança analisante, demanda,
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PSICANALISAR CRIANÇAS
transferência, final de análise, implicam as vicissitudes próprias
de um sujeito ainda em constituição.
Mesmo considerando que o atributo idade não cabe ao
inconsciente, ou, como dizia Dolto (1984), que “os desejos não
têm a idade da certidão de nascimento”, não há como negar que,
em sendo o inconsciente estruturado como uma linguagem, tal qual
Lacan o propõe, a criança está em uma posição de mutação, num
tempo que é ainda gerúndio no que se refere a esta estruturação.
Nesta aquisição que a linguagem faz dela1, sua posição de
responsabilidade em relação ao que diz ou faz enquanto ato ainda
é sustentada pelo Outro.
Colette Soler (1994) aborda algumas diferenças essenciais
que marcam a análise de crianças. Primeiramente, aponta que não
se trata de o analisante ser diferente, mas sim o que se tem para
analisar, tendo em vista que a relação da criança com o sintoma
(em termos freudianos) ou com o real (em termos lacanianos) é
diferente. Ela levanta uma questão: “o analista pode enfrentar
qualquer relação com o real e, mais precisamente, o desejo do
analista pode operar sobre qualquer estado do ser?” (p. 8). Soler
vai mais adiante e define um limiar para a psicanálise de crianças:
“é necessário uma criança já sujeito” (p. 8). Como o sujeito é
resultante de uma construção, que passa primeiramente pela
ocupação de um lugar de objeto perante o desejo do Outro, segundo
esta autora, “não se pode falar da psicanálise de crianças no sentido
próprio sem questionar, para cada criança, o estado de efetuação
da estrutura que ela apresenta” (p. 9). Vale ressaltar que esta
afirmação apresenta um viés muito interessante para a discussão
sobre a decisão da estrutura ainda no tempo da infância. A nuance
colocada na efetuação em relação à estrutura que a criança
apresenta, abre caminho para a idéia de que haveria um tempo, o
da infância, em que as instaurações se fazem, mas precisam ser
confirmadas só-depois. Isso implica não somente uma lógica de
linguagem, mas necessariamente um desenvolvimento — o qual
remete às noções de crescimento e maturação — mesmo que
concebido a partir do movimento de desejo do Outro, que o comanda
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O DESEJO DO PSICANALISTA E A CRIANÇA
desde fora. Somente neste segundo tempo seria possível considerar
a definição de uma estrutura2. Soler chega a afirmar que há “uma
posição da criança incompletamente decidida no que diz respeito
ao gozo” (p. 11). Ela se aproxima assim de autores mais clássicos,
da psiquiatria atravessada pela psicanálise, como Lang (1979) ou
Misès (1978), bem como de psicanalistas contemporâneos como
Rassial (1997) e Jerusalinsky (1993), que apontam o momento da
adolescência — com a possibilidade real e o chamado social de
assunção da sexualidade propriamente dita —, como o momento
de decisão da estrutura.
Em psicanálise, há esta diferença essencial da posição da
criança em relação à do adulto. Embora a sexualidade seja
organizada através de um “Infantil” ao qual o sujeito se reporta —
seja qual for sua idade — quando se trata de seu desejo, seu gozo,
suas pulsões parciais, a possibilidade de exercício desta sexualidade
muda sua posição. Não há equivalência entre um sujeito em posição
de criança, para quem vigora uma promessa de gozo postergada e
o enigma do desejo do Outro sustentado pelas figuras parentais, e
o adulto que se torna — pelo menos potencialmente — capaz do
ato sexual, e é chamado a ser responsável por este, bem como
encontrar uma forma de lidar com o enigma do Outro sexo.
