Anais do XI Encontro Internacional da ANPHLAC
2014 – Niterói – Rio de Janeiro
ISNB 978-85-66056-01-3
Uma história para o Novo Reino de Granada: aproximação à
narrativa de Lucas Fernández de Piedrahita
Juan David Figueroa Cancino*
Um inusitado encontro entre um bispo e um corsário
Em uma das suas crônicas histórico-novelescas, publicada em 1886 no livro
Los Piratas de Cartagena,1 a escritora colombiana Soledad Acosta de Samper –
uma das mais prolíficas narradoras ibero-americanas do século XIX – reconstrói o
suposto encontro entre o flibusteiro galês Henry Morgan e o recém-nomeado bispo
do Panamá, Lucas Fernandez de Piedrahita (1624-1688). Morgan era famoso por
seus ataques e pilhagens nos domínios hispânicos do Caribe na segunda metade
do século XVII. Corria o ano1677.
Na conversação fictícia entre os personagens, Morgan aparece arrependido
pelos atropelos dos seus capitães durante o saque à cidade de Santa Marta, na
qual Fernández de Piedrahita ocupava, até então, o cargo de bispo. Ele havia sido
agredido por dois capitães de Morgan para revelar o lugar onde escondia um
suposto tesouro – continua a narradora –, mas como vivia de uma forma bastante
modesta, só entregou a única joia que possuía: um anel pastoral com um belo rubi
engastado. Depois, foi conduzido como prisioneiro à ilha de Providência, perto da
costa da Nicarágua.
No relato de Soledad Acosta, Morgan é representado como um herege
compungido que na infância havia sido cristão por influência de sua mãe, uma
católica irlandesa que se viu obrigada a renegar sua fé, mas a conservava
silenciosamente. O pirata galês perdoa Piedrahita e, para redimir-se, concede-lhe
a realização de seu desejo de voltar a Cartagena – não a Santa Marta – onde se
encaminharia para ocupar a nova cadeira eclesiástica no Panamá.
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O episódio referido mistura alguns elementos reais com outros imaginários.
O saque em Santa Marta realmente aconteceu; Piedrahita efetivamente foi
agredido e depois promovido do bispado de Santa Marta para o do Panamá, uma
importante designação naquele tempo. Mas, todos os detalhes do diálogo, como o
da compunção de Morgan, sem dúvida são uma ficção com fins dramáticos.
Soledad
Acosta
também
apresenta
alguma
informação
biográfica
comprovada historicamente sobre Piedrahita. Menciona, por exemplo, seu avô por
linha materna, Juan Muñoz de Collantes, que foi um dos “conquistadores” dos
atuais territórios do Peru, Equador e Colômbia. Escreve o seguinte a respeito dele:
...su mérito principal consistió en ser el bisabuelo de uno de los hombres
más notables que registran nuestros anales, tanto porque fue un prelado
digno hijo de los apóstoles de Jesucristo, como por ser un historiador
2
notabilísimo. Hablamos de don Lucas Fernández de Piedrahita.
Certamente, antes que por sua carreira eclesiástica ou pelo encontro com o
pirata Morgan, Piedrahita ocupa um lugar na memória histórica colombiana –
embora se trate de um lugar ambíguo e que tem mudado com o tempo – por ser
autor de uma das obras consideradas fundacionais na biblioteca histórica
colombiana: a Historia general de las conquistas del Nuevo Reyno de Granada,
publicada em 1688, no mesmo ano da morte dele no Panamá, aos 64 anos. Havia
nascido em Santafé de Bogotá.3
Essa Historia general é o objeto do presente artigo. Meu interesse pelo
tema originou-se na pesquisa de doutorado que estou desenvolvendo na
Universidade de Brasília (UnB), relacionada à construção da memória histórica
sobre os indígenas chibchas (ou muiscas) na Colômbia do século XIX, sob a
orientação do professor Jaime de Almeida.
A principal motivação é compartilhar algumas reflexões em curso relativas
ao papel de Piedrahita na tradição historiográfica colombiana e, sobretudo, sua
contribuição à gênese da ideia de civilização chibcha. Para tanto, me apoiarei em
algumas comparações que considero de grande valor heurístico, e focarei na
2
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retórica e representação visual dos soberanos muiscas, apoiando-me na análise
de dois frontispícios da Historia general que ainda não receberam suficiente
atenção acadêmica.
