SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL JOSÉ FRANCISCO REZEK Discursos proferidos no STF, em 20 de junho de 1990, por motivo de exoneração a pedido B R A SÍ LIA 199 1 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL JOSÉ FRANCISCO REZEK Discursos proferidos no STF, em 20 de junho de 1990, por motivo de exoneração a pedido BRASÍLIA 1991 Carta do Senhor Ministro J OSÉ FRANCISCO REZEK Brasília, 18 de abril de 1990 Senhor Ministro Presidente: É tempo de que esta carta seja escrita, já tantos dias passados desde quando, no plenário dessa Casa, vesti pela última vez a toga que me ofe recera, na investidura, a Ordem dos Advogados. Dois momentos me vêm agora, intermitentes, à memória. Evoco um amanhecer de sábado, nos idos de fevereiro de 1983, quando, já ciente da iminência de minha indi cação para a cátedra de que o Presidente Xavier de Albuquerque se afas tava, entreguei-me, caminhando só pelos verdes de Brasília, a refletir so bre a inesperada e fascinante perspectiva de integrar a Corte maior, e de no seu quadro exercer o ofício judiciário por mais de trinta anos, o que a ninguém antes sucedera. Evoco ainda uma hora tardia de noite recente, quando quis dar-lhe conta - no seu regresso à capital - da encruzilha da que de súbito se me apresentara à frente, e quando suas judiciosas ponderações me proporcionaram mais breve alcance de decisão definiti va. Sete anos, assim, foram quanto pude honrar-me sob o teto dessa au gusta Casa: sugestivamente um tempo igual ao da judicatura daqueles que aí tive como meus mestres mais gratos, dos quais recolhi, de permeio com lições sem preço, a evidência constante de uma estima sem limites. Retiro-me da Corte muito antes de quando supunha devesse fazê-lo, e isto me impõe contrição maior que a de tantos dos seus antigos juízes que a deixaram por sobejar-lhes tempo de consagração ao serviço públi co, ou por força da idade e do imperativo constitucional. Serei entretan to, em toda parte e em toda circunstância, o arauto fiel da exemplarida de e da excelência com que o Supremo Tribunal tem respondido, e há de responder sempre, à justa expectativa dos brasileiros. Se é certo que não se encontra, em direito comparado, algo que exceda a dimensão da prer rogativa judiciária no Brasil contemporâneo, não menos certo é que difi cilmente se poderia achar lá fora uma instituição congênere que igualasse essa Casa na inquebrantada tradição de probidade de seus membros, no volume de trabalho que lhes tem imposto nossa ordem jurídica, na luci dez e na dignidade com que se houveram, todos, nos momentos mais bri- 6 lhantes de nossa história, tanto quanto naqueles outros, sombrios e infe lizmente não raros, de erosão do princípio democrático e sacrifício das li berdades públicas. Assim, as diversidades periféricas na formação acadê mica, na convicção política, no estilo e na metodologia dos juízes dessa Corte jamais puderam sombrear a cristalina igualdade que no essencial os irmana. Cientes do que representa essa Casa em nosso quadro institucional, e de que inexcedível é a honra de integrá-la, foram muitos os que me sensi bilizaram enaltecendo o gesto de renúncia ao encargo vitalício, e a assun ção dos riscos de uma responsabilidade executiva. Foram tantos, e de tão variadas origens e classes, e tão espontâneos e anônimos na exterioriza ção do que sentiam, que no seu contexto se diluiu alguma voz avulsa, ra ra e rude, propensa a travestir o significado curial do fato incomum. De minha parte nada vejo de especialmente meritório naquele gesto. Sabe Vossa Excelência quanto aprendi na atmosfera nobilíssima desse Tribu nal, e sabe, dessarte, que nem me deslumbra a segurança pessoal nem me molesta a idéia de enfrentar desafios. Em verdade, muito mais que nos meus próprios recursos ou na integralidade do meu devotamento à causa pública, creio no Brasil e em seu povo, e a cada dia o conhecimento de outras sociedades reforça em mim essa congênita confiança. Os brasilei ros já não se encontram distantes, penso, daqueles dias melhores que tanto fizeram por merecer. A República haverá de luzir na democracia definitiva que alcançamos. Não lhe faltará segurança ou alento enquanto erigida sobre instituições como o Supremo Tribunal Federal e, sob seu exemplo e disciplina, todo o Poder Judiciário. Rogo a Deus que preserve a felicidade pessoal de Vossa Excelência e de todos os seus eminentes pares, e que se digne reger o destino histórico dessa honorável Corte. FRANCISCO REZEK. Palavras do Senhor Ministro NÉRI DA SILVEIRA, Presidente Na primeira parte desta Sessão, o Tribunal presta homenagem ao Exmo. Sr. Ministro Francisco Rezek. Para falar em nome da Corte, convidei o eminente Ministro Célio Borja, a quem concedo a palavra. Discurso do Senhor Ministro CÉLIO BORJA Sr. Presidente, Srs. Ministros, Srs. Ministros aposentados, Sr. Pre sidente e Ministros dos Tribunais Superiores da União e do Distrito Fe deral, Srs. Desembargadores, Srs. Magistrados, Srs. Diplomatas, minhas Senhoras e meus Senhores. É da tradição do Supremo Tribunal Federal que os seus Ministros não recebam homenagens no curso da judicatura e em razão dela. Somente ao deixarem-na, a Corte manifesta-lhes o reconhecimento que mereçam. Usualmente, o homenageado não comparece; representa-o sua família. Por isso, aqui estão D. Myréa Rezek e sua filha para receber o tri buto afetuoso que devemos ao chanceler José Francisco Rezek, que, há pouco, despediu-se da magistratura por ter aceitado sua nomeação para o cargo de Ministro de Estado das