A MORTE NÃO É DESTINO. UMA TRAJETÓRIA DA SOBREVIVÊNCIA FEMININA NA LITERATURA
PORTUGUESA1
THE DEATH IS NOT DESTINY. A TRAJECTORY OF THE FEMININE SURVIVAL IN
PORTUGUESE LITERATURE
Monica do Nascimento Figueiredo*
Só eu sei
as esquinas por que passei
Só eu sei...
E quem será
na correnteza do amor
que vai saber se guiar?
A nave em breve ao vento vaga de leve
e traz toda a paz
que um dia o desejou levou....
(Esquinas, Djavan)
Resumo
Este artigo se propõe analisar o percurso de algumas personagens femininas nos romances portugueses dos séculos
XIX e XX, descrevendo as formas de sobrevivência inscritas pelo feminino na literatura finissecular. Para isso,
focaliza as obras O Primo Basílio, Pedro e Paula, O Vale da Paixão e Ensaio sobre a cegueira como espaços de
reavaliação crítica do papel da mulher, detendo-se na aquisição da linguagem e na vitória do sujeito e no corpo, na
casa e na cidade como lugares problematizados pela ficção, bem como avaliando a crise das relações sociais
experimentadas em dois fins de século: XIX e XX.
Palavra-chave: Literatura Portuguesa, Séculos XIX e XX, Personagens Femininas, Formas de
Sobrevivência.
Abstract
É PRECISO REVER O ABSTRACT POIS TIVE QUE MODIFICAR O RESUMO.
Path analysis of some feminine characters in Portuguese romances from XIX and XX centuries. The way of survival
enrolled by feminine in literature, at the end of XIX and XX century. O Primo Basílio, Pedro e Paula, O Vale da
Paixão, and Ensaio sobre a cegueira as critical reevaluation spaces of the role of woman. The language acquisition
and the victory of the individual. The body, the house and the city as places recovered by the fiction. The crisis of the
social relations experienced on two end centuries: XIX and XX.
Key words: Portuguese Literature, XIX and XX Centuries, Feminine Characters, Way of Survival.
1 Comentários introdutórios: dois fins de século
Desde a famosa aula proferida por Barthes (1989)2, parece que se aprendeu que não há discurso para fora
do poder, pelo menos não dentro daquilo que nos acostumamos a chamar o uso comum da linguagem, uma
vez que o poder é como o “parasita de um organismo trans-social” (p. 12) que, preso à linguagem pela sua
expressão obrigatória que é a língua, se liga inexoravelmente a toda a história da humanidade. Enclausurada
nos discursos, resta à condição humana a trapaça: “trapacear com a língua, trapacear a língua” (p. 16), parece
ser o caminho para que se evite a autoridade da asserção e o gregarismo da repetição3. Ao revolucionar o
uso da linguagem, a literatura promove uma revolução no corpo do texto, refazendo aquilo que é dominado
pelo hábito e, por isso, incapaz de dar conta do pequeno, da rasura, da lacuna e do silêncio. Instaurar a
instabilidade no saber, eis o grande desafio do texto literário. A re(a)presentação do real só é possível por
meio da linguagem; no entanto, o que ela (re)cria não é o real da coisa – que estará sempre no fora do
discurso, preso à concretude dos fatos –, mas, sim, o efeito de real (p. 96).
O que aqui pretendo perseguir são quatro formas singulares de enunciação do que chamo, com Barthes, de
efeito de real. O que de perto interessa ver é como Eça de Queirós em O Primo Basílio; Helder Macedo em
Pedro e Paula; Lídia Jorge em O Vale da Paixão e José Saramago em Ensaio sobre a cegueira4 transformaram a
referencialidade histórica em enunciação e como esta foi capaz de gerar um sentido estético carregado de
significação para o espaço. Enfim, quero crer que essas narrativas são exemplos de exercício de linguagem
desejosa de sabor, capazes que são de inscrever uma outra forma de saber que não se quer sinônimo do real,
mas antes possibilidade de significação latente.