Duas obras chave da biblioteca neogranadina: Acosta e Piedrahita
Antes de adentrar na Historia general, voltemos a Soledad Acosta de
Samper. Ela era filha de Joaquín Acosta, político, cientista e historiador amador
que escreveu o Compendio histórico del descubrimiento y colonizacion de la
Nueva Granada en el siglo décimosexto.4
O Compendio de Acosta foi a primeira narrativa abrangente relativa ao
“descobrimento”
e
“conquista”
da
Nova
Granada
impressa
depois
da
Independência do país. Convenciona-se dizer que a “conquista” da Nova Granada
acabou com o estabelecimento da Audiência na cidade de Santa Fé (hoje Bogotá)
e a morte de Gonzalo Jiménez de Quesada, o líder da primeira expedição
espanhola que penetrou muitas léguas dentro do território. Logo depois de Acosta,
apareceram outras obras com um escopo ainda mais amplo, como as de José
Antonio de Plaza e José Manuel Groot.5 Porém, entre 1688 e 1848, quer dizer, ao
longo de mais de 150 anos, a principal referência que circulou acerca dessas duas
etapas neogranadinas (descobrimento e conquista) foi o texto de Lucas Fernández
de Piedrahita. Tinha razão Juan Melendez no elogio que lhe faz na primeira edição
da Historia general, ao caracterizá-la como: “uma emenda pública de todas as
Histórias antigas” e prognosticar que “servirá de modelo para as futuras.”6
Por que esta proeminência? Principalmente por duas razões7. Em primeiro
lugar, a razão mais obvia: porque foi a única obra impressa que tratava
especificamente do recorte espacial da Nova Granada naquele período. Outros
“cronistas” já haviam narrado sobre o assunto extensamente, começando por
Jiménez de Quesada num texto hoje perdido, passando por Juan de Castellanos e
pelos franciscanos Frei Pedro Aguado e Frei Pedro Simón. Mas esse três últimos
(Castellanos, Aguado e Simón) cobriram o que se conhecia como Tierra Firme
(que incluía além da Nova Granada o território da Venezuela) sem efetuar um
3
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recorte na primeira região. E, mais importante, as partes de seus escritos
correspondentes à Nova Granada permaneceriam inéditas até a segunda metade
do século XIX, quando houve um esforço das elites letradas neogranadinas por
localizar e publicar as “crônicas” pertencentes aos limites da sua república, assim
como ocorreu no resto da Ibero-América.8
Em segundo lugar, o privilégio da Historia general de Piedrahita deveu-se a
seu caráter sucinto e balanceado, com um estilo literário mais trabalhado e uma
leitura mais fácil de acompanhar que os outros textos. Pode-se inferir que ele
planejou seu livro como um texto de divulgação e, assim como Joaquín Acosta, o
endereçou a uma audiência ampla; no caso do Piedrahita os leitores hispânicos,
no caso de Acosta, o público culto da Euro-américa. Também como Acosta,
Piedrahita deixa clara sua intenção – com a falsa modéstia habitual na etapa
colonial – de não ser mais que uma sorte de “tradutor” e reorganizador de obras
anteriores, tomando uma informação já existente e simplesmente melhorando o
estilo.9
De todo esto se infiere que no tengo más parte en esta obra, que
pretendo dar á la prensa, que la que se me puede atribuir por haber
reducido á cómputo de años y á lenguaje ménos antiguo la que dejaron
escrita los autores que van citados, sin otra adición que la verosimilitud
de las máximas y motivos que tuvieron los Reyes Indios y Cabos
10
españoles en sus empresas.
Mas o papel de mediador não se limita ao estilo, pois Piedrahita realmente
altera de forma substancial a arquitetura das narrativas anteriores. Ao dispor
separadamente as “noticias” do que ele denomina os “Reis Índios” e dos
espanhóis, com o intuito de criar ordem no caos informativo de seus
predecessores, Piedrahita estava efetuando uma operação historiográfica
particular, uma reorganização da memória colonial neogranadina.11 Na verdade,
não estava só “separando” essas informações, já que cria uma narrativa
completamente nova.