Relações Exteriores. Lança-se, ele, assim, a uma etapa de sua existência em que o inter nacionalista reconhecidamente competente é desafiado a dirigir a política externa do País, de maneira que este participe mais eficazmente das deci sões que lhe afetam o destino, sem perder de vista que, no campo das re lações internacionais, o Brasil espera alcançar o desenvolvimento e con tribuir para a consecução e a manutenção da paz. Não se cuida, na história do Ministro Francisco Rezek, de uma dra mática mudança de rumos, mas de ênfases, e de ser fiel à sua geração no momento em que ela ascende ao governo da República. Assumem-no, em verdade, os homens e mulheres do segundo após-guerra, nascidos no li miar de um tempo dominado pelo duplo ideal da liberdade e da paz. Com efeito, em 1944, ano de seu nascimento em Cristina, no sul de Minas Gerais, iniciava-se a construção da nova ordem internacional, com a realização, em Bretton Woods, de I? a 22 de julho, da Conferência Monetária e Financeira das Nações Unidas, da qual resultou a criação do FMI e do B IRD. Em 26 de junho de 1945, instaura-se, com a Carta de São Francisco, uma nova disciplina das relações internacionais que presi de «a maior e mais estável onda de prosperidade da história mundial» (John Williamson, Keynes and the international economic order in Key nes and the Modern World, Cambridge University Press, 1983, pág. 87). 14 Em 18 de setembro de 1946, termina, no Brasil, um longo período de discricionarismo e volta-se a viver, democraticamente, em regime repre sentativo e Estado de Direito. Mas, vinte anos depois de promulgada, a Carta da restauração liberal é reduzida à ineficácia com o advento do Ato Institucional n? 2; de outubro de 1966. Em resposta a esta traumáti ca ruptura, já em novembro seguinte, a primeira geração a completar, após a guerra, o ciclo da educação formal pronuncia, Brasil afora, nas solenidades de sua graduação, o seu rompimento com a ordem autoritá ria, que então renascia e, por outros vinte anos, dominaria o País. Orador da turma de 1966, da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, representante da geração à qual foram ofereci das, desde a infância, a paz com ininterrompida prosperidade, a liberdade e a participação política que, antes, sequer eram mencionadas - José Francisco Rezek pergunta-se, no discurso de formatura, «o que significa afinal, ante o pensamento jurídico, a causa da humanidade» cuja defesa é a síntese do compromisso do jurista. E completa a provocação, pedindo que lhe digam quando a servimos e quando lhe faltamos (cfr. José Fran cisco Rezek, Estrela da Manhã, Mensagem dos Formandos de 1966, Fa culdade de Direito, UFMG, pág. 2 1). O discurso entremostra o forte traço reflexivo que lhe marca o tem peramento, ilumina o caráter e explica o scholar sob a toga do magistra do. Antes de responder à sua própria provocação, o orador lança um desconsolado olhar sobre o seu tempo e denuncia a formidável regressão do status liberta tis dos brasileiros ao estado de polícia. Nas suas palavras, «sente-se personagem no quadro imaginado por Tolstoi, o do homem que, viajando distraído no interior de um trem, guarda a impressão de estar seguindo para frente, quando, na realidade, segue para trás, e de súbito, ao ver pela janela a sombra das árvores, re conhece o verdadeiro sentido da marcha.» (Estrela da Manhã, cit. pág. 22). Diante de quadro tão hostil aos valores do espírito, à cultura da li berdade na qual fora formado, a sua opção é a do jurista que «vai ensi nando quem lhe cruza o caminho, vai preparando a construção da socie dade nova, onde o homem, como queria Chardin, não mais se considere o centro estático do mundo, mas o próprio eixo, a própria flecha na tri lha da evolução.» (op. cit. págs. 2 1/22). Porta-voz de seus coevos, Rezek, depois de proclamar o dever do ju rista em face dos que negam o primado do Direito, toma o desafio em suas mãos e rompe, mais do que com os vitoriosos do dia, com a inércia da organização social brasileira: «Encontraremos pela frente um fardo de leis equívocas, sugeridas por uma paisagem morta, inspiradas em idéias e conceitos que o tempo cuidou de sepultar.» 15 «o aperfeiçoamento das leis vem a ser, no entanto, uma obra sem término previsível. Seus erros renascerão no tempo, exigindo que se levante a voz do nosso meio. Porque a verda deira essência da crise do Direito não é a dissonância entre a lei e a justiça, mas é o silêncio dos juristas diante desse flage lo». (Estrela da Manhã, cit., págs. 22/23). O pendor para o Direito Internacional reponta nesse discurso de for matura, não de despedida da escola que lhe daria, no ano seguinte, o Di ploma de Estudos Superiores de Doutorado em Direito Público. O co nhecimento do mundo é subsidiado pela viagem aos Estados Unidos da América, à qual seguiu-se a permanência como bolsista, na Universidade de Paris, onde obteve o grau de Doutor, após defesa da tese Conduite des Rélations Internationales dans le Droit Constitutionnel Latinoaméri cain, perante banca integrada por Georges Berlia e Roger Schwartzenberg, sob a presidência de Georges VedeI. O:xford está no roteiro do internacionalista em formação. Ali, com a tese Reciprocity as a Basis of Extradiction é-lhe conferido o Diploma in Law. Ao regresso, é o concurso para o Ministério Público Federal e, nele, a honrosíssima classificação, as promoções em rápida seqüência e por merecimento, a Procurador de primeira categoria e, em 1979, a Subpro curador-Geral da República. Ali foi buscá-lo o Ministro