Há, no entanto, que se justificar a temporalidade que separa a narrativa queirosiana dos demais textos. Num
livro primoroso, O declínio do homem público – As tiranias da intimidade, Richard Sennett (1988) aponta que,
para se compreenderem as relações modernas estabelecidas entre vida pública e vida privada, enfim, para se
compreender a sociedade contemporânea, será necessário um retorno cuidadoso à era vitoriana, quando
tudo aquilo com que acertamos contas hoje em dia foi efetivamente criado. Como afirma Sennett (1988), “o
século XIX ainda não terminou” (p. 44).
A seu modo, esses quatro romances podem ser considerados exemplos de narrativas finisseculares. Se a
expressão “fim de século” está assinalada como identificação da viragem do século XIX para o século XX, é
necessário também perceber que ela de longe ultrapassa uma mera referência cronológica, porque é, em
verdade, a representação de uma atmosfera de crise, ou melhor, de um estado de espírito marcado pela
tensão e pelo conflito. Se Eça de Queirós inscreve a crise do advento da modernidade no seu O Primo
Basílio; Helder Macedo, Lídia Jorge e José Saramago também abrem espaço para que a crise do fim da
modernidade ganhe registro por meio das linhas da ficção.
2 Luísa: a sobrevivência silenciosa
É de dentro da decadência do Portugal oitocentista construído por Eça que surge o desejo gaguejante de
Luísa, bem como, nas três narrativas contemporâneas, é de dentro do último fim de século marcado por
uma atmosfera de isolamento, de instabilidade e de violência latentes que nasce a resistência desejante de
outras três personagens femininas. Se Luísa teve de perder a segurança do abrigo que representava o lar
burguês em troca do vislumbre de certa liberdade individual – a liberdade de descobrir a sua sexualidade e
o seu corpo –, um século depois, as mulheres de papel da contemporaneidade tiveram de promover uma
outra forma de luta contra “uma espécie de liberdade de procura do prazer que tolera uma segurança
individual pequena demais” (Bauman, 1998, p. 10). Luísa, Paula, a filha de Walter e a mulher do médico são
trajetórias audaciosas de desejo. Guardadas as devidas proporções, cada uma delas, a seu modo, teve de
lutar com o tempo histórico a que estavam circunscritas pela aquisição do conhecimento que nem sempre
lhes era permitido.
Todas elas ataram os seus percursos desejantes à linguagem, e é a aquisição de um discurso próprio que,
conscientemente ou não, perseguem. Parte da silenciada (e por isso silenciosa) Luísa a indagação fundadora:
“com que linguagem?” (PB, p. 323). Talvez, e mesmo sem o saber, Luísa pressentisse que o “silêncio é assim a
‘respiração’ (o fôlego) da significação; um lugar de recuo necessário para que se possa significar, para que o
sentido faça sentido” (Orlandi, 1997, p. 13). Mas se Luísa aprendeu a conviver com o silêncio, o mesmo não
conseguiu fazer com a fala, que para ela nunca ultrapassou a forma gaguejante. Por ser incapaz de
transformar o silêncio que impossibilita em pausa significativa na emissão do discurso, ela não foi capaz de
sobreviver à doença que silenciou para sempre a sua titubeante busca de significação.
Como impostora, Luísa toma posse do discurso proveniente de suas leituras, não estando apta a
transformá-lo num discurso próprio que fosse capaz de ajudá-la a enfrentar a concretude de um tempo que
perpetuava o silêncio feminino. Se tivesse sido capaz de tornar próprio o discurso alheio, teria virilizado a
sua fala, garantindo, com isso, a existência que a salvaria do silêncio a que foi condenada pela morte. A longa
agonia de Luísa é marcada pelo emudecimento. No século XIX, por ser incapaz de construir um discurso
que lhe garantisse a existência e que justificasse o seu atrevimento desejante, Luísa foi punida com o
desabrigo. Expulsa de seu corpo, de sua casa e de sua cidade, ainda assim, com a história do seu fracasso
narrado, ela abriu caminho para que o corpo da Paula, de Helder Macedo, pudesse ultrapassar todas as
formas de violência a que estaria, por sua história pessoal, condenada. A curiosidade de Luísa é agora
substituída pelo desejo de experiência de Paula que, conscientemente, busca uma linguagem que seja capaz
de garantir a sua existência como sujeito.