4
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Os muiscas na Historia general de Piedrahita
Piedrahita anunciou duas partes da Historia general,12 mas só publicou a
primeira delas: um volume de 599 páginas composto de 12 “livros”, cada um deles
dividido em capítulos. Cronologicamente, cobre desde a etapa anterior à chegada
dos espanhóis, no que denomina de “reis índios”, até o ano 1563.
O livro I oferece uma descrição geral do Novo Reino, suas províncias e as
“nações” índias que o habitavam, com ênfase para os muiscas, a quem chama
Bogotáes ou Mozcas. Para ele, esta era a “nação” mais “política” do Novo Reino:13
“habitan en el centro y corazón de todo el Reino, y es su provincia como el meollo
de toda la tierra”.14 Mais da metade do Libro I e todo o livro II descrevem este
grupo antes da chegada dos espanhóis (costumes, leis, religião e organização
política). Já a partir do livro III trata da governação de Santa Marta, no litoral
caribe, ponto de partida da primeira expedição que invadiria o território muisca em
1537, remontando o curso do rio Magdalena, sob a liderança do já mencionado
Gonzalo Jiménez de Quesada.
A narrativa da conquista dos muiscas abarca os livros IV a IX.15 Os livros X,
XI e XII abordam questões administrativas, como o estabelecimento da Audiência,
querelas entre conquistadores, fundação de cidades e “entradas” menores contra
outros grupos ameríndios16. A atitude do escritor com relação aos muiscas difere
das obras precedentes, que os contemplam quase exclusivamente através do
prisma da execrável idolatria. É claro que Piedrahita também enfatiza esse
aspecto e ressalta a influência do demônio entre eles. Os muiscas não deixam de
ser idólatras, e de forma similar aos cronistas da Nova Espanha, repúdia os
sacrifícios humanos que praticavam.17 Porém, o paganismo dos muiscas resulta
relativizado ao encontrar nele traços elementares da cosmovisão católica.18 Por
exemplo, refere que acreditavam em um único criador e identifica a Bochica, herói
civilizador do povo muisca, com o apóstolo São Bartolomeu.19
Assim, Piedrahita tece um sentido de continuidade entre a etapa préhispânica e o período posterior. Integra plenamente o passado muisca na narrativa
do
espaço
colonial
neogranadino,
que
adquire
todas
as
conotações
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individualizadas de uma pátria americana. Mas, ao fazê-lo, estabelece uma dupla
separação que se tornará comum em obras posteriores: entre os muiscas
avultados do passado e seus descendentes índios, que covenientemente brilham
por sua ausência no relato; e entre os muiscas e outros grupos indígenas, que se
enquadram no tipo ideal dos índios vis selvagens. O exemplo mais notório são os
panches, maiores rivais dos muiscas. Só os taironas recebem certa avaliação
positiva.20
A representação dos soberanos muiscas
Um aspecto marcante dessa recaracterização dos muiscas tem a ver com o
tratamento de seus chefes. Qual o vocabulário que utiliza Piedrahita? Em geral os
chama de reis e caciques, dependendo da categoria. 21 Alguns deles são
denominados “caciques poderosos”, “eleitores”, “príncipes”, “senhores de muitos
vassalos”, “monarcas gentis”. A respeito das suas residências, fala em “cortes”,
“palácios” ou “alcaçares”, “casa real”, “Cabeça do Reino”.22 E para seus
funcionários usa a palavra “ministros”.
Adverte-se um léxico totalmente enraizado no universo monárquico tardomedieval. Nada novo. Aqui, nos deparamos com o problema da linguagem e a
transposição conceitual nas crônicas de Índias, tão tratado na historiografia sobre
o período, por exemplo, nos trabalhos de Anthony Padgen. Dentre outras coisas,
ele estuda as implicações da escolha do termo “império” por Hernando Cortés ao
descrever o encontro com os culhua-mexica, ou astecas, nas célebres Cartas de
relação encaminhadas a Carlos V.23
Acorde com a estrutura do universo feudo–vassálico, Piedrahita observa
que, no pináculo da sociedade muisca, havia dois grandes reis com vários
senhores subordinados a eles. Cada um dos senhores ocupava uma província ou
vale onde ostentava domínio absoluto de muitos vassalos. O primeiro soberano
era o Bogotá, apelidado também Zippa – título que significava “grande senhor”.