Leitão de Abreu que o fez assessor extraordinário da chefia do Gabinete Civil do Presiden te João Figueiredo, ocupada por aquele eminente brasileiro. Em 1983, o nosso homenageado é nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal. Aos 39 anos era José Francisco Rezek o benjamin da Corte Suprema do Brasil, onde já exercera a função de Secretário J urídico do saudoso Mi nistro Bilac Pinto, seu conterrâneo, amigo e confidente; e onde, como Subprocurador-Geral da República, granjeara o mais alto conceito, graças aos luminosos pareceres sobre difíceis questões de Direito Público. Também avalizava a investidura do Ministro Rezek, sua carreira no magistério superior, lastreada nos cursos e concursos a que se submeteu, no Brasil e no exterior, e nos quais logrou demonstrar a excelência do seu conhecimento de Direito e, particularmente, o domínio do Direito In ternacional. Quando de sua posse nesta Corte, em 24 de março de 1983, o Ministro Rezek era Professor Titular de Direito Internacional Público e já havia sido Chefe do Departamento de Direito e Diretor da Faculdade de Estudos Sociais Aplicados, da Universidade de Brasília. Aos títulos científicos, já aludidos, somavam-se as obras produzidas, numerosas, excepcionalmente ricas de conteúdo e centradas no Direito das Gentes. Droit des Traités: Particularilés des Actes Constitulifs d'Organisa tions Internationales (Haia, 1968); La Conduite des Relations Internatio naIes dans le Droil Constitutionnel Latinoaméricain (tese de doutoramen- 16 to, Paris, 1970); Comunicações de Massa na Constituição Brasileira ( 1972); As Relações Internacionais na Constituição da Primeira República ( 1973); O Princípio da Nacionalidade e a Aplicação da Lei Penal Brasi leira ( 1973); Perspectiva do Tratado Institucional ( 1975); A Questão da Nacionalidade após a Lei n? 6.092/74 ( 1976); Perspectiva do Regime Jurídico da Extradição ( 1976); O J uscolonialismo na Teoria da Respon sabilidade Internacional ( 1976); Organização Política do Brasil (obra en comendada pelo Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exte riores, para integrar a bibliografia básica do Curso de Altos Estudos, Brasília, 1976); A Disciplina Internacional da Nacionalidade ( 1977); Aspec tos Elementares do Estatuto da Igualdade ( 1977); Conselho de Estado: Consultas da Seção dos Negócios Estrangeiros (direção geral, introdução e notas), 4 volumes; A Nacionalidade à Luz da Obra de Pontes de Miranda ( 1979); Variantes da Extradição e Direitos Humanos ( 1979); Constitucio nalidade do Empréstimo Compulsório de 1980 ( 1982); Limites Constitu cionais da Liberdade de Trabalho ( 1982); Reciprocity as a Basis or Extra diction (Oxford, 1982); Alcance do Veto fundado em Contrariedade ao In teresse Público ( 1982). No curso de sua judicatura, publicou ainda Direito dos Tratados (Forense, Rio de Janeiro, 1984); Traité de Droit lnternational Humanitaire (Capítulo X, Pedone, Paris, 1986); Le Droit InternationaJ de la Nationalilé (Haia, Récueil des Cours, 1986). A copiosíssima produção de votos e despachos do magistrado Fran cisco Rezek, rivaliza com a sua obra científica. Liberto da falaz e sempre equívoca classificação dos Juízes em libe rais e conservadores - absolutamente imprópria nos países de tradição jurídica continental - o Ministro Rezek aplicou o Direito atento à equa nimidade e ao fim a que ele se destina - a defesa da causa da humani dade - tão ansiosamente referida no seu discurso de formatura. A clareza é a virtude que - entre outras e numerosas - ressalta dos votos do Ministro Rezek, no Supremo Tribunal. Reclamava, para si mesma, certa Universidade, o dom da indenidade às leis da República, em nome da autonomia que a Constituição lhe ga rantiu. Disse, a propósito, o Chanceler de hoje, quando vestia toga de juiz: «Hesito em acreditar, por mais que se liberalizem as insti tuições, que o Congresso Nacional vá um dia», . . . «editar pa ra as universidades federais um sistema de autogoverno, en quanto cada um dos professores dessas universidades recebe, a cada mês do calendário, sua remuneração à conta dos recur sos do Tesouro Nacional; enquanto cada um dos seus estu dantes recebe esse serviço gratuitamente - numa gratuidade bancada pelo inteiro quadro social; tudo isso dentro de um ce nário custeado, em cada uma de suas paredes, móveis e equi- 17 pamentos, pela sociedade, pelos contribuintes que a todo dia alimentam o erário. A posição que esta Casa assume, no sen tido de desautorizar a norma estabelecida pelo Conselho da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, parece-me não apenas consentânea com a distribuição de competência normativa expressa na Carta de 88, mas também com o corre to propósito de não prestigiar qualquer forma de autogoverno à revelia da entidade mantenedora, que é toda a sociedade brasileira». (Ação Direta de Inconstitucionalidade n? 51-9 Rio de J aneiro - Medida Cautelar). - A clareza, a simplicidade, o casamento, sem rusgas, da palavra ao pensamento, capturam imediatamente a adesão do leitor, iniciado ou lei go, para a tese da inexistência da soberania das universidades e da exis tência de uma ratione entre o quantum de independência normativa e de auto-suficiência patrimonial e financeira. Não se irrogue ao autor do voto cristalino, o vezo centralizador ou certo penchant anti-autonomista. A manifestação que a seguir leio, produ zida no julgamento da Representação n? 1.150-0 - RS, na qual se discu tia a competência do Estado do Rio Grande do Sul para editar leis relati