3 Paula: um corpo no mundo
Trata-se de um outro tempo, igualmente difícil e pouco confortável à existência feminina. Contrariamente a
Eça que no século XIX declarou o seu duvidoso desamor por Luísa, Helder Macedo, na contemporaneidade,
assume, especularmente, por meio de seu narrador, o fascínio por sua personagem. Semelhanças nas
dessemelhanças são aquilo que acaba por unir a escrita desses dois autores que, a seu modo, perceberam a
condição adoecida dos tempos históricos que lhes serviam de palco de ação. A necessidade da cura parece
ser a lição repetida por Helder Macedo ao recuperar o texto de Eça de Queirós5 para uma das epígrafes do
livro. E é do corpo de Paula que vem a cura do mal, um corpo desejante que na contemporaneidade está à
procura de uma forma de vida mais saudável.
Se Luísa foi ameaçada de perder a casa e com ela o seu lugar dentro do modelo social oitocentista, Paula
esteve sempre em trânsito. Essa mulher inaugura um novo tempo, é a mulher da geração das que trabalham
fora e que, portanto, assumiram a rua como um espaço também possível. Paula é uma pedestre por escolha
que decide dominar os espaços, percorrer as cidades, querendo evidentemente muito mais do que Luísa
pôde algum dia desejar para fora do abrigo de uma casa burguesa. Outro tempo, novo imaginário,
realizações viáveis.
Sobrevivente ao estupro do irmão, Paula guardou em seu corpo a pulsão da vida. Na verdade, o
estupro pode ser visto “como um meio de lidar com a deficiência, dependência ou inadaptabilidade
masculinas” (Tomaselli e Porter, 1992, Introd.), porque por detrás da violência o que se esconde é
o desejo masculino de punir “aquilo que [o homem] imagina prendê-lo numa armadilha: ele pune o
corpo feminino” (Tomaselli e Porter, 1992, p. 93). Graças ao poder conferido por sua imaginação,
Paula conseguirá passar pela paisagem cinzenta do Portugal salazarista e por toda a adoecida
história familiar, experimentando uma plenitude que não é só amorosa, mas também sexual e que a
faz “querer ser livre entre homens aprisionados” (PP, p. 127).
Se, por contar somente com a sua curiosidade, só foi possível a Luísa a descoberta do corpo para
aquém do amor, Paula, um século depois, já pode experimentar uma plenitude que é capaz de unir
carne e espírito. Essa heroína não precisa mais optar pela morte como as Bovarys sedentas de um
mundo menos medíocre. Também não é, como as Luísas, imolada por suas transgressões. Ela fica e
assume sozinha o saber sobre si e sobre a filha cuja origem terá de construir. Abandonando o lugar
tradicional do feminino, Paula escolherá diante do narrador a paternidade para sua filha. Por uma
lógica voluntariamente não científica, mas ética, Filipa só poderia ser filha de Gabriel, a filha que ele
“mereceu” (PP, p. 202), porque tirara dela o “sabor da morte” (PP, p. 206) quando dentro dela
morreu, sepultando de vez a memória do estupro e escolhendo como última morada o corpo
daquela que foi plenamente amada.