Ele se posicionava na “Cabeza de todo el Nuevo Reino de Granada”. Era o
monarca mais poderoso, e suas terras as mais extensas. Entretanto, sua linhagem
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não era muito antiga. Seu reino havia crescido muito, as expensas do poder de
Tunja, só nas décadas anteriores à chegada dos espanhóis, o que desencadeou o
enfrentamento entre os dois. Sob os domínios de Bogotá, havia outros senhores
menos poderosos, como o Ubaque, o Guatavita e o Sugamuxi, que era também o
sumo sacerdote. A sede de seu governo situava-se em Bacatá.
Já o segundo soberano era Tunja, também conhecido por Zaque. Ocupava
um território menor que o de Zippa e tinha uma linhagem mais longa. Governava
sobre poderosos senhores como o Tundama. A sede de seu governo era Tunja.
Piedrahita menciona aspectos característicos da figura e do governo dos últimos 4
zippas: Saguanmachica, Nemquene, Saquesazipa e Tisquesusa; e dos últimos 6
zaques:
Unsahua,
Tomagata,
Tutasuha,
Michúa,
Quimuinchatecha
e
Aquiminzaque. Aqueles governos aparecem datados de acordo com o calendário
cristão. Por exemplo, Saguanmachica começaria a reinar “por los años de mil y
cuatroscientos y setenta”.24 Em grande medida, a narrativa foca na expansão
territorial dos zippas e as batalhas livradas contra os zaques e seus aliados.
Apreciam-se elementos contextuais e parafernália do mundo bélico europeu:
multidão de guerreiros, vestimentas, esquadrões, organização tática, dentre outros
aspectos. Mas, não contente com isso, o autor data cada batalha e a nomeia
baseado nos lugares onde ocorreram: Chocontá, Las Bueltas, Portachuelo e
Voqueron.
Agora, passemos para um dos elementos que mais claramente reforçam
essa narrativa textual sobe os soberanos muiscas. Trata-se de dois “frontispícios”
que adornam a primeira edição do texto com medalhões dos reis e caciques de
Bogotá e de Tunja.25 Deixamos fora da análise o terceiro frontispício, que retrata
alguns capitães espanhóis que entraram no Novo Reino, já que não diz respeito à
memória indoamericana.
Torna-se útil fazer uma comparação heurística com a Historia general de
los hechos de los castellanos en las islas i Tierra Firme del Mar Oceano, do
Cronista Mayor de Índias, Antonio de Herrera y Tordesillas, obra publicada em
quatro volumes entre 1601 e 1615.26 Por que a comparação? Primeiro, porque o
título do texto de Piedrahita remete diretamente ao de Herrera. Mas, há outro
7
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aspecto ostensível: o livro de Herrera também tem um frontispício de soberanos
indígenas, nesse caso da dinastia dos incas, no começo da quinta “década”.
Como dado suplementar, é no final dessa “década” que se inicia a narração da
conquista do Novo Reino de Granada – continuada na sexta “década” – que é
uma das fontes que Piedrahita usa na sua Historia.27
Lembre-se que Herrera, como Pedro Martir de Angleria, dividiu sua Historia
em “décadas”, à maneira do historiador romano Tito Lívio. E as páginas iniciais de
algumas
décadas
estão
adornadas
com
um
frontispício
desenhado
especificamente para tal fim, com gravuras de “retratos” em forma de medalhão
dos principais atores hispânicos, e vinhetas representando eventos e lugares
notáveis
da
narrativa.
Dessa
maneira,
cada
frontispício
representava
imageticamente os principais temas e personalidades tratados textualmente.28
Figura 1.
Figura 2.
8
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No primeiro frontispício de Herrera, os indígenas do Caribe são
representados de maneira sumária nas batalhas contra os invasores ibéricos
(figura1). Já no segundo (figura 2), aparecem várias gravuras dos costumes e
deuses astecas, aparentemente inspirados em manuscritos pictográficos coloniais,
de acordo com Patrick Lesbre.29 Entretanto, a imagem da dinastia inca é diferente,
já que não há vinhetas com eventos ou aspectos idiossincráticos da cultura
aborígine, só os medalhões dos monarcas incas, os quais têm escrito ao redor o
nome de cada personagem e indicam sua “sucessão dinástica”: “primeiro ingá”,
“segundo ingá”, etc. As vinhetas de eventos e batalhas aparecem em forma
quadrada com uma breve descrição, tal como na imagem da Historia de Piedrahita
(figura 3).