vas a substâncias tóxicas, especialmente, agrotóxicas, corrigirá o labéu preconceituoso. «A história da federação americana. . » «. . . é portentoso testemunho de quão fecunda pode ser a legislatura dos Estados-membros na concep ção de modelos normativos, que se propagam entre seus homólogos, e cuja excelência vem a União, mais tarde, e na esteira de suas unidades componentes, a reconhecer. As grandes causas legislativas ali germinaram no âmbito restrito de alguns Estados federados, antes que o Congresso se propusesse assumi-las. Se, naquele grande país, os cultores do direito e da política acreditassem na falácia de que as normas de interesse coletivo de vem ter sua origem necessária na criatividade do legislador federal, e ca so se entregassem os Estados, por isso, à indolente dependência do pater nalismo metropolitano, é provável que com largo atraso se tivessem feito consagrar nos Estados Unidos da América, a abolição da escravatura, o voto feminino, a igualdade dos direitos civis, a proteção ambiental, o ba nimento de toda segregação nas escolas públicas, e os direitos mais ex pressivos do empresário, do contribuinte e do trabalhador.» (Rp n? 1. 150-0 RS). Conclui o Ministro Rezek repondo em circulação, no território do Direito Constitucional brasileiro, a idéia de federalismo como o regime da diversidade na unidade, não o das uniformidades compulsórias: . - «Inexiste a aventada isonomia às avessas. Em parte algu ma da Constituição da República há de encontrar-se, expressa ou implícita, a garantia de que empresas, nacionais ou estran geiras, operando legalmente no país, devam por isso fruir, em qualquer ponto do território nacional, de iguais facilidades, à 18 sombra de idêntica metodologia administrativa. Não há, pois, na Lei fundamental, o que autoriza o produtor de substâncias potencialmente nocivas à saúde e à vida humana a exigir, do legislador rio-grandense - e, hoje, de mais de uma dezena de unidades federadas - a fidalguia complacente que lhe prodi galizam outros Estados e, mais que ninguém, a União Fede ral. » O invejável domínio da palavra que, no seu discurso, está hipostati camente unida ao pensamento e de tal maneira que nunca se sabe se o verbo é a idéia ou se esta é aquele - mestria tal permitiu que as inter venções quase-apologais do Ministro Rezek, fundamentassem decisões que, sem elas, seriam de difícil demonstração. Socorro-me de exemplos ao alcance da mão. Sobre o exame psicotécnico, objeto de alguma hesitação jurispruden cial: «Entende-se por exame uma aferição necessariamente marcada pelo rigor científico. Jamais uma entrevista em clau sura, de cujos parâmetros técnicos não se tenha notícia, e on de a possibilidade teórica do desmando, do arbítrio, do capri cho, do preconceito, não conheça limites. É certo que a psicologia vive ainda hoje um estágio pri mitivo, em grande parte experimental, de sua evolução como ciência.» . . . «Essas práticas merecem o nome de exames na medida em que assentam sobre pesquisas de valor reconheci do, qual sucede no âmbito da medicina geral. Há de abonar se, pois, o exame psicotécnico do qual resulte a conclusão de que certo candidato, à luz de tais ou quais testes, documenta dos em doutrina, revela agressividade excessiva - ou, pelo contrário, demonstra índole exageradamente passiva - para o bom desempenho da função policial. Os referidos testes con duziriam a idêntica conclusão se realizados em Genebra, ou e� Moscou, ou em Cingapura, tais como testes de acuidade visual ou de higidez pulmonar. Isso é o que se denomina rigor científico. É algo completamente diverso da submissão do candidato ao serviço público à subjetividade de um entrevista dor d� quem sequer se reclama que exponha, a posteriori, os fundamentos do seu laudo de rejeição». (RTJ 124/776-775). Sobre a fronteira aberta que separa o crime político do comum: «Parece-me que tem razão o advogado do extraditando quando dá pela impertinência do § 3?, que é a nossa versão da velha cláusula belga ou cláusula do atentado. À luz dessa norma, o Supremo Tribunal Federal poderá deixar de conside rar crimes políticos os atentados contra chefes de Estado ou quaisquer autoridades, bem assim os atos de anarquismo, ter- 19 rorismo, sabotagem e seqüestro de pessoa. No regime do Decreto-Lei 941, de 1969, enxertou-se esse final de frase que degenera a estirpe do artigo: «ou que importe em propaganda de guerra ou de processos violentos para subverter a ordem política e social». Esse final de frase pode comprometer a exa ta compreensão da cláusula do atentado, ali expressa. O que se quer dizer é que mesmo em presença de crime de inspira ção política absolutamente incontroversa, poderá o Supremo Tribunal Federal, à vista da crueldade do delito, deixar de considerá-lo privilegiado, em nome de um princípio maior: o de que a militância política não justifica certas formas de con duta, especialmente odiosas frente à sensibilidade humana». (Pedido de Extradição n? 412 - Itália). Enfrentando a questão de poder-se exigir de Estado requerente de extradição, a observância de normas brasileiras de proteção do acusado ou limitativas do ius puniendi, pondera o Ministro Rezek: «O que a Procuradoria-Geral propõe é uma extensão transnacional do princípio inscrito no § 11 do rol de garan tias. Pergunto-me se não seríamos então levados, pela lógica, a indeferir, um dia, a extradição, se verificássemos que no processo de que o extraditando resultou condenado houve prova resultante de quebra do sigilo de correspondência eis que o § 9? do