Para Soler (1994), há outra diferença a considerar, entre o
lugar ocupado por uma criança já sujeito e o lugar ocupado por
uma criança ainda objeto. Em cada um dos casos, o lugar do analista
vai ser diferente: seja um lugar vazio de desejo, no primeiro caso;
seja um lugar impregnado de desejo, ao estilo do Outro primordial,
no caso da criança-objeto, estando então colocado o impasse: “como
ele pode operar neste caso para que os efeitos que obtém se
mantenham no eixo da ética psicanalítica?” (p. 9). Neste último
caso, trata-se da difícil clínica com crianças psicóticas e autistas,
que exemplifica, concretamente, o quanto o analista é convocado
em seu desejo, mas cuja especificidade não abordaremos neste
trabalho3.
Enfim, Soler finaliza este artigo que ora mencionamos
lembrando que uma análise de criança deve concluir deixando
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PSICANALISAR CRIANÇAS
questões em aberto. Em seus termos, afirma: “deve dar lugar a um
certo deixar-fazer, ou, antes, a um deixar se fazer” (p. 11), que
tem a ver com este estado de inacabamento estrutural no qual ela
situa a criança.
Tomemos agora este dado, que é de observação na
comunidade analítica: a clínica com crianças provoca nos que se
aproximam da psicanálise seja uma grande fascinação, ou então,
inversamente, o horror. Sabemos, desde Lacan, que estes efeitos se
manifestam a cada vez que há algo de real na experiência. Há uma
criança real, que ao mesmo tempo fascina e horroriza. Não se trata
das crianças da realidade, que encontramos no dia-a-dia de nosso
consultório, mas d’A Criança, presença que remete à origem, para
sempre perdida, irresgatável, de todo sujeito. Como diz François
Ansermet (1994), “a criança encarna um real que a excede” (p.
16). Assim, aquém da prática clínica, a criança analisante reatualiza
a Criança Real, convocando reações, sintomas, atos... que podem
variar desde uma clínica que se faz exclusivamente com crianças
até a desvalorização, a negação da possibilidade de uma psicanálise
de crianças. Citemos ainda Ansermet: “O analista (...) se acha
confrontado com (...) a inquietante questão do real carregado pela
criança” (p. 17).
A história dos psicanalistas de crianças é marcada pela
emergência deste real e dos diferentes sintomas daí decorrentes:
desde a realização da fantasia de mãe-toda proposta pela clínica
de Melanie Klein; passando pela idealização educativa cujo
principal porta-voz foi Anna Freud (embora o lugar de enunciação
fosse o de seu próprio pai), a reparação da infância perdida nos
campos de concentração de Bruno Bettelheim, até a fascinação
pela maternidade encarnada por Donald Winnicott.
Enfim, para entrar no particular desta clínica, trata-se, para
o analista, de ser chamado a responder, a cada dia, a este
questionamento interno: por que trabalhar com esta clínica? Em
outras palavras, na psicanálise de crianças, a questão do desejo de
estar ali, na posição de psicanalista, à escuta de crianças, é uma
questão que se recoloca a cada novo analisante que chega, e mesmo
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O DESEJO DO PSICANALISTA E A CRIANÇA
a cada próxima sessão de um mesmo analisante. Como bem o
assinala J.J. Rassial, em seu artigo no presente volume, a rotina do
afazer psicanalítico não escamoteia estas questões, até porque é
muito difícil estabelecer-se uma rotina! Nesta clínica tocamos num
ponto privilegiado onde a interrogação sobre o desejo é central e
sempre atual.
Sabe-se que a psicanálise ampliou o conceito de infantil, de
tal forma que a posição de criança – entendida na sua acepção
como aquela para quem vigora uma sexualidade que gira em torno
do Outro todo, da Mãe fálica, numa lógica de não diferença –
tornou-se estrutural. Portanto, há em cada sujeito uma criança,
núcleo da neurose infantil, matéria-prima da fantasia fundamental,
que clama por se manifestar.