Figura 3.
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De acordo com a historiadora Diana Fane, o frontispício da quinta “década”
é de imenso valor por tratar-se da primeira imagem europeia da dinastia inca.30
Fane estudou suas fontes e a influência que exerceu nas representações
iconográficas dos incas, constatando que serviu de inspiração para artistas nativos
de Cuzco. Ou seja, tratar-se-ia de um caso de circularidade cultural.31 Seria
interessante fazer um inquérito semelhante com relação aos frontispícios de
Piedrahita, uma vez que eles também são uma das poucas representações
iconográficas dos muiscas do período colonial, e talvez a primeira elaborada na
Espanha.32
Figura 4.
Fane também identificou o principal modelo europeu do frontispício dos
incas: uma edição em latim de Comentário sobre a vida dos doze césares de
Suetonio (1591), escrito pelo bispo de Antuérpia Laevinus Torrentius (15251595).33 A respeito comenta: “The similarity of the Inca portraits to Roman coin
portraits visually reinforced the idea that the Inca belonged to a chapter in Peru's
ancient history and had no relevance to contemporary Andean society”.34 No
entanto, em minha opinião, essa não é a única interpretação possível. Assim como
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no caso de Piedrahita, o frontispício dos incas pode ter sido uma maneira de criar
a ilusão de continuidade simbólica entre uma grande “monarquia gentil” e a ainda
maior e triunfante monarquia católica espanhola. E, no caso de Piedrahita,
pretenderia chamar a atenção no espaço imperial para o passado glorioso do
Novo Reino de Granada, região pouco considerada até então nas narrativas
globais da monarquia católica.
Os frontispícios da obra de Piedrahita são de uma notável qualidade gráfica
e misturam os dois padrões usados por Herrera: com medalhões e vinhetas de
batalhas para os reis de Bogotá, e só com medalhões para os reis de Tunja. Por
outro lado, Piedrahita inclui retratos tanto dos “reis” quanto dos principais
senhores. Dois senhores na primeira imagem: Ubaqui e Guatabita; e seis
senhores na segunda imagem: Tundama, Busbansá, Toca, Icabuco e Gameza,
mais um personagem sem identificação específica, com o rótulo “cacique
poderoso y terceiro eleitor”, que deve ser o cacique de Pezca.35 O adjetivo
“poderoso” acrescentado ao substantivo cacique reforça a ideia de grandeza.
Figura 5.
Figura 6 .
11
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Como era habitual nas representações de indígenas da época, as facções
dos muiscas não são fieis exemplos do fenótipo americano. Eles têm um ar de
europeus, com cabelos compridos. Alguns elementos da vestimenta têm a ver
com a descrição dos personagens feita por Piedrahita (como o estandarte e a
medalha em forma de sol do Sugamuxi, cujo templo estava consagrado
precisamente a esse astro), mas parece que o trabalho de caracterização
idiossincrática de cada soberano foi bem menos esforçado que no frontispício de
Herrera, no qual participaram artistas nativos.36 Será que aqui, como em outros
casos comprovados, o artista simplesmente tomou emprestados semblantes
previamente elaborados de indígenas e os adequou aos muiscas? É provável,
mais no estado atual da pesquisa ainda não podemos responder essa questão.
Quanto à representação das batalhas dos muiscas, tem bastante semelhança com
os eventos bélicos do frontispício da primeira “década” de Herrera. Mas, no caso
de Piedrahita, os zippas e os zaques são levados em uma sorte de mesas ou
“andas”. No primeiro frontispício aparecem dois escudos de armas: o da
monarquia espanhola, e do príncipe Vicente Gonzaga, o mecenas protetor da
edição.37
Quem foi o artífice das gravuras? No texto aparece a letra inicial e o
sobrenome de J. Mulder, que remeteria ao artista holandês Joseph Mulder.38 Uso
o condicional de propósito. Até agora, a maioria dos comentaristas supõe que o
lugar de impressão da obra é a cidade de Antuérpia, na casa da famosa linhagem
de impressores Verdussen, como está consignado na capa interna da edição de
1688.39 Contudo, o historiador Stijn van Rossen, especialista na empresa da
família Verdussen, demonstrou que se trata de uma informação falsa, e que o
verdadeiro impressor é o sevilhano Thomas López de Haro, que “pirateou” vários
títulos dos Verdussen destinados ao mercado hispano-americano.40 Se for assim,
a atribuição dos frontispícios à mão de Joseph Mulder torna-se bastante
questionável, e se abrem várias incógnitas interessantes para explorar mais a
fundo. Por exemplo, qual a motivação de López de Haro para piratear a marca dos
Verdussen? Pode-se dever à reputação de Antuérpia como um dos principais
centros de edição de livros em castelão na segunda metade do século XVII, como
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argumenta van Rossen,41 o que daria à Historia general uma maior aceitação na
república internacional das letras. Não é à toa que a Espanha era associada com
o denso estigma da lenda negra.