mesmo artigo constitucional proíbe isso; ou porque no Estado requerente não se garante uma instrução criminal contraditória; ou porque lá não se prevê a instituição do júri para os crimes dolosos contra a vida. O rol do art. 153, com todas as vênias, não me parece operante, no proces so extradicional, como o conjunto de parâmetros a serem im postos ao Estado requerente. Meu voto acompanha o do eminente Ministro-relator, de ferindo a extradição; sem, porém, fazer a ressalva alvitrada pelo Ministério Público, no sentido de limitar a pena a 30 anos». Esse ponto de vista foi o que prevaleceu em mais de um caso, desde então. Entende-se, dessarte, que o § 11 do rol constitucional traça príncípios aplicáveis ao Judiciário brasileiro à feitura de justiça criminal no Brasil. Não poderíamos estender esses parâmetros a uma justiça es trangeira. A pena de morte é tudo quanto excluímos, porque o legisla dor, na disciplina específica do processo extradicional, quis que o gover� no brasileiro, a entregar o extraditando, reclamasse, entre outras garan tias, a de que em caso de aplicação da pena de morte esta não será exe cutada.» (Extr. 469-7-EUA). Ainda, da jurisprudência do Supremo Tribunal no capítulo das ex tradições, enriquecido com originais contribuições do internacionalista 20 hoje à frente da Chancelaria, é de recordar-se o voto que ele proferiu na Extradição n? 419 - República Italiana (in RTJ 114/18), versando o te ma, sempre árduo, da concorrência de jurisdições nacionais diversas so bre o extraditando, em razão de uma mesma imputação ou de acusações várias. «Minha preocupação, ao estudar os autos, foi a de en contrar um delito isolado que se pudesse entender totalmente ocorrido na Itália. É comum que esta Casa examine pedidos de extradição onde se acusa o extraditando de uma pluralida de de delitos. Busquei, então, nestes autos, um crime circuns crito no território italiano, para entender legítimo o deferi mento da extradição, ainda que uma dezena de outros delitos se pudessem reputar consumados no Brasil» . . . «Se verdadeiros o s fatos que o processo narra, estão eles incontornavelmente associados ao território brasileiro, inscrevendo-se no domínio processual penal afeto à Justiça do Brasil. Assim, ainda que o Supremo Tribunal Federal estivesse autorizado - e penso, com muita convicção, que ele não o está - a decidir ex ae quo et bano, a decidir à base do bom senso ou de considerações pragmáticas, ainda assim eu não creria que, neste caso, a jurisdição italiana deve ser reputada preponderante. Mas este problema na verdade não se coloca, visto que não somos um tribunal internacional neutro, não so mos um tribunal de terceiro Estado a desempatar conflito po sitivo entre a jurisdição brasileira e a jurisdição italiana. So mos o Tribunal maior de um Estado soberano cuja lei, a pro pósito, quer garantir privilégio à jurisdição local, em qualquer hipótese de concorrência. Ou, quando menos, em casos como este, onde a jurisdição brasileira se pretende afirmar não à ba se de simples previsão do delito em tratado, mas do mais ób vio, notório, antigo e pujante dos elementos definidores da competência penal: a territorialidade, que neste caso aponta a Justiça brasileira como competente, e não nos permite optar pela jurisdição italiana. » De outros julgados, extraem-se apotegmas que trazem ao chão da realidade, debates que, vezes quantas, perdem-se na estratosfera de eté reas construções verbais. «Arrolar tipos penais em demasia não constitui constran gimento ilegal» . . . (RTJ 126/171). ou «A condição de funcionário público federal não confere ao agente a faculdade de ver-se processado e julgado em foro federal». . . «há que aferir o envolvimento de bens, serviços ou interesses da União» ... 21 Creio que o Ministro Rezek põe um pouco do seu desvelo no caso Firmenich (RT J 1 1 1116), ou melhor, na intervenção que ele aí praticou, sustentando primeiro que «O parlamento, em toda a parte, tem o poder de revogar normas com efeito ex nunc; jamais o de declará-las nulas, com efeito retroativo, sob o argumento de inconstitucionalida de». A seguir, considera que o extraditando se beneficiara da lei argenti na de anistia; não sendo punível a partir dela, o fato anistiado não pode motivar o pedido de extradição. Para tornar ineludível a conclusão, argumenta: «Este país não concederia a extradição de um menor, com 17 anos de idade, acusado de homicídio nos Estados Uni dos da América ou na Argentina, apesar da circunstância de que, nas três ordens, a lei penal diz que «matar alguém» é cri me. Por que razão? Exatamente por força do inciso 11 do art. 77, verificando que aquele fato concreto é irreprimível em fa ce da irresponsabilidade penal». O Internacionalista que afirma a jurisdição pátria, quan do em concurso legítimo com a estrangeira, também não con cebe «progressos, para o Direito das Gentes, à revelia dos Es tados»; e tem como «fantasia romântica» a teoria segundo a qual o Direito Internacional pode «alçar vôo mediante o só impulso do dinamismo e da obstinação de uma elite de pensa dores desestatizados». Condena, como «perda total do senso de realidade», o emprego de linguagem ou construção arti ficiosa na negociação de tratados coletivos, para o fim de «contornar as exigências constitucionais em vigor nos Estados pactuantes», especialmente, as «prerrogativas constitucionais dos parlamentos» (Direito dos Tratados, Forense, Rio de Ja neiro, 1984, pág. XX). Para Rezek o fenômeno da substitui ção dos Estados por organismos