Se o Infantil é a estrutura, e se a estrutura é o discurso do
Outro em mim, infantil e inconsciente se assemelham. Nada mais
tentador do que analisar “a criança-representante do Infantil”, agora
em sua acepção significante, objeto imemorial oferecido a um gozo
do Outro, “dor e delícia do ser” segundo o compositor, material
recalcado sempre pronto a retornar.
Por isso, quer se trate da Criança Real, ou da criança
recalcada, a aproximação desta clínica deve nos conduzir a uma
investigação desta “vocação”, no sentido de poder afastá-la do que
poderia ser uma busca sintomática por um encontro finalmente
bem sucedido com estas crianças, na qual o paciente não teria outro
lugar senão o de objeto.
Se, por exemplo, trata-se da escolha salvacionista, no sentido
de proteger esta criança de todo trauma, castração, confronto com
o Real, estamos diante da obviedade da repetição deste tão sonhado
ideal que fica na ante-sala do Édipo: preservar a criança da falta
do Outro, ou, pior, propor-lhe um Outro sem falhas, reparador,
onipotente. O que não seria nada mais do que uma re-encarnação
da Coisa, esta instância tão bem descrita por Freud (1895), como
salvação para o desamparo originário.
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PSICANALISAR CRIANÇAS
Exemplos disto são corajosamente fornecidos nas
autobiografias tanto de Maud Mannoni (1990) quanto de Françoise
Dolto (1989), a partir das reflexões promovidas por suas respectivas
análises. Para Mannoni, tratava-se de uma separação, vivida no
real, em relação a uma babá portadora de outra língua e de outra
cultura, que encarnou seu Outro primordial. Para Dolto, tratavase do luto impossível após a morte de uma filha, por parte de sua
mãe, que a tornara refém desta perda.
Como indica Manoëlle Descamps (1994), “o trabalho do
analista em sua própria análise é identificar as motivações
conscientes e sobretudo inconscientes, de sua escolha profissional
e dos desejos que o engajam a trabalhar como analista e em
particular com crianças” (p. 47). Se, como ocorre nos melhores
casos, o caminho pessoal da análise vai apresentando a iniqüidade
destas escolhas e derrubando uma a uma suas sustentações
narcísicas inconscientes, podemos nos perguntar o que resta desta
operação, que resultou em uma vocação, em uma escolha.
Situemos agora o desejo do psicanalista, enquanto operador
conceitual, para articulá-lo à clínica de crianças. Há uma dificuldade
em fazer operar este dispositivo com a criança, na medida em que
ela se encontra em um momento ainda tão frágil de sustentação do
seu lugar de sujeito, quando ainda é necessária a encarnação por
parte de um adulto da função do Outro. Diferente da clínica com o
adolescente, por exemplo, na qual o analisante vem pedir a validação
de sua posição desejante, vem interrogar sua capacidade de
enunciação; na clínica de crianças esta enunciação é ainda
sustentada, é dependente de um adulto próximo significativo. Sem
este suporte – destes adultos particularmente implicados em sua
história – a criança não pode assumir uma enunciação própria.
Afinal, o que vem a ser o desejo do psicanalista? Lacan
(1967-68) o propõe como um operador clínico que permite instituir,
pela própria presença do psicanalista, um lugar para a falta, um
lugar vazio onde poderá aparecer o Outro do paciente, tal qual ele
comparece na história pessoal dele e tal qual impõe-se – na leitura
realizada pelo paciente – o desejo, ao incidir sobre uma posição
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O DESEJO DO PSICANALISTA E A CRIANÇA
objetal deste sujeito, que é convocado a se reconhecer objeto nesta
fantasia infantil e a conhecer, então, suas determinações.
Será que se poderia utilizar este operador na clínica de
crianças? Pois, como bem marcou Anna Freud, não há um
distanciamento suficiente da criança em relação àqueles que
sustentam para ela as funções edípicas (o Outro, para Lacan), de
tal forma que ela possa ler quais as suas próprias implicações no
desejo destes.