4 A Filha de Walter: a vitória sobre o desabrigo
Do mesmo modo, o percurso da personagem de Eça acabou por anunciar a chegada de um tempo em que
uma mulher ameaçada pelo desabrigo, a filha de Walter – de O Vale da Paixão, de Lídia Jorge –, se pudesse
tornar a dona legítima da casa de Valmares ao aprender a permanecer. Ora, para que a completude da filha
possa ser vislumbrada, é preciso voltar a Walter, ensina desde logo a narradora. Por meio de um discurso
gaguejante, marcado pelas adversativas e pelas condicionais, ela constrói um texto que obsessivamente
parece estar sempre a recomeçar.Vencer o esquecimento é tarefa trabalhosa, e o que restou de memória a
essa filha são fiapos de um passado que ela avidamente alinhava, tentando recuperar um tecido que, já na
origem, se assume como falhado, se assume como carência e vazio.
Seguindo hipoteticamente os passos vacilantes de Luísa e a travessia determinada de Paula, a filha de Walter
também fará da imaginação a sua garantia de sobrevivência e o seu instrumento de ultrapassagem em
direção a uma existência mais saudável. Desabrigada antes mesmo de seu nascimento, transformará o seu
poder de criação em discurso e por meio dele se tornará a dona legítima da casa de Valmares, que há de
ficar como uma “casa do futuro” por ser “mais sólida, mais clara, mais vasta que todas as casas do passado”
(Bachelard, 1989, p. 48).
Com a mãe, Maria Ema, ela dividiu o segredo de seu amor e com ela esperou o retorno daquele que
sempre habitou o lugar movediço que existia entre o pai e o homem. Ambas guardaram secretamente a
foto tirada em 1951, quando Walter retornou a Valmares. O corpo concreto do pai esteve ao lado do corpo
da filha, aprisionado definitivamente nessa foto que ficou escondida sob o risco de revelar uma ligação que
precisava ser esquecida. Do esquecimento de Walter dependia a manutenção da ordem da casa. Obrigada
desde cedo a se desviar de sua condição de filha, a dona da voz narrativa traçou para si uma trajetória à
margem: à margem da família, à margem do afeto, à margem da casa e, por algum tempo, à margem de um
discurso assumidamente em primeira pessoa. Escamotear-se assim em terceira pessoa era uma forma de se
olhar de fora para se ver no confronto com os outros, observa-se de fora até poder-se sentir dona de si,
um eu cujos limites foi obrigada a construir numa relação em que o amor, a culpa e o ódio se conjuraram.
A narradora cedo transformou o revólver do pai num brinquedo mantido sempre perto de seu corpo,
capaz de afugentar os fantasmas infantis e de personificar a proteção fálica que lhe tinha sido negada. O
revólver, escondido ao longo dos anos embaixo do colchão, transforma-se na metáfora do corpo masculino
que, mesmo ausente, povoa o imaginário da filha incestuosamente ligada à imagem desejada do pai. A arma,
na verdade, protegeu não só a filha, como também a sua imaginação, pois, sabendo que era pela aquisição do
discurso que a sua individualidade estaria garantida – afinal, ela “escreveria nos cadernos escolares, protegida
pelo revólver, deixado pelo pai, não esquecido, deixado” (VP, p. 134) –, ela protegeu-se da casa com o falo da
arma, ao mesmo tempo em que preencheu os espaços vazios por meio de uma fala que era plenitude de
criação.
Se Luísa suspeitou que o impasse de sua existência pudesse estar resumido na indagação “com que
linguagem?”, mais de um século depois e já de posse de um discurso a custo conseguido, a filha de Walter
ousou perguntar “o que é a nossa morada?” (VP, p. 125). Era a sua forma de querer dizer a casa, e não
somente de experimentá-la. Precisava alegorizá-la, torná-la discurso próprio. Ao enfrentar a incompletude
que havia sido selada antes mesmo de seu nascimento, aquela que sequer recebeu um nome buscou as
palavras necessárias para aprender a morar em si. Se “o amor é uma das respostas que o homem inventou
para olhar de frente a morte” (Paz, 1994, p. 117), a filha de Walter amou o pai que partira para não morrer, e
transformou a casa de Valmares num lugar onde o feminino lhe ensinaria a aventura de permanecer, não
mais como prisioneira, mas como a que opta por ficar depois de ter partido.