internacionais «é epidérmico e transitório» (Dir. dos Tratados, cit. pág. XXI), pois, o Esta do, é «a expressão, a melhor que se conhece, do ideário e dos anseios de uma comunidade de seres humanos congregados pelo sentimento nacional» (Dir. dos Tratados, cit., págs. XX e XXI). Essa percepção da realidade - direta, dura e sem antolhos - passa ao largo do chauvinismo. É a límpida definição do dualismo jurídico, construído a partir da preeminência do tratado, como fonte das normas internacionais, tanto mais legítima e segura quanto resulta da vontade ex pressa dos Estados, único exemplar de sociedade política na qual os in divíduos podem ter voz decisiva. O que está na raiz dessa visão de mundo e dessa concepção da disci plina normativa das relações internacionais é o mesmo humanismo políti- 22 co que, ao conferir às associações locais preeminência sobre a província, o reino e o império, desencadeou a verdadeira revolução democrática moderna que consiste em substituir, no comando da vida social, os entes da razão, as personalidades fictas, por esse ser humílimo, criado, falível, perfectível, mas inefável, que é o homem. A dignidade humana não provém do grupo social a que o indivíduo pertença - a essa família, àquela nação, a esta cultura, àqueloutra civili zação. A preeminência da pessoa natural sobre os seres da ontologia política, vem do fato de que nenhum deles a contém ou a satisfaz inteira mente. O homem, já se disse, é o peregrino do absoluto. Esse espírito reflexivo, esse esteta das virtudes raras, esse ambicioso da permanente superação dos seus limites, essa inteligência apurada na milenar sabedoria dos seus antepassados e, paradoxalmente, esse coração paciente consigo mesmo, porque confiante em que todas as coisas, boas e más, virão a seu tempo, é aquele a quem agora o País entrega o cuidado que, há muito, o atormenta, de fazê-lo artífice da história - da sua e da história da humanidade, cujo serviço e cuja defesa é, para a consciência de Rezek, a parte mais relevante do compromisso do homem da lei. Esse juramento, como é sabido, começa com as palavras - Ego promito me semper - valendo, nelas, o advérbio pela livre submissão do promitente à perpétua servidão do Direito. Completou-se a judicatura do Ministro Francisco Rezek com a expe riência, a todos os títulos singular, de presidir o Tribunal Superior Elei toral, no ano em que o Brasil, depois de quase três décadas, voltou a es colher, pelo voto direto dos cidadãos, o Presidente da República. O que foi, ali, a presidência Rezek, disse-o com a elegância e a exati dão de sempre o Ministro Octavio Gallotti, em discurso proferido na so lenidade de inclusão e descerramento do retrato do nosso homenageado na galeria dos antigos Presidentes da alta Corte eleitoral. Registro que é, também, motivo de orgulho para o Supremo Tribu nal Federal, tenha um dos seus juízes, então o mais moço, granjeado a confiança e o respeito de toda a Nação, pela mestria revelada na condu ção da consulta a um corpo eleitoral numerosíssimo, espalhado em terri tório vasto e desigualmente dotado de meios modernos e rápidos de apu ração da vontade nacional. O Supremo Tribunal Federal que se sabe juiz dos demais poderes da Nação, em face dos quais guarda a ·mais absoluta independência de jul gamento e invariável harmonia no propósito de bem ,servir, não crê que a seus Ministros se possa oferecer mais alta posição, nem o exercício de mais nobre mister, nem via mais direita de nobilitação do que a magis tratura que exercemos. Ela prodigaliza tudo isso a um só tempo. Ao renunciar à suprema judicatura, privando-se de honra tamanha e do justo prêmio que lhe tocaria se nela persistisse, o Ministro Francisco Rezek aceita o desafio de procurar não menor reconhecimento de seus 23 contemporâneos e dos pósteros, pela excelência dos benefícios que, por certo, conquistará para o Brasil e pela nobreza dos serviços que prestará à comunidade das nações. Internacionalista, o Ministro Francisco Rezek - reconhecemos to dos - sempre esteve naturalmente vocacionado para tarefas que trans cendem às do magistrado. A elas, afinal, acede, tal como, antes dele, Epitácio Pessoa. Vendo-o partir parar viver plenamente as suas novas circunstâncias, os seus anti gos colegas proclamam as virtudes do juiz que se retira - o seu saber, a sua modéstia, a sua independência feita de desambição e dignidade, a sua exação e, nas palavras das Ordenações do Reino, « . . sobretudo tão inteiro que, sem respeito de amor, ódio, ou perturbação outra do ânimo a todos guardou justiça igual mente». . E, assim, lhe tendo dado o que é de justiça, o Supremo Tribunal Fe deral augura ao Ministro Francisco Rezek a alegria de viver um grande destino, servindo a mais nobre das causas que é a humanidade. Palavras do Senhor Ministro NÉRI DA SILVEIRA, Presidente Para falar em nome do Ministério Público Federal, concedo a pala vra ao eminente Procurador-Geral da República, Dr. Aristides Junqueira Alvarenga. Discurso do Doutor ARISTIDES JUNQUEIRA ALVARENGA, Procurador-Geral da República Excelentíssimo Senhor Ministro Presidente, José Néri da Silveira; Excelentíssimos Senhores Ministros; Excelentíssimos Senhores Ministros aposentados dessa Corte; Excelentíssimos Senhores Ministros dos Tribu nais Superiores e do Tribunal de Contas da União; Excelentíssimo Se nhor Desembargador-Presidente do Tribunal de Justiça do Distrito Fede ral; Excelentíssimos Senhores Magistrados de primeiro e de segundo graus de jurisdição; Prezados colegas do Ministério Público; Senhores