Claro está que, entendida desta forma, esta operação seria
impossível neste momento em que o sujeito ainda está em
estruturação, ou seja, o recalque ainda não cumpriu sua tarefa por
excelência, a saber, a de instituir esta divisão subjetiva que permite
ao sujeito desconhecer que sua fala, seu desejo, seu objeto, vêm do
Outro.
Entretanto, o vazio que o analista introduz – com seu silêncio,
sua não-demanda, sua espera – vai confrontar a criança com algo
inédito. Um adulto que não é imperativo; que mesmo que seja
colocado por ela mesma na posição de mestre, não a ocupa; um
adulto que não dá orientações, não dá ordens, não ensina, nada
pede a não ser que a criança ocupe um lugar ali; produz-se uma
reação ao novo, uma inquietação: “o que quer ele, então, de mim?”,
pergunta-se a criança. Este novo abre a possibilidade, para a
criança, de localizar seu desejo como podendo ser diferente do que
interpretou como desejo do Outro, destacado deste.
François Koehler (1994) se refere a este movimento nestes
termos: “A criança, na transferência, tendo que lidar com um Outro
que nada quer dela, fica aliviada do peso do gozo do Outro e pode
largar seu sintoma e construir sua fantasia. Um espaço se abre
para a criança, a partir do qual ela pode se ver confrontada com a
castração” (p. 36).
Evidentemente, podemos destacar desta citação
especificidades da posição da criança em relação ao Outro: ela
não se defende do fato de que o Outro queira algo dela, pelo
contrário, ela está atenta ao desejo deste Outro; ela não construiu
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PSICANALISAR CRIANÇAS
ainda sua fantasia para destacar-se deste Outro, está paralisada
nesta construção às custas do sintoma; a castração vai depender
ainda da posição daquele que encarna para ela esta função. Percebese, nesta retomada, uma presença: a do Outro representado pelas
figuras parentais da realidade.
Pode-se então afirmar que a operação “desejo do analista”,
no campo da análise de crianças, provoca o efeito inverso. Para o
adulto, deparar-se com o vazio do desejo do analista — que cai
enquanto representante da pura falta — dá lugar ao seu Outro; ele
passa então a perceber as determinações causadas pelo desejo deste
Outro no seu desejo próprio, ou seja, identifica no seu desejo os
traços, as marcas gravadas pelo desejo do Outro; pode assim ter
acesso a alguma possibilidade de liberdade em relação a eles. Na
criança, o desejo do analista enquanto apresentação da falta de
desejo em relação a ela vai confrontá-la com esta possibilidade de
um não desejo da parte do Outro, manifestado por uma não
demanda, ou seja: um Outro não imperativo, um Outro que suporta
faltar. Ao poder, então, situar o desejo do Outro em relação ao não
desejo sustentado pelo analista, é possível localizar a função
“desejo” e desdobrá-la, tendo nesta trajetória um parceiro: o analista
que a acompanha.
Francisco, 9 anos, vem à primeira sessão e diz: “meu
problema é a hiperatividade”. Começa a contar tudo que a
hiperatividade o faz fazer, sofrer, as desventuras pelas quais tem
que passar. Repete, quase textualmente, tudo o que a mãe dissera
na entrevista anterior, à qual comparecera ainda sem trazer o filho.
Na sua primeira sessão, por sua vez, Francisco comparece enquanto
assujeitado ao saber materno, que nele situou este quadro clínico
da moda e cujos sintomas ele descreve mecânica e detalhadamente,
para demonstrar o que o acomete, desde fora. Na sessão seguinte,
faz um desenho de uma cabeça que ocupa toda a folha: é um menino.
Ele o descreve assim: olhos assustados, nariz franzido, orelhas
fechadas, boca raivosa, dentes assustados, sobrancelhas bravas,
cabeça grande. Sobre a cabeça grande, esclarece: “é minha mãe
que diz que a minha cabeça é assim”.