5 A Mulher do Médico: os perigos da travessia
E, por último, transeunte incapacitada de vencer o espaço urbano, Luísa é, de certa forma, o pretérito
inscrito na trajetória de resistência da mulher do médico do Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, que,
na contemporaneidade, foi dotada de olhos da diferença, fortes o bastante para confrontarem o inferno em
que se transformou a cidade no último fim de século. Se Paula pintou suas palavras-telas, se a filha de Walter
criou suas palavras-filmes, a mulher do médico encontrou com seus olhos as palavras necessárias. Mas, se
Paula silencia quando não quer dizer e se a filha de Walter cala enquanto aprendia a dizer, a mulher do
médico tem de dizer. Ser obrigada a dizer é uma forma perversa de violência que brutalmente viola o corpo
daquela que, ao decidir acompanhar o marido, se transforma na testemunha necessária, no corpo sempre
presente que, não recusando a experiência da dor vivida como destino compartilhado, poderá ensinar a
antiga lição da compaixão.
No doloroso episódio do estupro, o discurso radicaliza a abominação, e o narrador assume ele próprio um
tom agressivo, corroborando a atmosfera de terror que domina o manicômio após a insurreição dos cegos
maus. Sem pudor, o romance divide o universo do manicômio entre bons e maus que repetem em segunda
instância o lugar dos oprimidos e dos opressores, ao mesmo tempo em que atualiza a memória histórica da
violência que parece perseguir preferencialmente o feminino desde tempos imemoriais. Mostrando que a
indignidade se concretiza no corpo, a narrativa não esquece de que o corpo feminino é o mais plenamente
atingido. Os cegos maus fizeram com que cada uma das vítimas sofresse “tudo quanto é possível fazer a uma
mulher deixando-a ainda viva” (EC, p. 178), instalando nelas uma morte que só poderia ser vencida graças à
teimosa insistência pela vida.
Mas, como a Paula de Helder Macedo ensinou, a vida ressurge dos corpos massacrados. Vencendo uma
violência que pretendeu silenciar até a linguagem, porque o “inominável” existe (EC, p. 179), as mulheres
violentadas do Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, tiveram de renascer outras a partir de uma dor que
ficará para sempre como memória, pois o “inconsciente é um conservador da dor, ele não a esquece”
(Nazio, 1997, p. 57). Bem próxima da filha de Walter, que vencendo o medo também percorria os cantos
escuros da casa de Valmares, protegida por um revólver que matava tudo aquilo que ameaçava a sua
integridade de sujeito, a mulher do médico igualmente pressentia que “o furor feminino é freqüentemente
de base erótica” (Delumeau, 1993, p. 64). Por sua condição de ser desejante, a mulher do médico
transformará em gozo a morte do opressor, libertando seu corpo e o das companheiras da utilização sádica
a que tinham sido submetidos. De seu corpo ultrajado parte a redentora vingança que impede que elas se
transformem em vítimas sacrificais, imobilizadas num corpo imolado – como se tornou o de Luísa – que,
sem lugar, não poderia protagonizar a história de ocupação que afinal acaba por inscrever.
Se a mulher do médico tem medo, para além de todo o horror, o que a atemoriza é o esquecimento. Por
isso, insiste no aviso: “Abramos os olhos”, pois é necessário ver, e mesmo aqueles que não o podem fazer
por conta dos olhos cegos, deverão fazê-lo pela memória dolorosamente inscrita em cada pele. Os corpos
são superfícies onde foram impressas as marcas do tempo, é preciso não esquecer o que já foi para que se
possa saber o que ainda será. É preciso que a mulher do médico “não se perca, não se deixe perder” (EC, p.