Advogados; Senhores Diplomatas; Senhoras e Senhores. Em 24 de março de 1983, neste sagrado recinto não se ouviram vo tos, não foram proferidas decisões nem se aprovou a ata da sessão ante rior, embora aqui estivessem reunidos dez de seus Ministros, estando va ga, apenas, a última cátedra à esquerda da Presidência. Também não se ouviu qualquer saudação. Viu-se, apenas, o pronunciamento pausado dos termos de um solene compromisso, para, em seguida, se verificar que na cátedra, então deso cupada, já se encontrava um jovem de apenas 39 anos, devidamente to gado. Eu a tudo assistia, em pé, ali na parte lateral, à espera do término da brevíssima solenidade, para depois, ser mais um dos numerosos com ponentes da longa e alegre fila de cumprimento ao novel Ministro da Su prema Corte brasileira. Enquanto lentamente caminhava para felicitá-lo, e à Myréa, lem branças do passado invadiram-me. Voltei à antiga casa da Rua dos Guajajaras, em Belo Horizonte, bem próxima à Casa de Afonso Pena, assim conhecida a Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Era ali o Curso Cham pagnat, dos Professores Nivaldo, Roldão e Delson, onde, em 1961, nos preparávamos para o vestibular universitário. Latim, Francês e Português eram nossas únicas preocupações. Foi aí que o conheci, nos seus 17 anos. Depois, a Faculdade e o seu Departamento de Assistência Judiciária - o querido DAJ -, cenário de nossos primeiros passos na prática fo rense. 32 Já no quarto ano, ei-lo na Universidade de Harvard em curso de ex tensão, como bolsista e no ano seguinte ao de sua formatura, na Univer sidade de Paris, como bolsista do Governo Francês, culminando, em 2 de outubro de 1970, com o título de Doutor em Direito Internacional Públi co. Em 1973, voltamos a nos encontrar, novamente como colegas, no Ministério Público Federal, em que ele ingressara um ano antes. Quase dez anos depois, eis-me ali no salão branco deste Supremo Tribunal Federal, prestes a abraçar seu mais novo Ministro, depois de acompanhar de perto a constante ascensão do consagrado Professor uni versitário e do Instituto Rio Branco, do Titular do Diploma in Jaw da Universidade de Oxford, do respeitado membro do Ministério Público, autor de impecáveis pareceres, que serviam de razão de decidir dessa ex celsa Corte, principalmente na órbita do Direito Internacional. Ei-lo, agora, como Ministro da Suprema Corte, com a segurança de quem segue a traçada estrada da vida. Durante quase sete anos ele aqui esteve, com a sabedoria de seus vo tos, externada pela profundidade de seu conteúdo e invejável precisão vocabular. Como Presidente da mais alta Corte Eleitoral do país, em momento singular de nossa história política, ei-lo a comandar com virtudes admirá veis o processo eleitoral, com o reconhecimento de toda a nação. Glorio sa e salutar epifania! Mas sua produção jurídico-literária há muito já indicava sua voca ção internacional, a fazer com que não se possa estranhar seu afastamen to espontâneo dessa Corte Maior de J ustiça. Coragem é atributo de homens seguros de sua potencialidade e, por isso, determinados. E assim é José Francisco Rezek. Nem se diga que prematura foi sua saída deste Santuário de J ustiça. O Tempo em que aqui permaneceu foi o bastante para tornar indelével sua figura de magistrado, ministrando lições inesquecíveis, tal como nos seus dez anos de Ministério Público Federal, instituição que hoje tenho a honra de dirigir e que, com especialíssima emoção, participa desta home nagem. O Supremo Tribunal Federal, o Ministério Público Federal e o Brasil jamais esquecerão de José Francisco Rezek. E, sem qualquer tom de vaticínio, seu trabalho o tornará ines quecível além-fronteiras. Que Deus o cubra de bênçãos e à Myréa, Adriana, Verônica, Fran cisco José e João Paulo: são as preces do Ministério Público! Palavras do Senhor Ministro NÉRI DA SILVEIRA, Presidente Credenciado pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, falará pela nobre classe dos advogados o Professor Roberto Ro sas, a quem concedo a palavra. Discurso do Doutor ROBERTO ROSAS, Advogado Sr. Presidente do Supremo Tribunal Federal, Srs. Ministros, Sr. Procurador-Geral da República, Srs. Ministros aposentados, Senhora Myréa Rezek, minhas senhoras e meus senhores. Ninguém melhor do que o historiador Heródoto para descrever a vi da de uma raça de navegadores e sua penetração no mundo. Eram auda zes, corajosos, fechados em seu mundo de mar e céu, e de comércio e de atiladas empresas. Suas manufaturas, suas conquistas, alheios ao estrépi to, à fala, o segredo de suas rotas. Isso ficou a seus descendentes, e se consolida hoje, nas emoções de seus filhos, no desejo de realizações, de observações e agir. Esses temperamentos são amalgamados no dia a dia, no entrecruzar de civilizações e povos, e assim temos o perfil acabado de pessoas que antes de mais nada têm seu mundo tracejado no espaço e no tempo. Por isso, ao esboçar o perfil do Ministro Francisco Rezek, deve ser levada em conta, a atávica ancestralidade de uma raça de navegado res, e o componente especial da mineiridade. Completam-se num traço forte e ameno, como numa contradição, que tem a sua lógica - forte na convivência do navegador com as intempéries, com o incerto, mas o oti mismo que é próprio do navegante - chegar a um bom porto. Ao lado, o caráter sutil da mineiridade, sem arroubos ou vantagens, mais persua são do que prepotência, mais realização do que exibição. Explica-se, por tanto, numa vida equilibrada, como o navegador concilia-se com o ho mem