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O DESEJO DO PSICANALISTA E A CRIANÇA
Observa-se neste curto fragmento o grande impasse desta
clínica: estão presentes, na análise, o desejo da criança e o desejo
do Outro, recalcados. Não se trata, em primeira instância, de dar
lugar aos significantes que remetem a um Outro pré-histórico há
muito perdido, concretamente, mas cuja existência imaginária e
simbólica vai se fazer presente – via transferência e presença do
analista – em termos de atos e palavras que se passam entre analista
e analisante. No caso da análise de crianças, trata-se também deste
Outro que se inscreveu e fez marcas, mas as encarnações desta
função ainda se fazem presentes. O desejo dos pais a respeito deste
filho que trazem à análise – desejo que eles próprios desconhecem
– é um fator a considerar na rede de significantes que ali se tece.
Vai estar em jogo lidar com a presença destes pais que, mesmo não
entrando fisicamente na sessão do filho – o que depende das
contingências de cada análise – continuam se manifestando: seja
nos atrasos para trazer o filho à sessão, ou mesmo nas faltas que o
fazem ter, seja nos diversos trâmites que impõem ao pagamento, e
até na interrupção abrupta do tratamento do filho.
Assim, no desejo de analisar crianças situa-se ainda uma
questão que envolve os pais. É um desejo que aponta não só para
repetir a experiência do inconsciente no tempo mesmo da infância
– o que poderia se dar no sentido (ou seria melhor dizer no sem
sentido?) de uma “prevenção” do próprio sofrimento do analista!
Há também uma relação com um Outro encarnado na função “pais”
– que pode pôr em ato um desejo de enfim consertar os pais... do
próprio analista, com as conseqüências desastrosas que podem advir
de uma pedagogização da análise.
Enfim, esta pequena liberdade em relação ao Outro que é o
horizonte de toda análise, pode ser posta em ato precipitadamente
pelo analista de crianças: ao não ouvir os pais suficientemente; ao
fechar rápido demais o acesso às sessões do filho para eles; ou, ao
contrário, ao deixá-los entrar por tempo demasiado; ao se acomodar
e não fazer contato com eles; ao tentar funcionar como terceiro na
base do forçamento e fazer corte real antes de a separação poder se
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PSICANALISAR CRIANÇAS
estabelecer para eles. Tudo isto vai implicar o desejo do analista e
o modo como aí situa os “Pais”.
Não há como negar que a interrogação central de todo
pequeno sujeito — condição inclusive para que possa ser designado
como tal — que se aventura pelas vias do desejo, é a seguinte:
“Pode o Outro passar sem mim?”. Questão que não evidencia uma
simples preocupação benevolente pelo Outro, mas que implica a
criança em seu âmago, pois hipostasia sua subjetividade no Outro.
Apenas quando aqueles que encarnam para a criança esta função
respondem afirmativamente a esta pergunta, indicando, com
palavras ou atos, que podem perdê-la enquanto objeto, é que ela
poderá ir adiante. Senão, estará impossibilitada de prosseguir –
com ou sem análise, ela não pode suportar a falta no Outro antes
que este sinalize que falta há e ele pode suportá-la. O que falha é
justamente esta relação simbolizada com a falta — a função do
Nome-do-Pai — quando a criança tem necessidade do sintoma
clínico e não consegue encontrar uma saída edípica.
O desejo do analista enquanto operador vai dar uma notícia
para a criança sobre esta possibilidade de o Outro faltar. É a partir
desta operação que a criança vai se voltar para seu Outro e
interrogá-lo sobre este delicado ponto. Às vezes com a simples
recusa de ir à sessão de análise, mesmo que a estivesse aguardando
ansiosamente: está alusivamente indicando que quer saber se está
autorizada a ir adiante neste percurso. O pai ou a mãe em questão
vão ser chamados — quer o sejam efetivamente ou não— a
participar da análise do filho. Estes podem dar seu aval ao sustentar
a transferência com o analista e a freqüência do filho às sessões,
sem para isso terem que comparecer com sua presença física.