Ao modo de conclusão
A Historia general é um dispositivo discursivo localizado entre os projetos
historiográficos de Antonio de Herrera e Garcilaso de la Vega el inca, quer dizer,
entre a escola imperial e o patriotismo criollo, de acordo com a proposta de David
Brading. O patriotismo criollo do século XVII tem sido mais estudado nos dois
espaços mais densos dos países da América Hispânica (México e Perú), porém,
se conhece menos em outros contextos periféricos como a Nova Granada. Além
do mais, a Historia General ainda tem uma profunda ligação com as estratégias
pessoais e o percurso biográfico de Piedrahita, um mestiço – como Garcilaso –
que diferentemente dele conseguiu escalar na hierarquia oficial do establishment
colonial graças a sua vinculação com os jesuítas. Concluindo, a exploração da
história da Historia de Piedrahita é uma tarefa ainda em aberto.
*
Doutorando em História na Universidade de Brasília.
“Los piratas en Santa Marta. Cuadro Cuarto. El obispo Piedrahita y el filibustero Morgan en Santa
Marta”. In: ACOSTA DE SAMPER, Soledad. Los piratas en Cartagena: crónicas histórico
novelescas.
Bogotá:
Imprenta
La
Luz,
1886,
pp.
149-167.
Disponível
em
http://www.banrepcultural.org/blaavirtual/historia/pircar/pircar7.htm (21 julho 2014).
2
Ibíd.
3
FERNÁNDEZ DE PIEDRAHITA, Lucas. Historia general de las conquistas del Nuevo Reyno de
Granada. [Sevilla?]: [Thomas López de Haro?], 1688. Embora os dados de cidade e impressor
sejam Amberes-Juan Baptista Verdussen, respectivamente, mais à frente explicamos por quê essa
informação não parece confiável. O livro foi reimpresso quatro vezes: 1881, 1942, 1973 e 1986,
sendo a última uma edição fac-similar. O topônimo Nova Granada ou Novo Reino de Granada
refere-se à unidade territorial e administrativa colonial que corresponde grosso modo à Colômbia
na atualidade, mais o istmo de Panamá. No século XVIII o território foi elevado à categoria de vicereino. Esse nome foi usado até a segunda metade do século XIX, pois uma vez concluída a
independência e o experimento abortado da Colômbia bolivariana, o país adotou o nome de
República da Nova Granada e Confederação Granadina, dentre outros.
4
ACOSTA, Joaquín. Compendio histórico del descubrimiento y colonizacion de la Nueva Granada
en el siglo decimosexto. París: Imprenta de Beau, 1848.
1
13
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5
PLAZA, José Antonio de. Memorias para la historia de la Nueva Granada desde su
descubrimiento hasta el 20 de julio de 1810. Bogotá: Imprenta del Neo-Granadino, 1850; GROOT,
José Manuel. Historia Eclesiástica y Civil de la Nueva Granada, escrita sobre documentos
auténticos. Bogotá: Foción-Mantilla, 1869-1870, 3 vols.
6
FERNÁNDEZ DE PIEDRAHITA, Historia general, op. cit., s. p. Trad. JDF.
7
Cf. BOLAÑOS, Álvaro Félix. Barbarie y canibalismo en la retórica colonial. Los indios pijaos de
Fray Pedro Simón. Bogotá: Cerec, 1994, p. 37.
8
Esse esforço começou justamente com Joaquín Acosta. Cf. FIGUEROA, Juan David. “La
formación intelectual de Joaquín Acosta y el Compendio histórico del descubrimiento y
colonización de la Nueva Granada (1848)”. In: Anuario Colombiano de Historia Social y de la
Cultura,
Vol.