279), implora o escritor cego ao perceber que seu olhar-palavra era o texto legítimo que sobreviveria ao
tempo em dissolução, sendo afinal imprescindível ao nascimento dessa narrativa que, em detrimento de
todas as formas de aparência, desvela que paradoxalmente “só num mundo de cegos as coisas serão o que
verdadeiramente são” (EC, p. 128).
6 Para concluir
Todas elas partiram da dificuldade de escrita de Luísa para enfim, no século XX, conseguirem inscrever as
suas histórias grafadas nas telas de Paula, nos contos da filha de Walter, ou nos “olhos narrativos” da mulher
do médico. Todas essas mulheres transformaram o silêncio de Luísa em pausa significativa. Por isso, Paula
venceu o mutismo a que teria sido condenada por sua história familiar, do mesmo modo que a filha de
Walter rompeu com a calada condição de indesejada e que a mulher do médico ultrapassou a silencial
condição da cegueira de que se tornara trágica espectadora.
Essas personagens foram capazes de inscrever suas falas no viés do silêncio. Por meio de seus percursos,
escreveram uma trajetória de luta pela ocupação e pela posse dos espaços, porque todas estavam marcadas
pela pulsão – que também se quer sexual – de sobrevivência e, por isso, puderam enfrentar e vencer o
desabrigo a que Luísa tinha sido condenada. Em ficção, elas construíram para o fim do século XX uma outra
história, e é, por isso, que aqui falo de mulheres que não se deixaram morrer e que produziram, em vida, uma
outra possibilidade de “efeito de real” para o feminino.
Notas
1
O presente trabalho faz parte do projeto de pesquisa “E[ç]as Mulheres: um estudo da presença
feminina na narrativa de Eça de Queirós”, que contou com o apoio da Fundação Universitária José
Bonifácio, por meio do Prêmio Antonio Luís Vianna, de 2006.
2 Aula inaugural da cadeira de Semiologia Literária do Colégio de França, pronunciada dia 7 de
janeiro de 1977.
3 Parto da concepção de que para Barthes (1989) “língua e discurso são indivisos, pois eles
deslizam segundo o mesmo eixo de poder” (p. 31).
4 Para as citações do texto, usarei respectivamente as abreviações: PB; PP, VP e EC.
5 Cito: “Num país em que a ocupação geral é estar doente, o maior serviço patriótico é,
incontestavelmente, saber curar.”
Referências
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1989.
BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1989.
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998.
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
JORGE, Lídia. O Vale da Paixão. Lisboa: Círculo de Leitores, 1999.
MACEDO, Helder. Pedro e Paula. Lisboa: Editorial Presença, 1998.
NAZIO, Juan-David. O livro da dor e do amor. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1997.
ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. São Paulo: Ed. da
UNICAMP, 1997.
PAZ, Octávio. A dupla chama: amor e erotismo. São Paulo: Siciliano, 1994.
QUEIRÓS, Eça de. O Primo Basílio. Lisboa: Livros do Brasil, s/d.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
SENNETT, Richard. O declínio do homem público – As tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia
das Letras, 1988.
TOMASELLI, Sylvana; PORTER, Roy. Estupro. Rio de Janeiro: Rio Fundo, 1992.
Dados da autora:
Monica do Nascimento Figueiredo
* Doutora em Letras Vernáculas/Literatura Portuguesa – UFRJ – Pós-doutora – Universidade de Coimbra –
e Professora de Literatura Portuguesa – Faculdade de Letras/UFRJ
Endereço para contato:
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Faculdade de Letras – Departamento de Letras Vernáculas
Avenida Brigadeiro Trompowsi, s/nº
Cidade Universitária – Ilha do Fundão
21949-900 Rio de Janeiro, RJ – Brasil
Endereço eletrônico: [email protected]
Data de recebimento: 3 maio 2007
Data de aprovação: 6 set. 2007
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