Caso contrário, eles podem fazer resistência e é o momento
de chamá-los a participar realmente, pois não estão podendo ouvir
a questão da criança, que se apresenta desviada. É o momento em
que o desejo do analista pode ser operador também com os pais —
instaurando nestas conversas um vazio que permita aos pais em
questão se posicionarem quanto à falta e à sustentação do desejo
do filho.
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O DESEJO DO PSICANALISTA E A CRIANÇA
Pode acontecer de não ser possível a esta mãe ou a este pai
abdicarem da criança e isto culminará na interrupção da análise. É
então o analista que “perde” a criança e resta-lhe esta aposta: que
desta aceitação da perda que teve, fique para a criança o registro
desta experiência de que um adulto, representante do Outro, possa
ser diferente de sua mãe ou de seu pai, e possa passar sem ela.
A grande armadilha, armada nestas situações, é ética: quando
o analista se confronta com a questão do bem da criança, porque
evidentemente sofremos quando antevemos a impossibilidade de
prosseguimento de um advir subjetivo. Bernard Nominé (1994)
faz uma observação muito acurada a este respeito: “O importante
é que haja analista, isto é, um parceiro que não quer o bem do
sujeito, mas se conforma com a lógica da experiência que pretende
que se passe de um objeto a outro” (p. 80).
Haveria uma ética própria à psicanálise de crianças? Se,
conforme afirma o colega Ricardo Goldenberg no presente volume,
não há por que haver uma ética própria da psicanálise, cabendo a
cada analista assumir a ética de um estilo, ou mesmo o estilo de
uma ética, não caberia esta questão. Entretanto, os desafios para
sustentar a ética do desejo, da subjetividade, da palavra e do ato
que fundam o sujeito humano são especialmente grandes quando
se trata do campo social e suas expectativas em relação à criança.
Como já apontamos em outro volume desta coleção4, segundo
o discurso social vigente, cabe à criança de hoje ser feliz e elas nos
são trazidas para que as auxiliemos a alcançar este gozo almejado.
Dizer não a esta demanda e mesmo assim sustentar um lugar de
suposto saber que desperte transferências por parte daqueles que
se ocupam de crianças e podem encaminhá-las para análise, requer
um exercício diário de confrontação com o impossível.
Gostaria de terminar trazendo as palavras de Patrick De
Neuter (1992), ao debater justamente a questão da ética: “A
psicanálise não promete a felicidade, ela sustenta que a vida não
pode ser vivida senão ao preço do risco de seu desejo, ao preço de
separações que engendram às vezes sofrimentos, mas que são,
contudo, necessárias e inevitáveis”.
67
PSICANALISAR CRIANÇAS
Atualmente, em relação a esta ilusão de infância idealizada
– infância que aliás se reduz cada vez mais ao ideário dos adultos,
numa realidade que vem pouco a pouco eliminando o próprio
conceito de infância – os analistas parecem ser um dos poucos
grupos que reconhecem a necessidade da dor de existir da criança
e sua relação com o desejo, com a subjetividade. Por isso, cabe a
nós apresentarmo-nos e acusar recebimento, cada vez que este
desejo é interrogado, respondendo “sim” à habitual pergunta: “Você
trabalha com crianças?”.
Notas
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1
Como disse recentemente, brincando com os teóricos da
“aquisição da linguagem”, a colega Ângela Vorcaro, em sua
conferência na Associação Psicanalítica de Curitiba,
“Neurose infantil e neurose da criança, criança-sintoma e
sintoma da criança”, em 27/11/2003.
2
Discuti este tema na tese de doutorado. Ver BERNARDINO,
Leda M.F. O diagnóstico e o tratamento das psicoses nãodecididas: um estudo psicanalítico. Tese. Doutorado.