38
No.
2,
pp.
182-216.
Disponível
em:
http://www.revistas.unal.edu.co/index.php/achsc/article/view/28088.
9
BOLAÑOS, Barbarie y canibalismo, op. cit.
10
FERNÁNDEZ DE PIEDRAHITA, Historia general, op. cit., s. p.
11
Cf. RESTREPO, Luis Fernando. “The ambivalent nativism of Lucas Fernández de Piedrahita´s
Historia general de las conquistas del Nuevo Reyno de Granada (1688)”. In: BAUER, Ralph;
MAZZOTTI; José Antonio (eds.). Creole subjects in the colonial Americas. Empires, texts,
identities.USA: The University of North Carolina Press, 2009, 334-354.
12
FERNÁNDEZ DE PIEDRAHITA, Historia general, op. cit., pp. 598-599.
13
Lembre-se que na época não existia a noção de civilização. Seus equivalentes eram policia,
político e civilidade. O conceito de nação neste contexto é o equivalente de grupo étnico.
14
Continua assim: “debajo de la cual comprendemos la de Guane, que cae en la jurisdicción de
Vélez, y la de Muzos y Colimas, que está entre ella y la de los Panchez.”. Ibíd., p. 15. Piedrahita
territorializa a história: identifica o espaço geográfico do Novo Reino de Granada com o ocupado
antiguamente pelos muiscas: “Esto es por mayor el Nuevo Reino de Granada, que en la gentilidad
se llamó de Cundinamarca [...] La principal de sus poblaciones [del Nuevo Reino], y corte del
bárbaro Rey, que la dominaba, era Bogotá [...] que al presente está a cinco leguas de la ciudad de
Santa Fé, y conserva el antiguo nombre, que tenia, puesta en cuatro grados y medio de la Línea
destavanda del Norte... ”, p. 4.
15
Os últimos episódios da conquista da nação muisca são: o massacre de Aquiminça que e outros
caciques muiscas por Hernan Pérez de Quesada (livro IX, capítulo I); a rendição dos caciques
Ocabita e Lupachoque (livro IX, capítulo IV); e a rebelião dos guanes (livro XI, capítulo II).
16
Por exemplo, os omeguas (livro X, capítulo V); os carares (livro X, capítulo IV); os picáras (livro
X, capítulo VII); os chitareros (livro XI, capítulo V) e os tayronas (livro XI, capítulo IX).
17
FERNÁNDEZ DE PIEDRAHITA, Historia general, op. cit. p. 22
18
“Creian todos los indios que había un autor de la naturaleza, que hizo el cielo y la tierra; mas no
por eso dejaban de adorar por Dios al Sol por su hermosura, y a la Luna, porque la tenían por su
Mujer.” Ibíd., p. 17; “Esperaban el juicio universal y creían la resurrección de los muertos”, ibíd.;
“Tenían alguna noticia del diluvio, y de la creacion del mundo...”, ibíd. A respeito de Bochica
comenta: “Predicábales Bochica muchas cosas buenas (según refieren, y sí lo eran, bien se ve el
poco caso que hicieron dellas)”, p. 18.
19
Ibíd., p. 19.
20
LANGEBAEK, Carl Henrik. Los herederos del pasado. Indígenas y pensamiento criollo en
Colombia y Venezuela. Bogotá: Universidad de los Andes, 2009, vol. 1, p. 139. É verdade que
Piedrahita denota – assim como outros cronistas – certa admiração pelos costumes guerreiros dos
índios considerados mais selvagens, mas isso pode ser lido como uma estratégia retórica para
avultar o heroísmo dos seus adversários. Cf. RESTREPO, Luis Fernando. Un Nuevo Reino
imaginado. Las Elegías de varones ilustres de Indias de Juan de Castellanos. Bogotá: Instituto
Colombiano de Cultura Hispánica, 1999.
21
Porém, também usa o termo cacique para referir-se aos reis.
22
Parte desse léxico procedia da tradição narrativa anterior. De fato, Jiménez de Quesada nomeou
Valle de los Alcázares o território “descoberto” por ele.