das montanhas, num perfil sintético de cordialidade, firmeza e espírito desprendido, ao montar caravelas ou naus, num recôndito desejo de andar pelo mundo, que se harmoniza com o internacionalista, com o homem universal, ele vê o direito como regra de vida social aplicável à comunidade internacional, numa projeção de relacionamento não somen te humano, também entre países. Isso, o Ministro Rezek colocou com brilho e erudição em seu Direito dos Tratados e em seu Curso de Direito Internacional Público, reflexo de quase 20 anos de dedicação ao magisté rio na Universidade de Brasília, sempre unindo à atividade do magistra do, pensando como Maurice Duverger que as leis são proposições formu ladas de acordo com um modelo de representação abstrata que definem previsões com uma certa probabilidade (Os Laranjais do Lago Balantin). Para o Ministro Rezek, em sua magistratura, a lei devia ser entendida co mo possível de aplicação, e não ter somente a previsão que pretendeu o 40 legislador, mas a segurança, de uma provável aplicação útil e social, forrando-se de uma afirmação ideológica e de crítica social, não desgar rando a aplicação da lei da realidade e da justiça social. Com isso, tem conseguido a vida harmônica do pensador, mas antes de tudo o administrador eficiente, que conseguiu dirigir a maior e mais difícil eleição presidencial brasileira, não a direção despótica ou subjuga dora, mas aquela didática e pedagógica, num esforço de 2.000 juízes, e milhares de escrutinadores e mesários, numa reunião cívica de vitória da democracia e do estado de direito. Não lhe coube determinar um resulta do ou sucesso das candidaturas. O resultado foi proclamado por todos os juízes eleitorais do Acre ao Rio Grande do Sul, num mapa eleitoral con junto de maturidade política. A preocupação com o resultado das urnas levou o Brasil a aplaudir a Justiça Eleitoral, consagrando-a como uma das belas instituições na sua cinqüentenária existência, de grandes colaboradores, mas certamente, dos maiores - o Ministro Francisco Rezek. A história contemporânea dirá, e o futuro também, ainda que se pense como numa passagem de Euclides da Cunha - não havia temer-se o juízo tremendo do futuro so bre o episódio de Canudos - a História não iria até ali. A história con sagrará a atuação da Justiça Eleitoral em 1988, e exaltará a figura exem plar e isenta do Ministro Francisco Rezek, aliada àquele traço de persona lidade. O navegador é um otimista, o mineiro é idealista. Idealismo e oti mismo são indispensáveis às pessoas que acreditam no poder, nos Servi ços da Pátria, no Serviço Público, e antes de tudo tenham coragem para enfrentar esses obstáculos. Moliére detestava os corações pusilânimes, da queles que na ânsia de prever demasiado a continuidade dos fatos, nada ousam empreender. Não é a personalidade do Ministro Francisco Rezek - pensa e constrói com o espírito público. Repete-se sempre a afirmação de Ortega y Gasset - eu sou eu e a minha circunstância, não que a realidade se componha do eu e da cir cunstância ou das duas grandezas adicionadas. O eu é o real e em sua realidade está a circunstância. Mas qualquer pessoa é insondável sem a sua circunstância. Assim é o Ministro Francisco Rezek. O eu é a própria vida do navegador e do mineiro, o otimista e o idealista. A circunstância é o desapego aos bens materiais, o desapreço ao co tidiano, por isso, granjeou os louros no magistério, no Ministério Públi co, no Tribunal Superior Eleitoral e no Supremo Tribunal Federal, e será aplaudido em qualquer função, porque assim acreditam os Advogados brasileiros, representados por quem acompanhou, de perto, toda a traje tória do homenageado, tão bem retratado nas excelentes palavras do Eminente Ministro Célio Borja, que se integram nesta homenagem do Conselho Federal da Ordem dos Advogados. Palavras do Senhor Ministro NÉRI DA SILVEIRA, Presidente As belas orações, que consubstanciam as justas homenagens do Su premo Tribunal Federal ao ilustre Ministro Francisco Rezek, constarão da Ata desta sessão da Corte. Agradeço a presença dos Srs. Ministros aposentados do Supremo Tribunal Federal, do Exmo. Sr. Presidente do Superior Tribunal Militar, do Sr. Presidente do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Terri tórios, dos Srs. Juízes dos Tribunais Regionais da Primeira Região, dos Srs. Diplomatas, dos Srs. Magistrados, dos Srs. Membros do Ministério Público, dos Srs. Advogados, das Senhoras e dos Senhores. Antes de suspender esta Sessão por 15 minutos, para que a Corte cumprimente a Exma. Sr. Myréa Rezek e pessoas da família do home nageado, quero, como Presidente do Tribunal, reafirmar o apreço de to dos nós ao ilustre Ministro que se afastou de nossa convivência diária e reafirmar que esta justa homenagem do Supremo Tribunal Federal segue uma tradição da Corte, que também se cumpre relativamente ao Ministro Francisco Rezek, não obstante a forma diversa do seu afastamento, em confronto com o que normalmente acontece com os demais membros do Colegiado, quando o deixam por aposentadoria. É sessão de homena gem, ainda sem precedentes, que o Tribunal realiza, em virtude de afas tamento de um Ministro, voluntariamente, por exoneração a pedido. Na história do STF, há registro, apenas, de um pedido semelhante, em 4 de maio de 1896, quando o Ministro Ubaldino do Amaral Fontoura, após pouco mais de um ano de exercício, requereu exoneração do cargo. Está suspensa a Sessão por quinze minutos. Imprensa Nacional SIG, Quadra 6, Lote 800 70604 Brasília, Distrito Federal