Instituto de Psicologia da USP, 2000, p. 203.
3
Remeto o leitor a um artigo no qual trabalhei especificamente
este tema: BERNARDINO, Leda M.F. A clínica das psicoses
na infância: impasses e invenções. Estilos da clínica nº 11 –
dossiê: A escola atravessada pela psicanálise. São Paulo,
Instituto de Psicologia/ Universidade de São Paulo, 2º
semestre de 2001.
4
Trata-se do editorial do volume 9 desta Coleção Psicanálise
da Criança, que tive também a oportunidade de organizar:
BERNARDINO, L.M. Neurose infantil versus neurose da
criança: as aventuras e desventuras na busca da
subjetividade. Salvador–BA: Ágalma, 1997.
O DESEJO DO PSICANALISTA E A CRIANÇA
Referências bibliográficas
ANSERMET, François. L’enfant comme réel. In: L’enfant et
le désir de l’analyste. Toulouse: Presses Universitaires de
Mirail, 1994.
DESCAMPS, Manoëlle. Ethique et psychanalyse avec l’enfant.
In: Le Bulletin Freudien nº 34: Enfance. Bruxelas:
Association Freudienne de Belgique, março de 2000.
DE NEUTER, Patrick. L’éthique de la psychanalyse, thèses,
questions et hypothèses. In: Esquisses psychanalytiques.
Paris: LRFP, 1992.
DOLTO, Françoise. Une éthique de la relation analytique. In:
L’éthique de la psychanalyse et la question du coût freudien.
Paris: Evel, 1984.
Autoportrait d’une psychanalyste. Paris: Seuil, 1989.
FREUD, S. (1895). Projeto para uma psicologia científica.
Publicações pré-psicanalíticas e esboços inéditos. Edição
Standard das Obras completas de Sigmund Freud, vol. I.
Rio de Janeiro: Imago, 1977.
JERUSALINSKY, Alfredo. Psicose e autismo na infância: uma
questão de linguagem. In: Psicose – Boletim da APPOA nº
9. Porto Alegre: Artes & Ofícios, novembro de 1993.
KOEHLER, François. Désir de l’analyste, analyse de l’enfant.
In: L’enfant et le désir de l’analyste. Op. cit.
LACAN, Jacques (1960-1961). O seminário, livro 8: A
transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1982.
(1967-1968) L’acte psychanalytique. Paris:
Association Freudienne Internationale, 1997. Documento
para circulação interna.
LANG, Jean-Louis. Nas fronteiras da psicose infantil. Rio de
Janeiro: Zahar, 1979.
69
PSICANALISAR CRIANÇAS
MANNONI, Maud. O que falta à verdade para ser dita.
Campinas, SP: Papirus, 1990.
MISÈS, Roger. Os limites da psicose na criança. In:
KOUPERNIK, C., LEBOVICI, S. & WIDLÖCHER, D.
As psicoses infantis. Lisboa: Veja, 1978.
NOMINÉ, Bernard. Une histoire à dormir debout – en guise de
conclusion. In: L’enfant et le désir de l’analyste. Op. cit.
RASSIAL, Jean-Jacques. Da mudança esperada do tratamento
psicanalítico da criança. In: BERNARDINO, Leda M.F.
(org.) Neurose infantil x neurose da criança. Salvador:
Ágalma, 1997.
SOLER, Colette. L’enfant et le désir de l’analyste. In. L’enfant
et le désir l’analyste.Op. cit.
Sobre a Autora
Leda Mariza Fischer Bernardino é psicanalista, membrofundador da Associação Psicanalítica de Curitiba, analista membro da Association Lacanienne Internationale, doutora pela USP
e professora titular da PUC-PR. É co-autora e organizadora, nesta
mesma coleção, do volume Neurose infantil versus neurose da
criança — As aventuras e desventuras na busca da subjetividade.
Salvador: Ágalma, 1997.
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