23
Cf. a introdução de Anthony Padgen a CORTES, Hernan. Letters from Mexico. New Haven e
Londres: Yale University Press, 2001, p. LIV e ss. A respeito da transposição conceitual cf. o
14
Anais do XI Encontro Internacional da ANPHLAC
2014 – Niterói – Rio de Janeiro
ISNB 978-85-66056-01-3
clássico trabalho de John Elliot The old world and the new 1492-1650. Cambridge: Cambridge
University Press, 2000, p. 25.
24
FERNÁNDEZ DE PIEDRAHITA, Historia general, op. cit. p. 30.
25
Os frontispícios aparecem nas seguintes seções: o começo da obra (reis e caciques de Bogotá),
o começo do livro primeiro (reis e caciques de Tunja) e o começo do livro terceiro (capitães
espanhóis). Não conheço estudos específicos sobre esses elementos paratextuais.
26
A obra teve várias reedições nos séculos XVII e XVIII. Tanto para Herrera quanto para
Piedrahita, a expressão “história general” – consagrada já na tradição das crônicas indianas por
autores como Fernández de Oviedo e López de Gomara – refere-se a uma narrativa de
acontecimentos humanos, e não uma “história natural”, como a de Joseph de Acosta ou uma parte
da de Fernández de Oviedo.
27
Cf. a seção “Al lector” da Historia general de Piedrahita, s. p.
28
Tratou-se, com exceção do frontispício da quinta década que comentaremos logo à frente, de
uma verdadeira narrativa visual.
29
LESBRE, Patrick. “Gravures d’inspiration préhispanique dans les Frontispices de l’Historia
general de los hechos de los castellanos d’Antonio de Herrera (1601)”. In: e-Spania. Revue
interdisciplinaire d´études hispaniques et modernes [em linha]. Disponível em: http://espania.revues.org/23671 ; DOI : 10.4000/e-spania.23671 (27 de julho de 2014).
30
FANE, Diana. “Portraits of the Inca: notes on an influential European engraving”. In: Source.
Notes in the History of Art, Vol. 29, No. 3, pp. 31-39.
31
Circularidade entre a “cultura impressa” e a “cultura popular”. Nesse mesmo sentido, é bom
lembrar, seguindo a John F. Moffit e Santiago Sebastián, que o frontispício de Herrera é uma das
relativamente poucas representações gráficas dos ameríndios que foram produzidas dentro da
Espanha – principalmente como ilustrações de livros – em comparação com as que apareceram
em outros países europeus, como a famosa coleção de Theodor De Bry. A respeito do frontispício
de Herrera eles comentam: “the lavishly illustrated frontispiece of his Historia general […] is the
most elaborately decorated portada of any such historical account published in Spain”. MOFFIT,
John; SEBASTIÁN, Santiago. O brave new people. The European invention of the American Indian.
Albuquerque: University of New Mexico Press, 1996, pp. 230-236.
33
FANE, “Portraits of the Inca, p. 33.
Ibíd.
35
Piedrahita afirma que o acesso ao cacicado de Iraca ou Sogamoso não era hereditário, mas sim
em virtude da “eleição” feita por parte de quatro caciques, que denomina “eleitores”: Gameza,
Busbançá, Pezca y Toca. O candidato eleito devia ser das “nações” de Tobazá e Firabitoba.
Historia general, p. 53.
36
FANE, “Portraits of the Inca, p. 36.
37
O escudo da monarquia correspondia ao reinado de Carlos II da Espanha.
38
“J. Mulder fec.”. A palavra fec. logo após o nome do artista, é um diminutivo da conjugação latina
fecit, o que significaria que J. Mulder seria o autor do esboço, do desenho e da gravura do
frontispício. Cf. DE LOS REYES, Fermín. “La estructura formal del libro antiguo español”. In:
Paratesto, No. 7, p. 21.
39
“Amberes. Por Juan Baptista Verdussen”.
40
Stijn van Rossen, “The Verdussen and the international trade in catholic books (Antwerp,
Seventeenth Century)”. In: AILLARD ÁLVAREZ, Natalia (ed.). Books in the Catholic world during
the early modern period. Leiden: Brill, 2014, p. 47.
41
Ibíd. Infelizmente, parece que o trabalho de van Rossen ainda não é conhecido pelos principais
especialistas na obra de Piedrahita, como Luis Fernando Restrepo.
34
15
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Uma história para o Novo Reino de Granada